O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 12 de abril de 2020

Reconstrução do pós-guerra: um exercício condenado, e encerrado? - Paulo Roberto de Almeida

Reconstrução do pós-guerra: um exercício condenado, e encerrado?

Paulo Roberto de Almeida


Ao que dizem, estamos em guerra. Diversos dirigentes recorreram a esse conceito para referir-se ao mais ameaçador desafio já enfrentado pela Humanidade desde o encerramento da “segunda Guerra de Trinta Anos”, que devastou quase toda a Europa e metade da Ásia na primeira metade do século XX. Aparentemente, os principais estadistas atuais — alguns tardiamente — já definiram o inimigo a ser abatido, mediram suas dimensões e estão empregando uma variedade de meios e de ferramentas para combatê-lo de maneira mais ou menos eficiente.
No caso do Brasil, no dizer de um humorista, não temos apenas um inimigo, mas dois, o que nos leva para além do terreno técnico-logístico no qual o primeiro inimigo precisa e deve ser combatido, nos obrigando a adentrar num terreno político-institucional, muito mais complicado, uma vez que o segundo inimigo é o próprio núcleo de tomada de decisão.
Azar o nosso, pois ademais dos componentes propriamente econômicos e materiais com os quais se deve levar a guerra, e cada uma de suas batalhas em várias frentes, avulta nesses desafios de grande escopo a qualidade da liderança e a capacidade de manobrar dos responsáveis pela condução geral da contenda: generais e administradores da intendência, certamente, mas também os executivos da inteligência e, acima de tudo e de todos, o chefe das FFAA, que vem a ser o próprio chefe de governo ou de Estado. 
Desse ponto de vista, estamos muito mal aparelhados, não só no plano da estratégia geral a ser empregada na condução da formidável guerra, mas igualmente para o planejamento do pós-guerra e o esforço de reconstrução. A essa altura, todos já perceberam que a palavra-R já está encomendada, e o que se especula é quão grande e extensa será a palavra-D: que uma recessão severa já esteja no horizonte, ninguém mais contesta; se especula apenas sobre como minimizar a profundidade da depressão.
Não vamos achar que só nós, parcos de meios e de liderança, falharemos nas duas frentes, a da guerra, propriamente, e a da reconstrução, que deve vir depois, ou talvez, concomitantemente aos esforços que se devem empreender desde para superar ou contornar a depressão. Em outras ocasiões, mesmo grandes estadistas de poderosas e ricas potências falharam miseravelmente na reconstrução para a paz e a estabilidade do pós-guerra. Versalhes e a abordagem punitiva da Grande Guerra praticamente encomendaram a segunda parte da “segunda Guerra de Trinta Anos”, com uma ferocidade vinte vezes maior. Mesmo se admitirmos que a saída por San Francisco foi superior que aquela negociada em Paris, cabe também concluir que o pós-Segunda Guerra não nos trouxe a paz e a estabilidades prometidas pelos conciliábulos de Teerã, Dumbarton Oaks, Ialta ou Potsdam. A Guerra Fria emergiu menos de dois anos depois de encerrado o último grande conflito global de nossos tempos, e trouxe consigo momentos de tensão e algumas caminhadas to the brink, à beira do precipício (talvez menos Berlim, e mais Cuba). 
Em Paris, os principais estadistas “vencedores” que conduziram a Grande Guerra estavam na mesa de negociações, mas os resultados não foram muito brilhantes, ao contrário: criaram as sementes da retomada. Ao final da Segunda Guerra Mundial, uma vez derrotados os agressores nazifascistas, os grandes estadistas, ou tinham desaparecido (Roosevelt), ou tinham sido alijados do poder (Churchill e, mais adiante, De Gaulle); sobrou apenas Stalin, para construir seu poderoso “novo espaço vital” em toda a Europa central e oriental; mais adiante Mao substituiria Chiang Kaichek no comando do grande aliado na frente oriental contra o militarismo japonês, e a China passou para o outro lado. 
Obviamente, a panóplia nuclear fez com que a guerra entre novos inimigos permanecesse “fria”, com poucas exceções regionais que continuaram nas “proxy wars” durante muito tempo: Vietnã, Oriente Médio, várias partes da África e da Ásia. Instalou-se aquilo que Raymond Aron tão acertadamente constatou ainda antes que a União Soviética lograsse a paridade nuclear: “paz impossível, guerra improvável”. Infelizmente, o mundo perdeu uma oportunidade de construir a paz e a instabilidade tão almejadas por duas gerações de combatentes e povos inteiros desde 1914: centenas de bilhões de dólares foram gastos nos equipamentos e forças militares – e na inteligência, na subversão e sabotagem – em lugar de serem devotados para eliminar miséria e pobreza ao redor do mundo. 
O mundo já está tendo a sua “terceira guerra mundial”, atualmente, e mesmo que instituições e arranjos diplomáticos não sejam inteiramente refeitos quanto em 1919 e 1945, o impacto geopolítico da presente “guerra” será tremendo, abrindo novas perspectivas para praticamente todos os países, alguns mais fortalecidos, outros relativamente paralisados, senão em declínio. Já tracei em outro texto – “Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19”; link; https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/consequencias-geopoliticas-da-pandemia.html – considerações sobre o final da guerra fria geopolítica e o ingresso numa guerra fria econômica que já parece ter pelo menos um vencedor, o mesmo que está sendo acusado – como o Império alemão na Grande Guerra – de ter sido o responsável pela atual guerra contra um inimigo invisível. 
Não é o caso de retomar aqui o debate, que empreenderei no momento oportuno; prefiro me concentrar sobre o nosso país. O que me parece, observando as coisas num cenário ainda indefinido, é que o Brasil está singularmente desprovido de quaisquer condições – materiais, recursos, inteligência, liderança – para não apenas conduzir um combate bem sucedido contra o inimigo omnipresente, como totalmente despreparado, pela ausência de lideranças efetivas, para levar adiante o trabalho de reconstrução do pós-guerra. Planos nas áreas da economia, da segurança e justiça, e até das “infraestruturas” de saúde, educação e ciência e tecnologia podem estar irremediavelmente comprometidos pela “falência” da direção, pelo menos a que se apresenta pateticamente ate aqui. Nas áreas da educação e das relações exteriores essa falência é visível, crescente e preocupante, mas a descoordenação que se manifesta nos escalões mais altos tornam duvidosos, ou irrisórios, quaisquer esforços para empreender, não apenas nacionalmente, mas globalmente, o imenso esforço de reconstrução do pós guerra que terá de vir de novas e responsáveis lideranças.
Aparentemente, já começamos derrotados desde o início, nos campos de batalha da presente guerra aberta pela pandemia, mas também no planejamento do pós-guerra. Pretendo dedicar minhas próximas reflexões sobre a natureza do duplo exercício que a nação precisaria fazer, agora e mais adiante, como forma de oferecer alguns elementos de orientação a mim mesmo, antes de mais nada, assim como a eventuais interlocutores nos diversos meios com os quais venho interagindo desde algum tempo. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de abril de 2020

