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sábado, 23 de novembro de 2024

Relações Brasil-China ganham nova dimensão com visita de Xi Jinping - Paulo Pinto (Linkedin)

 BRASIL-CHINA: “SOB VELAS CHEIAS, POR MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS EM DIREÇÃO A UMA TRILHA BRASILEIRA”. “TAMO JUNTO”.

Paulo Pinto
Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

É sabido que os chineses são chegados a elaborar metáforas para descrever, tanto iniciativas de política interna (vide meu artigo, em 17 de novembro corrente) quanto para anunciar propostas de inserção internacional. Daí, antes de sua chegada ao Brasil, o Presidente Xi Jinping publicou artigo, na imprensa brasileira, no qual antecipa, com o emprego de “imagens folclóricas”, as parcerias que gostaria de ver implementadas, durante sua visita oficial realizada a nosso País, durante o mês em curso.

Seguindo a própria lógica metafórica chinesa cabe lembrar o pensamento de Deng Xiaoping de que “cabe procurar a verdade através dos fatos”.

Nessa perspectiva, caberia assinalar os fatos de que:

- O artigo do Presidente Xi em questão afirma que “ As relações diplomáticas China-Brasil, estabelecidas em 15 de agosto de 1974, têm resistido às mudanças e turbulências na situação internacional nesses 50 anos e são cada vez mais maduras e dinâmicas. Têm promovido efetivamente o desenvolvimento dos dois países, contribuído positivamente para a paz e a estabilidade do mundo e oferecido um exemplo de cooperação ganha-ganha e futuro compartilhado entre dois grandes países em desenvolvimento.”

Visão mais realista dos fatos revela que, desde o “estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China” houve, a partir de 1974, principalmente, concessões do Brasil, em favor da China.  Desconheço, além do fato de que aumentaram, desde então, as importações de minérios e produtos agrícolas brasileiros, vantagens que a RPC nos tenha concedido nesta citada “cooperação ganha-ganha”.

Nessa perspectiva, quando transferimos a Embaixada do Brasil de Taipé, para Pequim, em 1974, influenciamos vários países na América Latina e África a agirem da mesma forma. Contribuímos, assim, para o reconhecimento internacional da RPC, com a redução da presença da “província rebelde de Taiwan” neste espaço.

- Um segundo fato, sempre com vantagens para a China, no sentido de uma “estratégia de parceria” com Pequim, foi realizado em junho de 1984. Durante visita do Presidente João Batista Figueiredo à China, naquele período, foram assinados importantes acordos que, enquanto beneficiaram ambas as partes, favoreceram mais a RPC no contexto da disputa que Pequim mantinha, então, com a antiga União Soviética, por liderança no “bloco socialista”, em momento que vigorava a “Guerra Fria” entre os EUA e a antiga URSS.

Pude acompanhar, como Segundo Secretário da Embaixada naquela capital, sob a Chefia do Embaixador Ítalo Zappa, a negociação para a assinatura de acordos: na área cultural; para a criação de Adidâncias Militares nas duas capitais; e o estabelecimento de consulados em São Paulo e Xangai. Cabe enfatizar que não concedíamos – no período do governo militar no Brasil - estas prerrogativas a país socialista algum, do “bloco soviético”. Mais uma vez, o exemplo foi seguido por países latino-americanos e africanos e tais providências foram passos adiante na nossa “estratégia de parceria” com vantagens para a China.

Após a ida do último Presidente militar brasileiro à RPC, foi assinado o acordo CBERS que é, como se sabe, um programa de cooperação tecnológica entre China e Brasil para a produção de uma série de satélites de observação da terra. Tive a oportunidade de, ainda em 1984, acompanhar a primeira missão brasileira, chefiada pelo Ministro Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, responsável então pelo programa espacial brasileiro. Nos deslocamos à cidade de Xian, para conhecer o avanço chinês, no setor de “sensoriamento remoto” e foi verificado, a propósito, que, naquele momento, contávamos com tecnologia superior aos chineses.

Em seguida, fomos a Xangai, para visitar o setor de fabricação de foguetes de lançamento de satélites, no qual havia evidente superioridade chinesa. A parceria continuava a avançar, com a transferência de tecnologia brasileira, na área de sensoriamento remoto, e chinesa, na fabricação de foguetes e lançamento de satélites.

- Na área cultural, o referido artigo do Presidente Xi, na imprensa brasileira, antes de sua chegada aqui, houve, a meu ver, omissão ou retrocesso significativos. Isto porque, no texto publicado ele menciona “as fofinhas capivaras, a bossa-nova, o samba e a capoeira são populares na China, enquanto festivais tradicionais como o da primavera e outros elementos de cultura chinesa como a medicina tradicional são cada vez mais conhecidos pelos brasileiros”.

Esquecido parece que ficou o fato de que, no início de 1985, no auge da popularidade de novelas brasileiras na televisão chinesa, se deu a visita de Lucélia Santos, com sucesso que divulgou enormemente o conhecimento do Brasil junto ao público chinês, que apenas recentemente era permitido acessar o que se passava pelo mundo, após o turbulento período da “Revolução Cultural”.

Na ausência do embaixador, eu exercia as funções de encarregado de negócios da embaixada em Pequim — com o pomposo título em chinês de “Taipan” [expressão que significa “poderoso estrangeiro”]. Cabia a mim, portanto, colaborar na elaboração do programa da atriz brasileira durante o período de sua permanência na China.

