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domingo, 17 de novembro de 2024

China: da abertura para um mundo de "desordem sob os céus" para "sinergias" - Paulo Pinto (Linkedin)

O maior especialista na China e em assuntos asiáticos em geral, refaz o caminho chinês para a modernização.

 

CHINA - DA ABERTURA PARA UM MUNDO DE “DESORDEM SOB OS CÉUS”, PARA “SINERGIAS” QUE PRESCREVAM FORMAS DE GOVERNANÇA CHINESAS AO LONGO DE SEU “CINTURÃO”

Paulo Pinto

Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

Linkedin, November 15, 2024

https://www.linkedin.com/pulse/china-da-abertura-para-um-mundo-de-desordem-sob-os-c%C3%A9us-paulo-pinto-cqq5f/ 

 

O início da década de 1980 é reconhecido como um marco, na história recente da China, quando se deu o processo de abertura do país ao exterior, após a fase turbulenta da Revolução Cultural.

Procuro, a seguir, resgatar ensinamentos da experiência pessoal de ter servido em Pequim, entre 1982 e 1985, no Sudeste Asiático, entre 1986 e 1995 e em Taipé, entre 1998 e 2006. O exercício de reflexão a seguir é resultado, portanto, mais de conclusões de vivência do autor, do que de trabalho acadêmico.

Parto da premissa de que cabe procurar na origem do pensamento chinês sobre a organização do “Império do Centro”, explicações sobre o atual sucesso econômico da RPC. Haveria, também, possíveis riscos da tentativa de imposição de sua forma de governança através de “rota” em diferentes países da África e América Latina (vide meu texto publicado em 21 de outubro).

O artigo reflete a convicção de que, tanto no plano interno, quanto no externo identificam-se, na década de 1980, alterações resultantes de condicionantes históricas de forma de pensar chinesa, capazes de influenciar o cenário atual da RPC.

Acredito ser importante o resgate da lógica de que aquela nova cena de partida, em direção ao cenário atual, ajuda no esforço de reflexão sobre o que se passa, hoje, na República Popular da China. Por um lado, para o entendimento do presente naquele país, cabe abandonar raciocínios e equações, a partir de modelos fora do contexto cultural chinês. Por outro, conforme se exporá na conclusão, o modelo atual de governança em Pequim começa a ser considerado como exemplo a ser seguido, em outras nações.

 

O Início da Modernização

No início da década de 1980, quando cheguei a Pequim, não era possível deixar de sentir uma certa tristeza, pelo fato de que havia sido encerrada, na China, uma Era de convicção poética maoista. A partir de 1949, acreditara-se que, em benefício do interesse comum da sociedade, centenas de milhões de pessoas poderiam ser levadas a patamar mais elevado do que o egoísmo individual.

A experiência chinesa de busca de uma sociedade igualitária encantara a muitos. Os países do Terceiro Mundo admiravam sua combatividade e autossuficiência. Os economistas ocidentais registravam o pleno emprego atingido, no campo, e invejavam sua força de trabalho disciplinada, na indústria.

O exercício de observação diário e o aprendizado da realidade do país, no entanto, indicavam que não se vivera na China, nas três décadas anteriores, tantos motivos de encantamento.

Na verdade, perdurara o elitismo e a corrupção entre os dirigentes do partido e do governo. O lento progresso obtido na economia demonstrara não ser tão fácil, desenvolver-se com os próprios recursos, sem a infusão de investimento, tecnologia ou ajuda externa.

Em suas relações internacionais, sabe-se, a República Popular, desde sua fundação, em 1949, havia mantido um vasto exército e milícias armadas e desenvolvido a bomba atômica. A China tivera conflitos com a União Soviética e Índia e fricções com o Japão, com respeito às Ilhas de Senkaku, e com o Vietnã, quanto às Spratlays. Não se tratava, portanto, de país totalmente “amante da paz”, conforme se divulgava em Pequim aos visitantes estrangeiros.

No plano interno, na medida em que se conhecia melhor a real situação chinesa, ficavam diminuídos, inclusive, os ganhos considerados, por exemplo, no controle familiar. Havia sido enorme, verificava-se, o custo, em termos de direitos humanos, na proibição de casamentos antes dos 20 anos e obrigatoriedade de apenas um filho por casal.

Não se quer negar, no entanto, as grandes conquistas do período maoista, nem os feitos do povo chinês. Um país que, na primeira metade do século XX, fora devastado por guerras internas, encontrava-se, no início da década de 1980, unificado, apesar das crises de liderança resultantes da Revolução Cultural.

Como era possível verificar, a China alimentava e vestia seu povo. Um esforço descomunal fora feito para construir represas, diques e sistemas de irrigação, bem como no sentido da autossuficiência alimentar.

Mas seria isso suficiente? Tais conquistas teriam que ser vistas em perspectiva.

Mao Zedong tornara a “necessidade” em “virtude”, como base de sustentação para política de autossuficiência. Em grande parte, tratava-se de reação ao fato de que os soviéticos terem cessado todo e qualquer auxílio, a partir de 1960, levando consigo, inclusive as matrizes de fábricas cuja instalação já havia sido iniciada.

O Grande Timoneiro, então, colocou toda sua crença na “genialidade do povo chinês”. Doravante, tudo seria resolvido com a mobilização permanente das “massas”. Como consequência, surgiriam energias e talentos até então escondidos por sistema social opressivo. Na década de 1960, por exemplo, ampla campanha nacional encorajava simples operários a fazerem sugestões sobre inovações tecnológicas. Exageros evidentes eram noticiados a respeito do aumento de produtividade como resultado de soluções práticas obtidas nos canteiros de obras, campos agrícolas e operadores de máquinas nas fábricas.

O caráter “anticientífico” das práticas maoistas chegou ao apogeu durante a chamada Revolução Cultural, quando professores e alunos foram obrigados a curvar-se diante da “sabedoria” das massas.

