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quarta-feira, 5 de março de 2025

“LET’S MAKE CHINA THE CENTER OF THE WORLD AGAIN” - Paulo Pinto (Linkedin)

 

“LET’S MAKE CHINA THE CENTER OF THE WORLD AGAIN” 

Os chineses desenvolveram, bem cedo em sua História, uma visão sino cêntrica do mundo. Este pensamento incluía dois componentes principais. O primeiro era a ideia de que o Imperador da China reinava sobre aquele país e áreas vizinhas, sem que, entre estas, fosse estabelecida qualquer distinção ou limites geográficos - eram consideradas simplesmente uma vasta mancha amorfa.

O segundo aspecto dizia respeito à percepção chinesa de que o planeta -dentro dos limites então alcançáveis - poderia ser governado de forma harmoniosa e pacífica, como uma sociedade ideal, sob o mando de um Imperador virtuoso. Unidade e harmonia eram, assim, os objetivos a serem atingidos, numa visão utópica de como deveriam estabelecer-se as relações internacionais, sempre ditadas a partir de um centro de decisões localizado dentro da China[1].

Inicialmente, cabe ressaltar que as relações da China com o Sudeste Asiático – o entorno chinês mais próximo - foram historicamente marcadas pela busca constante do equilíbrio regional. Os chineses, assim, demonstravam determinação no sentido de pacificarem os "bárbaros" situados ao sul de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que procuravam transmitir-lhes suas normas de comportamento confucionista.

Nesta perspectiva, a influência criada pela China era expressa pela sua incontestável superioridade, no plano interno, em termos de organização política e social, incluindo a defesa de normas éticas de comportamento que os chineses procurariam divulgar nas relações com outras nações. Não se buscava o domínio econômico ou a conquista territorial dos Estados vizinhos, com o emprego da força. Como resultado, o Sudeste Asiático tinha a percepção constante da existência de uma potência regional a ser levada em conta, mas não permanentemente temida[2].

Verifica-se, nessa perspectiva, que, graças a este tipo de relacionamento, ao chegar-se ao início da “política de modernização da China”, na década de 1980, houve desdobramentos que facilitaram o atual avanço do processo de congruência entre a área de influência tradicional da cultura chinesa e uma nova fronteira econômica da RPC.

A crescente regionalização da produção evoluía, de forma que a interação de novas tendências, como a redução nos custos da mobilidade dos fatores de produção e as economias de escala exigidas por processos produtivos crescentemente sofisticados, proporcionavam o surgimento dos chamados "tigres" ou "novas economias industrializadas".  Os efeitos de tais reajustes seriam evidentes no aparecimento de formas de relacionamento inovadoras, que incluiriam diferentes tipos de parcerias entre o Japão, novas economias industrializadas no Sudeste Asiático e partes da China.

A emergência de certos países e agrupamentos regionais, sempre de acordo com esta linha de raciocínio, não se deveria a experiências isoladas, mas a fenômeno integrado, que projetaria sobre a área, como um todo, os benefícios da acumulação de capital e da experiência modernizadora resultante da aplicação prática de novos conhecimentos científicos e tecnológicos.

A estabilidade e o progresso na Ásia Pacífico passaram a ser entendidos, por setores de opinião, como dependentes, cada vez mais, de processos de cooperação que garantissem a negociação entre suas diferentes culturas. Nesse contexto, despertava crescente interesse os vínculos históricos entre a China e o Sudeste Asiático.

Isto porque, a maioria dos países do Sudeste Asiático compartilha - conforme assinalado acima - de passado que os inseriu, em maior ou menor escala, em esfera de influência de duas grandes civilizações: a chinesa e a indiana, que interagiram, através dos séculos, com culturas locais. O Budismo, o Islã, o Hinduísmo e o Confucionismo deixaram, assim, marcas profundas que continuam a diferenciar ou aproximar pessoas.

A este mosaico de heranças culturais seculares, somou-se, mais recentemente, o colonialismo europeu que impôs, pela força, novos valores e normas de organização e comportamento. A partir do término da Segunda Grande Guerra, os Estados recém independentes da região foram divididos, pela rivalidade ideológica das superpotências, entre os que serviriam como a vitrine da economia de mercado e os que seguiriam o sistema de planejamento centralmente planificado.

Com a multipolaridade resultante do término da Guerra Fria, ocorreu o recuo das esferas de domínio de Washington e Moscou. Como consequência, no Sudeste Asiático, tornou-se possível o ressurgimento de influências político culturais antigas, como a chinesa. Hoje, quando se discutem os efeitos da presença avassaladora da cultura de massa, resultante da globalização, os países da área buscam, em sua própria região, marcos de referência que permitam afirmar valores, ideias e crenças, consolidadas através de uma história compartilhada numa geografia determinada.

No Sudeste Asiático, nessa perspectiva, verificou-se a gestação de um novo conjunto de mudanças que afetaram não apenas a economia, através da reorganização frequente de suas vantagens competitivas, transformações técnico industriais nas formas de produzir e alterações na organização da sociedade. Tudo isso ocorreu, no entanto, com a preservação de valores culturais que, passando de geração a geração, garantiram uma base de sustentação do modelo que se consolidava.