O evento inicial foi a organização de conferência de imprensa na sede de nossa representação diplomática. Cabe ressaltar que, naquela ocasião, havia mais jornalistas chineses presentes do que os que compareceram à embaixada dos EUA por ocasião da visita do Presidente Ronald Reagan, havia apenas algumas semanas.

Entre as curiosidades quando da ida de Lucélia à Grande Muralha, foi a multidão de fãs que quase desabavam da imensa construção, com enorme destaque na imprensa, enquanto, quase coincidindo com a mesma data, lá havia estado a atriz norte-americana Elizabeth Taylor, que só mereceu uma modesta foto em jornal.

O principal objetivo da ida de Lucélia à China era para receber o troféu “Águia de Ouro”, concedido a artista estrangeiro, na cidade de Hangzhou – conhecida por seu lindo lago e prato típico: A Galinha do Mendigo, cercado de uma história longa para contar. Fomos de trem, com passagens por Wuxi – antiga capital chinesa – Sujhou – minha cidade preferida, famosa por seus jardins e rios, que muito me lembra minha terra natal, Recife, – Shangai – maior centro industrial do país – até chegarmos ao local da premiação. Durante todo o percurso Lucélia era cercada por centenas de fãs, gritando “Isola”, tendo em vista sua personagem “Escrava Isaura” e o idioma chinês dificultar a pronúncia de palavras estrangeiras com a letra “R”.

A propósito, a referência a “capivaras fofinhas” no artigo em questão, me deixou a impressão de “interesse culinário”, tendo em vista a diversidade de ingredientes constantes da cozinha chinesa. De minha parte, por exemplo, enquanto servi naquele país, desenvolvi o gosto por sopa de cobras e abelhas fritas.

Cabe lembrar que, após sua visita inicial à China, em 1985, Lucélia Santos foi incluída em sucessivas visitas presidenciais brasileiras àquele país, nos Governos dos Presidentes Sarney e Fernando Henrique. Sempre foi recebida com afeto por dirigentes e povo daquele país.

- Em 1994, foi estabelecida a “parceria estratégica” entre Brasil e China, proposta pelo então Primeiro-Ministro Zhu Rongji, em visita ao Brasil. Na preparação de sua vinda a Brasília, tive o privilégio de estar em missão transitória na Embaixada em Pequim - a convite do Embaixador Roberto Abdenur, cuja competência profissional muito contribuiu para o sucesso da missão do dirigente chinês a nosso país.

Lembro, a propósito – conforme me traduziu um diplomata chinês – que a China já cultivava “parcerias” com diferentes países. O conceito de “estratégica”, no idioma chinês, contudo, variaria de acordo com cada parceiro. No caso da parceria estratégica com a Rússia (herdeira da URSS) significaria “paz”. Quanto aos EUA, “competição”. No que diz respeito ao Brasil aquele conceito significaria “cooperação futura”.

Essa breve recapitulação da evolução política da estratégia da parceria Brasil China – que não pretende ser exaustiva e omite os detalhes econômicos e comerciais – almeja, pretensiosamente, contribuir para a reflexão sobre uma futura “parceria para a prosperidade”, entre os dois países – conforme expressa em linguagem cheia de metáforas o mencionado artigo do Presidente Xi - de forma a criar vantagens mútuas (“win-win situations”), inclusive em projetos conjuntos a serem desenvolvidos na África e América Latina.

Sabe-se que, em países daqueles continentes, uma vez incluídos em projetos da RPC de “cinturão e rota das sedas”, ouvem-se críticas frequentes a formas autoritárias e métodos de produção restritivos a trabalhadores chineses, com a exclusão de nacionais onde empresas da RPC se instalam. É citada, ademais, a concentração de lucros para os investidores orientais, enquanto os receptores adquirem dívidas excessivas.

Nessa perspectiva, poderia haver esforço para alinhar a “eficiência e necessidades chinesas de acesso a insumos para seu continuado crescimento econômico”, com a nossa capacidade de “promover o diálogo entre diferentes culturas”[1], bem como procurar soluções comuns para problemas compartilhados entre países em desenvolvimento, enquanto se busca a geração de benefícios mútuos.

Nesse sentido, inicialmente, no que diz respeito às relações com a China, caberia definição clara de nossos objetivos de inserção internacional, que não poderiam se resumir a “reagir” a propostas chinesas de “cinturão e rota das sedas”. Para a continuação de uma “estratégia da parceria”, cabe pensar, por exemplo, em uma “trilha” brasileira.

No momento, a China está expandindo seus interesses, em busca de acesso a recursos naturais e novos mercados na África e América Latina, onde, conforme mencionado acima, tem encontrado incentivos e resistências.

Daí, na perspectiva sugerida, a “soft power” brasileira, no sentido da facilidade de “negociação cultural” e a identificação de interesses compartilhados, com vistas à prosperidade de todas as partes, poderiam, gradativamente, vir a configurar mais uma vertente da “estratégia da parceria” que se pretende estabelecer entre o Brasil e a China.

O objetivo seria manter um fluxo de livre comércio e intercâmbio de ideias, facilitando a integração de mercados e a convivência entre diferentes formas de governança. Assim, a parceria sino-brasileira almejaria novos “networks” de integração de cooperação (“conectividade” para empregar o termo preferido por Pequim) entre os países a serem “conectados pelo cinturão e rota chineses” e por eventual “trilha” brasileira.