Postura semelhante fora adotada nas forças armadas chinesas, onde o conceito maoista de “guerra popular” baseava-se na premissa de que “homens contavam mais do que máquinas”. Nessa perspectiva, centenas de milhares de soldados de infantaria, com armamento obsoleto, seriam capazes de derrotar um Exército soviético equipado com armas modernas. Mantinha-se, no entanto, a dissuasão nuclear, na medida em que a China não renunciava a sua própria bomba atômica.

Com a derrota do “bando dos quatro”, a China desencadeou outra campanha, desta feita para condenar a viúva de Mao, visando a acusá-la e a seus três cúmplices de Xangai, pela maioria dos fracassos e fraquezas dos anos anteriores. Este novo processo implicou, novamente, em notáveis exageros nas acusações. A mensagem, no entanto, era clara: os dirigentes chineses haviam tomado consciência de que suas políticas de autossuficiência, recusa em aceitar ajuda externa e a negativa à aquisição de tecnologia estrangeira haviam reduzido as taxas de crescimento e o progresso em quase todos os setores da economia.

A rejeição da ideologia passada foi feita na forma de pronunciamentos que, gradativamente, desautorizassem o autoritarismo vigente sob Mao Zedong, cuja memória continuava a ser reverenciada, com todas as honras devidas ao fundador da República Popular da China. Tratava-se, no entanto, de trazê-lo a proporções humanas.

Começava o processo de estabelecer seu lugar na história, como um grande líder revolucionário, mas como um homem com menor sucesso, quando se tratou de administrar um país. Suas principais preocupações diziam respeito à eliminação dos dogmas socialistas, agora vistos como impedimento à nova marcha da China, em direção à modernização. O principal responsável pelas alterações na condução das políticas, econômica e social da China, a partir de 1978, e “Novo Timoneiro”, passou a ser o então Vice-Primeiro-Ministro Deng Xiao-Ping.

O julgamento público de Mao, no entanto, tinha dimensões restritas. Todos os erros cometidos no período de radicalização maoista eram atribuídos a Lin Piao e ao “bando dos quatro”. Para o cidadão chinês, contudo, havia implicações óbvias: não era possível aceitar que toda a culpa fosse atribuída a um traidor e a quatro radicais – na prática, os novos dirigentes em Pequim estavam admitindo que a “Grande Revolução Proletária Cultural” havia sido um fracasso enorme e custoso.

O próprio retorno de Deng Xiao-Ping ao poder, como Vice-Primeiro-Ministro já significava uma rejeição eloquente a julgamentos emitidos por Mao, que havia dado seu apoio pessoal às duas quedas anteriores de Deng.

Não era possível ignorar, contudo, que Mao tinha razão quanto ao diagnóstico sobre os males que atingiam a China. Assim, de acordo com sua visão, o maior perigo para o país seria o retorno à estagnação imposta pela burocracia do partido e do estado.  Suas soluções eram poéticas e imaginativas: uma série de campanhas para mobilizar os intelectuais – “O Movimento de Cem Flores” – a busca de um caminho mais curto para o Socialismo – “O Grande Salto Adiante” – e a provocação de uma “discórdia criativa” entre a juventude do país e a burocracia estatal – “A Revolução Cultural”.

Mas, como se sabe, Mao não obteve sucesso na criação do “homem socialista”.  Ele pediu demais, tanto dos chineses, quanto da natureza humana.

No final da década de 1970, no entanto, todo este processo havia sido esquecido. Ficara provado que, em tese era uma boa ideia encorajar os trabalhadores a pensarem o aumento da produção com seus próprios meios.  Na prática, a premissa ideológica, sobre a qual se baseava – a de que a sabedoria está consagrada nos trabalhadores – conduziu a medidas impraticáveis, como por exemplo, a utilização de máquinas antiquadas sendo empregadas em velocidade inapropriada, provocando acidentes ou resultados negativos.

Verificava-se, por exemplo, que a produção de cereais ficara estagnada. Não houve progresso em projetos de irrigação, nem de novos fertilizantes agrícolas, enquanto a população chinesa continuava a aumentar. O país continuou a importar alimentos. Houve sérios casos de fome generalizada, por falta de alimentação.

A mesma ausência de melhoria foi notada no setor industrial, onde prevaleceu a política maoista de autossuficiência e oposição a aprender da experiência de outros países. Tal postura levou, por exemplo, à estagnação da produção anual de aço, ao lento progresso tecnológico, a preservação de fábricas antiquadas, com equipamentos, tecnologia e formas de administração superados e emprego excessivo de mão de obra.

Com a morte de Mao Zedong e a derrubada do “Bando dos Quatro”, a China podia, finalmente, enfrentar com clareza e determinação seus inúmeros problemas e tomar as decisões cabíveis, para superá-los. O corpo do “Grande Timoneiro” fora colocado em mausoléu, construído na Praça da Paz Celestial, quebrando, a propósito, a harmonia do local, no centro de Pequim (na sequência do processo chinês de abertura ao exterior, para suprema heresia, uma lanchonete de “fast food” americana foi estabelecida nas vizinhanças do túmulo).

Não se tratava, no entanto, de abrir mão, completamente, do pensamento maoista que, então, permeava de forma abrangente a “maneira de fazer as coisas”, no país. Assim, continuava a ser citada, por exemplo, a obra “Sobre as Dez Grandes Relações”, publicada em 1956. Nela, Mao oferecia exercício de reflexão que poderia, no momento da abertura externa do país, na década de 1980, conter explicações ainda úteis para justificar qualquer que fosse a orientação a ser adotada pelos novos dirigentes de Pequim.