Brasil: um país de sorte? - Paulo Roberto de Almeida

Brasil, um país de sorte?
Paulo Roberto de Almeida

O Brasil escapou do dilúvio de Noé (nem entrou naquele filme de Hollywood), escapou das sete pragas do Egito, ficou à margem das invasões bárbaras, não se meteu na guerra dos Trinta Anos, nem nos massacres religiosos na Europa central (teve, à verdade, a Inquisição que atingiu muito cristão novo por aqui), os corsários ingleses não fizeram muitos estragos em nossas costas, as guerras napoleônicas até lhe foram favoráveis, depois da Guerra do Paraguai nunca mais se meteu na vida dos vizinhos (bem, tem sempre aqueles idiotas que palpitam em eleições da região), nem chegou a participar da Grande Guerra (o pessoal embarcado chegou tarde, e morreu mesmo de gripe americana, vulgo espanhola), teve lá seus golpes e revoluções, mas com poucos mortos e feridos, participou moderadamente da Segunda Guerra Mundial (os americanos deram tudo, do fardamento à marmita), escapamos de atender ao convite dos mesmos americanos para mandar nossos recrutas para a Coreia ou Vietnã (enfim, andamos pela República Dominicana), o FHC recusou o convite de Bill Clinton para se incorporar ao Plano Colômbia, não fomos lá derrubar a ditadura do Maduro (como queria o EA, e seus amigos Pompeo e Bolton), enfim, estivemos poupados dos maiores terremotos e maremotos do mundo, explosões de centrais nucleares (mas temos lá nossas devastações de florestas e de barragens, inundações, os arrastões), mas não escapamos de sermos atingidos em cheio PELA MAIOR CALAMIDADE DE NOSSA HISTÓRIA.
Não, não estou me referindo à pandemia do Codiv-19.
Vocês sabem exatamente do que estou falando...