Caberia, no entanto, introduzir conceito dinâmico, como o da “prosperidade compartilhada” para consolidar no Atlântico Sul uma região de paz, estabilidade, democracia e desenvolvimento. Esta parte do mundo se apresenta como uma imensa fonte de oportunidades, não apenas para o Brasil, mas para todos os países que o margeiam.

Nossa capacidade de transformar essas oportunidades em benefícios concretos depende da coordenação cada vez mais estreita com os demais países da região.

Nesse contexto, seria de grande importância para a “trilha” brasileira um “Corredor Bioceânico”, que ligasse áreas de produção agrícola no Brasil, por ferrovia, ao Porto de Chancay, no Peru. O investimento chinês, por exemplo, neste projeto teria especial valor, de forma a facilitar o escoamento de nossa produção de commodities, que é grande parte do comércio que temos com a China, bem como baratearia essa produção.

De retorno ao imaginário antecipado pelo dirigente chinês, seu artigo aqui publicado afirma, também, que “No mundo de hoje, transformações de escala nunca vista em um século estão ocorrendo em um ritmo acelerado, e novos desafios e mudanças continuam surgindo. Diz um ditado chinês: "Em corrida de barcos, vencem aqueles que remam com força; em regata de veleiros, ganham aqueles que ousam avançar sob vela cheia." China e Brasil, dois grandes países em desenvolvimento nos hemisférios leste e oeste e membros importantes do Brics, devem se unir mais estreitamente, ousar ser pioneiros e caçadores de ondas, e juntos abrir novas rotas de navegação que levam a um futuro mais belo que os povos dos dois países e a humanidade merecem.”

- Em conclusão, talvez fosse um fato mais realista – sempre na lógica de Deng Xiaoping - simplificar a proposta do Presidente Xi, que visaria a uma evolução da suposta “parceria estratégica” atual para uma “parceria estratégica global”, com capivaras fofas, caçadores de ondas, por apenas “velas cheias” que, no idioma codificado que empregamos no “beach-tennis” em Copacabana, signifique apenas rumo a um “tamo junto”.

[1] Vide “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, em 1928, que nos indica o caminho brasileiro de aceitar o que nos é estranho sem deixar de transformá-lo em algo mais próximo de nossa personalidade nacional.


sábado, 15 de abril de 2023

Se o Brasil, a China ou os Brics querem substituir o dólar, boa sorte com isso', diz ex-embaixador dos EUA, Thomas Shannon - Janaina Figueiredo (O Globo)

 'Se o Brasil, a China ou os Brics querem substituir o dólar, boa sorte com isso', diz ex-embaixador dos EUA

O ex-subsecretário do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado Thomas Shannon também afirma que Lula deve ter cuidado com o que diz sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia

Por Janaína Figueiredo — Buenos Aires

O Globo, 14/04/2023 04h30

Em sua visita à Pequim e Xangai, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está “repetindo a narrativa da China”, e isso não trará benefícios ao Brasil. Essa é a avaliação do embaixador americano Thomas Shannon, que chefiou a embaixada dos Estados Unidos em Brasília durante os anteriores governos do PT e é ex-subsecretário do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado.

Em entrevista ao GLOBO, Shannon comentou a visita de Lula à empresa Huawei, considerada um risco para a segurança nacional americana, e as declarações do presidente brasileiro sobre a dependência global do dólar americano. “São escolhas do Brasil, e serão problemas para o Brasil. Boa sorte com isso”, afirma Shannon, que defende a necessidade de os governos de Lula e Joe Biden basearem sua relação na defesa da democracia em ambos os países.

A visita de Lula à China tem uma dimensão superior à viagem a Washington, em fevereiro…

Acho que é um erro comparar as duas visitas, porque elas são motivadas por razões diferentes. Mas Lula veio primeiro aos EUA, e isso, em si mesmo, é um recado. Lula é conhecido nos EUA, e é conhecido pelo presidente Biden. A visita não foi, como na China de Xi Jinping, uma introdução. Na China, o Brasil está buscando reativar suas relações econômicas bilaterais. Com os EUA, temos mais de 100 anos de história comercial, de investimentos mútuos, integração de cadeias produtivas, não se pode dizer isso sobre a China. O Brasil está buscando uma relação mais profunda com a China, não vejo uma questão nisso.

Lula visitou a fábrica da Huawei, uma empresa considerada uma ameaça à segurança nacional dos EUA…

Os EUA deixaram claro que a Huawei representa um desafio para os países que querem construir suas redes e sua infraestrutura digital. A Huawei pode usar essas estruturas para ter acesso a informações, que podem ser repassadas para o governo da China. É uma decisão que cada governo deve fazer. Nós deixamos claras nossas preocupações sobre segurança, confidencialidade.

É um risco que o Brasil corre, então?

É a escolha do Brasil, e será um problema do Brasil. Boa sorte com isso.

O senhor conhece bem o Brasil, está surpreso pelas posições e falas de Lula?

Não muito, mas eventualmente o presidente Lula e sua equipe vão retornar ao Brasil e a realidade vai se impor. Terão de avaliar o que conseguiram. O Brasil, como [o presidente da França, Emmanuel] Macron, está apoiando a China em algumas questões, e, me pergunto, o que isso vai dar ao Brasil? Não acho que muita coisa.

O senhor considera que o Brasil está cometendo erros?