Havia sido abandonado, contudo, o fundamento da filosofia maoista: o “conceito hegeliano” de que a unidade deve ser dividida em duas partes e que cada situação contém em si contradições saudáveis que são necessárias para a luta e o progresso, levando, assim, à noção de luta de classes contínua e revolução permanente[1].

Segundo Mao, a China não deveria jamais permitir-se cair na complacência da “unidade” e, de acordo com esta filosofia, o “Grande Timoneiro” teve a audácia poética de desencadear uma revolução contra seu próprio governo e partido. O veredito da história será provavelmente o de que, enquanto Mao foi um dos maiores líderes revolucionários, demonstrou ser um governante menos habilidoso, uma vez que sua revolução se tornou vencedora. Provocou, assim, severas perdas a seu país e a morte de milhões de pessoas, enquanto perseguia suas visões utópicas.

Os novos líderes em Pequim pareciam retomar abordagem mais tradicional de forma de governança. 

 

A Busca do “Caminho Real”

No início da década de 1980, portanto, o sentimento dominante era o de que a morte havia “humanizado” Mao Zedong e “desmitificado” a China, que, então, admitia suas limitações no trato com os grandes problemas do país.

A nova política pragmática representava praticamente a recusa total das doutrinas que haviam dominado as políticas agrícola e industrial dos últimos 20 anos. Todas as empresas públicas, por exemplo, foram instruídas a gerar lucros – proposta impensável, até recentemente. Incentivos materiais passaram a substituir a pureza ideológica. A China conscientizou-se de que necessitava da tecnologia do Ocidente e, enquanto abandonava sua política restritiva de “autossuficiência”, começava a buscar fontes de financiamento de longo prazo – ajuda, em outras palavras – para financiar suas compras de “know-how”, instalações industriais, navios, equipamento de transporte e material de emprego militar.

Nessa perspectiva, no período de vivência do autor naquele país, entre 1982 e 1985, autoridades chinesas persistiam no esforço de implementação de políticas pragmáticas, com vistas a dissociar-se dos fins marxistas de construção de uma sociedade que se limitasse a fornecer “a cada um, de acordo com suas necessidades”. Buscar-se-ia, doravante, recompensar as pessoas de acordo com seu bom desempenho, produtividade, antiguidade e qualificações.

Este novo pragmatismo viria a ser colocado em prática com a mecanização da agricultura, modernização da indústria pesada e reequipamento das forças armadas. Sempre que necessário e no contexto das disponibilidades orçamentárias, seriam comprados equipamentos e tecnologias do exterior, na forma de “turn-key”, com a aquisição de fábricas japonesas, aviões militares Harrier britânicos ou “offshore oil expertise” dos EUA e Europa.

Não se abandonava, contudo, o discurso adotado, desde a fundação da República Popular, no sentido de atribuir a influências burguesas externas crimes financeiros, corrupção e fenômenos sociais indesejáveis. Assim, enquanto programava novas políticas econômicas liberais, Pequim efetuava sucessivos expurgos de elementos prejudiciais ao partido e governo, promovendo o combate a infrações prontamente puníveis com julgamentos sumários e execuções públicas. Entendia-se que era necessário, naquela fase, atender a “sentimentos puritanos” de conservadores do PCC, eliminando-se, desta forma, os aspectos mais desagradáveis do processo de modernização.

Para os moradores em Pequim, naquele período, era comum testemunhar – como tive a infelicidade de compartilhar - na avenida principal, a passagem de caminhões militares, com condenados à morte, em direção ao estádio, onde seriam executados em grupos, com um tiro na nuca. É sabido que, em seguida, a família do “justiçado” recebia a conta pelo gasto governamental com a bala da arma utilizada.

Observadores mais prevenidos, no entanto, sentiam que a “correção ideológica” não era, naquele momento, a real prioridade dos dirigentes chineses. Tratava-se, sobretudo, de conter eventuais expectativas irrealistas de grande parte da população, que, como decorrência da abertura do país para o exterior, poderia imaginar que seria possível obter, rapidamente, o mesmo padrão de consumerismo já então vigente no Ocidente. A manutenção da disciplina, portanto, era essencial para preservar o ritmo lento de crescimento que o Partido Comunista ainda decidia impor.

Havia, de qualquer forma, pouca dúvida quanto ao fato de que, em longo prazo, a motivação pelo lucro viria a prevalecer sobre a burocracia lenta, ineficiente e quase sempre corrupta. Tal previsão, como se sabe, prevaleceu, com a adoção, ainda na década de 1990, do discurso sobre economia socialista de mercado.

Tal processo de transição causava incertezas. Havia condicionantes culturais milenares para tais expectativas. Segundo a concepção chinesa, para ser estável, a sociedade necessitava do comando de um “timoneiro” confiável, capaz de traçar um projeto nacional viável e coerente com a longa e rica história chinesa.

A este líder caberia garantir à população segurança, paz, governança eficiente – em suma uma moldura de governabilidade favorável ao progresso e prosperidade. Como reciprocidade, os governados lhe deveriam obediência, “como o bambu que se curva diante do vento” – isto é, ao governante justo é devida a total aceitação de sua autoridade.

Uma vez que o objetivo final da governabilidade era o contentamento e elevação moral do povo, Mencius[2] argumentava que, no caso de o líder falhar em seus deveres e obrigações, haveria justificativa para uma “revolução”.

Implícito neste sistema, encontrava-se o conceito de que, se o líder não cumprisse a missão de fornecer a esperada moldura de governabilidade e o tratamento benevolente de seu povo, teria prejudicado seu direito à lealdade dos governados. Segundo Mencius, sempre que pessoas chegam à posição de autoridade, existe a tendência de se tornarem corruptas, seja pelo anseio de glória ou busca de ganhos pessoais.

Fazia, então, a clara distinção entre o exercício do poder, em função da virtude do governante, e o emprego da força, como forma de obter obediência.

