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domingo, 28 de junho de 2015
Corrupcao companheira: os ratos comecam a temer, depois de treze anos de roubalheiras
Lula treme
O ex-presidente mostra desequilíbrio e desespero, vivendo o pior momento de sua história
Sérgio Pardellas
IstoÉ, domingo, 28 de junho de 2015
Temendo a prisão, Lula revela desespero ao criticar publicamente o PT. O ex-presidente, que tem dormido pouco, apresenta crises de choro, diz que o governo Dilma não tem mais jeito e avalia que a vitória de Aécio em 2014 poderia até ter sido melhor
O ex-presidente Lula anda insone. Segundo amigos próximos, o petista não consegue sossegar a cabeça no travesseiro desde a prisão, há duas semanas, de Marcelo Odebrecht, presidente da maior empreiteira do País, e do executivo Alexandrino Alencar, considerados os seus principais interlocutores na empresa. Tem dormido pouco. Nem quando recebeu o diagnóstico de câncer na laringe, em 2011, o petista demonstrou estar tão apreensivo como agora. Pela primeira vez, desde a eclosão da Operação Lava Jato para investigar os desvios bilionários da maior estatal brasileira, a Petrobras, Lula teme amargar o mesmo destino dos empreiteiros. Até um mês atrás, o ex-presidente não esperava que sua história poderia lhe reservar outra passagem pela cadeia. Em 1980, o então líder sindical foi detido em casa pelo DOPS, a polícia política do regime militar. Permaneceu preso por 31 dias, chegando a dividir cela com 18 pessoas. Agora, o risco de outra prisão – desta vez em tempos democráticos – é real. Na quinta-feira 25, o tema ganhou certo frisson com a divulgação de um pedido de habeas corpus preventivo em favor do ex-presidente impetrado na Justiça Federal do Paraná. Descobriu-se logo em seguida, no entanto, que a ação considerada improcedente pelo Tribunal Regional Federal não partiu de Lula nem de ninguém ligado a ele. Mas, de fato, o político já receia pelo pior. O surto público recheado de críticas ao governo Dilma Rousseff e petardos contra o partido idealizado, fundado e tutelado por ele nos últimos 35 anos expôs, na semana passada, como os recentes acontecimentos têm deixado Lula fora do eixo.
Em privado, o ex-presidente exibe mais do que nervos à flor da pele. Na presença de amigos íntimos, parlamentares e um ex-deputado com trânsito nos tribunais superiores, Lula desabou em choro, ao comentar o processo de deterioração do PT. Como se pouco ou nada tivesse a ver com a débâcle ética, moral e eleitoral da legenda, ele lamentou: "Abrimos demais o partido. Fomos muito permissivos", justificou. Talvez naquela atmosfera de emoção, Lula tenha recordado de suas palavras enunciadas em histórica entrevista à ISTOÉ no longínquo fevereiro de 78, quando na condição de principal líder sindical do ABC paulista começava a vislumbrar o que viria a ser o PT, criado em 1980. "Para fazer um partido dos trabalhadores é preciso reunir os trabalhadores, discutir com os trabalhadores, fazer um programa que atenda às necessidades dos trabalhadores. Aí pode nascer um partido de baixo para cima", disse na ocasião. Hoje, o PT, depois de 12 anos no poder, não reúne mais os trabalhadores, não discute com eles, muito menos implementa políticas que observem as suas necessidades. Pelo contrário, o governo Dilma virou as costas para os trabalhadores, segundo eles mesmos, ao vetar as alterações no fator previdenciário, mudar as regras do seguro para os demitidos com carteira assinada e adotar medidas que levam à inflação e à escalada do desemprego. Agora crítico mordaz da própria obra, Lula sabe em seu íntimo que não pode se eximir da culpa pela iminente derrocada do projeto pavimentado por ele mesmo.
Restaram os desabafos, sinceros ou não, e a preocupação com o futuro. Num dos momentos de lucidez, o ex-presidente fez vaticínios impensáveis para quem, até bem pouco tempo, imaginava regressar triunfante ao Planalto daqui a três anos. Em recentes conversas particulares no Instituto que leva o seu nome, em São Paulo, Lula desenganou o governo Dilma, sucessora que ele mesmo legou ao País. "Dilma já era. Agora temos que pensar em salvar 2018", afirmou referindo-se às eleições presidenciais. Para o petista, a julgar pelo quadro político atual, "teria sido melhor" para o projeto de poder petista e da esquerda "que (o senador tucano) Aécio Neves tivesse ganho as eleições" presidenciais do ano passado. Assim, no entender dele, o PSDB, e não o PT, ficaria com o ônus das medidas amargas tomadas na esfera econômica destinadas a tirar o País da crise, o que abriria estrada para o seu retorno em 2018. Como o seu regresso não é mais favas contadas, o petista tem confidenciado todo o seu descontentamento com a administração da presidente Dilma. Lula credita a ela e ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o avanço da Lava Jato sobre sua gestão. Embora essa hipótese ainda seja improvável, petistas ligados ao ex-presidente não descartam a possibilidade de ruptura, o que deixaria a presidente ainda mais vulnerável para enfrentar um possível processo de impeachment. A atitude, se levada adiante, não constituiria uma novidade. Em outros momentos de intensa pressão, como no auge do mensalão e do escândalo do caseiro Francenildo, Lula não se constrangeu em rifar aliados e até amigos do peito, como os ex-ministros José Dirceu, Antonio Palocci e Ricardo Berzoini.