Diria que sim, mas entendo que a China é um parceiro importante para o Brasil na economia global. Entendo que o Brasil quer ter uma relação positiva com a China. Mas, dito isto, o Brasil deve se apresentar como um país que define seus interesses, que articula esses interesses, e não parecer subserviente com ninguém. Hoje vejo o Brasil repetindo a narrativa da China, sem necessariamente obter algo importante para os interesses do Brasil.

As críticas de Lula ao dólar americano podem causar mal-estar em Washington?

Muitas pessoas no mundo gostariam de não depender do dólar, mas o dólar não é uma moeda global porque os EUA o impuseram, é uma moeda global pelo poder da economia americana, e pelo papel da economia americana no sistema financeiro e na ordem econômica global. Se o Brasil, a China ou os Brics querem substituir o dólar, OK, vão em frente. Que moeda vão usar? A moeda chinesa, a brasileira? Ok, boa sorte com isso.

O governo Biden deve ficar incomodado?

Não sei, realmente. Mas acho que, primeiro, os presidentes Lula e Biden têm um bom relacionamento, e isso tem enorme valor. Os EUA reconhecem que o Brasil é um parceiro importante, especialmente nos atuais momentos, com a guerra entre Rússia e Ucrânia. Questões como energia, alimentos, e muitas outras, são importantes. O governo Biden vai focar nisso, e não na retórica, especialmente na retórica de uma visita de Estado. Os EUA e o Brasil têm uma relação profunda, forte, que é maior do que seus governos. Isso não me preocupa.

O que o preocupa, então?

Os dois governos precisam ter uma conversa mais ampla, não sobre Huawei, ou sobre moedas globais, precisam falar sobre como fazer a democracia funcionar. Sobre como podemos cooperar e colaborar para fazer com que as democracias em nossos dois países funcionem. Se nossas conversas estiverem apenas baseadas na geopolítica, não chegaremos muito longe. Temos, ambos, problemas de governabilidade, sociedades polarizadas, divididas, e nossas democracias, as maiores da região, precisam trabalhar juntas para entregar bons resultados. Lula está no governo há 100 dias. Sua popularidade está em 36%, e Biden está em torno dos 40%. O Brasil não fortalecerá sua democracia na relação com a China, e sim o fará na sua relação com os EUA.

Sobre a guerra, como avalia as declarações de Lula sobre a Crimeia?

Bom, poderia dizer que [o presidente da Ucrânia, [Volodymyr] Zelensky poderia sugerir que Lula desse o Rio Grande do Sul para a Argentina. Mas, falando sério sobre um assunto muito grave e que preocupa a todos, se o Brasil espera ter um papel no processo que ajude a terminar com esta guerra, deve ter cuidado com o que diz, deve se apresentar como neutro.

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/04/o-brasil-esta-repetindo-a-narrativa-da-china-diz-ex-embaixador-dos-eua.ghtml

domingo, 26 de março de 2023

O Brasil e a China: até onde vai a relação estratégica? - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

Lula desistiu de ir à China, vitimado, não pelo "comunavirus" como diria um beócio, mas por uma "leve pneumonia" segundo seus médicos. A postergação da viagem não me impede de reproduzir novamente o artigo que eu fiz no mês passado sobre as relações do Brasil com a China, como forma de debater a questão. 


O Brasil e a China: até onde vai a relação estratégica?

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Artigo publicado na revista Crusoé (3/03/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/253/o-encanto-de-lula-pelo-duvidoso-modelo-chines/).

 

 

A sedução precoce pelo “modelo” chinês de crescimento

Em janeiro de 2002, pela primeira vez, o então presidente de honra do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, visitou oficialmente a China, a convite do governo chinês e do Partido Comunista da China, tendo sido recebido com todas as honras devidas a um prometedor futuro chefe de Estado. Sua comitiva, integrada por futuros ministros e personagens importantes de seu governo, um ano adiante – José Dirceu, então presidente nacional do partido; Jorge Viana, governador do Acre; Antonio Palocci, prefeito de Ribeirão Preto; deputados federais Paulo Delgado (MG) e Jaques Wagner (BA) –, foi recebida por Wei Jianxing, um dos principais dirigentes do Bureau Político Permanente do Comitê Central do PCC, em audiência calorosa no Grande Palácio do Povo, em Beijing.

De volta ao Brasil, publicou um artigo num dos veículos do PT, no qual exaltava o modelo econômico chinês, mas no qual cometia, igualmente, uma série de equívocos conceituais e factuais, os quais parece ter mantido mesmo passadas duas décadas dessa viagem inaugural de várias outras, ao longo dos anos. Ele dizia, por exemplo, que o gigante asiático tinha ¼ da população do planeta, mas apenas 7% das terras agricultáveis do planeta, e que ainda assim conseguia “produzir o suficiente para alimentar esse mundo de gente”. Primeiro erro, pois que a China não apenas já era um dos principais países importadores de alimentos, assim como de quaisquer outras matérias primas para abastecer seu já gigantesco sistema manufatureiro, voltado basicamente para exportações baratas em direção dos países desenvolvidos. O Brasil, justamente, já era um dos grandes exportadores de alimento e de vários produtos primários para a China, dela importando um oceano de manufaturados de baixo custo e de qualidade razoável.