Lembra-se que, desde o início da civilização chinesa, há cerca de 4000 anos, nas margens do Rio Amarelo, seus pensadores procuraram estabelecer sistema de educação e ética dedicado a atingir o “Tao” [3] ou “Caminho do Meio”. Este seria uma estrutura social que refletiria o equilíbrio da natureza, onde se equivalem o “Yin” e o “Yang” [4]·.

Mais tarde, Confúcio e seus seguidores tentaram construir um ordenamento social que estabeleceria normas de conduta aos monarcas, no sentido de corresponderem a suas responsabilidades, perante seus súditos, enquanto imporiam aos governados o sentido da ordem das coisas, seus deveres e obrigações.

Confúcio escreveu: “Quando um governante exerce o poder de forma correta, ele terá influência sobre as pessoas, sem a necessidade de dar ordens. Quando o governante não age de forma correta, suas ordens não terão valor”.

O Confucionismo tem sido chamado de “a religião do li”. “Li” representa o conjunto de condutas apropriadas e a ordem social. Entre as qualidades essenciais no “Homem Superior”, a mais importante seria a “Ren” – benevolência e bondade.

Assim, uma sociedade confucionista visaria, seja a aceitação total de um dirigente, ou sua rejeição completa. Não haveria espaço, por exemplo, para o conceito ocidental de “loyal opposition”.

Qualquer membro da oposição, que reagisse por motivos honestos às políticas da autoridade no poder teria poucas opções: manifestar suas críticas, sendo imediatamente punido – por não corresponder ao tal preceito de obediência incondicional; registrar seu protesto e, em seguida, autopunir-se pelo “delito da discórdia”, talvez cometendo suicídio; ou retirar-se do convívio social e isolar-se como eremita, na floresta, com a esperança de tornar-se referência para outros descontentes, criando clima favorável para a derrubada da dinastia vigente e sua substituição por novos governantes.

Implícito em tal sistema encontrava-se o pressuposto de que o interesse pela estabilidade político-social deveria prevalecer sobre direitos individuais, tais como a liberdade de opinião ou o de expressá-las.

Em suma, era sob a égide do mesmo “mandato celestial” de sempre que Deng conduzia o processo de abertura da China ao exterior, enquanto, no plano interno, quebrava dogmas socialistas, em processo de instalação no país, a partir de 1949.

O autor teve a experiência pessoal de visitar, entre 1982 e 1985, algumas cidades costeiras que vinham adotando o novo sistema de “responsabilidade coletiva”. Isto é, até então os meios de produção e, principalmente, a terra eram de “propriedade coletiva”, e tudo o que fosse produzido seria entregue ao mercado público. Em troca, os indivíduos receberiam os bens, alimentos e serviços básicos para sua sobrevivência. Havia escassez, mas não se sofria miséria.

Foi possível ouvir narrativas, por exemplo, de que, durante o período da “Revolução Cultural”, cada pessoa receberia uma vestimenta – no estilo “traje de Mao”. Esta deveria durar nove anos. Durante os três primeiros, consideraria a roupa nova. Nos seguintes, como boa. Nos finais, adequada. Decorrido este prazo, novo conjunto de calça, jaqueta e chapéu lhe seria distribuído.

Com a nova prática – segundo o ensinado por membro de comunidade agrícola, durante um almoço ao qual o autor compareceu, em “fazenda modelo”, de cidade costeira da China – tudo continuaria a pertencer à coletividade e entregue ao mercado público. Pequena faixa de terra, no entanto, poderia ser cultivada individualmente e a produção vendida particularmente. Tal ganho poderia permitir ao camponês comprar sua própria ferramenta. Caso sua produtividade continuasse a aumentar, assim como sua renda, seria possível adquirir, por exemplo, uma segunda enxada. Em seguida, era necessário contratar alguém para operar o outro meio de produção.

 Introduz-se, assim, uma forma de relação de produção capitalista, com a exploração do trabalho de um indivíduo pelo outro. E, se este novo empresário vier a comprar grande número de ferramentas, veículos de transporte, lojas – não haveria, perguntei, uma organização de mercado monopolista?

Nesse ponto da conversa com o camponês, o representante da polícia ideológica, que vinha acompanhando o encontro intervém e declara que o governo da República Popular da China garantiria a manutenção de relações de produção e organização de mercado socialistas. Fim de caso. Cabia, então, cessar as perguntas e retornar à degustação do peixe – talvez o mais saboroso que digeri naquele país – com outras iguarias simples, mas bem-preparadas.

Era um processo de reformas, assim cuidadoso, sempre sob o controle de um sistema ainda centralmente planificado, que vinha sendo introduzido na China, na década de 1980. Sua implantação ocorria na agricultura e em versões industriais, nas áreas urbanas. Criavam-se empréstimos bancários e ações de empresas, com lucros sendo distribuídos aos operários.

Pensava-se, então, na gradativa descentralização do planejamento econômico. A planificação continuaria a vigorar nas áreas de infraestrutura e indústria pesada. Nos demais setores, haveria metas e linhas gerais. Fábricas se tornariam empresas independentes, com operários ganhando dividendos e gerentes decidindo, localmente, sobre onde obter matérias primas e a respeito de como e onde os produtos seriam vendidos e a qual preço.

A China, assim, buscava superar o ponto de equilíbrio estabelecido pelo princípio socialista, segundo o qual “de cada um de acordo com suas habilidades e a cada um de acordo com suas necessidades”, para novo paradigma – que, segundo a tradição confucionista deveria visar a estabilidade social. Este, contudo, deveria explorar a ganância e desejo por consumo de sua população.