Quem testemunhou as confidências de Lula na ampla sala de reuniões de seu Instituto, sediado na capital paulista, não chegou a ficar surpreso com o destempero verbal apresentado pelo petista na semana passada. Não se pode dizer o mesmo da maioria expressiva da classe política, impossibilitada de privar da intimidade do ex-presidente. De tão pesados e surpreendentes, os ataques de Lula a Dilma e ao PT foram recebidos com perplexidade. O primeiro tiro foi disparado na quinta-feira 18. Numa reunião com padres e dirigentes religiosos, Lula admitiu, em alusão ao nível baixo do sistema da Cantareira, que ele e Dilma estão no volume morto. "E o PT está abaixo do volume morto", avaliou. Na segunda-feira 22, Lula elevou ainda mais o tom. Só que contra o PT. Em debate com o ex-presidente do governo espanhol Felipe Gonzáles, disse que o partido "está velho, só pensa em cargos e em ganhar eleição". "Queremos salvar a nossa pele, nossos cargos, ou queremos salvar o nosso projeto?", questionou Lula, durante a conferência "Novos Desafios da Democracia". Nos dias subseqüentes às declarações, enquanto o meio político tentava interpretar o gesto do petista, o Planalto reagia a seu modo. Num primeiro momento, Dilma minimizou."Todos têm direito de fazer críticas, principalmente o presidente Lula". No dia seguinte, no entanto, Dilma orientou o ministro da Comunicação Social, Edinho Silva, a procurar Lula para tentar entender as razões de tamanha fúria. Paralelamente, o ex-presidente tratou de se proteger. Articulou junto à bancada do PT no Senado a divulgação de uma nota de desagravo a ele próprio. Criou, assim, mais uma jabuticaba política: fez com que o partido atacado emitisse um documento em apoio ao autor dos ataques. Na nota, o PT manifestou "total e irrestrita solidariedade ao grande presidente Lula, vítima de uma campanha pequena e sórdida de desconstrução de uma imagem que representa o que o Brasil tem de melhor". No fim da semana, ao perceber o ar rarefeito, Lula mandou emissários espalharem o suposto reconhecimento de que ele "se excedeu". Era tarde.
Para o cientista político da USP, José Álvaro Moisés, ao abrir confronto contra Dilma e o PT, Lula "jogou para a plateia". "Ele está vendo o navio fazer água, por isso age assim", avaliou. Para Oswaldo do Amaral, da Unicamp, ao dizer que o partido precisa de uma renovação, Lula tenta uma reaproximação com o eleitorado mais jovem, segmento hoje refratário a ele (leia mais em matéria na página 46). O jornalista José Nêumanne Pinto, autor do livro "O que sei de Lula", no qual conclui que o ex-presidente nunca foi efetivamente de esquerda, é mais contundente. Para ele, "Lula é sagaz e não tem escrúpulo nenhum para mudar seu discurso". "O ex-presidente tem circunstâncias e conveniências que ele manipula", afirmou. "Na verdade, ele não quer se descolar do PT e sim da Dilma. Com esse discurso da utopia, ele planeja atrair parte do PT que finge ser honesto", disse.
O mais espantoso na catilinária lulista é que o ex-presidente se comporta como se fosse um analista distante de uma trama da qual é personagem principal. Numa analogia com o futebol, recurso metafórico muito utilizado por Lula quando estava na Presidência, seria como se o zagueiro e então capitão da seleção brasileira David Luiz descrevesse os sete gols da Alemanha como se não tivesse assistido entre atordoado e impassível ao baile de Toni Kroos, Schweinsteiger e companhia em campo. No caso do ex-presidente há um agravante: Lula nunca foi apenas um mero integrante do time, mas o mentor, o grande líder e artífice da caminhada petista até aqui. Por isso mesmo, causou ainda mais espécie a repreensão de Lula ao PT por sua sede por cargos. Ora, o aparelhamento da máquina pública pelo PT e aliados começou e recrudesceu durante os dois mandatos do petista. Quando Lula chegou ao poder em 2003, havia 18 mil cargos de confiança na administração federal. Ao transmitir o cargo para Dilma, em 2011, já eram cerca de 23 mil.
Do mesmo modo, Lula não pode lamentar, como fez em privado, que o crescimento do partido levou aos desvios éticos e à corrupção – hoje marca indissociável ao PT. O escândalo do mensalão, que resultou na condenação de dirigentes petistas em julgamento no STF, remonta ao seu governo. E o processo de abertura da legenda, bem como à rendição à política tradicional de alianças, baseada no fisiologismo e no toma lá, da cá, beneficiou o próprio Lula. Sem isso, o ex-presidente dificilmente se elegeria em 2002. Ao chegar ao Planalto, Lula cansou de dar demonstrações de que não sabia separar o público do privado. A mais chocante delas foi a ousadia de ornar os jardins do Alvorada com a estrela rubra do PT. O limite entre o público e o privado foi ultrapassado também quando Lula nomeou a amiga Rosemary Noronha para a chefia de gabinete de um escritório da Presidência em São Paulo. Hoje, Rosemary responde a uma ação na Justiça por formação de quadrilha, tráfico de influência e corrupção passiva. Ela integraria um esquema de vendas de pareceres técnicos de órgãos públicos federais. Agora, a personagem muito próxima a Lula pode retornar ao noticiário numa outra vertente das investigações da Lava Jato. Trata-se da retomada das apurações do episódio envolvendo um suposto depósito milionário feito em Portugal por Rosemary. Para a PF, o caso converge com a investigação sobre a Odebrecht e a Andrade Gutierrez. É que Otávio Azevedo, preso na 14ª fase da Lava-Jato, foi representante da Portugal Telecom no Brasil. A empresa de telefonia era em grande medida controlada pelo Grupo Espírito Santo, parceiro da Odebrecht em vários empreendimentos em território português. "Tudo converge para os mesmos personagens.