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de abril de 2020

"Obras" "publicadas" em 2020: praticamente todas virtuais - Paulo Roberto de Almeida

Ao completar minha lista de publicados deste ano – muito poucas "obras" –, verifiquei que a maior parte é feita de entrevistas; tem também uma apresentação feita em dezembro de 2019, mas que só foi divulgada este ano.
Parece que teremos um ano virtual...
Paulo Roberto de Almeida

TRABALHOS PUBLICADOS, 25
2020: Do n. 1.336 ao n. 1.xxx

Paulo Roberto de Almeida 
Atualizada em 11 de abril de 2020

1336. “Entrevista ao Livres sobre o conflito EUA-Irã”, Brasília, 7 janeiro 2020. Disponível no Livres (link: https://www.youtube.com/watch?v=ky2S90hbVds&feature=youtu.be); divulgado em 14/01/2020.

1337. “A trajetória do comunismo no Brasil”, Apresentação no IHG-DF, em 11/12/2019, sobre “O movimento comunista internacional e seu impacto no Brasil”, gravada em vídeo, em companhia de Hugo Studart (autor de livros sobre a guerrilha do Araguaia), de Gustavo Bezerra (autor: O Livro Negro do Comunismo no Brasil), e de meu livro: Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo: trajetória de duas parábolas da era contemporânea (Brasília: Edição de autor, 2019, 304 p.), disponível no YouTube (16 de jan. de 2020; link: https://youtu.be/LueQRy9yzxI; duração: 2h50mns). Apresentação em PP, em 24 slides, disponível na plataforma Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/337824903_O_Movimento_comunista_internacional_e_seu_impacto_no_Brasil;DOI: 10.13140/RG.2.2.15046.63047) e na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/41219238/O_Movimento_comunista_internacional_e_seu_impacto_no_Brasil_2019_). Relação de Originais n. 3545.

1338. “Entrevista sobre a diplomacia brasileira e as relações internacionais”, Brasília, 18 janeiro 2020, audiocast de 1h30. Divulgado como “Diplomacia à brasileira: uma análise de Tapa da Mão Invisível” no #SoundCloud (18/01/2020; link: https://soundcloud.com/tapa-da-mao-invisivel/episodio-066-diplomacia-a-brasileira-uma-analise); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/01/entrevista-sobre-diplomacia-brasileira.html). Relação de Originais n. 3567.

1339. “Crise no mundo. E o Brasil, como fica?”, Brasília, 10 março 2020, entrevista concedida ao jornalista Mano Ferreira, do Livres, sobre os temas das crises internacionais (Covid-19, petróleo), do baixo crescimento brasileiro e das relações Brasil-Estados Unidos, a propósito da visita de Bolsonaro a Trump, na Flórida. Transmitida no canal YouTube do Livres (10/03/2020; link: https://youtu.be/KxhuWasxKmk ; https://www.youtube.com/watch?v=KxhuWasxKmk&feature=youtu.be); reproduzido no blog Diplomatizzando (11/03/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/crise-no-mundo-e-o-brasil-como-fica.html). Relação de Originais n. 3593.


1341. “Governo persegue conselheiro do Livres”, Brasília, 6 abril 2020, entrevista gravada em vídeo com o jornalista Mano Ferreira do Livres, no You Tube, em companhia do deputado Marcelo Calero (link: https://www.youtube.com/watch?v=33XiJPIEmKs&feature=youtu.be).

1342. “Entrevista com o diplomata Paulo Roberto de Almeida”, Gazeta do Povo, jornalista Gustavo Nogy (11/04/2020; link: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/gustavo-nogy/entrevista-com-o-diplomata-paulo-roberto-de-almeida/). Divulgada no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/a-diplomacia-brasileira-em-tempos-de.html) e na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/42705673/A_diplomacia_brasileira_em_tempos_de_olavo-bolsonarismo_um_ponto_fora_da_curva_-_Entrevista_com_o_diplomata_Paulo_Roberto_de_Almeida_2020_). Relação de originais n. 3629 (“A diplomacia brasileira em tempos de olavo-bolsonarismo: um ponto fora da curva”). 


sábado, 11 de abril de 2020

What Did India Learn from the Greeks? - James Romm reviews a book by Richard Stoneman (NYRbooks)

What Did India Learn from the Greeks?

