O maior especialista na China e em assuntos asiáticos em geral, refaz o caminho chinês para a modernização.
CHINA - DA ABERTURA PARA UM MUNDO DE “DESORDEM SOB OS CÉUS”, PARA “SINERGIAS” QUE PRESCREVAM FORMAS DE GOVERNANÇA CHINESAS AO LONGO DE SEU “CINTURÃO”
Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.
Linkedin, November 15, 2024
O início da década de 1980 é reconhecido como um marco, na história recente da China, quando se deu o processo de abertura do país ao exterior, após a fase turbulenta da Revolução Cultural.
Procuro, a seguir, resgatar ensinamentos da experiência pessoal de ter servido em Pequim, entre 1982 e 1985, no Sudeste Asiático, entre 1986 e 1995 e em Taipé, entre 1998 e 2006. O exercício de reflexão a seguir é resultado, portanto, mais de conclusões de vivência do autor, do que de trabalho acadêmico.
Parto da premissa de que cabe procurar na origem do pensamento chinês sobre a organização do “Império do Centro”, explicações sobre o atual sucesso econômico da RPC. Haveria, também, possíveis riscos da tentativa de imposição de sua forma de governança através de “rota” em diferentes países da África e América Latina (vide meu texto publicado em 21 de outubro).
O artigo reflete a convicção de que, tanto no plano interno, quanto no externo identificam-se, na década de 1980, alterações resultantes de condicionantes históricas de forma de pensar chinesa, capazes de influenciar o cenário atual da RPC.
Acredito ser importante o resgate da lógica de que aquela nova cena de partida, em direção ao cenário atual, ajuda no esforço de reflexão sobre o que se passa, hoje, na República Popular da China. Por um lado, para o entendimento do presente naquele país, cabe abandonar raciocínios e equações, a partir de modelos fora do contexto cultural chinês. Por outro, conforme se exporá na conclusão, o modelo atual de governança em Pequim começa a ser considerado como exemplo a ser seguido, em outras nações.
O Início da Modernização
No início da década de 1980, quando cheguei a Pequim, não era possível deixar de sentir uma certa tristeza, pelo fato de que havia sido encerrada, na China, uma Era de convicção poética maoista. A partir de 1949, acreditara-se que, em benefício do interesse comum da sociedade, centenas de milhões de pessoas poderiam ser levadas a patamar mais elevado do que o egoísmo individual.
A experiência chinesa de busca de uma sociedade igualitária encantara a muitos. Os países do Terceiro Mundo admiravam sua combatividade e autossuficiência. Os economistas ocidentais registravam o pleno emprego atingido, no campo, e invejavam sua força de trabalho disciplinada, na indústria.
O exercício de observação diário e o aprendizado da realidade do país, no entanto, indicavam que não se vivera na China, nas três décadas anteriores, tantos motivos de encantamento.
Na verdade, perdurara o elitismo e a corrupção entre os dirigentes do partido e do governo. O lento progresso obtido na economia demonstrara não ser tão fácil, desenvolver-se com os próprios recursos, sem a infusão de investimento, tecnologia ou ajuda externa.
Em suas relações internacionais, sabe-se, a República Popular, desde sua fundação, em 1949, havia mantido um vasto exército e milícias armadas e desenvolvido a bomba atômica. A China tivera conflitos com a União Soviética e Índia e fricções com o Japão, com respeito às Ilhas de Senkaku, e com o Vietnã, quanto às Spratlays. Não se tratava, portanto, de país totalmente “amante da paz”, conforme se divulgava em Pequim aos visitantes estrangeiros.
No plano interno, na medida em que se conhecia melhor a real situação chinesa, ficavam diminuídos, inclusive, os ganhos considerados, por exemplo, no controle familiar. Havia sido enorme, verificava-se, o custo, em termos de direitos humanos, na proibição de casamentos antes dos 20 anos e obrigatoriedade de apenas um filho por casal.
Não se quer negar, no entanto, as grandes conquistas do período maoista, nem os feitos do povo chinês. Um país que, na primeira metade do século XX, fora devastado por guerras internas, encontrava-se, no início da década de 1980, unificado, apesar das crises de liderança resultantes da Revolução Cultural.