Se já houver outra investigação em curso, também podemos colaborar", afirmou à ISTOÉ um delegado ligado a Lava Jato. Até hoje não se sabe o que houve com o ofício protocolado pelo então deputado Anthony Garotinho (PR/RJ) sobre o périplo de Rosemary em solo português. Em 2012, Garotinho denunciou o caso com base em relatos de um ex-delegado federal. Rosemary, segundo essa fonte, teria desembarcado em Lisboa com passaporte diplomático e autorização para transportar uma mala. Ao chegar à alfândega, questionada sobre o conteúdo da bagagem, teria revelado que transportava 25 milhões de euros para depositar na agência central do Banco Espírito Santo no Porto. Segundo a mesma versão, as autoridades alfandegárias sugeriram que ela contratasse uma empresa de transporte de valores. Para executar o serviço, a empresa Prosegur exigiu a contratação de um seguro, pelo que Rosemary teve de preencher uma declaração com a quantia e a titularidade dos recursos. Ela, então, teria identificado o próprio Lula como proprietário do dinheiro.
Não restam dúvidas de que a explosão do petista deriva principalmente dos rumos tomados pelas investigações da Lava Jato nas últimas semanas. Mas seus recentes arroubos guardam relação também com os resultados das últimas pesquisas de opinião. De janeiro para cá, os levantamentos mostram a vertiginosa queda de popularidade de Dilma e dele próprio, que já perderia para o senador Aécio Neves se as eleições presidenciais fossem hoje. De acordo com o último Datafolha, Aécio aparece com 10 pontos na frente de Lula. Segundo a mesma pesquisa, o governo Dilma foi reprovado por 65% dos eleitores. Este índice de reprovação só não é maior do que o do ex-presidente Fernando Collor no período pré-impeachment, em setembro de 1992. Na época, Collor era rejeitado por 68% dos brasileiros. No levantamento, o governo Dilma é classificado como bom ou ótimo por apenas 10% dos brasileiros. É a maior taxa de impopularidade da petista desde 2011. A taxa de aprovação da presidente no Sudeste é de apenas 7%. No Nordeste, histórico reduto eleitoral do PT, é de somente 14%.
Num cenário nada alvissareiro para Dilma como o atual, em que ela está às voltas com um processo no TCU que pode até levar ao seu afastamento, o pior dos mundos para ela seria um rompimento com o padrinho político. Nesse cenário, Lula levaria com ele para o outro lado da trincheira parte do PT que hoje critica severamente a política econômica do governo. Se uma ruptura oficial é improvável, o mesmo não se pode dizer de um racha na prática, mas não declarado. O embrião do que pode vir a ser um contraponto ao governo surgiu na quarta-feira 24, em reunião na casa do senador Randolfe Rodrigues, do PSOL. Nela estavam presentes parlamentares do PSB e petistas de proa, como o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, e o senador Lindbergh Farias (RJ). No encontro, articularam o que chamam de "Frente de Esquerda". Se o movimento florescer, o grande responsável pela ascensão e projeção política de Dilma – o ex-presidente Lula – poderá ser também o principal artífice do seu irremediável isolamento.
Corrupcao 6: aos que julgam injusta, ou exagerada, a prisao do presidente da Odebrecht
A divulgação visa satisfazer jornalistas amigos, advogados nem tão amigos, políticos muito amigos e quem mais interessar possa, todos compromissados com a organização criminosa formada pelo PT, sob a condução de Lula, para assaltar os cofres da Petroberás e enriquecer o Partido, suas campanhas eleitorais e seus dirigentes.
A Odebrecht usa todo seu poder de fogo, que não é pequeno, para perturbar as investigações, as oitivas e o noticiário da imprensa, sempre com o objetivo de embaralhar o jogo e favorecer seu líder, Marcelo Odebrecht, que se enviou como rato num chifre estreito.
É só ir atrás do dinheiro para verificar a origem e o destino das propinas pagas.
O caso vai cada vez mais na direção de outros negócios malcheirosos acertados com outras estatais federais.
Merval Pereira: a caminho do impeachment?
Relacoes Brasil-EUA: algo de novo num cenario de altos e baixos? - Paulo Roberto de Almeida
Relações Brasil-EUA no início do século 21:desencontros
Paulo Roberto de Almeida
O regime inaugurado em 2003 no Brasil introduziu mudanças significativas no padrão de relacionamento com os EUA, ainda que a retórica diplomática tenha procurado manter a aparência de continuidade. Na verdade, muitas das iniciativas tomadas pelos governos lulo-petistas foram no sentido de consolidar uma orientação dita “anti-hegemônica” na política externa e de constituir organismos de consulta e de coordenação regionais afastados da esfera de influência dos EUA, a começar pela implosão do projeto americano da Alca. Nesse sentido, o relacionamento passou pelo mesmo ciclo anterior de altos e baixos, com fases de reaproximação seguidas de afastamentos por falta de entendimentos políticos – como no caso da espionagem sobre as comunicações brasileiras feita pela National Security Agency – e por promessas de reativação das relações econômicas e comerciais que nem sempre se traduziram em ações concretas.