Lula se surpreendeu com as altas taxas de crescimento da China, ignorando que países que partem de níveis muito baixos de desenvolvimento econômico e social – como ainda era o caso da China, recém-admitida na OMC, depois de 14 anos negociando sua adesão ao Gatt – tendem a apresentar taxas vigorosas de crescimento, mas que normalmente declinam a partir de certo estágio nos progressos alcançados. Ele também dizia, no seu terceiro erro, que a China tinha “diminuído significativamente a desigualdade social.” Ora, a China já era, e continua sendo, justamente o país campeão na progressão negativa do seu coeficiente de Gini, saindo dos modestos patamares de um país socialista miserável, para índices próximos ao do Brasil, à medida em que avançou na construção do seu “capitalismo com características chinesas”.

Baseado num relatório do Banco Mundial, Lula também afirmou que “a China foi nos últimos anos o principal país responsável pela diminuição da pobreza no mundo.” Totalmente correto, mas isso quem disse foi o Banco Mundial, não o PT, que continuava afirmando, junto com os neófitos do Fórum Social Mundial, muitos deles petistas, que a globalização só consegue produzir miséria e desigualdade. Ora, se tem uma coisa que a China de Deng Xiaping conseguiu fazer foi aderir entusiasticamente à globalização capitalista, coisa que os economistas do PT sempre olharam com extrema desconfiança. Ainda assim, Lula afirmou que a China fazia isso “modo autônomo e soberano”, sem que o FMI impusesse os “seus modelos econômicos”. Quarto erro, portanto, pois se tem alguma coisa que o FMI não faz é impor um determinado modelo econômico, contentando-se com implementar programas de ajuda econômica a países (inclusive socialistas) que incorrem em sérios desequilíbrios de balanço de pagamentos, como ocorria com o Brasil naquela época.

Numa das mais controvertidas afirmações de seu artigo, Lula escreveu: “Os chineses nos explicam que estão praticando o que chamam de socialismo de mercado. A impressão que dá é que eles estão aprendendo a ganhar dinheiro com os capitalistas, para gastá-lo como socialistas.” Tanta ingenuidade não chega a ser propriamente um erro, mas traduz um dos mais persistentes vieses econômicos da concepção fundamental dos petistas sobre o papel do Estado no desenvolvimento de um país: a China justamente cresceu e se desenvolveu à medida em que mais e mais atividades produtivas saíam das mãos tortas das empresas estatais para serem entregues ao setor privado, que atualmente já responde por mais de 2/3 do PIB chinês. 

Outra ingenuidade transparece numa afirmação seguinte, segundo a qual a China participa da globalização, mas “não abre mão do planejamento, da definição de prioridades”, acrescentando que ela “não permite que o mercado decida em nome da sociedade.” Como se os países dotados de Estados organizados – entre eles todos os membros da OCDE e o próprio Brasil – não tivessem, igualmente, governos planejadores, estabelecendo prioridades para o investimento público. Partindo de patamares modestos, a China hoje apresenta o maior volume de investimentos saído diretamente do setor privado, mas o seu Estado precocemente weberiano – pelos mandarins, atualmente funcionários do PCC – sempre dirigiu os grandes investimentos públicos em infraestrutura e comunicações, como qualquer outro país racional.

 

A visita em grande pompa do presidente-trabalhador ao Oriente

Pano rápido: vamos passar à primeira viagem oficial de Lula, já como presidente, dois anos depois. Em seus discursos, na própria China e de volta ao Brasil, o presidente exagerou na retórica e passou a vender coisas que só existiam em sua cabeça. Em primeiro lugar, ele voltou a repetir uma de suas obsessões diplomáticas, mais constantes: a tal de “aliança estratégica” com o gigante asiático, aproveitando para dizer que “muita gente no mundo está torcendo para que essa aliança não dê certo”; era evidente a cutucada nos Estados Unidos, um atavismo em suas perorações, que só pode ser uma necessidade psicológica. Fui buscar o que pudesse justificar tal argumento de “aliança estratégica” no comunicado bilateral liberado no curso da própria visita e confesso a frustração: não há nada ali que possa dar respaldo a essa “aliança estratégica”, salvo a dupla repetição da expressão “parceria estratégica”, muito usada para descrever protocolarmente as relações do Brasil com outros países, como a Argentina, a Alemanha, a França, os próprios Estados Unidos, logo em seguida com a Índia e por aí vai.

De estratégico mesmo, eu encontrei no comunicado duas frases que a China exigiu e o Brasil cumpriu. Na primeira, o Brasil “concordou com a postura chinesa de que Taiwan e Tibete são partes inseparáveis do território chinês e manifestou seu repúdio a quaisquer ações e palavras unilaterais que visem a promover movimentos separatistas”. Na outra frase, a China agradeceu ao Brasil “pelo seu apoio na Comissão [hoje Conselho] de Direitos Humanos em Genebra”, isto é, o apoio diplomático da delegação brasileira para que não se examine de modo algum a situação dos direitos humanos na China, como se ela pairasse acima dos outros como um exemplo de tratamento aos nacionais nesse terreno. 

Num de seus gestos mais ousados, em sua primeira e triunfal visita, Lula sugeriu que o Mercosul e a China firmassem um acordo de livre comércio, assim como acatou a sugestão dos dirigentes chineses no sentido de acatar, na OMC, o status de economia de mercado para a China. Nas duas posturas, e já de volta ao Brasil, Lula defrontou-se com a veemente oposição da CNI, da FIESP, e da maioria das associações setoriais a ambas propostas, e nunca mais se ouviu o presidente repetindo suas ousadias. Mas essa viagem pioneira não dispensou uma outra contrariedade aos interesses do Brasil, que foi o embargo chinês a carregamentos de soja brasileira que supostamente continham, misturadas, soja natural e variedades geneticamente modificadas, nada que os animais chineses não pudessem consumir, mas um gesto provavelmente destinado a rebaixar o preço do produto, que naquela altura já atingia níveis históricos na bolsa de commodities de Chicago. 