Como era possível verificar, a China alimentava e vestia seu povo. Um esforço descomunal fora feito para construir represas, diques e sistemas de irrigação, bem como no sentido da autossuficiência alimentar.
Mas seria isso suficiente? Tais conquistas teriam que ser vistas em perspectiva.
Mao Zedong tornara a “necessidade” em “virtude”, como base de sustentação para política de autossuficiência. Em grande parte, tratava-se de reação ao fato de que os soviéticos terem cessado todo e qualquer auxílio, a partir de 1960, levando consigo, inclusive as matrizes de fábricas cuja instalação já havia sido iniciada.
O Grande Timoneiro, então, colocou toda sua crença na “genialidade do povo chinês”. Doravante, tudo seria resolvido com a mobilização permanente das “massas”. Como consequência, surgiriam energias e talentos até então escondidos por sistema social opressivo. Na década de 1960, por exemplo, ampla campanha nacional encorajava simples operários a fazerem sugestões sobre inovações tecnológicas. Exageros evidentes eram noticiados a respeito do aumento de produtividade como resultado de soluções práticas obtidas nos canteiros de obras, campos agrícolas e operadores de máquinas nas fábricas.
O caráter “anticientífico” das práticas maoistas chegou ao apogeu durante a chamada Revolução Cultural, quando professores e alunos foram obrigados a curvar-se diante da “sabedoria” das massas.
Postura semelhante fora adotada nas forças armadas chinesas, onde o conceito maoista de “guerra popular” baseava-se na premissa de que “homens contavam mais do que máquinas”. Nessa perspectiva, centenas de milhares de soldados de infantaria, com armamento obsoleto, seriam capazes de derrotar um Exército soviético equipado com armas modernas. Mantinha-se, no entanto, a dissuasão nuclear, na medida em que a China não renunciava a sua própria bomba atômica.
Com a derrota do “bando dos quatro”, a China desencadeou outra campanha, desta feita para condenar a viúva de Mao, visando a acusá-la e a seus três cúmplices de Xangai, pela maioria dos fracassos e fraquezas dos anos anteriores. Este novo processo implicou, novamente, em notáveis exageros nas acusações. A mensagem, no entanto, era clara: os dirigentes chineses haviam tomado consciência de que suas políticas de autossuficiência, recusa em aceitar ajuda externa e a negativa à aquisição de tecnologia estrangeira haviam reduzido as taxas de crescimento e o progresso em quase todos os setores da economia.
A rejeição da ideologia passada foi feita na forma de pronunciamentos que, gradativamente, desautorizassem o autoritarismo vigente sob Mao Zedong, cuja memória continuava a ser reverenciada, com todas as honras devidas ao fundador da República Popular da China. Tratava-se, no entanto, de trazê-lo a proporções humanas.
Começava o processo de estabelecer seu lugar na história, como um grande líder revolucionário, mas como um homem com menor sucesso, quando se tratou de administrar um país. Suas principais preocupações diziam respeito à eliminação dos dogmas socialistas, agora vistos como impedimento à nova marcha da China, em direção à modernização. O principal responsável pelas alterações na condução das políticas, econômica e social da China, a partir de 1978, e “Novo Timoneiro”, passou a ser o então Vice-Primeiro-Ministro Deng Xiao-Ping.
O julgamento público de Mao, no entanto, tinha dimensões restritas. Todos os erros cometidos no período de radicalização maoista eram atribuídos a Lin Piao e ao “bando dos quatro”. Para o cidadão chinês, contudo, havia implicações óbvias: não era possível aceitar que toda a culpa fosse atribuída a um traidor e a quatro radicais – na prática, os novos dirigentes em Pequim estavam admitindo que a “Grande Revolução Proletária Cultural” havia sido um fracasso enorme e custoso.
O próprio retorno de Deng Xiao-Ping ao poder, como Vice-Primeiro-Ministro já significava uma rejeição eloquente a julgamentos emitidos por Mao, que havia dado seu apoio pessoal às duas quedas anteriores de Deng.