A campanha presidencial de 2002, ao antecipar fortes tendências mudancistas, tinha alimentado certo recrudescimento das preocupações dos mercados financeiros com a manutenção das linhas da política macroeconômica seguida na administração anterior, a de Fernando Henrique Cardoso. Essa desconfiança se manifestou nos indicadores de risco, com a sensível deterioração do câmbio, dos preços dos títulos negociados e a diminuição geral das linhas de crédito comercial e dos fluxos de investimentos (diretos e de portfólio). O comportamento moderado do candidato da oposição – que sinalizou seu apoio ao acordo com o FMI em agosto de 2002 e confirmou a aceitação dos princípios da intangibilidade dos contratos da dívida externa e da responsabilidade fiscal – permitiu desanuviar possíveis tensões com o governo conservador americano, que revelou então boa disposição para o diálogo tão logo confirmada a vitória do candidato Lula. O presidente Bush não apenas telefonou imediata e pessoalmente para cumprimentar o vitorioso desde o anúncio dos resultados, como formulou convite para uma primeira visita de contato e de discussão informal. Em estratégia diplomática muito bem medida, o candidato eleito definiu poucas viagens externas antes da posse, com destaque para uma visita aos mais importantes líderes do Cone Sul e a aceitação do convite feito pelo presidente americano.
Nessa primeira visita de trabalho a Washington, realizada em 10 de dezembro de 2002, registrou-se visível empatia entre o líder da principal potência mundial e o futuro presidente do maior país da América do Sul, ocorrendo a entrevista em ambiente descontraído e com boa disposição para dar início a uma agenda cooperativa entre os dois países. Partiu do mandatário americano a sugestão de uma reunião de alto nível (envolvendo membros do gabinete) ainda no decorrer do primeiro semestre de 2003 (o que por um momento pareceu ameaçado pelos desenvolvimentos do conflito dos EUA com o Iraque). Em sua primeira viagem a Washington, o presidente eleito do Brasil confirmou o interesse de seu governo em dar início a quatro anos de relações francas, construtivas e mutuamente benéficas para os dois países, desarmando assim os críticos conservadores dos EUA e surpreendendo grupos radicais no próprio Brasil.
De sua parte, os interlocutores americanos, que tomaram conhecimento nesse mesmo dia do nome do ministro da Fazenda designado, na pessoa de Antonio Palocci, um dos acompanhantes da delegação, ficaram positivamente impressionados pela confirmação da manutenção das grandes linhas da política macroeconômica anterior, o que sem dúvida desarmou o grave cenário de deterioração dos indicadores que vinha manifestando-se até então.
De fato, a inauguração e o início do governo Lula foram auspiciosos e mesmo surpreendentes em termos de ativismo diplomático. Confirmando a atenção especial a ser dada pelo seu governo aos países da região, a começar pelo fortalecimento do Mercosul, assim como a alguns grandes países em desenvolvimento, o presidente Lula afirmou, em seu discurso de posse, que procuraria ter com os EUA “uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo.” O novo chanceler, escolhido na pessoa do experiente diplomata profissional Celso Amorim (já ministro das relações exteriores de Itamar Franco), colocou as relações entre os dois países no patamar julgado adequado, ao buscar a coordenação e o diálogo em todos os terrenos de interesse comum, sem eludir, porém, as diferenças de posição em torno de pontos concretos (como as negociações comerciais multilaterais e hemisféricas, por exemplo).
Os pontos de divergência pareciam superar os de convergência, manifestando-se em especial em relação aos problemas da Venezuela, dos direitos humanos em Cuba e do problema do Iraque no Conselho de Segurança. A “agenda positiva” prometida por ambos presidentes pareceu algumas vezes comprometida em função do conflito no Iraque, cujo impacto negativo foi temido no Brasil não apenas como resultado de possíveis efeitos recessivos na economia mundial mas também por seus efeitos corrosivos no sistema político multilateral. A eventual incorporação do Brasil como membro permanente do CSNU realizaria um sonho acalentado pelas lideranças políticas e diplomáticas desde a era da Liga das Nações ou, pelo menos, desde a Conferência de São Francisco que criou a ONU, mas ele vem sendo postergado desde muitos anos não tanto em função das conhecidas limitações objetivas do Brasil, mas em decorrência das próprias dificuldades em se lograr aceitação de uma reforma da Carta da ONU. Os EUA sinalizaram seu apoio ao ingresso seletivo de novos membros, como sendo a Índia e o Japão e alguns países em desenvolvimento capazes de assumir responsabilidades na frente da segurança internacional, mas preferiram insistir, nos últimos anos, na tese da reforma da ONU enquanto organismo burocrático superdimensionado, deixando o espinhoso tema da reforma da Carta a ocasião mais oportuna.