 

O ideograma do BRICS na agenda estratégica da China

Lula foi a China algumas outras vezes, em visitas bilaterais ou no quadro do BRIC, que a China fez questão de aumentar para BRICS, com a incorporação da África do Sul, um país que não se enquadrava minimamente nos critérios originais do grupo, mas que convinha à China, já empenhada numa nova “conquista da África” para atender a imensa necessidade de matérias primas de suas insaciáveis indústrias. Ela continua procedendo da mesma forma, buscando “engordar” o BRICS com vários outros candidatos em desenvolvimento, como forma de administrar uma espécie de anti-OCDE, com países dispostos a sustentar sua grande estratégia de parcerias alinhadas numa frente contra as potências “hegemônicas” do Ocidente. 

Ao transformar a antiga proposta de um economista de um banco de investimentos – que estava pensando unicamente numa boa carteira de oportunidades de retornos financeiros suculentos, em quatro grandes economias em desenvolvimento – em um foro diplomático, os “planejadores diplomáticos” do PT certamente não imaginaram que as duas poderosas autocracias do planeta, Rússia e China, poderiam usar o BRIC-BRICS para os seus próprios interesses nacionais, o que se revelou agora, e de forma especialmente dramática, a partir da guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia, da qual Xi Jinping é bem mais “solidário” do que o foi Bolsonaro e, talvez, doravante, venha a ser Lula. Joe Biden tentou convencê-lo do contrário, ao que Lula desconversou, naquela velha cantilena de que a sua “guerra era contra a pobreza”, tendo recebido zero apoio para a sua proposta estapafúrdia de um “clube da paz”, com “países não envolvidos no conflito” (sic, três vezes). 

Em sua próxima visita à China, Lula não deve voltar a sugerir o tal acordo de livre comércio entre o Mercosul e o gigante asiático – que já é, na prática, o principal parceiro de todos os membros do bloco do Cone Sul, em comércio ou investimentos –, nem ousará sequer mencionar aquela outra ideia maluca da “moeda comum”, que o chanceler russo, Lavrov, e as lideranças sul-africanas querem incluir na agenda da próxima cúpula do BRICS. Ele certamente voltará a saudar entusiasticamente a “parceria estratégica” – que os chineses realmente têm em alta conta – e proporá que ela se estenda a outros campos que não apenas o lançamento de satélites de sensoriamento remoto por foguetes chineses. Não sabemos se Lula mantém as mesmas ilusões atualmente como aquelas exibidas em suas duas primeiras visitas à China. Em todo caso, a visita, e o restabelecimento de boas e intensas relações, de todos os tipos – mas provavelmente não em direitos humanos e democracia, como pretende Biden –, corresponde aos mais altos interesses do Brasil, desde que não condicionadas a apoios indiretos aos estritos interesses nacionais, e estratégicos, da China, na sua postura de “rivalidade imperial” com os Estados Unidos. 

“O oriente é vermelho”, poderão repetir os mais apegados à bandeira do PT, como se os atuais mandarins chineses, selecionados exclusivamente com base em suas capacidades administrativas (e não mais no marxismo embolorado de certos petistas), estivessem minimamente preocupados com ideologia, no novo “Grande Salto para a Frente” que eles estão decididos a empreender no caminho de serem reconhecidos como a versão 2.0 do outrora fabuloso Império do Meio. Desde as navegações portuguesas do século XV, o fascínio de Catai continua a seduzir o “extremo Ocidente” que veio a ser o Brasil.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 20 fevereiro 2023, 5 p.; Relação de Originais: 4326,; Publicados n.  1496.





sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A China prestigia a posse de Lula, pensando em seus objetivos estratégicos- Jamil Chade (UOL)

 Não sei se o mesmo podecser dito do Brasil, nem antes, nem talvez depois. PRA

China envia delegação de mais alto nível que EUA para posse de Lula
Jamil Chade  
Colunista do UOL
29/12/2022 11h04

O governo da China decidiu enviar para a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva o vice-presidente do país, Wang Qisha, e espera que o encontro com o novo governo brasileiro garanta um "impulso" na relação estratégica entre os dois países. No total, quase 60 delegações estrangeiras desembarcam em Brasília nos próximos dias.

Disputando espaços de hegemonia com os EUA, os chineses optaram por enviar uma delegação de mais alto nível que a missão organizada pela Casa Branca. Numa coletiva de imprensa, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Wang Wenbin, explicou que Qishan liderará a delegação chinesa ao Brasil.

No caso americano, apesar da esperança de que o presidente Joe Biden ou a vicepresidente Kamala Harris estivessem presentes à posse, a escolha do governo de Washington foi pela secretária do Interior dos Estados Unidos, Deb Haaland. 

Wang, com 69 anos, foi prefeito de Pequim no auge do surto da Sars, em 2003, e liderou o comitê olímpico da cidade para os Jogos de 2008. Ele ainda foi o negociador chefe nas relações com os EUA e, recentemente, foi escolhido como vice de Xi Jinping. Entre os diferentes cargos, ele ainda liderou os esforços chineses contra a corrupção.