Na prática, este processo evoluiu com a busca da construção de sucessivos "building blocks". Na primeira etapa dessa construção de blocos, logo após o desaparecimento de Mao Zedong, integrou-se o próprio sistema econômico chinês.  Em seguida, foi permitida a abertura de cidades costeiras ao comércio internacional, com a criação das Áreas Econômicas Especiais, onde foram adotadas práticas de economia de mercado dentro de um sistema centralmente planificado mais amplo. Os blocos seguintes foram surgindo ao longo do rio Yangtze, até chegar a Xangai, onde se situaria a "cabeça do dragão".

Gradativamente, houve a consolidação de Hong Kong e Macau no sistema produtivo da RPC. A crescente integração econômica - e futuramente política - com Taiwan será o passo seguinte. A expansão da fronteira econômica chinesa em direção ao Sudeste Asiático foi a fase seguinte, que foi facilitada pela existência, ao Sul da China, de uma rede de indivíduos com origem étnica comum, chamados “chineses de ultramar", que têm como referência uma mesma identidade cultural.

Assim, gradativamente, chegou-se a uma congruência entre a área de influência tradicional da cultura chinesa e uma nova fronteira econômica da RPC.

Este último desenvolvimento ocorreu através de um fenômeno de "cross fertilization", caracterizado por intercâmbio de referenciais de valores, entre aquela área considerada historicamente como situada na periferia do Império do Centro e a RPC.

O conjunto de transformações ocorreu de forma a sugerir, mesmo, a emergência de um novo paradigma regional. Isto porque, por um lado, a existência de uma base cultural chinesa servia de plataforma de sustentação para um processo de cooperação com o Sudeste Asiático.

Por outro, houve os tipos de contribuições seguintes:

- Os países bem-sucedidos como a "vitrine do Capitalismo no Sudeste Asiático" - a exemplo de Cingapura - indicaram os rumos para o aperfeiçoamento da "economia socialista de mercado", com características chinesas, então buscada pelo programa de modernização da RPC; e

- A persistência do Vietnã em manter seu sistema central de planejamento, ao mesmo tempo em que adotou "práticas de economia de mercado", reforçou a proposta chinesa de preservar a vertente "socialista" entre as medidas adotadas, no programa de modernização da República Popular da China.

O interesse quanto à reflexão sobre o tema deve-se à influência que a emergência de um bloco político de interesses recíprocos e de mega proporções - como o representado pela China e o Sudeste Asiático - exerce no ritmo de integração e cooperação na Ásia-Pacífico, um dos laboratórios de modernidade do planeta, bem como, conforme assinalado na introdução, o enfraquecimento do modelo unipolar em vigor, determinado pelos EUA, comece a recuar em suas áreas de influência conquistadas nas últimas décadas.

Haveria espaço futuro para o renascimento de algo a sugerir como um centro do mundo situado na China? Seriam as “Rotas das Sedas” iniciativas chinesas nesse sentido?

A ROTA DAS SEDAS MARÍTIMA E O “CINTURÃO” EUROASIÁTICO

“A maior parte da China é desprovida de litoral, o que leva o país a voltar-se muito mais para a terra do que ao oceano. A contribuição de Zheng He[3], portanto, significou tanto a propagação da ‘civilização terrestre’ chinesa (pelo Sudeste Asiático), quanto a divulgação interna, na China, da experiência de contato com “civilizações marítimas”.nbsp; O Século XXI será direcionado para os oceanos. O pensamento voltado para os oceanos significa abertura e civilização, avanço e progresso. Cabe resgatar, portanto, o espírito de Zheng He e marchar em direção à abertura proporcionada pelo desenvolvimento pacífico de ampla civilização marítima”4]

A citação faz parte do discurso atual de Pequim de recorrer à História, para demonstrar a importância dos oceanos à interação entre a “civilização terrestre chinesa” e as civilizações ultramarinas, enquanto busca dar versão benigna às viagens do Almirante Zheng He, ocorridas há 600 anos, ao Sudeste Asiático.

Existem, no entanto, críticos severos da tese atual dos dirigentes chineses, quanto aos efeitos dos périplos de Zheng He. Setores de opinião descrevem suas viagens como predadoras e destinadas a criar vínculos de dependência, entre as nações “visitadas” e o então poderoso Império chinês.

Os dirigentes chineses pretendem, de qualquer forma, resgatar as referidas expedições marítimas históricas como registro de suas “intenções pacíficas” e exemplo da permanente busca de “harmonia” – em oposição a “hegemonia” – nas relações da China com seus vizinhos ao sul de suas fronteiras. O Partido Comunista Chinês (PCC), portanto, se esforça, tanto no plano interno, quanto no das relações com o exterior, no sentido do convencimento de que, em todos os momentos de emergência do país – há 600 anos, como agora - a China pode ser forte, sem representar ameaça regional ou mundial.

Este enunciado de intenções pode ser tranquilizador para os que habitam ao sul da China. Na década de 1980, principalmente, havia extrema preocupação, no Sudeste Asiático, quanto a possível “China Threat”, diante da abertura daquele país ao exterior. Agora, haveria pelo menos um enunciado de intenções pacíficas sínicas com respeito a seus vizinhos austrais.

Existe, contudo, proposta chinesa recente de criação de uma nova Rota das Sedas (também chamada de “cinturão”), como um projeto estratégico que visa a transformar a Ásia Central de sua condição atual de “land locked” (sem acesso ao mar) em “land-linked” (com ligação terrestre) proporcionando, assim, acesso a mercados e portos no Oceano Índico, Golfo Pérsico e Oceano Atlântico.