The Battle of the Hydaspes between the troops of Alexander the Great and the Indian king Porus
Science History Images/AlamyThe Battle of the Hydaspes, in what is now Punjab, between the troops of Alexander the Great and the Indian king Porus, 326 BC; illustration from the Faits du Grand Alexandre, circa 1470
“They Came, They Saw, but India Conquered,” wrote the historian A.K. Narain in 1957, characterizing the effects of the Greek penetration into “India” (the ancient name included what is today Pakistan and sometimes easternmost Afghanistan). He referred not only to Alexander the Great’s invasion of the Indus Valley in 327 BC—the first large-scale encounter between Greek and Indic civilizations—but also to the era that followed, when Hellenic rump kingdoms ruled by strongmen rose and fell in northwest India and Bactria, its neighbor to the west. The presence in the region of these Hellenic states, and their occasional forays further east, created a zone of Greco-Indian contact, influence, and exchange, as well as occasional conflict, stretching from Central Asia to the Ganges.
Narain was one of the first Indian historians to write about the “Indo-Greeks,” the term he applied to the Hellenes who campaigned or settled in this part of the world. As revealed by his insistence that “India conquered” them, the inquiry into this age of contact has been complicated by issues of race, religion, nationalism, and, for Indian writers especially, the parallels (perceived or real) between Greek invaders and British imperialists. “The noun Indo-Greek…carries within it a restless tension,” the Hellenist Frank Holt recently commented in an address to a New Delhi academic conference. “That little hyphen stretches between Indo and Greek like the tightened rope in a tug-of-war between two great civilizations. It invites us to join a team at either end…to pull for a winning side.” Partisans in this struggle have sometimes taken wildly extreme positions or have reduced the discussion of Indo-Greek contact to polemical questions of which culture has first claim on a given advance or in which direction influences flowed.
Richard Stoneman, an independent scholar and editor who has made a career-long study of Alexander the Great and the legends about him, takes a sensibly moderate approach to such questions in The Greek Experience of India, when he even attempts to answer them. His book contains numerous “who influenced whom” case studies but casts a much wider net, wider even than its title indicates, for he is also interested in the Indian experience of the Greeks, which is much harder to recover. Drawing on a vast array of research, he has compiled a magisterial overview of “the Indo-Greek era,” beginning with Alexander’s crossing of the Hindu Kush mountain range in 327 BC and ending with the severing of contact about three centuries later. His goal is admirably broad-minded: to “peel back these curtains” of distortion that stood between India…
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A diplomacia brasileira em tempos de olavo-bolsonarismo: um ponto fora da curva: Entrevista com o diplomata Paulo Roberto de Almeida - Gustavo Nogy (Gazeta do Povo)

[A diplomacia brasileira em tempos de olavo-bolsonarismo: um ponto fora da curva]
Entrevista com o diplomata Paulo Roberto de Almeida

Gazeta do Povo, 11/04/2020


Por Gustavo Nogy
·        [11/04/2020] [15:44]

Sede das Nações Unidas em Nova Iorque Foto ONU Manuel Elias

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, historiador das relações internacionais e estudioso da economia política, além de escritor e organizador de diversos livros. Graduou-se em Ciências Sociais, fez Mestrado em Planejamento Econômico na Universidade de Antuérpia e Doutorado em Ciências Sociais na Université Libre de Bruxelles. Publicou dezenas de livros, muitos dos quais podem ser encontrados para compra nas livrarias virtuais ou baixados gratuitamente de seu blog pessoal, Diplomatizzando.