Não era possível ignorar, contudo, que Mao tinha razão quanto ao diagnóstico sobre os males que atingiam a China. Assim, de acordo com sua visão, o maior perigo para o país seria o retorno à estagnação imposta pela burocracia do partido e do estado. Suas soluções eram poéticas e imaginativas: uma série de campanhas para mobilizar os intelectuais – “O Movimento de Cem Flores” – a busca de um caminho mais curto para o Socialismo – “O Grande Salto Adiante” – e a provocação de uma “discórdia criativa” entre a juventude do país e a burocracia estatal – “A Revolução Cultural”.
Mas, como se sabe, Mao não obteve sucesso na criação do “homem socialista”. Ele pediu demais, tanto dos chineses, quanto da natureza humana.
No final da década de 1970, no entanto, todo este processo havia sido esquecido. Ficara provado que, em tese era uma boa ideia encorajar os trabalhadores a pensarem o aumento da produção com seus próprios meios. Na prática, a premissa ideológica, sobre a qual se baseava – a de que a sabedoria está consagrada nos trabalhadores – conduziu a medidas impraticáveis, como por exemplo, a utilização de máquinas antiquadas sendo empregadas em velocidade inapropriada, provocando acidentes ou resultados negativos.
Verificava-se, por exemplo, que a produção de cereais ficara estagnada. Não houve progresso em projetos de irrigação, nem de novos fertilizantes agrícolas, enquanto a população chinesa continuava a aumentar. O país continuou a importar alimentos. Houve sérios casos de fome generalizada, por falta de alimentação.
A mesma ausência de melhoria foi notada no setor industrial, onde prevaleceu a política maoista de autossuficiência e oposição a aprender da experiência de outros países. Tal postura levou, por exemplo, à estagnação da produção anual de aço, ao lento progresso tecnológico, a preservação de fábricas antiquadas, com equipamentos, tecnologia e formas de administração superados e emprego excessivo de mão de obra.
Com a morte de Mao Zedong e a derrubada do “Bando dos Quatro”, a China podia, finalmente, enfrentar com clareza e determinação seus inúmeros problemas e tomar as decisões cabíveis, para superá-los. O corpo do “Grande Timoneiro” fora colocado em mausoléu, construído na Praça da Paz Celestial, quebrando, a propósito, a harmonia do local, no centro de Pequim (na sequência do processo chinês de abertura ao exterior, para suprema heresia, uma lanchonete de “fast food” americana foi estabelecida nas vizinhanças do túmulo).
Não se tratava, no entanto, de abrir mão, completamente, do pensamento maoista que, então, permeava de forma abrangente a “maneira de fazer as coisas”, no país. Assim, continuava a ser citada, por exemplo, a obra “Sobre as Dez Grandes Relações”, publicada em 1956. Nela, Mao oferecia exercício de reflexão que poderia, no momento da abertura externa do país, na década de 1980, conter explicações ainda úteis para justificar qualquer que fosse a orientação a ser adotada pelos novos dirigentes de Pequim.
Havia sido abandonado, contudo, o fundamento da filosofia maoista: o “conceito hegeliano” de que a unidade deve ser dividida em duas partes e que cada situação contém em si contradições saudáveis que são necessárias para a luta e o progresso, levando, assim, à noção de luta de classes contínua e revolução permanente[1].
Segundo Mao, a China não deveria jamais permitir-se cair na complacência da “unidade” e, de acordo com esta filosofia, o “Grande Timoneiro” teve a audácia poética de desencadear uma revolução contra seu próprio governo e partido. O veredito da história será provavelmente o de que, enquanto Mao foi um dos maiores líderes revolucionários, demonstrou ser um governante menos habilidoso, uma vez que sua revolução se tornou vencedora. Provocou, assim, severas perdas a seu país e a morte de milhões de pessoas, enquanto perseguia suas visões utópicas.
Os novos líderes em Pequim pareciam retomar abordagem mais tradicional de forma de governança.
A Busca do “Caminho Real”
No início da década de 1980, portanto, o sentimento dominante era o de que a morte havia “humanizado” Mao Zedong e “desmitificado” a China, que, então, admitia suas limitações no trato com os grandes problemas do país.