Sua implementação representará, sem dúvida, a melhoria da malha ferroviária através da região, ligando o Irã ao Tajiquistão [5], atravessando o Afeganistão e chegando à fronteira com a China. Em sua dimensão de “ponte terrestre eurasiana”, conjuntos de ferrovias, estradas e dutos conduzirão bens e recursos naturais, nos dois sentidos, entre o porto de Lianyungang, na China oriental, através do Cazaquistão, na Ásia Central, até Roterdam, e entre o delta do Rio das Pérolas, no sudeste da China, através do Sudeste Asiático, e também Roterdam. Cabe lembrar que já existe a ferrovia transiberiana, no percurso de Vladivostok, na Rússia oriental, a Roterdam.

A RPC entende, nessa perspectiva, uma “New Silk Route” (ou cinturão, “belt”) como ligação terrestre para facilitar seu abastecimento de recursos naturais e a venda de produtos “made in China”. Para tanto,  a China pretende utilizar esta intensa capilaridade de ferrovias, estradas e dutos [6].

Torna-se pouco convincente, no entanto, que a China queira relacionar sua expansão, pelo continente eurasiano, com o ressurgimento da “Rota das Sedas” (marítima, pelo Sudeste Asiático). A visão chinesa, neste caso, busca a mesma justificativa utilizada no caso das viagens marítimas do já referido Almirante Zheng He, que projetara – sempre de acordo com a narrativa de Pequim - poder e cultura chineses superiores, principalmente no Sudeste Asiático, há seiscentos anos.

De “Building Blocks”, no Sudeste Asiático, à Expansão por Círculos Concêntricos, na Ásia Central.

A montagem de esfera de influência da China, na Ásia Central, não parece seguir o mesmo processo de emergência pacífica de sucessivos blocos, no contexto de identidade cultural compartilhada – conforme a teoria acima exposta para a reintegração do Sudeste Asiático à antiga esfera de influência do Império do Centro. Observadores centro-asiáticos, a propósito, temem que a expansão chinesa em curso naquela região siga o rumo de “círculos concêntricos”, com base em teoria de “fronteiras estratégicas”.

Na medida em que seria possível raciocinar, com respeito às relações da China com a Ásia Central, nos mesmos termos de sucessivos blocos - conforme a teoria defendida pela RPC para a reintegração do Sudeste Asiático na antiga área de influência do Império do Centro – caberia identificar, inicialmente, o caminho seguido por Pequim, no esforço de expansão ocidental de seu território.

Lembra-se, a propósito, que, com o colapso da União Soviética, em 1991, estados independentes, com forte influência do Islã, surgiram ao redor das fronteiras ocidentais da China. De repente, diante do efeito demonstrativo da emancipação da URSS de novas Repúblicas, como a do Tajiquistão, onde predomina a mesma religião, Pequim se viu forçada a confrontar desafios a sua autoridade na província limítrofe mais remota – a de Xinjiang que, apropriadamente, significa “nova fronteira”, no idioma chinês. A prioridade da RPC foi, desde o início da década de 1990, a manutenção do domínio e estabilidade sobre seu próprio território.

O conceito de fronteira empregado no que diz respeito à Xinjiang, no entanto, sempre teve, para Pequim, conotação bastante “móvel”. Isto é, dependendo da necessidade de explorar recursos e da capacidade de projetar poder para garantir tal apropriação, o traçado destas “fronteiras” poderia expandir-se ou retrair-se.

Em seu livro “The New Silk Road Diplomacy”, Hasan H. Karrar[7] explica que “the optimum level of expansion varied over time, a fact borne out by the cyclical expansion and withdrawal from Western Regions that corresponded with the centre’s ability to project decisive power into the contested frontier zone”.

Com o crescimento econômico acelerado recente, no entanto, a RPC começou a identificar crescente competição internacional por recursos energéticos e influência na Ásia Central, agora livre do controle que Moscou exercia sobre a extinta URSS.

Nessa perspectiva, sempre de acordo com Hasan Karrar, imperativos de ordem econômica e de segurança determinam a estratégia expansionista chinesa, a partir da província de Xinjiang, no sentido ocidental, em direção à “Eurásia”. Registra, a propósito, que durante a Dinastia Qing, em 1884, aquele território foi incorporado pelos chineses e, em 1949, tornou-se uma “região autônoma” da recém fundada República Popular.

Sempre segundo este raciocínio, o conceito de uma nova Rota das Sedas (cinturão), para os chineses, significa, inicialmente, a estabilização de Xinjiang, que, como se sabe, tem sofrido períodos de intensa turbulência. Em sua expansão ocidental, em direção à Eurásia, a China continuaria no esforço de desenvolver as regiões ocidentais mais remotas e garantir o fornecimento de recursos naturais.

Haveria, assim, uma visão chinesa de que a expansão de suas fronteiras no sentido ocidental seria dependente de uma política de sucessivos círculos concêntricos. Isto é, haveria um centro de poder em Pequim que, dependendo do poderio militar e força econômica do momento, teria capacidade de projetar ou retrair influência além de seu território, criando os tais círculos concêntricos. Este tipo evolução ou retração teria ocorrido, de forma cíclica, no decorrer da longa história da China.