Segundo especialistas no assunto, Mao não teria sido um líder na tradição de Confúcio. Pois – conforme descrito acima – não abraçou as normas ditadas pela “li”, que estabelecem a conduta adequada à ordem social. Teria agido no estilo de um “Macaco Rei”, liberando forças de “luan” (desordem e rebelião) para mobilizar a população e manter-se no poder. Assim, na essência do pensamento maoista se encontrava a rejeição à concepção confucionista de estabilidade. O progresso, para Mao, só poderia ser obtido pela luta contínua e permanente.

Deng Xiaoping, no entanto, personificou o retorno da China à tradição confucionista. No sentido de que caberia ao líder benevolente buscar o caminho certo para a estabilidade, segurança e o estabelecimento de forma de governança que favorecesse o progresso.

Uma das maiores conquistas de Confúcio foi a criação de um sistema educacional e de seleção por exames, aberto a todos, que veio a celebrar, na China, a figura do “acadêmico” e a classe dos “mandarins”.

Durante o período maoista, os “acadêmicos” foram considerados “parasitas”. Com a subida de Deng ao poder, o conhecimento voltou a ser valorizado. Tratava-se, agora, de encorajar a educação, incentivando especialistas, tecnocratas e gerentes com recompensas materiais, enquanto se retornava a valores tradicionais confucionistas.

Resta desejar que, com sua ascensão crescente, a RPC não busque exportar também, por seus “cinturões e rotas”, as atuais formas de governança. Em artigos próximos procurarei analisar as relações históricas do “Império do Centro” com seu entorno mais próximo, no Sudeste Asiático.

 

[1] Lew, Roland. “Mao prend le Pouvoir”. Éditions Complexe 1981.

[2] Mencius. 372-289 AC. Foi o segundo maior filósofo chinês, após Confúcio. Teve reconhecida sua teoria sobre a natureza humana, segundo a qual todos os homens possuem bondade inata, que pode ser desenvolvida pela educação e a autodisciplina, ou desperdiçada por negligência ou influências negativas, mas nunca totalmente perdida.

[3] Tao é um conceito elaborado na filosofia chinesa antiga. Significa “caminho”, ou, em certos contextos “doutrina” ou “princípios”. Pode também significar a verdadeira natureza do mundo.

[4] Na filosofia chinesa, Yin e Yang são utilizados para descrever como forças, aparentemente opostas, podem estar interconectadas e serem interdependentes em diferentes aspectos da natureza, enquanto se revezam, de forma cíclica.

 

 

domingo, 25 de agosto de 2024

O novo ordenamento internacional: China e Rússia; os chineses do Sudeste Asiático e os russos do “exterior próximo - Paulo Pinto (Linkedin)

 

O NOVO ORDENAMENTO INTERNACIONAL -CHINA E RÚSSIA Os chineses do Sudeste Asiático e os russos do “exterior próximo

Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

São frequentes as referências a novo ordenamento internacional, seguidas de menções a formas de governança vigentes na China e Rússia, bem como à possível influência que estas poderiam exercer em outras partes do mundo.

Nesse contexto seria oportuna a reflexão sobre diferenças entre a evolução das formas de convivência entre a RPC e os chineses que incluem significativa população no Sudeste Asiático (overseas chinese), e as dificuldades nas relações da Rússia, com países vizinhos onde vivem, como herança da União Soviética, russos do “exterior próximo”.

Isto é, a interação conquistada na antiga área periférica da China aconteceu através de sucessivas formas de articulação entre sociedades civis de identidades culturais variadas. No caso dos países que compunham a ex-URSS, desde sua extinção, deixou de ocorrer o mesmo tipo de relacionamento entre as nações que foram então emancipadas, oprimidas por regimes opressivos impostos por Moscou. A questão da Ucrânia, como consequência deste sistema disfuncional será mencionada, com referências às tentativas de negociação, na moldura dos Acordos de Minsk, na parte final deste artigo.

I

Assim, o sistema de governança no Sudeste Asiático absorveu influência chinesa, com base em tradições confucionistas. Não se buscou a segregação ou mesmo a eliminação de uma ou outra etnia. Assistiu -se, ao contrário, a uma organização regional, não ao redor de blocos ou polos alternativos, mas em redes concomitantes de cooperação, rivalidades e, por vezes, conflito.

Muitos tópicos da agenda de preocupações, daquela região, então vigentes, têm influência no papel agregador que a ASEAN exerce, agora, entre o Sudeste Asiático e demais países da Ásia Pacífico. Recorro, a propósito da evolução do relacionamento entre os países daquela região, a conversa que mantive, em Jacarta, com o Professor Jasuf Wanandi, então Diretor do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais da Indonésia, em 1994 – período durante o qual a ASEAN começava a consolidar seu papel de força motora e moderadora no Sudeste Asiático.

Naquela ocasião, ouvi longa e prazerosa explicação a respeito do conceito regional sobre resiliência, que predominava nas discussões entre centros de estudos naquela parte do mundo. Wanandi me explicou que: “Resiliência nacional, no plano interno, significa a habilidade de uma nação assegurar a evolução social necessária, enquanto mantém uma identidade própria. No plano externo, é expressa na capacidade de encarar ameaças com características diversas.”

A resiliência nacional, portanto, comporta o fortalecimento de todos os elementos que compõem o desenvolvimento de uma nação, incluindo os setores ideológico, político, econômico, social, cultural e militar. Se cada nação, de um grupo geográfico determinado, desenvolver sua própria resiliência nacional, gradativamente, uma resiliência regional emergirá.

Isto é, os países membros desenvolverão a habilidade de resolver, em conjunto, seus problemas em comum, bem como criarão uma visão de futuro e bem-estar compartilhada.

Esse esclarecimento me foi transmitido por ocasião de périplo que realizei por centros de estudos estratégicos em capitais do Sudeste Asiático (Manila, Bangkok, Kuala Lumpur, Singapura e Jacarta), Pequim e Hong Kong, de primeiro a 25 de março de 1994, por proposta minha e patrocínio do Itamaraty (então sob o comando do Embaixador Celso Amorim, em sua primeira encarnação como Chanceler, durante a Presidência de Itamar Franco).