A nova política pragmática representava praticamente a recusa total das doutrinas que haviam dominado as políticas agrícola e industrial dos últimos 20 anos. Todas as empresas públicas, por exemplo, foram instruídas a gerar lucros – proposta impensável, até recentemente. Incentivos materiais passaram a substituir a pureza ideológica. A China conscientizou-se de que necessitava da tecnologia do Ocidente e, enquanto abandonava sua política restritiva de “autossuficiência”, começava a buscar fontes de financiamento de longo prazo – ajuda, em outras palavras – para financiar suas compras de “know-how”, instalações industriais, navios, equipamento de transporte e material de emprego militar.
Nessa perspectiva, no período de vivência do autor naquele país, entre 1982 e 1985, autoridades chinesas persistiam no esforço de implementação de políticas pragmáticas, com vistas a dissociar-se dos fins marxistas de construção de uma sociedade que se limitasse a fornecer “a cada um, de acordo com suas necessidades”. Buscar-se-ia, doravante, recompensar as pessoas de acordo com seu bom desempenho, produtividade, antiguidade e qualificações.
Este novo pragmatismo viria a ser colocado em prática com a mecanização da agricultura, modernização da indústria pesada e reequipamento das forças armadas. Sempre que necessário e no contexto das disponibilidades orçamentárias, seriam comprados equipamentos e tecnologias do exterior, na forma de “turn-key”, com a aquisição de fábricas japonesas, aviões militares Harrier britânicos ou “offshore oil expertise” dos EUA e Europa.
Não se abandonava, contudo, o discurso adotado, desde a fundação da República Popular, no sentido de atribuir a influências burguesas externas crimes financeiros, corrupção e fenômenos sociais indesejáveis. Assim, enquanto programava novas políticas econômicas liberais, Pequim efetuava sucessivos expurgos de elementos prejudiciais ao partido e governo, promovendo o combate a infrações prontamente puníveis com julgamentos sumários e execuções públicas. Entendia-se que era necessário, naquela fase, atender a “sentimentos puritanos” de conservadores do PCC, eliminando-se, desta forma, os aspectos mais desagradáveis do processo de modernização.
Para os moradores em Pequim, naquele período, era comum testemunhar – como tive a infelicidade de compartilhar - na avenida principal, a passagem de caminhões militares, com condenados à morte, em direção ao estádio, onde seriam executados em grupos, com um tiro na nuca. É sabido que, em seguida, a família do “justiçado” recebia a conta pelo gasto governamental com a bala da arma utilizada.
Observadores mais prevenidos, no entanto, sentiam que a “correção ideológica” não era, naquele momento, a real prioridade dos dirigentes chineses. Tratava-se, sobretudo, de conter eventuais expectativas irrealistas de grande parte da população, que, como decorrência da abertura do país para o exterior, poderia imaginar que seria possível obter, rapidamente, o mesmo padrão de consumerismo já então vigente no Ocidente. A manutenção da disciplina, portanto, era essencial para preservar o ritmo lento de crescimento que o Partido Comunista ainda decidia impor.
Havia, de qualquer forma, pouca dúvida quanto ao fato de que, em longo prazo, a motivação pelo lucro viria a prevalecer sobre a burocracia lenta, ineficiente e quase sempre corrupta. Tal previsão, como se sabe, prevaleceu, com a adoção, ainda na década de 1990, do discurso sobre economia socialista de mercado.
Tal processo de transição causava incertezas. Havia condicionantes culturais milenares para tais expectativas. Segundo a concepção chinesa, para ser estável, a sociedade necessitava do comando de um “timoneiro” confiável, capaz de traçar um projeto nacional viável e coerente com a longa e rica história chinesa.
A este líder caberia garantir à população segurança, paz, governança eficiente – em suma uma moldura de governabilidade favorável ao progresso e prosperidade. Como reciprocidade, os governados lhe deveriam obediência, “como o bambu que se curva diante do vento” – isto é, ao governante justo é devida a total aceitação de sua autoridade.
Uma vez que o objetivo final da governabilidade era o contentamento e elevação moral do povo, Mencius[2] argumentava que, no caso de o líder falhar em seus deveres e obrigações, haveria justificativa para uma “revolução”.
Implícito neste sistema, encontrava-se o conceito de que, se o líder não cumprisse a missão de fornecer a esperada moldura de governabilidade e o tratamento benevolente de seu povo, teria prejudicado seu direito à lealdade dos governados. Segundo Mencius, sempre que pessoas chegam à posição de autoridade, existe a tendência de se tornarem corruptas, seja pelo anseio de glória ou busca de ganhos pessoais.