Cabe registrar que a Ásia Central tem representado área propícia para sucessivos períodos de expansão de diferentes impérios - além do chinês - tendo em vista a fragilidade das diferentes formas de instituições políticas que lá se instalaram, bem como abundância de atores não estatais, que variam de traficantes e bandos de saqueadores a pequenas aldeias. Essa complexidade é bem descrita no livro “The Great Game”, de Peter Hopkirk.[8]

Enquanto isso, Pequim continua a evocar narrativas das viagens de Zheng He, que servem como conforto para os que se preocupam com sua expansão marítima. A projeção de seu poder terrestre, no entanto, não combina com a ideia de ascensão pacífica marítima chinesa, conforme mencionado acima. Reflete, sim, esforço de expansão de doutrina de fronteira estratégica.

Sabe-se, a propósito, que a China não adere ao conceito ocidental westfaliano sobre nações-estados, com fronteiras estabelecidas. Ademais, a preferência da RPC por “fronteiras estratégicas” leva observadores a acreditarem que a RPC é motivada por uma proposta de “Lebensraum”, ou “espaço vital” que foi, como se sabe, pedra fundamental da filosofia de Adolf Hitler, que acreditava merecer a Alemanha territórios adicionais, principalmente na região eslava oriental, para crescer.

O impulso atual da RPC, em direção aos territórios da Ásia Central, lembra política japonesa da década de 1930, que levou à invasão  do território chinês da Manchúria. Com base na ideologia chamada de “Manchukuo”, a agressão nipônica era dividida em três etapas: 1) amplo investimento na infraestrutura para a extração de recursos naturais; 2) intervenção militar para a proteção de interesses econômicos; e 3) absorção sociopolítica, com o estabelecimento de governo fantoche. Este foi o processo adotado pelos japoneses, na década de 1930, com a invasão da Manchúria e o posterior estabelecimento, no “governo” daquela província chinesa do “Imperador Puyi”, da já então extinta dinastia chinesa Qing.

No que diz respeito à “Rota das Sedas”(cinturão), situa-se em região que separa a China da Ásia Central e Europa e é uma das mais inóspitas do mundo. A maior parte é coberta pelo deserto de Taklamakan, e sofre pela ausência de chuva e por frequentes tempestades de areia. Apesar de poucas estradas, em péssimas condições, caravanas fizeram seu percurso, durante séculos.

Ao invés de comercializar sedas, porcelanas, tapetes, pérolas e especiarias, os chineses hoje vendem eletrônicos, automóveis, aparelhos de telecomunicações, enquanto investem em portos, ferrovias, estradas, projetos de exploração de gás e petróleo e minas.

No momento, a China aparenta estar expandindo seus interesses por acesso a recursos naturais e a novos mercados, ao Pacífico Ocidental, ao redor da periferia dos países do Sudeste Asiático, e ao Sul da Ásia, bem como em direção à Ásia Central e crescentemente sobre o continente eurasiano.

CONCLUSÃO

Este artigo, propositalmente, deixa de mencionar as “Rotas da Seda” já presentes nos continentes africano e latino-americano.

Com respeito ao relacionamento da RPC com o Sudeste Asiático, Pequim formula discurso com o realce de laços históricos - mencionados no decorrer deste texto - que têm sido capazes de garantir a inserção internacional chinesa atual em universo de influência cultural do antigo “Império do Centro”. Procura, então, dar versão benigna às viagens do Almirante Zheng He, ocorridas há 600 anos, aos mares austrais do continente asiático.

Quanto à Ásia Central e Eurásia, registram-se formulações quanto ao ressurgimento de uma Nova Rota das Sedas. Esta, no entanto, parece basear-se na consolidação de corredores já existentes há séculos, através do Continente Eurasiano.

Nessa perspectiva, a China está empenhada na frenética construção de ferrovias, estradas e dutos para a importação de recursos energéticos, através da Eurásia. Tais vias de transporte substituirão as caravanas de camelos da antiga Rota das Sedas. Da mesma forma, a moderna Marinha da RPC substitui a frota de Zheng He, nas costas da África e do Mediterrâneo.

O vazio, em termos de discurso chinês atual sobre suas intenções quanto à Ásia Central e Eurásia, a propósito, permite o surgimento de análises com base em formulações tradicionais naquele país. Assim, segundo o I Ching (livro de “previsões chinesas”) existem cinco elementos na natureza: terra, água, madeira, fogo e metal. Em torno destes, são feitos diagnósticos médicos, arrumadas divisões e móveis em escritórios e apartamentos e preparadas receitas culinárias, entre outras utilidades.

Há, também, raciocínios de inserção internacional da China que seriam condicionados por tais variáveis (participei de seminário em Singapura, dedicado a formulação de cenários de agregação regionais, quando servi naquele país na década de 1990).

Assim, a terra seria o elemento do Império do Centro, que por definição, se situa no “centro do mundo” – conforme mencionado no título.

A terra absorve a água, que representaria os países ao norte. Daí, os chineses nunca terem temido, por exemplo, a extinta União Soviética, pois acreditavam que seu exército popular, com milhões de indivíduos, absorveria eventuais forças invasoras da URSS, mesmo diante da superioridade de equipamento militar do vizinho.

A madeira, contudo, fere a terra e situa-se a leste, onde se encontra o Japão, inimigo histórico, capaz, sim, de ferir a China – conforme já o demonstrou.

Ao sul do país que se considera central, aparece o Sudeste Asiático representado pelo fogo – que também pode ser apagado pela terra. Daí, talvez, os dirigentes atuais da RPC, inspirados pelo I Ching, buscam estreitar as relações com aquela parte do mundo, precavendo-se contra labaredas de desconfianças históricas.