O objetivo do esforço de estabelecimento de vínculos com essas instituições acadêmicas foi o de criar canais de interlocução com aquela parte do mundo, onde acontecia, no final do século passado, evolução econômica e política acelerada.

Nesse processo, desenvolvia-se reflexão sobre estratégia própria, com a utilização crescente de núcleos de pesquisa específicos, como os visitados. Isso acontecia, fosse como reação a desafios de seu próprio desenvolvimento autônomo, fosse como resposta a questões impostas do exterior.

Propostas semelhantes, a propósito, constam de discursos recentes do presidente chinês Xi Jinping, no que diz respeito a forma de governança “com características chinesas”, como o que consta do enunciado de uma Comunidade de Nações com Destino Comum.

II

A Comunidade de Nações com Destino Comum

O conceito da comunidade de destino comum da humanidade, que Xi Jinping tem proposto, articularia a experiência chinesa de convívio pacífico e solução negociada de conflitos internos e externos com sua própria concepção de cooperação econômica.

Em seus pronunciamentos, Xi ressalta que “a China, nação com mais de cinco mil anos de história, enfrentou conflitos diversos ao longo dos tempos. A pacificação do Império só foi possível pelo estabelecimento de acordos entre a China e os povos que conviviam no mesmo território. Como resultado, hoje convivem, na China, mais de 50 etnias, 24 idiomas e cinco sistemas de escrita. Há ainda templos budistas, igrejas cristãs e mesquitas por todo o território.”

Ainda segundo o dirigente da RPC, “essa experiência aplicou-se também no nosso tempo, especialmente na questão dos territórios de Hong Kong e Taiwan, onde funcionam sistemas diferentes do restante do país, mas mantém-se a unidade nacional por meio de negociações”.

“A fórmula “um país dois sistemas” vem permitindo o convívio pacífico apesar das diferenças e de alguns retrocessos, como a atual hostilidade de autoridades de Taiwan, eleitas pelo “Partido Democrático Progressista”. É certo que a parte continental da China teria meios suficientes para submeter as ilhas pela força. Mas essa via não é do interesse do Estado chinês, que mantém o entendimento de que a ação militar é sempre a pior solução.”

A economia tem papel destacado no conceito de comunidade de destino da humanidade: “ao contrário dos países imperialistas” (uma vez que a China sofreu, no século 19 e primeiras décadas do século 20, com a ação imperialista de europeus, japoneses e estadunidenses, que invadiram e dividiram seu território para explorar seu povo), que impõem seus próprios termos para o comércio entre as nações, o gigante asiático propõe a cooperação econômica de tipo ganha-ganha com países em desenvolvimento.

No momento, a China está expandindo seus interesses por acesso a recursos naturais e a novos mercados, ao Pacífico Ocidental, ao redor da periferia dos países do Sudeste Asiático, e ao sul da Ásia, bem como em direção à Ásia Central e crescentemente sobre o “continente eurasiano”.

Com respeito ao relacionamento da RPC com o Sudeste Asiático, Pequim formula discurso com o realce de laços históricos que têm sido capazes de garantir a inserção internacional chinesa atual em universo de influência cultural do antigo Império do Centro.

Procura, então, dar versão benigna às viagens do Almirante Zheng He, ocorridas há 600 anos, aos mares austrais do continente asiático. Quanto à Ásia Central e Eurásia, registram-se formulações quanto ao ressurgimento de uma Nova Rota das Sedas. Assim, a China está empenhada na frenética construção de ferrovias, estradas e dutos para a importação de recursos energéticos, através da Eurásia. Tais vias de transporte substituirão as caravanas de camelos da antiga Rota das Sedas. Da mesma forma, a moderna Marinha da RPC substitui a frota de Zheng He, nas costas da África e do Mediterrâneo.

O objetivo – segundo Pequim - é estabelecer um fluxo de livre comércio e futura integração internacional de mercados. Com essa iniciativa, a China almeja novas oportunidades de comércio, estabelecendo “network” de integração e cooperação (conectividade, para empregar o termo preferido de seu governo atual) com vários países que se dispuserem a participar.

Assim se materializaria a iniciativa de um cinturão e uma rota, lançada por Pequim, em 2013, ambicionando a modernização da massa terrestre eurasiana, onde vive (incluindo chineses e indianos) cerca de sessenta por cento da população mundial. Ademais, tendo em vista a fragilidade do sistema de poder internacional vigente, o projeto de “Belt and Road” poderia indicar um novo ordenamento nas relações entre os países a serem incluídos.

Os dirigentes chineses pretendem, de qualquer forma, resgatar as referidas expedições marítimas históricas como registro de suas intenções pacíficas e exemplo da permanente busca de harmonia – em oposição a hegemonia – nas relações da China com seus vizinhos ao sul de suas fronteiras. O Partido Comunista Chinês (PCC), portanto, se esforça, tanto no plano interno, quanto no das relações com o exterior, no sentido do convencimento de que, em todos os momentos de emergência do país – há 600 anos, como agora – a China pode ser forte, sem representar ameaça ou interferência regional ou mundial.

III

Moscou e os Russos do Exterior Próximo

São distintas da situação dos “overseas chinese”, no entanto, as relações entre Moscou e pessoas que conservam a identidade cultural russa, em países vizinhos, ex-integrantes da URSS. Desnecessário lembrar que, ao contrário do deslocamento de chineses para o Sudeste Asiático, resultado de ações da sociedade civil e ocorrido há centenas de anos, os russos do exterior próximo foram estabelecidos por decisão do Governo em Moscou, no século passado, a partir da criação da União Soviética.