1 Primeiro, as apresentações: poderia falar sobre sua trajetória intelectual e no Itamaraty?
Sem qualquer intenção de parecer diferente ou melhor do que os colegas, devo começar por dizer que minha postura e minha trajetória na carreira diplomática são, efetivamente, originais, talvez únicas, no Itamaraty, e cabe, portanto, começar pela formação e perfil de vida para ressaltar minha distinção vis-à-vis o diplomata mediano. Venho de uma família muito modesta, de pais sem formação primária completa, sem livros no lar de origem, mas beneficiado por uma biblioteca pública infantil nos arredores da casa, o que determinou de forma decisiva minha trajetória intelectual pelo resto da vida. Politizado precocemente em função do golpe militar de 1964, passei a cumprir uma trajetória típica de jovem de esquerda de meados dos anos 1960: protestos contra o governo militar, estudos de ciências sociais e alinhamento com os movimentos de resistência à ditadura, antes de decidir sair do país por absoluta inocuidade daquela forma de oposição.
Os sete anos de autoexílio na Europa, entre 1970 e 1977, confirmaram a vocação intelectual no trabalho acadêmico, com um grande conhecimento e experiência adquiridos em viagens, leituras e atenta observação do mundo real, praticamente todos os socialismos realmente existentes, e capitalismos centrais e periféricos. A volta ao Brasil se deu pela vertente acadêmica, mas rapidamente alterada pelo ingresso na diplomacia, mais pela curiosidade da profissão do que por uma verdadeira vocação de ser um servidor do Estado. O que posso dizer é que nunca cultivei e sequer me dobrei àquilo que diplomatas seniores não cansam de repetir como sendo os dois princípios básicos da diplomacia, em similitude com o que ocorre nas FFAA: hierarquia e disciplina. Nunca deixei de exercer minha própria capacidade de arbítrio individual, como de seguir meu próprio julgamento – sempre embasado em sério estudo das questões – na avaliação de políticas públicas e nas posturas assumidas pelo Brasil no plano internacional. Com isso, posso ter confrontado mais de um chefe ocasional, ao valorizar mais a autoridade do argumento do que o argumento da autoridade, talvez em função de minha predisposição a me guiar bem mais pelo ceticismo sadio do que pela adesão irrestrita a quaisquer dogmas de uma Casa estilo Vaticano.
Minha carreira se desenvolveu normalmente, sem que eu jamais tivesse de pedir favores aos superiores para promoção, remoção ou cargos: apenas dedicação ao trabalho. Meu primeiro “memorandum” lido na Casa foi a respeito da escolha de Karol Wojtilla como novo papa, e o papel da Igreja na Polônia e no socialismo em geral. Depois tive alguns livros e ensaios parcialmente censurados pelas chefias, o que fez com que, a partir de conselheiro, eu decidisse não mais submeter meus textos para autorização institucional antes de publicar. Mas evitei muitas críticas à política externa oficial, até que os companheiros me vetassem para dirigir o mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco, logo no início de 2003, o que me levou a permanecer toda a longa duração do regime lulopetista sem qualquer cargo na Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Aproveitei os anos de lazer involuntário passados na biblioteca do Itamaraty para escrever livros, fazer pesquisas, dedicar-me a meus afazeres intelectuais nunca interrompidos: tenho de ser grato aos meus algozes pelo limbo.
Só fui chamado a trabalhar – não na SERE, mas no IPRI – com o impeachment de 2016, e tive dois anos de intensas atividades e publicações claramente refletidas em meu relatório de gestão (feito ao final de 2018, pois já antecipava o desfecho, tendo observado o que se passou na campanha); ele pode ser lido nesta postagem da plataforma Research Gate. Uma breve síntese sobre minha trajetória de carreira desde 2003 figura em duas cronologias que ofereci no blog Diplomatizzando (aqui e aqui). Creio que isto já atende ao pedido de informações sobre minha trajetória no Itamaraty.

2 O Brasil passa por um momento curioso: um governo com plataforma econômica liberal que detesta o liberalismo. Como o senhor, que é estudioso de economia e leitor atento da obra de Roberto Campos – além de organizador de livros sobre ele – vê o atual governo?
O atual governo é um animal estranho, uma espécie de ornitorrinco brasileiro, só surgido em virtude das circunstâncias excepcionais criadas pela trajetória julgada gloriosa do lulopetismo – crescimento econômico, distribuição social, projeção internacional etc. –, mas, a partir de certo momento (2013 em diante), avaliado como corrupto e incompetente pela classe-média, que é quem determina grandes mudanças políticas e eleitorais no país (como aliás em quaisquer outros países). A atmosfera otimista cercando o partido e seus principais protagonistas veio abaixo sob os golpes combinados da recessão econômica e da luta contra a gigantesca corrupção empreendida por eles. A partir daí, infelizmente, tivemos a trajetória de ascensão de uma direita conservadora, mas sem qualquer doutrina, sem ideias claras de governança, movimento lamentavelmente simbolizado por um dos piores representantes do chamado baixo-clero do sistema político brasileiro, um outcast do estamento militar, sem qualquer capacidade de governança, menos ainda de liderança.
O atual governo representa uma assemblage daquilo que emergiu na fase de “resistível ascensão” do nosso “Arturo Ui”, um personagem medíocre, mas que teve a agregação em torno de si de tudo o que possa haver de “bom, de mau e de feio” na política e na economia brasileira. A rejeição absoluta dos eleitores ao lulopetismo corrupto e inepto entregou a sociedade a uma outra coalizão de corruptos e ineptos – de certo modo também alucinados, pelas outras vertentes a ela agregados –, mas que conseguiu cooptar elementos razoáveis das elites, do estamento burocrático, dos meios políticos. O governo é esse animal estranho, que pode ter os seus burocratas competentes, certos técnicos de nível, nos quais se incluem alguns elementos militares, mas também representantes alucinados desse amálgama que se convencionou chamar de olavo-bolsonarismo, mas que não corresponde a nenhum pensamento claramente formulado, apenas aos instintos mais primitivos que possam existir.
Eu não considero sequer que o governo tenha uma “plataforma econômica liberal”, mas “que detesta o liberalismo”, pois este aspecto foi apenas um subterfúgio ocasional usado pelo capitão – orientado por políticos hábeis – para conquistar poderosos apoios – e que serve de resguardo para ingênuos ou oportunistas. O fato é que o governo, pela absoluta falta de concepções sobre qualquer coisa do dirigente máximo – a não ser o instinto primitivo do capitão, impulsionado por filhos ambiciosos –, é uma nau sem rumo, que ora voga para algumas reformas possíveis, impulsionadas pela ala dita “racional”, mas que bem mais frequentemente tende a singrar sem rumo num mar encapelado. Não se poderá esperar nada de muito diferente nos meses, e talvez anos, à frente, infelizmente para o país desgovernado.