Ao ocidente, em direção à Ásia Central e Eurásia o elemento é o metal – que deriva da terra. Na perspectiva deste tipo de formulação simplista - mas ilustrativa - da inserção internacional da RPC, parece que o país que se considera no centro do mundo, entenderia ser direito seu expandir-se sobre terras ocidentais, em processo cíclico, sempre que haja recursos estratégicos que o justifiquem e poder que lhe permita assim proceder.

Pode ser oportuno, no entanto, conhecer o discurso da China sobre sua ascensão pacífica terrestre, em direção oeste, no rumo da Ásia Central e Eurásia, na medida em que a proposta, hoje prevalecente, de um mundo unipolar que se pode, cada vez mais, definir como o governo “of the Real State, by the Real State, for the Real State”, comece a recuar na face do planeta.

[1] . Fairbanks, John K; “East Asia - Tradition and Transformation”,. Modern Asia Editions. l976.

[2].  Pereira Pinto, Paulo Antônio “A China e o Sudeste Asiático”, Editora da Universidade – UFRGS. 2000.

[3] “Wikipedia, the free encyclopedia” http:en.wikipedia.org/wiki/Zheng_he.

[4]Jornal do Povo, em Pequim, em 12.07.05. Artigo “Why do we commemorate Zheng He?”

[5] “Wikipedia, the free encyclopedia”- A República do Tajiquistão é um país montanhoso encravado da Ásia Central. Faz fronteira com o Afeganistão ao sul, com o Uzbequistão ao oeste, Quirguistão ao norte, e a República Popular da China ao leste.

[6] Lin, Christina , “Visiting Scholar at the Center for Transatlantic Relations at the Paul H. Nitze School of Advanced International Studies”, - Resumo de trabalho intitulado “China’s New Silk Road to the Mediterranean: The Eurasian Land Bridge and Return of Admiral Zheng He”, Outubro de 2011. “ISPSW Strategy Series: Focus on Defense and International Security”.

[7] KARRAR, Hasan H. 2010.“The New Silk Road Diplomacy – China’s Central Asian Foreign Policy Since the Cold War”.

[8] Kodansha International, New York.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

CHINA – ASCENSÃO PACÍFICA E HARMONIOSA (II). Visão histórica - Paulo Pinto (Linkedin)

CHINA – ASCENSÃO PACÍFICA E HARMONIOSA (II). Visão histórica

Paulo Pinto

Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

Linkedin, January 16, 2025

https://www.linkedin.com/pulse/china-ascens%C3%A3o-pac%C3%ADfica-e-harmoniosa-ii-vis%C3%A3o-hist%C3%B3rica-paulo-pinto-aicnf/ 

 

Conforme citado na primeira parte do artigo, publicado em 20 de dezembro passado, os dirigentes chineses pretendem resgatar a histórica viagem do Alm. Zheng He, em 1405, ao Sudeste Asiático ou “Nanyang”. Procura-se, então, identificar nas “intenções pacíficas” daquele périplo, exemplo da permanente busca de “harmonia” – em oposição a “hegemonia” – nas relações da China com os vizinhos ao Sul de suas fronteiras.

O Partido Comunista Chinês, portanto, se esforça, tanto no plano interno, quanto no das relações com o exterior, no sentido do convencimento de que, em todos os momentos de emergência do país – há 600 anos, como agora - a China pode ser forte, enquanto não representa ameaça regional ou mundial.

Nessa hipótese, um mega agrupamento a ser formado na Ásia Oriental, dependeria do somatório de interesses compartilhados por diferentes "redes de civilizações asiáticas", formadas por chineses, coreanos, malásios, japoneses e outros, que, gradativamente, negociariam uma agenda comum intrarregional.

Na sequência do exercício de reflexão já proposto, afirma-se que a “ascensão pacífica chinesa” dependeria, também, da capacidade de a ASEAN continuar a ser um foro de agregação, permitindo a aproximação de interesses convergentes de seu quase meio bilhão de habitantes daqueles de mais de 1,2 bilhões da China. Esse processo incluiria uma multiplicidade de interações de caráter político, militar, social e cultural.

Nessa perspectiva, no início da década de 1960, a República Popular da China iniciava processo de radicalização interna, com expressivos reflexos em suas relações com o exterior.

Em contrapartida, a região do Sudeste Asiático começava a apresentar perfil próprio. Era a fase da conquista da independência de nações daquela área, sob o formato de Estados modernos. A Nanyang deixara de ser uma vasta mancha cinzenta, da época áurea do hegemonismo do Império chinês. 

Evoluía, naquele momento, da situação em que se marcava no mapa político regional, com vermelho as colônias britânicas, com verde as francesas e amarelo a holandesa.  Começava a entrar na Era da "Guerra Fria" em que os países seriam definidos, no vermelho ou no azul, em função de seu alinhamento com os objetivos estratégicos globais fosse de Moscou ou de Washington, respectivamente.

Nesse contexto, fundada em 8 de agosto de 1967, com a declaração de Bangkok, a Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN - foi o terceiro agrupamento a ser formado no Sudeste Asiático, após a Segunda Guerra, sem ter caráter de aliança militar. Teve como predecessora a Associação do Sudeste Asiático, constituída em 31 de julho de 1961 por Tailândia, Malaya e Filipinas, que não sobreviveu mais de três anos, por causa de questão que colocava em disputa, entre Kuala Lumpur e Manila a soberania sobre a província de Sabah.