Mas a relação também foi dificultada pela falta de entendimento em torno de algumas questões importantes, como a da Alca, por exemplo, o que colocou as duas administrações em posições díspares, uma vez que Lula e Amorim já tinha decidido implodir esse projeto americano, o que finalmente conseguiram, dois anos depois – na conferência de cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005 – com a ajuda dos aliados Kirchner, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. O restante da primeira administração Lula e todo o seu segundo mandato foi ocupado, quase inteiramente, por iniciativas e projetos brasileiros de “afastamento” da América do Sul da influência dos EUA, consubstanciados na proposta da Comunidade Sul-Americana de Nações, que representaria, segundo seus promotores, um mecanismo de coordenação próprio à região e sem a “tutela do império”.
De fato, a implosão da Alca significou que muitos países do hemisfério, interessados no acesso de seus produtos ao grande mercado americano e na atração de investimentos dos EUA em suas economias, passaram a negociar diretamente com o gigante americano acordos de livre comércio e de facilitação de investimentos, num esquema não mais hemisférico, mas “minilateralista”, com os EUA determinando o padrão e o conteúdo dessas relações econômicas. Acabaram ficando de fora os países do Mercosul, e os chamados “bolivarianos” que, sob o comando de Hugo Chávez, se decidiram por uma bizarra Aliança Bolivariana dos Povos da América, feita mais de comércio administrado e de intercâmbios estatais do que de integração econômica.
O Brasil e o Mercosul passaram a promover mais ativamente a chamada diplomacia Sul-Sul, pretendendo criar uma “nova geografia do comércio mundial”, que se revelou, no entanto, extremamente modesta em seu escopo e alcance geográfico: apenas três modestos acordos de liberalização limitada do comércio, com parceiros não tradicionais – Israel e Palestina – e com a Índia, que sempre manteve a mesma postura protecionista e dirigista dos dois principais parceiros do Mercosul, o Brasil e a Argentina. Essa postura foi também agravada por desentendimentos persistentes com os EUA no âmbito das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, que não apenas não foram concluídas durante o mandato originalmente acordado em 2001, como se prolongaram em diversas tentativas frustradas no decorrer dessa década, e se encontram praticamente estagnadas desde o início da presente década.
O caráter morno – para não dizer moroso – das relações bilaterais Brasil-EUA durante grande parte da era Lula, a despeito de uma retórica aparentemente amistosa e sempre declarada positiva, pode estar ligada à partidarização evidente da diplomacia brasileira sob a hegemonia do PT e do antiamericanismo indisfarçável de vários dos dirigentes lulo-petistas. Não deixa de ser um fato que o PT se apresenta como um típico partido esquerdista latino-americano, com maiores simpatias por certos aliados ditos “progressistas” – quando não declaradamente comunistas ou socialistas, como os regimes cubano e chavista – do que pelas democracias liberais de mercado, postura que dificulta o estabelecimento ou o reforço de diversas iniciativas diplomáticas que, de outra forma, poderiam estar sendo conduzidas pelo staff profissional do Itamaraty. Esse elemento, sempre negado oficialmente, se mostrou evidente em vários episódios das relações bilaterais ou no tratamento de diversos temas da agenda multilateral. Ainda que Lula procurasse destacar suas boas relações com George Bush, não foi registrada qualquer grande iniciativa econômica ou política que pudesse colocar essas relações em outro patamar.
Período recente: continuidade da inércia e pontos de conflito
A continuidade da gestão lulo-petista na presidência do Brasil, a partir de 2011, não veio trazer, a despeito das mesmas manifestações retóricas em favor das “boas relações”, nenhuma grande novidade nesse quadro de morosidade diplomática e de ausência de qualquer iniciativa de relevo, ainda que acordos de cooperação setorial tenham sido assinados episodicamente. Desde os ataques terroristas de 2001, os pontos preferenciais da agenda americana para a região se situam mais no terreno da segurança e do combate ao crime organizado – inclusive o narcoterrorismo – do que na promoção do desenvolvimento mediante políticas de sustentação ativa de investimentos, ao passo que o Brasil e outros países da região provavelmente prefeririam, por sua parte, insistir no apoio a políticas de desenvolvimento, transferência de tecnologia e, sobretudo, acesso a mercados, como condição de superação das amarras do subdesenvolvimento.
Esse tipo de desencontro tem sido uma constante desde o imediato pós-Segunda Guerra, quando os países latino-americanos insistiam por uma réplica do Plano Marshall aplicado à região e os EUA retrucavam com recomendações de abertura econômica, acolhimento do investimento estrangeiro, liberalização comercial e luta contra a corrupção e as desigualdades sociais. Nessa época, no imediato pós-Segunda Guerra, assim como tinha ocorrido nos tempos do Barão do Rio Branco, no início do século XX, falou-se muito de um relacionamento especial, uma espécie de “aliança não-escrita" entre o Brasil e os Estados Unidos, muito embora fossem evidentes os diferenciais de poder e as orientações diversas das agendas diplomáticas respectivas.