3 Aproveitando que falamos de Roberto Campos, uma pergunta necessária: existe uma tradição consistente de ideias liberais no país? Quem são, o que fizeram, nossos grandes liberais? E em que eles são diferentes daqueles que se pretendem anunciadores de novidades velhas? Porque Campos e Merquior, por exemplo, já liam e divulgavam Mises e Hayek há tempos...
Não creio que exista, no Brasil, uma “tradição liberal”, pois isso significaria a existência de uma corrente, uma escola, uma tendência, movimentos, partidos agregados em torno de doutrinas, ideias, propostas liberais, e não consigo detectar nada semelhante em toda a nossa história. O que temos, de tempos em tempos, são expoentes que não sei se poderiam ser chamados de liberais, pois sua formação, sua atuação social, sua influência pública são no mais das vezes ocasionais, intercaladas, aos repentes de certos momentos ou de algumas lideranças identificadas com essas ideias, mas que agem mais por pragmatismo, ou em reação a trajetórias problemáticas, que adotam “algumas” (não todas) soluções mais ou menos liberais em função de necessidades urgentes ou de ensaios de curta duração nessa linha. Se juntássemos todos os liberais do Brasil veríamos que geralmente foram trabalhadores do mundo acadêmico, pensadores independentes, absolutamente únicos em seus respectivos meios acadêmicos ou governamentais. O nacionalismo instintivo, o protecionismo recorrente e o patrimonialismo explícito e implícito têm sido as características mais frequentes de nossa governança e do “pensamento” acadêmico.
É uma ironia da nossa trajetória nacional que as propostas consistentemente liberais tenham sido recorrentemente derrotadas pelas coalizões de escravistas, de industriais liztianos e por militares nacionalistas ao extremo. É também uma ironia que as poucas fases de ação mais ou menos tendentes a um horizonte liberal tenham sido feitas em reação aos desastres criados pela trajetória errática da maior parte dos governantes. É outra ironia o fato de que os poucos liberais que tenhamos tido em nossa história tenham atuado a contrario sensu do que se poderia esperar – e permito-me aqui citar alguns exemplos históricos.
Bonifácio construindo um governo forte para evitar o fantasma da desagregação nacional; Mauá tendo de fazer apelo a concessões do Estado para sustentar seus negócios privados; Campos Salles e Murtinho tendo de aumentar a proteção para resolver urgentes problemas fiscais e de endividamento; Oswaldo Aranha condescendendo com o autoritarismo de Vargas na falta de qualquer alternativa de governança; Gudin tentando colaborar com políticos antivarguistas para impulsionar políticas que nenhum deles, de fato, queria defender; Otavio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos construindo as bases do Estado todo-poderoso ao pretender reformar o Brasil e eliminar todas as mazelas existentes; Collor (um despreparado) tentando abrir o Brasil a golpes de martelo; FHC (que não era liberal) tendo de compor com a direita reacionária, pois a esquerda sectária recusou qualquer proposta reformista socialdemocrata; e agora um inepto, um destrambelhado, um alucinado capitão sabotando o trabalho dos poucos tecnocratas liberais existentes no seu governo.
É também evidente que o liberalismo não se sustentará, no Brasil, apenas pelo movimento das ideias, pelo número de professores (ou até políticos) que citam Mises e Hayek, ou quaisquer outros doutrinários liberais. Se o liberalismo não possuir uma conexão firme com a governança prática, com o oferecimento de soluções aos problemas reais do Brasil, com vida dos cidadãos, ele não terá muita chance de prosperar no Brasil.