Paralelamente, Malaya, Filipinas e Indonésia reuniram-se, sob a denominação de MAPHELINDO, a partir de suas bases étnicas. Devido ao componente racial, que preocupava as demais nações da região, pouco igualmente durou.[1]

Em 1966, os ânimos regionais haviam-se acalmado. A Tailândia desempenhara papel de relevo como mediadora para o término das hostilidades. Cingapura havia-se separado da Federação da Malásia, devido ao que julgava ser excessiva concentração de poder em Kuala Lumpur.

Os dirigentes dos cinco países – Tailândia, Malásia, Singapura, Indonésia e Filipinas – passaram então a sentir necessidade de criar novos vínculos entre si, no âmbito de associação que viesse a contornar problemas gerados tanto pela dinâmica regional, quanto pelo envolvimento das superpotências no Sudeste Asiático, onde agravava-se a Guerra no Vietnã.

Reações Externas ao Surgimento da Associação

No plano externo, quando de sua fundação, a ASEAN foi entendida como a expressão de países que pretendiam apresentar-se ao Ocidente industrializado como área dedicada aos propósitos de uma economia de mercado. Além de não se situarem em região diretamente inserida na fronteira ideológica dos Estados Unidos da América - como acontecia com a Coréia do Sul, Taiwan e o então Vietnam do Sul - Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia não desejavam, tampouco, aparecer como promotoras de bloco militar semelhante à SEATO[2].

Tudo o que pretendiam, em nível de sua inserção nas relações internacionais, era salientar, perante o conturbado panorama político regional da época, sua vocação capitalista e reivindicar, portanto, o apoio da superpotência de igual sistema.

Logo após sua fundação, desenvolvimentos políticos dramáticos passaram a ameaçar o equilíbrio de poder no Sudeste Asiático. Em janeiro de 1968, foi anunciado que as forças britânicas seriam retiradas da região a Leste de Suez, até o final de 1971. Paralelamente, a ofensiva Tet, desencadeada pelos nortes- vietnamitas e "vietcongs" contra as tropas americanas, em fevereiro de 1968, levou a mudança da perspectiva de Washington quanto a seu envolvimento em conflitos asiáticos, com o consequente anúncio da "Doutrina Guam", por Nixon, em julho de 1969, segundo a qual era declarada a intenção dos EUA de, a partir de então, colocar maior ênfase "no emprego de forças locais para o combate em lutas locais".

Em outros desenvolvimentos, o Nono Congresso do Partido Comunista Chinês, em abril de 1969, estabelecia nova fase na política externa da RPC, encerrando o período de xenofobia e de exportação de ideologia que caracterizou a Revolução Cultural. Teve início a "Diplomacia de Ping Pong" que conduziu ao anúncio, em julho de 1971, da visita de Nixon a Pequim, bem como à admissão da República Popular da China nas Nações Unidas, em outubro do mesmo ano[3].

Enquanto tudo isso acontecia, alterava-se, igualmente, o perfil da presença da União Soviética no Sudeste Asiático e Moscou estabelecia relações diplomáticas com Kuala Lumpur, em março de 1967, e com Cingapura, em julho de 1968.

O primeiro deslocamento estratégico da Marinha Soviética na região do Oceano Índico ocorreu em março de 1968.  Em junho de 1969, logo após os choques armados na fronteira com a China, no Rio Ussuri, Brezhnev propôs a criação de um sistema de segurança coletiva na Ásia.

Finalmente, o Japão iniciava, na mesma época, sua expansão econômica no Sudeste Asiático.

A reação inicial chinesa, com respeito à formação da ASEAN, foi de condenação, como aliança de "lacaios dos norte-americanos, formada a pretexto de cooperar economicamente, mas, na verdade, tratando-se de agrupamento militar dirigido especificamente contra a China"[4].

A explicação para tal atitude de Pequim é encontrada no fato de que, então no auge da guerra do Vietnam, os EUA utilizavam-se de bases aéreas na Tailândia e Filipinas, para atacar objetivos no território vietnamita.

O enfoque chinês começou a mudar, contudo, a partir do estabelecimento de nova linha política da ASEAN, decidida durante sua Reunião Extraordinária de Ministros dos Negócios Estrangeiros, na capital da Malásia, em novembro de 1971. A chamada "Declaração de Kuala Lumpur", visava à criação de uma Zona de Paz, Liberdade e Neutralidade no Sudeste Asiático (em sua sigla inglesa ZOPFAN)[5].

"Paz e Neutralidade" vinham ao encontro do interesse chinês, no sentido de constituir oposição ao aumento da presença, tanto dos EUA, quanto da URSS naquela parte do mundo. Assim, a RPC chegou a enviar mensagem congratulatória pela formação da ZOPFAN, com ênfase em sua determinação quanto ao estabelecimento de área de "neutralidade".

Com o término da Guerra do Vietnam, em 1975, melhorou o diálogo entre a China e a Associação.  Assim, dois anos após, Pequim chegou mesmo a expressar seu apoio à iniciativa que estabeleceu vínculos especiais entre a ASEAN e os EUA, Japão, CEE, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Coréia do Sul.