Fazia, então, a clara distinção entre o exercício do poder, em função da virtude do governante, e o emprego da força, como forma de obter obediência.
Lembra-se que, desde o início da civilização chinesa, há cerca de 4000 anos, nas margens do Rio Amarelo, seus pensadores procuraram estabelecer sistema de educação e ética dedicado a atingir o “Tao” [3] ou “Caminho do Meio”. Este seria uma estrutura social que refletiria o equilíbrio da natureza, onde se equivalem o “Yin” e o “Yang” [4]·.
Mais tarde, Confúcio e seus seguidores tentaram construir um ordenamento social que estabeleceria normas de conduta aos monarcas, no sentido de corresponderem a suas responsabilidades, perante seus súditos, enquanto imporiam aos governados o sentido da ordem das coisas, seus deveres e obrigações.
Confúcio escreveu: “Quando um governante exerce o poder de forma correta, ele terá influência sobre as pessoas, sem a necessidade de dar ordens. Quando o governante não age de forma correta, suas ordens não terão valor”.
O Confucionismo tem sido chamado de “a religião do li”. “Li” representa o conjunto de condutas apropriadas e a ordem social. Entre as qualidades essenciais no “Homem Superior”, a mais importante seria a “Ren” – benevolência e bondade.
Assim, uma sociedade confucionista visaria, seja a aceitação total de um dirigente, ou sua rejeição completa. Não haveria espaço, por exemplo, para o conceito ocidental de “loyal opposition”.
Qualquer membro da oposição, que reagisse por motivos honestos às políticas da autoridade no poder teria poucas opções: manifestar suas críticas, sendo imediatamente punido – por não corresponder ao tal preceito de obediência incondicional; registrar seu protesto e, em seguida, autopunir-se pelo “delito da discórdia”, talvez cometendo suicídio; ou retirar-se do convívio social e isolar-se como eremita, na floresta, com a esperança de tornar-se referência para outros descontentes, criando clima favorável para a derrubada da dinastia vigente e sua substituição por novos governantes.
Implícito em tal sistema encontrava-se o pressuposto de que o interesse pela estabilidade político-social deveria prevalecer sobre direitos individuais, tais como a liberdade de opinião ou o de expressá-las.
Em suma, era sob a égide do mesmo “mandato celestial” de sempre que Deng conduzia o processo de abertura da China ao exterior, enquanto, no plano interno, quebrava dogmas socialistas, em processo de instalação no país, a partir de 1949.
O autor teve a experiência pessoal de visitar, entre 1982 e 1985, algumas cidades costeiras que vinham adotando o novo sistema de “responsabilidade coletiva”. Isto é, até então os meios de produção e, principalmente, a terra eram de “propriedade coletiva”, e tudo o que fosse produzido seria entregue ao mercado público. Em troca, os indivíduos receberiam os bens, alimentos e serviços básicos para sua sobrevivência. Havia escassez, mas não se sofria miséria.
Foi possível ouvir narrativas, por exemplo, de que, durante o período da “Revolução Cultural”, cada pessoa receberia uma vestimenta – no estilo “traje de Mao”. Esta deveria durar nove anos. Durante os três primeiros, consideraria a roupa nova. Nos seguintes, como boa. Nos finais, adequada. Decorrido este prazo, novo conjunto de calça, jaqueta e chapéu lhe seria distribuído.
Com a nova prática – segundo o ensinado por membro de comunidade agrícola, durante um almoço ao qual o autor compareceu, em “fazenda modelo”, de cidade costeira da China – tudo continuaria a pertencer à coletividade e entregue ao mercado público. Pequena faixa de terra, no entanto, poderia ser cultivada individualmente e a produção vendida particularmente. Tal ganho poderia permitir ao camponês comprar sua própria ferramenta. Caso sua produtividade continuasse a aumentar, assim como sua renda, seria possível adquirir, por exemplo, uma segunda enxada. Em seguida, era necessário contratar alguém para operar o outro meio de produção.