Um século depois, esse relacionamento parecia ter se esvaído completamente, quando do episódio da espionagem americana sobre as comunicações oficiais do Brasil, inclusive de empresas relevantes, como a Petrobras, justamente quando a presidente Dilma Rousseff se encontrava preparando uma visita de Estado a Washington, em meados de 2013. A viagem foi obviamente suspensa, mas a amplitude e a acrimônia da reação brasileira – bem mais intensas do que as registradas em países e por líderes políticos aliados, igualmente espionados, como a chanceler alemã Angela Merkel, por exemplo – provavelmente tem mais a ver com considerações de natureza política doméstica do que propriamente com questões diretamente diplomáticas ou como resultado de um desentendimento fundamental em relação a temas diversos da agenda diplomática internacional. Afinal de contas, não é segredo para ninguém que os EUA, como grande potência mundial, arrogante e unilateralista como podem ser os hegemons, se dedicam a esses exercícios de espionagem – da mesma forma como todas as demais potências relevantes – e vão continuar recorrendo a esse tipo de expediente, à margem e independentemente da natureza de suas relações – de amizade, de cooperação ou de desconfiança ou mesmo de animosidade momentânea – com parceiros, aliados e, a mais forte razão, com países com os quais mantenham relações marcadas pela ambiguidade. Ora, não é tampouco segredo para ninguém que o regime lulo-petista tem entre seus aliados preferenciais alguns dos piores inimigos dos EUA – como cubanos, bolivarianos e adeptos de regimes “anti-hegemônicos” como China e Rússia, por exemplo – e com eles colabora abertamente em temas e agendas que têm como objetivo declarado “mudar a relação de forças” no mundo, num sentido “pós-imperial”.
Não se pode esperar, nessas circunstâncias, que o “império” mantenha o projeto de uma relação especial, estratégica ou cooperativa, com um governo que trabalha para minimizar as fontes e o exercício desse poder hegemônico em diferentes âmbitos do cenário mundial. De certo modo, foi o Brasil quem alimentou, historicamente, vãs esperanças e ilusões ingênuas de uma relação especial com os EUA. Recorde-se, por exemplo, a questão nem sempre bem colocada, e de certo modo totalmente artificial, da “opção” (ou da oposição) entre uma “política externa tradicional” – por definição “alinhada” – e uma “política externa independente”, problema dramatizado por anos de enfrentamento bipolar no cenário geopolítico global.
Superado, contudo, o invólucro ideológico da postura externa do Brasil nesse período ultrapassado (mas que parece estar voltando a partir das novas posturas da Rússia e da China), e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se procurou classificar a diplomacia da era militar, assume importância primordial, atualmente, a questão do desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira contemporânea. É por esse prisma que o Brasil identifica seus interesses prioritários e é nessa postura que ele espera confortar seus temores mais manifestos, entre eles o de uma dominação econômica americana, mais imaginada do que realmente realizada, sequer em estado potencial. Parece incrível, nesse particular, que os mesmos críticos da postura “arrogante” e “unilateralista” do império do passado (e do presente) não reconheçam na China os mesmos elementos de dominação econômica que sempre caracterizaram a presença das principais potências capitalistas ocidentais em direção do Terceiro Mundo em geral, e de alguns países periféricos em particular (em especial aqueles especialmente suscetíveis de serem inseridos de maneira produtiva na grande divisão internacional do trabalho).
Um século atrás, os colonialismos europeus, e os imperialismos ocidentais de maneira ampla, mantinham as mesmas práticas comerciais e faziam os mesmos tipos de investimentos utilitários em transportes e comunicações, em infraestrutura no seu sentido amplo, em direção da periferia colonizada ou semicolonial que hoje motivam a China e seus ávidos novos capitalistas nos grandes programas de penetração dos mesmos territórios e regiões suscetíveis de serem absorvidos pela grande máquina de produção de massa localizada no gigante da Ásia do Pacífico. O que haveria de fundamentalmente diferente com a atual postura chinesa, a não ser a ausência de uma motivação colonialista explícita?
De resto, no que se refere aos objetivos propriamente econômicos dos dois tipos de empreendimento, a ofensiva chinesa não parece ser muito diferente, no início do século XXI, em relação ao que se praticava um século atrás, embora as condições geopolíticas tenham sido fundamentalmente alteradas depois do encerramento dos dois grandes conflitos globais do início do século XX. No que se refere, por sua vez, a projetos de desenvolvimento em escala nacional, alguns países latino-americanos continuam a mostrar-se mais propensos a um modelo de desenvolvimento menos dominado pelos mercados e pelos empresários privados, e bem mais orientado pelos governos e burocracia nacionais e, de certa forma, parcialmente afastados das redes de integração produtiva que se desenham em outras regiões, em especial na Ásia e no Pacífico, justamente. Nem todos, porém, seguem as mesmas reticências protecionistas e temores de “desnacionalização”, que parecem motivar atualmente líderes da Argentina e do Brasil, entre outros; vários outros, aos quais se poderia aplicar o qualificativo de “globalizadores”, parecem bem mais propensos a se integrarem nessas redes, como são os membros da Aliança do Pacífico: Chile, Peru, Colômbia e México.
No caso da atual diplomacia brasileira, ao início do século XXI, e em grande medida graças ao exercício da diplomacia presidencial tanto por parte de FHC, como por Lula, o relacionamento do Brasil com os EUA parece ter se tornado mais maduro e isento de preconceitos ideológicos e de ilusões quanto a qualquer tipo de “relação especial”, como ocorreu em diversas ocasiões de um passado não tão remoto. A expectativa, registre-se, é bem mais, ou exclusivamente, brasileira, do que americana, uma vez que a grande potência do Norte não tem, ao Sul, nenhuma ameaça à sua segurança e portanto não atribui, às suas fronteiras meridionais o mesmo grau de atenção estratégica do que a outras regiões, a começar pela Ásia Pacífico, pelo Oriente Médio ou mesmo pela Europa central e oriental.