O Processo de Abertura da RPC e sua Influência no Sudeste Asiático

 Existe o consenso de que o processo de abertura da China para o exterior teve início em 1978, quando os dirigentes em Pequim reconheceram a falência do modelo econômico centralmente planificado que o país vinha adotando.

Com o término da Guerra Fria, na década de 1990, criaram-se condições para o ressurgimento de uma antiga moldura político-cultural, que historicamente regularam a convivência entre as nações do Sudeste Asiático com a China.

Observadores da América do Norte, contudo, apontavam, a partir de então, a China como um fator futuro de instabilidade regional, disposta a preencher um vácuo político, resultante do término da confrontação bipolar vigente no período da Guerra Fria.

O grande objetivo chinês no plano internacional, nessa perspectiva, teria de ser o de compactuar com a disciplina que os países ocidentais vinham procurando impor ao mundo, desde a metade do século XIX. Tratar-se-ia “apenas de manter e adquirir territórios, definir e assegurar o círculo da própria soberania e a ordem pública no interior desse círculo, se necessário pela força das armas”.

No mesmo período, no entanto, ideias geradas em centros acadêmicos chineses formulavam novo discurso alternativo às teorias de "power politics", com suas fórmulas de dominação dos fracos pelos fortes, bem como defendiam a tese de que, com sua ascensão econômica e política, a Ásia pudesse resgatar alguns dos enunciados de seus "cinco princípios de coexistência pacífica" ou dos "dez princípios de Bandung", apresentados na década de 1950, segundo os quais é concedida ênfase à criação de "um mundo pluralístico onde todos os países seriam colocados em nível de igualdade".

Novo Paradigma: ASEAN+1

O novo milênio iniciou-se, na Ásia Oriental, com transformações paradigmáticas nas relações entre a China e o Sudeste Asiático. Nesse sentido, as dimensões de segurança, econômica e política foram profundamente afetadas por uma herança cultural comum, de origem chinesa.

Em parte, devido à determinação dos Estados Unidos de agir unilateralmente e pelo emprego da força militar, após os atentados de 11.09.2001, a Ásia Oriental passou a valorizar agenda de segurança própria, com ênfase em acordos intrarregionais, principalmente decorrente de entendimentos entre a China e a ASEAN. Assim, em 19 de agosto de 2003, em Wuyishan, província chinesa de Fujian, a RPC agregou sua assinatura ao Tratado de Amizade e Cooperação, que já incluía os já agora dez países do Sudeste Asiático, integrantes daquela Associação[6].

Ademais, a China lançou as fundações para um novo relacionamento com as nações do Sudeste Asiático[7]. Foi fortalecida, assim, a vertente da cooperação no âmbito da Ásia Oriental, na medida em que se concedia menor ênfase aos vínculos entre as margens asiática e norte-americana do oceano Pacífico. (Este assunto será tratado em maiores detalhes em artigos seguintes).

A China tomou a iniciativa, por exemplo, da proposta de uma Área de Livre Comércio com a ASEAN, com clara motivação política, causando preocupação, junto ao Japão e Estados Unidos, que, desde a fundação da Organização Mundial do Comércio, vinham buscando expandir suas relações comerciais com o resto do mundo através, justamente, de instituições globais, como a OMC.

Pequim, no entanto, preferiu propor a referida área de livre comércio com a ASEAN, em 2001, logo após o ingresso da China na OMC. O “Acordo sobre o Comércio de Bens”, assinado, em novembro de 2004, ao final da X Reunião de Cúpula da ASEAN, representou proposta de um “Framework Agreement on Comprehensive Economic Cooperation” entre a ASEAN e a China tendo sido apenas parte de um maior engajamento da RPC na região.

 Em seguida, foi assinada uma “Parceria Estratégica” com aquela sub-região, que incluiu ampla cooperação, nos setores de segurança e político. A China também firmou um “Tratado de Amizade e Cooperação, a Declaração sobre a Conduta das Partes do Mar do Sul da China”, em 2002, comprometendo-se a agir com cautela quanto às ilhas em disputa.

A RPC anunciou, também, sua disposição de assinar o Protocolo ao “Treaty of the Southeast Asia Nuclear Weapons-Free Zone (SEANFZ)” que as nações do Sudeste Asiático reivindicavam havia tempo. Tal decisão colocaria a China favoravelmente na região, em comparação com a determinação dos EUA de não aceitarem igual compromisso de manter o Sudeste Asiático livre do trânsito de armas nucleares.

Um dos principais traços da política externa da China, naquele momento, foi sua maior aceitação do multilateralismo como instrumento para assegurar crescimento e segurança, aderindo, nessa perspectiva a instituições internacionais e regionais. A RPC passou a participar ativamente de mecanismos institucionais inovadores na Ásia oriental, bem como patrocinou novas alianças na Ásia Central. O “ASEAN Regional Forum”, o “Shanghai Cooperation Organization” [8] e o “Boao Forum” [9] têm atuado como fóruns para ressaltar as preocupações chinesas com seu “Novo Conceito de Segurança”.

Nestas ocasiões, a China tem adotado a prática consagrada pela ASEAN de não identificar “uma terceira parte” como o inimigo. Pelo contrário, procura-se valorizar a ideia de que não se tem em vista um adversário definido. Busca-se, então, resolver problemas comuns de acordo com um “Asian way”, que implica em tomar decisões por consenso, com informalidade e voluntarismo – sempre com um “jeito ASEANista”.