"A China e o Brasil são ambos grandes países em desenvolvimento e importantes mercados emergentes", disse Wenbin nesta quinta-feira. "Somos os parceiros estratégicos abrangentes um do outro. Desde que os laços diplomáticos foram estabelecidos há 48 anos, as relações bilaterais têm desfrutado de um desenvolvimento sólido e estável com uma cooperação prática frutífera em vários setores. A natureza abrangente e estratégica de nossa parceria tem se tornado cada vez mais pronunciada e sua influência global está continuamente em ascensão", afirmou.

Segundo o porta-voz, a viagem do vice-presidente Wang Qishan ao Brasil como representante especial do presidente Xi Jinping "diz muito da alta importância que a China atribui ao Brasil e às nossas relações bilaterais".

"Acreditamos que esta visita dará um forte impulso à nossa parceria estratégica abrangente e a levará a novas alturas, proporcionando mais benefícios tanto para os países quanto para os povos e contribuindo para a paz, estabilidade e prosperidade regional e global", completou.

Lula já indicou que Pequim será um de seus primeiros destinos internacionais, junto com os EUA e Argentina.

Se o discurso do bolsonarismo tentou transformar a China numa espécie de vilã internacional e alvo de acusações sobre a ofensiva comunista no mundo, a realidade é que o mandato de Jair Bolsonaro termina com a relação comercial e de investimentos entre os dois países batendo todos os recordes.

Os números se contrastam com os ataques constantes do ex-chanceler Ernesto Araújo contra Pequim, desmentem os discursos do presidente contra a vacina chinesa e mostram o fracasso da estratégia adotada pelo Itamaraty nos primeiros anos do governo para minar qualquer aproximação entre Brasília e Pequim.

No governo, nos primeiros meses de 2019, a ordem era a de promover uma aproximação total aos EUA de Donald Trump e até mesmo forjar alianças diplomáticas contra o país asiático. Em reuniões da ONU, o comunismo chinês era denunciado pelo Itamaraty, enquanto o então ministro da Saúde Luis Henrique Mandetta chegou a confessar que qualquer aproximação de sua pasta com a China era minada pelo Executivo.

A realidade foi bem diferente do discurso bolsonarista. Dados do próprio governo indicaram que, até o final de novembro, a China representava 27% de toda a exportação do Brasil ao mundo.

Ou seja: de cada quatro dólares que o país obtém no mercado internacional com suas vendas, um vem da China.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Economist: relações do Brasil com a China nunca foram fáceis, mas com Bolsonaro, elas estão no nível mais baixo...

 Economist: Apesar das relações comerciais prósperas, relação entre China e Brasil está enfraquecendo


Relações entre os dois países nunca foram fáceis, mas sob Bolsonaro, nunca foram piores
   
The Economist14 de fevereiro de 2022 | 10h08

Em uma viagem à China em 2004, Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do Brasil, levou consigo uma comitiva digna de uma estrela do rock: sete ministros, seis governadores e mais de 450 empresários. Relações foram criadas e acordos foram debatidos. Nos cinco anos seguintes, a China se tornou o parceiro econômico mais importante do Brasil. Em 2019, as negociações anuais entre os países eram de US$ 100 bilhões.

A primeira visita oficial à China de Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil, foi bem mais discreta. Bolsonaro passou boa parte de sua campanha eleitoral em 2018 se posicionando contra o país, que ele acusava de querer “comprar o Brasil”. Quando visitou a China em 2019, levou com ele quatro ministros, mas nenhum assessor econômico sênior. Embora tenha falado de como os países estavam “completamente alinhados”, a viagem foi ofuscada pelo debate se ele iria permitir ou não que a Huawei, uma empresa chinesa de telecomunicações, construísse sua rede de 5G no Brasil.

As relações entre Brasil e China nunca foram fáceis, mas sob Bolsonaro, elas nunca foram piores. Apesar de sua conversa de alinhamento em 2019, ele continuou a criticar a China, assim como integrantes de sua família, muitos deles também envolvidos na política. No início da pandemia, seu filho, Eduardo, falava do “vírus chinês”. No ano passado, sem mencionar o nome da China, o presidente brasileiro ponderou se a covid-19 poderia ser uma “guerra química”. A China, por sua vez, talvez esteja interessada em negociar com o Brasil, mas está cada vez mais cautelosa em investir no País – e no restante da América Latina.

O antagonismo de Bolsonaro não passou despercebido pelas autoridades chinesas. Em 2020, Li Yang, cônsul-geral da China no Rio de Janeiro, escreveu um artigo de opinião para o jornal O Globo, no qual respondeu aos comentários de Eduardo com uma ferocidade incomum. O chefe da Sinovac Biotech, empresa chinesa que fornece vacinas contra a covid-19 para o Brasil, foi citado pela Reuters como tendo dito a diplomatas que os comentários do presidente brasileiro estavam impedindo uma relação “fluida e positiva” entre os dois países.

Às vezes, a China gosta de lembrar seu poder ao Brasil. No final do ano passado, as exportações brasileiras de carne bovina foram prejudicadas quando a China impôs uma proibição de três meses depois de dois registros de casos suspeitos da doença conhecida como “vaca-louca” em dois estados diferentes. O valor das exportações de carne bovina despencou e a proibição custou cerca de US$ 2 bilhões em vendas. Muitos consideraram o embargo estranhamente longo.