Existiria, a propósito, uma visão de futuro que sugeriria novos vínculos para um espaço pós-soviético, seguindo caminho no sentido de uma União das Repúblicas do Exterior Próximo. Isto é, o Presidente Vladimir Putin, em documento publicado em 2008, propôs “Um novo projeto de integração para a Eurásia: o futuro que nasce hoje”. Sugeria, em suma, algo mais parecido com roteiro de um bem-organizado retorno a passado saudoso (para ele) do que movimento em direção a objetivo inovador.

Como se sabe, durante a existência da URSS, Moscou dirigia todos os detalhes da organização político-socioeconômica das Repúblicas Soviéticas. A réplica desse mesmo projeto permeia a referida proposta do Presidente da Federação Russa. Assim, Vladimir Putin retomava, com o conceito da União Eurasiática, a defesa da fusão de mecanismos de integração existentes, com vistas à criação de um polo de poder no mundo contemporâneo, com sede na capital russa, situada cartograficamente entre a Europa e a região da Ásia e do Pacífico.

O líder russo revelava que a meta era chegar a patamar superior de integração. Na prática, isso significaria a reconstrução de relações com países do exterior próximo, que integraram tanto o Império Russo, quanto a União Soviética.

O processo desordenado e irresponsável como foi dissolvida a União Soviética, em 1991, a propósito, provocou turbulências além das ora sofridas na Ucrânia, bem como temidas em outras ex- Repúblicas que pertenceram à URSS, como a Moldova, Lituânia, Estônia e Letônia. Em todos esses Estados que se emanciparam de Moscou, permaneceram cidadãos que utilizam o idioma russo e são chamados, pelo Presidente Putin, como exterior próximo.

A forma de governança adotada a partir da criação da União Soviética, como se sabe, não favoreceu o florescimento de ideologias em competição entre si, no âmbito de fronteiras definidas no período pós-independência, em 1991. Havia que prevalecer, segundo essa maneira de pensar, apenas o conjunto de ideias-forças definidas pelas autoridades centrais. Esse processo facilitaria o congelamento de lideranças que, à maneira antiga de pensar, não admitiam contestação.

Como resultado, esse sistema autoritário permeou as estruturas básicas desses novos Estados, ainda sob influência do estilo de governança soviético, e facilitou, em certa medida, que projetos de poder pessoais viessem a ser consolidados. Lembra-se que, durante a existência da URSS, enquanto novas Repúblicas, traçadas a partir de Moscou, foram se consolidando, classes dirigentes fortaleceram-se com métodos de governança soviéticos, tais como julgamentos e execuções sumários, e desaparecimentos.

Na medida em que essas modalidades de controle social iam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades congelavam elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais e minorias de russos do exterior próximo (inclusive na Ucrânia, conforme será mencionado na sequência deste artigo).

Crises atuais, como a da invasão militar da Ucrânia e o conflito congelado no Cáucaso (entre Armênia e Azerbaijão), têm sua origem na forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética. Na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança stalinista.

Este privilegiava lideranças das chamadas repúblicas soviéticas que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo velho regime.

Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de autodeterminação, que veio a provocar o surgimento de repúblicas soviéticas –etapa intermediária para a consolidação do socialismo – com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição. O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos esses minis governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior ocorreria com a universalização do poder do proletariado.

A dialética marxista garantiria que, com o desaparecimento da luta de classes, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, “ansiosos por serem conduzidos ao comunismo”. Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem nas antigas Repúblicas Soviéticas encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de nação.

Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético, caberia distinguir nação de raça, tribo, grupo linguístico ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território. A nação, segundo Stalin, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”.

Coerente com o raciocínio do materialismo histórico, Stalin identificaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente como resposta à opressão por algum outro grupo social. Isto é, a consciência nacional – da mesma forma que a de classe – surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra.

A diferença entre o conceito stalinista de nação e o pensamento burguês sobre o tema seria, que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”. Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.

Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos reivindicarem autodeterminação de uma área, apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. “Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta para obter o benefício em questão.”

Seria a conveniência da promessa de estabilidade – cabe ressaltar – oferecida pela proposta de Putin que agradaria autoridades dessas ex-Repúblicas Soviéticas. Afinal, acena-se com um patamar superior de integração com a reconstrução das relações com os países do exterior próximo, que integravam o Império Russo e a URSS.

O encanto desse projeto vem sendo diluído pela intervenção russa na Ucrânia. Outros países que integraram a URSS passaram a temer o mesmo destino. Assim, cabe não esquecer quais eram os objetivos originais de Moscou, no sentido de projetar imagem positiva de uma Federação de Nações do Exterior Próximo. Na prática, tratava-se de reviver o antigo Império Russo.

IV

A Questão da Ucrânia e os Acordos de Minsk

A atual questão da Ucrânia é o exemplo maior de tragédia criada em país vizinho da Rússia, como resultado da forma desordenada como aconteceu, em 1991, a implosão da União Soviética e da presença de russos do exterior próximo, em território ucraniano.

Para a solução do conflito, foram concebidos os Acordos de Minsk. Assinados em 2014 e 2015 por representantes de Ucrânia, Rússia, França, Alemanha e das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, onde predominavam russos do exterior próximo. Os referidos documentos não conseguiram solução pacífica para o conflito em Donbass, na fronteira russo-ucraniana.

Em 22 de fevereiro de 2022, dois dias antes de começar sua operação militar especial, Moscou reconheceu a independência de Donbass e Putin esclareceu que a medida fora adotada porque Kiev afirmara publicamente que não cumpriria os Acordos de Minsk. Lembra-se que, em fevereiro de 2014, o governo democraticamente eleito da Ucrânia fora derrubado pelo chamado movimento Euromaidan, que teria sido apoiado por potências ocidentais.