4 Apesar de todo o justificado pesar com a condução da política externa no atual governo, o PT não era lá flor que se cheirasse no cenário das relações internacionais. Tinha, digamos, amigos bastante suspeitos. Como o senhor analisa aquele período, agora em perspectiva?
Creio poder dizer que sou mestre nesse tipo de análise, e talvez seja por isso que fui rejeitado pelo lulopetismo em geral, e pelo lulopetismo diplomático em especial. Muitos anos antes que se começasse a imaginar que os petistas pudessem chegar ao poder – embora todos os “progressistas” no Brasil, como entre os italianos nos tempos do PCI eurocomunista, desejassem a chegada da esquerda ao governo, pela suposta mensagem ética, contra a politicalha corrupta –, eu já escrevia sobre partidos políticos e política externa, e já identificava no PT um típico partido esquerdista latino-americano, com seus cacoetes e equívocos econômicos e diplomáticos. Pior: como antigo “aprendiz” dos movimentos de resistência à ditadura, sabia do que eram feitos os antigos guerrilheiros que se reciclaram na luta política e que se tornaram os “neobolcheviques” que passaram a controlar o partido, ao lado dos sindicalistas mafiosos, na irresistível ascensão do partido ao poder. Sabia que o apoio castrista ao partido desde o início, a existência de aparelhos clandestinos dentro do partido, nos levaria a um outro tipo de Nomenklatura, a uma cleptocracia improvisada, e desorganizada, mas gramscianamente capaz de controlar os “aparelhos do Estado”, e assim monopolizar o poder durante bastante tempo (e quase o conseguiram, não fossem por esses acidentes de percurso que sempre ocorrem, delatores e incompetentes que atrapalham).
Fui isolado desde o início, pois os companheiros – inclusive dentro do Itamaraty – sabiam disso, o que eu poderia fazer para desacreditá-los, por isso me colocaram no limbo. Foi bom para escrever, mas minha carreira ficou irremediavelmente destruída; não que isso me causasse qualquer depressão, mas fiquei isolado no meu blog, o quilombo de resistência intelectual de onde eu disparava petardos contra a política externa oficial. Resumi o essencial de minhas críticas no livro Nunca Antes na Diplomacia (2014), depois complementado pelo Contra a Corrente (2019), onde estão minhas análises mais consistentes sobre o lulopetismo diplomático. A editora quis fazer uma segunda edição do Nunca Antes, a que me opus, por achar que agora, sim, chegamos a um “nunca antes” jamais ultrapassado em nossa história diplomática, por razões que não posso expor detidamente neste espaço. Caberia, talvez, um novo livro, sobre os desvios de governança e de política externa desde o início do século.
Se me permito uma simples imagem gráfica sobre o que significa o “antigo regime” lulopetista comparativamente ao “novo regime” bolsonarista, em matéria de política externa e de diplomacia, poderíamos dizer o seguinte: partindo de uma dessas “pizzas” de economistas, que sinalizam o peso relativo das diferentes porções de um todo (o “bolo” completo), pode-se dizer que na pizza diplomática do lulopetismo diplomático apenas uma, ou no máximo duas fatias correspondiam às ações “cubano-bolivarianas” do assessor presidência da área e seus aliados no partido e na diplomacia. Todo o resto era puro Itamaraty: multilateralismo, adesão ao Direito Internacional, nacionalismo grudado na pele, regionalismo e integracionismo, desenvolvimentismo cepaliano ou unctadiano, terceiro-mundismo onusiano, o tradicional antiamericanismo moderado, o progressismo nos temas politicamente corretos e o novo ambientalismo, que emergiu progressivamente, após o desenvolvimentismo exacerbado de sempre. O que temos agora, na EA – a Era dos Absurdos –, é um horrível molho olavista que se espalha e contamina toda a pizza, mesmo se não consegue impregnar a “massa” da diplomacia profissional, pois falhou em conquistar a adesão de pessoas sensatas, dentro ou fora do Itamaraty, salvo, obviamente, os fanáticos já devidamente identificados com a mais alucinante trajetória de nossa história diplomática.