Da mesma forma, Pequim tem também advogado crescente cooperação política, econômica e tecnológica, para fortalecer as relações entre a China e os países ao Sul de suas fronteiras.

Mas, da mesma forma que aconteceu com a ascensão de outras potências, na História recente, iria a emergência da RPC ameaçar sua vizinhança ou causar instabilidade mundial?

 Pequim tem reiterado o discurso de que toda está evolução aconteceria pacificamente e em sintonia com a maior inserção do país na Ásia Oriental, que se beneficiaria, como um todo, a exemplo do acontecido, no século XIV, quando o já citado Alm. Zheng He (vide artigo anterior) difundia a cultura chinesa junto às nações da “Nanyang”.

Seria, assim, inevitável que a “equação 10+3” evoluiria, da soma dos mercados do Sudeste e do Nordeste da Ásia, para mecanismo institucional que permitiria, inicialmente os membros da ASEAN mais a China e, em seguida o Japão e a Coréia do Sul, venham a desenvolver uma “Comunidade da Ásia Oriental”.

Existe, contudo, ampla bibliografia atual a contestar a tese de que estaria em curso um “peaceful rise of China”. Para estes setores de opinião, a emergência econômica e política chinesa teriam, como resultado, por exemplo, intensa disputa por recursos energéticos com os Estados Unidos e Japão. Haveria, também, a concorrência acirrada da RPC, com outros países em desenvolvimento, por investimentos externos. Tendo em conta, ainda, o crescente poderio militar chinês, resultante de seu programa de modernização das forças armadas, seriam inevitáveis conflitos intra e extrarregionais.

Nestas duas partes de reflexão sobre “ascensão pacífica e harmoniosa da China”, procurou-se, então, demonstrar que, no século XV, a China desempenhava papel dominante no Sudeste Asiático e servia como fonte de inspiração para a organização política de nações naquela região. Tal esquema foi desestruturado a partir da chegada dos europeus ao continente asiático, no século XIX, e rompido após a Revolução de 1949 e o início da Guerra Fria.

Com o começo do processo de modernização da RPC, na década de 1970, e o término do período de bipolaridade mundial, na de 1990, criaram-se condições para o ressurgimento, no âmbito das relações entre a China e o Sudeste Asiático, de processo de cooperação, que tivesse como base de sustentação um conjunto de valores culturais chineses compartilhados. Novas modalidades regionais de integração foram criadas, em oposição às estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria.

Recentemente, tem-se verificado que experiência histórica regional, em termos de estender ao máximo o fator estabilizador provocado pelos interesses comerciais entre os países do Sudeste Asiático mais os do Nordeste daquele continente, contribuiu para consolidar vínculos entre os mercados dos dez países membros da ASEAN e os da China, Japão e Coréia do Sul, no processo que vem sendo conhecido de 10+3.

Ademais, este longo período de convivência e laços culturais milenares contribuíram para evitar que a confrontação ideológica da Guerra Fria chegasse a ponto de não reversão, favorecendo também a tendência atual no sentido de criação de uma comunidade da Ásia Oriental. Assim, a moldura de laços políticos ora existentes facilita a identificação de interesses compartilhados por Pequim e capitais do Sudeste Asiático, a serem consolidados em pauta de temas internacionais.

Artigos seguintes farão considerações adicionais sobre o impacto da ascensão chinesa, em outras regiões asiáticas.

 

 

Notas: 

[1] “National University of Singapore”, 1988, pag. 1 e seguintes.

[2] A “Southeast Asia Treaty Organization”(SEATO)  foi fundada, em 1954, logo após a retirada da França do Sudeste Asiático. Com o objetivo de conter “a expansão comunista naquela região e foi integrada pelos Estados Unidos, Austrália, França, Grã-Bretanha, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas e Tailândia”. Com sede em Bangkok, a Organização teve como principal objetivo legitimar a presença militar dos EUA no Vietnam, apesar da oposição francesa e paquistanesa. Foi extinta em 1977.

[3]  A respeito do processo de reaproximação entre a RPC e os EUA, vide “China’s Foreign Relations since 1949”, por Alan Lawrence, Routledge & Kegan Paul. London and Boston 1975. Parte VI. Pag 207 e seguintes.

[4] Sobre a reação chinesa quanto à criação da ASEAN, o ISIS da Malásia publicou diversos estudos, entre eles, na “ASEAN Series”, o intitulado “Southeast Asia as a Nuclear-Weapons-Free-Zone”, por J. Soedjati Djiwandono, em 1986. Pag. 5 a 7.

[5] O texto da Declaração de Kuala Lumpur, em 1971, pode ser encontrado, entre outras publicações, no Anexo “E” de “Understanding ASEAN”, editado por Alison Broinnowski, publicado por “The Macmillan Press Ltd. 1983”.

[6] Além dos cinco países fundadores, já citados, ingressaram na ASEAN: Brunei, em 1984; Vietnã, em 1995; Laos, em 1997; Myammar, em 1997; e Camboja, em 1999.

[7] Vide artigo de Kuik Cheng-Ghwee “Multilaralism in China’s ASEAN Policy: Its Evolution, Characteristics, and Aspirations” em “Contemporary Southeast Asia, 27, nr 1, 2005, pag. 102-22.

[8] A respeito da Organização para a Cooperação de Xangai, vide www.sectsco.org.

[9] A respeito do “Boao Forum for Asia”, vide www.boao.ce.cn/english