O Mercosul e a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul há muito deixaram de ser vistos, na agenda diplomática “imperial”, como um desafio à sua hegemonia hemisférica, passando a ser olhados, naturalmente, como alavancas de um processo de desenvolvimento que pode beneficiar a todos. Eliminada a hipótese de uma grande área de livre comércio hemisférica, a Alca, patrocinada pelos Estados Unidos em moldes similares aos da primeira tentativa efetuada na conferência americana de 1889-90, o que ficou foi uma colcha de retalhos feita de diversos acordos minilateralistas com parceiros mais propensos a aceitarem essa relação pragmática proposta pelo império. Os temores, alimentados de forma recorrente durante anos, ou quiçá décadas, por parte de líderes políticos, de uma “dominação econômica” do Brasil pelo gigante hemisférico, há muito se esvaneceram, e começam a ser imaginados, doravante, os incômodos de uma grande dependência econômica e financeira da China, menos imperial, talvez, mas igualmente ambiciosa em suas pretensões econômicas unilaterais.
O relacionamento bilateral Brasil-EUA padeceu, durante muito tempo, de uma “crosta” feita de declarações contínuas de interesse recíproco de parte e outra, mas de um afastamento também contínuo ao longo do tempo, bem mais alimentado pelo Brasil do que pelos EUA (que de fato teriam uma “não-percepção do Brasil”). Existiria, talvez, um receio do Brasil de que uma aproximação com os EUA se faria em detrimento dos interesses do País, daí as tendências a querer ganhar tempo, achando que mais tarde estaríamos mais fortes e mais preparados. Isso obviamente nunca ocorreu, como tampouco ocorrerá em relação à China. Enquanto o Brasil não se lançar decisivamente nos circuitos sempre revoltos da globalização produtiva e da interdependência capitalista, ele nunca estará preparado, psicologicamente, para inserir-se de maneira autônoma nos grandes circuitos competitivos da economia global.
Os conflitos comerciais bilaterais ou multilaterais com os EUA e mesmo, dentro de certos limites, certa oposição de interesses estratégicos são, nessa visão, compatíveis com um bom nível geral de relacionamento político-diplomático, quando não com um entendimento no plano estratégico, ainda que essa vertente seja por muitos considerada prematura (pelas mesmas razões, percebidas e reais, de “assimetria estrutural”). Em todo caso, os dois países parecem ter dado início a um estilo de relações desprovido de a-prioris ou de condicionalidades estranhas ao próprio contexto bilateral e regional. O terreno foi semeado nesse sentido ao longo das últimas décadas de reformas econômicas no Brasil e pode estar sendo preparado, na atual fase de importantes ajustes econômicos por parte do Brasil, para uma nova etapa de colheitas políticas e diplomáticas que contribuirão provavelmente de maneira decisiva para a definição de uma nova relação dos EUA com o Brasil e com a América Latina.
O desafio da China nos planos global, regional e bilateral, não deixa de colocar novos elementos na agenda bilateral Brasil-EUA, e pode estar criando uma realidade inédita no hemisfério, ainda a ser confirmada pelos fatos e processos nos próximos anos: a de que os dois maiores países do continente precisam manter um nível adequado de entendimento em torno de questões relevantes nas áreas da segurança estratégica, da estabilidade democrática e do desenvolvimento econômico e social, inclusive para superar décadas, senão séculos, de divisão entre as duas partes do hemisfério. Se bem sucedido esse cenário, ele talvez nos leve de volta ao tipo de relação imaginado no começo do século XX por um chanceler tão distinguido quanto Rio Branco, que via na relação dos dois países uma das chaves para uma projeção estratégica favorável do Brasil na América do Sul.
Do ponto de vista da administração americana, por sua vez, a seleção de um “parceiro privilegiado” no continente não é matéria fácil, nos planos diplomático ou militar, e provavelmente ela não se fará de modo explícito, nem acarretará instrumentos exclusivos de coordenação político-militar. Mas, o fato de o governo brasileiro estar sendo ocupado por lideranças extraídas dos mesmos grupos que, no passado, relutavam na adesão a certas teses econômicas ou políticas de extração “liberal” – para não dizer que se opunham claramente ao “projeto americano” para a região – e o fato de que essas mesmas lideranças demonstrem, agora, maior dose de pragmatismo na condução dos negócios econômicos e da agenda diplomática, podem eventualmente significar que o Brasil passa a simbolizar, aos olhos dos EUA, a superação de velhos comportamentos atávicos na região, tendentes a equiparar anti-imperialismo e antiamericanismo ou a adesão a regras responsáveis de gestão governamental a uma suposta submissão a ditames econômicos emanados de um fantasmagórico “Consenso de Washington”.
Pode ser que essas ingenuidades esquerdistas e essas bobagens econômicas estejam sendo, finalmente, superadas em favor de uma agenda bilateral mais realista do que aquela imaginada pelos ideólogos anacrônicos do velho partido neobolchevique que pretendia “revolucionar” a região contra o império, e que ela passe a estar totalmente focada em resultados concretos. Pode ser: como no famoso teste britânico do pudim, a resposta só pode vir da prática que resulte na sua efetivação. Vamos esperar para ver…
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).