Introduz-se, assim, uma forma de relação de produção capitalista, com a exploração do trabalho de um indivíduo pelo outro. E, se este novo empresário vier a comprar grande número de ferramentas, veículos de transporte, lojas – não haveria, perguntei, uma organização de mercado monopolista?
Nesse ponto da conversa com o camponês, o representante da polícia ideológica, que vinha acompanhando o encontro intervém e declara que o governo da República Popular da China garantiria a manutenção de relações de produção e organização de mercado socialistas. Fim de caso. Cabia, então, cessar as perguntas e retornar à degustação do peixe – talvez o mais saboroso que digeri naquele país – com outras iguarias simples, mas bem-preparadas.
Era um processo de reformas, assim cuidadoso, sempre sob o controle de um sistema ainda centralmente planificado, que vinha sendo introduzido na China, na década de 1980. Sua implantação ocorria na agricultura e em versões industriais, nas áreas urbanas. Criavam-se empréstimos bancários e ações de empresas, com lucros sendo distribuídos aos operários.
Pensava-se, então, na gradativa descentralização do planejamento econômico. A planificação continuaria a vigorar nas áreas de infraestrutura e indústria pesada. Nos demais setores, haveria metas e linhas gerais. Fábricas se tornariam empresas independentes, com operários ganhando dividendos e gerentes decidindo, localmente, sobre onde obter matérias primas e a respeito de como e onde os produtos seriam vendidos e a qual preço.
A China, assim, buscava superar o ponto de equilíbrio estabelecido pelo princípio socialista, segundo o qual “de cada um de acordo com suas habilidades e a cada um de acordo com suas necessidades”, para novo paradigma – que, segundo a tradição confucionista deveria visar a estabilidade social. Este, contudo, deveria explorar a ganância e desejo por consumo de sua população.
Segundo especialistas no assunto, Mao não teria sido um líder na tradição de Confúcio. Pois – conforme descrito acima – não abraçou as normas ditadas pela “li”, que estabelecem a conduta adequada à ordem social. Teria agido no estilo de um “Macaco Rei”, liberando forças de “luan” (desordem e rebelião) para mobilizar a população e manter-se no poder. Assim, na essência do pensamento maoista se encontrava a rejeição à concepção confucionista de estabilidade. O progresso, para Mao, só poderia ser obtido pela luta contínua e permanente.
Deng Xiaoping, no entanto, personificou o retorno da China à tradição confucionista. No sentido de que caberia ao líder benevolente buscar o caminho certo para a estabilidade, segurança e o estabelecimento de forma de governança que favorecesse o progresso.
Uma das maiores conquistas de Confúcio foi a criação de um sistema educacional e de seleção por exames, aberto a todos, que veio a celebrar, na China, a figura do “acadêmico” e a classe dos “mandarins”.
Durante o período maoista, os “acadêmicos” foram considerados “parasitas”. Com a subida de Deng ao poder, o conhecimento voltou a ser valorizado. Tratava-se, agora, de encorajar a educação, incentivando especialistas, tecnocratas e gerentes com recompensas materiais, enquanto se retornava a valores tradicionais confucionistas.
Resta desejar que, com sua ascensão crescente, a RPC não busque exportar também, por seus “cinturões e rotas”, as atuais formas de governança. Em artigos próximos procurarei analisar as relações históricas do “Império do Centro” com seu entorno mais próximo, no Sudeste Asiático.
[1] Lew, Roland. “Mao prend le Pouvoir”. Éditions Complexe 1981.
[2] Mencius. 372-289 AC. Foi o segundo maior filósofo chinês, após Confúcio. Teve reconhecida sua teoria sobre a natureza humana, segundo a qual todos os homens possuem bondade inata, que pode ser desenvolvida pela educação e a autodisciplina, ou desperdiçada por negligência ou influências negativas, mas nunca totalmente perdida.
[3] Tao é um conceito elaborado na filosofia chinesa antiga. Significa “caminho”, ou, em certos contextos “doutrina” ou “princípios”. Pode também significar a verdadeira natureza do mundo.
[4] Na filosofia chinesa, Yin e Yang são utilizados para descrever como forças, aparentemente opostas, podem estar interconectadas e serem interdependentes em diferentes aspectos da natureza, enquanto se revezam, de forma cíclica.
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