O golpe desencadeou um conflito sangrento nas regiões orientais do país, onde parte da população – predominantemente de expressão russa – recusou a nova liderança de Kiev. Formaram-se, então, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL, respectivamente). Kiev, então, tentou subjugar rapidamente as repúblicas recém-formadas por meios militares, sem sucesso.

Não tendo conseguido vitória decisiva no campo de batalha, visto o apoio militar da Rússia aos dissidentes e o apelo das potências europeias por uma solução pacífica para o conflito, a Ucrânia recorreu a negociações. Estas foram dificultadas pela relutância do governo ucraniano em falar diretamente com os líderes da RPL e RPD. Foram, então, formados o Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia, composto por Kiev, Moscou, Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e o Formato Normandia, incluindo Ucrânia, Rússia, Alemanha e França.

Chegou-se, assim, ao que ficou conhecido como os Acordos de Minsk, por terem as negociações sido realizadas na capital bielorrussa, considerada, então, um terreno neutro. O primeiro desses acordos, o Protocolo de Minsk, foi assinado em 5 de setembro de 2014. Diante da ausência de resultados positivos, foi realizada nova versão, conhecida como Acordos de Minsk-2, assinada em 12 de fevereiro de 2015. O acordo Minsk-2 foi firmado durante uma reunião do Formato da Normandia, que incluiu o presidente russo, Vladimir Putin, a então Chanceler alemã Angela Merkel, o então presidente francês, François Hollande, e o então presidente ucraniano, Pyotr Poroshenko.

As partes prometeram: cessar-fogo e retirar suas forças da linha de contato; a presença de armas pesadas na área da zona-tampão foi estritamente proibida; os sistemas de foguetes de lançamento múltiplo Uragan e Smerch, bem como o sistema de mísseis balísticos de curto alcance Tochka, deveriam ser retirados a 70 km da linha de contato; observadores da OSCE deveriam monitorar a implementação dessas regras; além da troca de prisioneiros de acordo com o princípio “todos por todos”, os lados foram obrigados a realizar a anistia dos capturados durante os confrontos armados; o lado ucraniano também deveria adotar a lei sobre o status especial dos distritos separados de RPL e RPD e realizar eleições locais, levando em consideração o posicionamento dos representantes de ambas as repúblicas de Donbass.

No dia seguinte às eleições, Kiev deveria assumir o controle total da fronteira estatal ucraniana; além disso, os Protocolos de Minsk estipulavam a implementação de uma reforma na Ucrânia, que previa a introdução de um conceito de descentralização na Constituição do país, que deveria ter levado em consideração as especificidades de “certos distritos das regiões de Donetsk e Lugansk”. Segundo Moscou, contudo, durante os cinco anos seguintes, “o lado ucraniano simplesmente se absteve de implementar as cláusulas políticas dos Acordos de Minsk, exigindo, em vez disso, que o controle da fronteira entre os territórios da RPL e RPD fosse entregue primeiro a Kiev”.

Essas exigências, no entanto, foram rejeitadas pelas autoridades das ditas repúblicas e por Moscou, que suspeitava que, uma vez que as forças ucranianas assumissem o controle da fronteira e isolassem efetivamente as repúblicas do mundo exterior, Kiev poderia então tentar esmagar toda a oposição por meios militares. A RPD e a RPL, assim como a Rússia, também acusaram o governo ucraniano de ocupar assentamentos ilegalmente na zona-tampão e de colocar equipamento militar pesado na região.

A situação foi ainda mais agravada pelo fato de que as potências ocidentais repetidamente fecharam os olhos à recusa de Kiev em aderir aos Acordos de Minsk, ao mesmo tempo em que repreendiam constantemente a RPD e a RPL por supostas violações dos mesmos acordos. Em 21 de fevereiro de 2022, Putin assinou um decreto para reconhecer a independência das repúblicas de Donbass, que mais tarde “se tornaram parte da Rússia”. A iniciativa resultou em ataques ucranianos crescentes de bombardeios e sabotagem contra a RPL e a RPD. O decreto foi seguido por anúncio de Putin quanto ao início de uma “operação militar especial russa” na Ucrânia em 24 de fevereiro.

V

Experiências pessoais

Durante os nove anos em que servi no Sudeste Asiático (1986 a 1995), sucessivamente, em Kuala Lumpur (Malásia), Singapura, e Manila (Filipinas), notei que eram cordiais as relações sociais entre pessoas de origem chinesa e malaios e hindus (outros grupos predominantes). Mesmo diante do conceito de resiliência, explicado acima, verificava-se, contudo, uma certa tensão latente, quando um grupo ou outro sentisse que sua identidade cultural fosse ofendida.

Como Embaixador em Baku, Azerbaijão (entre 2009 e 2012), registrei, em diferentes ocasiões, que após reuniões tensas e agressivas, entre representantes oficiais armênios e azeris sobre disputas territoriais herdadas da ex-URSS, havia aparente confraternização entre os delegados dos dois países. Isso porque, tratando-se de povos originalmente voltados para atividades pastoris (criação de ovelhas), houvera interação frequente entre os habitantes das regiões em conflito, em virtude de deslocamentos de seus rebanhos ao território vizinho. As disputas armadas por território, na verdade, eram impostas pelos dirigentes de seus respectivos países.

Daí as pessoas se conhecerem, possuírem laços familiares e terem cultivado parcerias. A criação das Repúblicas Soviéticas, conforme se procurou demonstrar, os separou, com o fortalecimento de elites, que herdaram privilégios, concedidos pelo período de dominação da URSS.

De qualquer forma, proponho um ganbei (saúde, em chinês) aos que se expressam nesse idioma no Sudeste Asiático e uma nasdrovia, (em russo) como forma de brindar e preservar sua convivência ou encerrar conflito com a potência maior de suas respectivas regiões. Conversar é preciso.