A corrupcao da linguagem por quem voces ja sabem - Marli Goncalves
Acho que todo mundo já riu o bastante. Mas talvez seja o caso de chorar, pois a nossa educação, já por si periclitante, acaba de sofrer mais um rude golpe.
Paulo Roberto de Almeida
PALAVRAS, SENTIDOS E VERSÕES. OU PIADAS
MARLI GONÇALVES
27/06/2015
Semana animada essa. Algumas palavras entraram definitivamente no vocabulário usual, mutantes, passaram para a história, inclusive a política, nos fizeram rir para não chorar. Ganharam novos sentidos. Algumas palavras são realmente formidáveis, mas eu nunca tinha pensado, sei lá, que uma mandioca renderia tanto. Muito menos que o latim pudesse ser traduzido ao bel-prazer. Tem de ver isso aí; senão sabe-se lá onde vamos parar se continuar essa toada, e vergonha não é uma boa palavra para um país.
Meu primeiro contato e amor para com as palavras veio da leitura de Monteiro Lobato, especialmente o sensacional "Emília no País da Gramática". Para mim, dali em diante elas ganharam vida, perninhas, sentimentos, e até contradições. Lembro bem do livro e das prisões onde se encontravam encarcerados os vícios de linguagem, os cacófatos, os pleonasmos, os barbarismos, os solecismos, os hiatos, os arcaísmos, gerundismos e plebeísmos, entre outros. Caras feias e agressivas prontas a atacar frases e pensamentos.
Agora todos - a mim parece - foram soltos e estão aí pelas ruas aterrorizando. Não bastasse estão recrutando as palavras para nos infernizar. Sequestrando outras, para nos entristecer; como "obrigado" que, para voltar à voga, creio que teremos de pagar vultosa recompensa. Outras estão sendo torturadas, principalmente quanto tentam andar juntas, como liberdade e individual. E observem que estas são bem modernas; uma, um substantivo feminino; outra, um adjetivo ou substantivo de dois gêneros, uma coisa até transexual como hoje está tão em voga.
Esses criminosinhos da linguagem e das palavras se criaram e conseguiram uma aliada e tanto na nossa presidente que anda se esmerando ao esgrimi-las em improviso nos púlpitos da vida. Foi assim que a mandioca virou a redenção nacional, base da civilização, e a bola indígena, tosca, o brinquedo que nos faz humanos e, mais, criou-se uma surpreendente e nova variação da espécie, de uma Era nova, de evolução biológica, que ainda não nos havia sido apresentada. A mulher sapiens. Isso é que é feminismo: nada de homo para lá e para cá.
Por que não a mulieres sapiens?
- Pensou, tascou.
Mas aí é que a coisa foi pro brejo total. Vocês vão entender por que e peço que sejam perspicazes para que eu não tenha de gastar muitas palavras para explicar. Sabem o que diferencia o homo sapiens, o humano sábio ao pé da letra, e em toda a sua abrangência inacreditavelmente desconhecida da nossa presidente? Uns dez ítens. Vou citar alguns, mais significativos, para vocês irem ticando (e lembrem que eu estou daqui dando uma piscadela): postura ereta, cérebros bem desenvolvidos, destreza manual, fala articulada, aculturação e raciocínios complexos, olhos em foco, e a capacidade de corar.
Ela tinha mesmo de inventar outra espécie, não?
Mas quero voltar a falar apenas das palavras, essas preciosas. Que, quando lançadas, não voltam. Tantas podem ser cruzadas, de amor, exatas, engraçadas. As de gratidão andam sumidas, assim como as de gentileza e reconhecimento. As que trazem elogios estão sendo vilipendiadas, principalmente nas redes sociais. Vide "linda". Nosso senso estético massacrado, porque se aquilo é lindo, imagine o feio! E o que a gente acha lindo o que é mesmo, o que é....? Santas palavras hipócritas que lemos, ouvimos.
Mas, por outro lado, também nas redes encontramos as palavras de apoio, de conforto, consolo, de fé e de ânimo. As palavras amigas, amorosas e inspiradoras.
Os palavrões jorram também de várias fontes, a favor e contra, principalmente quando a guerra é político-ideológica, como a que vivemos nesse momento. Com gente usando a palavra para defender o indefensável. Palavra de honra que às vezes nem acredito que estou ouvindo algumas delas, sobre o poder, mas até o poder da palavra tem limites.
Principalmente quando são engraçadas as palavras que sabemos ditas por quem devia ter mais palavra depois de eleita com palavras falsas, cantadas, lançadas, quebradas e depois reveladas. Melhor mesmo que sejam assim só engraçadas como as desta semana.
Mas os maiores problemas que vejo estão agora claramente localizados nas palavras do dia, as de fé. Principalmente como estão agora sendo pregadas e empregadas de forma absurda em leis e em lugares absolutamente inadequados e onde tem apenas uma, uma só que deveria ser a mais respeitada.
A palavra laico.
São Paulo, 2015
Marli Gonçalves é jornalista -- - - A palavra-chave do momento é serenidade. Uma expressiva palavra de mãe, daquelas que a gente não questiona. Segue. Obedece. No mínimo, para saber e aprender no que vai dar. Palavra final.
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Paulo Roberto de Almeida