Apesar da discussão quanto à carne bovina, o comércio entre Brasil e China tem prosperado, mesmo durante a pandemia. Em 2021, a China comprou mais de 30% das exportações físicas do Brasil, ante menos de 20% nos cinco anos anteriores. A maior parte foi de soja, petróleo bruto e minério de ferro, mas os envios de carne e outros bens de maior valor também cresceram nos últimos anos, principalmente desde que a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China começou em 2017.

Mas outros laços econômicos entre Brasil e China parecem estar se enfraquecendo. O investimento da China no Brasil atingiu o pico em 2010, segundo o Conselho Empresarial China-Brasil (CEBC). Naquele ano, a China investiu US$ 13 bilhões em 12 projetos.  O CEBC estima que, no ano passado, a China tenha investido apenas cerca de US$ 4 bilhões.

Isso sugere uma tendência mais ampla. Embora os presidentes da Argentina e do Equador tenham ido recentemente a Pequim com o intuito de melhorar os laços econômicos com a China, os acordos econômicos entre a China e a América Latina diminuíram nos últimos anos. Em um discurso à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), uma organização internacional da região, em 2015, Xi Jinping, presidente da China, prometeu US$ 250 bilhões em investimentos na América Latina até 2025. Mas entre 2015 e 2020 as empresas chinesas investiram apenas US$ 76 bilhões na região, de acordo com pesquisadores da Universidade Boston. Em dezembro, em outra reunião com a CELAC, Xi não prometeu quaisquer outros investimentos. (O Brasil não compareceu à reunião, pois Bolsonaro suspendeu a participação do País na CELAC em 2020.)

O Brasil, em particular, dificulta o investimento estrangeiro. As normas e regulamentos do País são enormes e estão em constante mudança. Sua moeda, o Real, é volátil; suas leis trabalhistas são complicadas e seu sistema tributário precisa seriamente de uma reforma. A corrupção e a incerteza sobre a política econômica não ajudam. “Se uma empresa chinesa pode sobreviver no Brasil, ela pode fazer isso em qualquer lugar”, diz Qu Yuhui, diplomata chinês que estava trabalhando no Brasil até bem pouco tempo.

Os investidores chineses focam no que eles percebem como apostas seguras. Aproximadamente metade do dinheiro que eles investiram no Brasil antes de 2020 foi para a geração de eletricidade, que tem o benefício de contratos de longo prazo. Várias empresas de energia chinesas têm se estabelecido no País. O Brasil se beneficia da experiência chinesa: ambos os países têm linhas de transmissão de ultra-alta tensão que se estendem por milhares de quilômetros.

O setor de energia, entretanto, também gera desafios. No ano passado, o CEO da State Grid Brazil, subsidiária de uma das maiores empresas estatais chinesas de eletricidade, descreveu a dificuldade de aquisição de terrenos para uma enorme linha de transmissão entre a Usina de Belo Monte, no Pará, na região norte, e os consumidores do sudeste do Brasil. O esforço envolveu negociar individualmente com “3.337 proprietários de terras” e conseguir “204 licenças inter-regionais, incluindo [para] rios, linhas de transmissão, rodovias, ferrovias, oleodutos, pequenos aeroportos, etc”.

O Brasil deveria estar fazendo mais para atrair investimentos estrangeiros, mas seus esforços tendem a ser esporádicos, impulsionados mais por políticos estaduais do que pelo governo federal. O estado de São Paulo, por exemplo, montou um escritório comercial em Xangai em 2019. João Doria, governador de São Paulo, acredita que isso o ajudou a fechar um acordo com a Sinovac para vacinas contra a covid-19. Mas poucas empresas brasileiras abriram escritórios na China, ou inclusive se aventuraram a visitar o país, diz Tatiana Lacerda Prazeres, consultora comercial na China e ex-secretária de Comércio Exterior do Brasil. “Há uma percepção entre algumas das principais autoridades brasileiras, e até mesmo algumas empresas, de que a China é mais dependente do Brasil do que o contrário”, diz ela.

O grande apetite da China por commodities brasileiras reforça esse comportamento. Mas a visão da China é bem diferente. Em comparação com outras regiões, a América Latina sempre foi a “menor prioridade” da China em termos de diplomacia e investimento, diz Margaret Myers, do Inter-American Dialogue, um think tank americano. A Ásia e a África continuam sendo mais importantes.

Além disso, o apetite da China talvez esteja mudando. Sua movimentação em direção à “autossuficiência básica” em grãos, conforme explicado em seu último plano quinquenal, inclui um esforço para aumentar a produção de soja. O ceticismo em relação ao seu plano é abundante. Mas até mesmo uma pequena queda nas compras da China prejudicaria o Brasil, que envia 70% de suas exportações de soja para o país. Se a demanda por novas moradias nas cidades chinesas caísse, como alguns preveem, isso diminuiria a demanda por minério de ferro brasileiro e outros insumos. (Embora uma desaceleração no setor da construção de imóveis residenciais talvez também leve as empresas chinesas de infraestrutura a procurar por oportunidades no exterior.)

A eleição presidencial do Brasil em outubro ajudará a determinar o futuro das relações. Lula está pensando concorrer ao cargo. Ele supera Bolsonaro por uma ampla margem na maioria das pesquisas. Se ele se tornar presidente outra vez, há poucas dúvidas de que ele tentaria restabelecer os laços. Conquistar investidores chineses, no entanto, talvez seja mais difícil na segunda tentativa.

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