5 O que pensa a respeito da diplomacia brasileira hoje, sob a influência de Olavo de Carvalho; o voluntarismo dos filhos presidenciais; a estreita (subserviente?) relação com os EUA; o aceno a conflitos que não são nossos, como a questão de Israel; e, em especial, o recente desconforto com a China?
Cabe começar por uma precisão: NÃO existe, atualmente, NENHUMA diplomacia digna desse nome, pelo simples fato de que não tivemos, nunca tivemos, desde o início e até agora, uma EXPOSIÇÃO clara, explícita, do que seria essa diplomacia, ou do que deve ser uma POLÍTICA EXTERNA para o Brasil. Isto por algumas razões muito simples: está claro que o capitão é um inepto total para formular e apresentar qualquer ideia coerente a esse respeito; seu guru expatriado também é um completo inepto nessas questões; o conselheiro internacional do PSL, guindado à condição de assessor presidencial, é um mero aprendiz, um fanático olavista, totalmente despreparado em questões diplomáticas. O único indivíduo que poderia formular algumas ideias em política externa e diplomacia, o chanceler acidental, é um completo boneco nas mãos (e nos pés) da Bolsofamília e, sobretudo, do Rasputin da Virgínia. Ele se revelou incapaz de expressar qualquer postura coerente na sua área, se contentando apenas em agradar e obedecer a seus amos, além de apresentar alguns traços pessoais de desequilíbrio emocional merecedores de registro. Ou seja, estamos atuando no vácuo absoluto, a não ser pelos poucos instintos primitivos dos antimarxistas no poder e por sua adesão sabuja e incompreensível (já que contrária aos seus próprios interesses no comando de um país com postura própria nas relações internacionais), não aos Estados Unidos em geral, mas à figura do Trump em particular, ademais dos arautos da nova direita que ascende em alguns países, os poucos parceiros da diplomacia atual.
Todas as escolhas, opções e orientações determinadas por esse bando de alucinados foram invariavelmente equivocadas e prejudiciais aos interesses nacionais, tanto é que foram sabotadas, contidas ou revertidas e amenizadas pelos indivíduos racionais do governo e pela pressão dos lobbies econômicos interessados mais em defender seus negócios do que as políticas ou doutrinas consistentes com aqueles objetivos. O fato é que vivemos, no Brasil dos Bolsonaros, um apagão da inteligência e uma destruição de qualquer base racional para uma política externa razoável, como já tive a oportunidade de expor em meu livro Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty(2019, livremente disponível no blog).
Mas esse livro ainda é uma crítica “intelectual” da esquizofrenia diplomática, e não uma exposição pragmática dos problemas por ela acarretados, o que talvez eu faça numa obra futura. Em síntese, existe, sim, uma influência nefasta do sofista expatriado sobre o que se poderia chamar de “diplomacia olavo-bolsonarista”, mas cabe registrar, mais uma vez, que não existe nenhuma coerência nos seus fundamentos e diretrizes de atuação, pois ninguém ali está em condições de fazê-lo, e o chanceler acidental treme de medo de expor qualquer ideia própria. Daí que esses “incidentes” criados erraticamente pelos bolsonaristas mais radicais sejam apenas a expressão da completa indigência de raciocínio desses elementos, pois não se lhes pode imputar nenhum conhecimento ou inteligência a respeito de questões internacionais.
Resumindo: não existe NENHUMA política externa atualmente no Brasil, e se formos admitir que existe alguma diplomacia – o que também é algo duvidoso, embora o Itamaraty não pode deixar de funcionar –, ela simplesmente representa um ponto fora da curva, de fato, algo JAMAIS visto em toda a nossa história bissecular. Vai ficar no registro histórico como o período mais sombrio da diplomacia profissional e o ponto mais baixo da credibilidade do Brasil no exterior, atualmente já rebaixada de forma indigna em função dos néscios, loucos e submissos que temos atuando em torno de ambas no momento.

6 Por fim: o senhor tem sofrido represálias do ministro Ernesto Araújo? De alguma maneira, sua atuação crítica lhe tem trazido prejuízo ou complicações?
Como, por espírito e vocação, eu sou o único “contrarianista de plantão” no Itamaraty – e isso desde sempre, daí a longa travessia do deserto que me foi imposta pelos lulopetistas –, era inevitável que eu fosse sancionado pela tribo de alucinados que se apossou do controle do Itamaraty. Registro que o chanceler acidental se situa apenas em terceiro ou quarto escalão da cadeia decisória naquele ministério, pois todas as ordens vêm de fora, e ele só requer submissão (pois sabe que nunca terá adesão) aos novos déspotas temporários. Eu já deveria ter sido expurgado desde o primeiro dia do governo, e só não o fizeram porque não tinham um substituto para o cargo; fui, contudo, proibido, desde o dia 2/01/2019, de empreender qualquer atividade, até a aprovação de nova chefia. Sempre soube que seria exonerado. Alguns colegas me diziam, em 2018, para requerer um posto no exterior, como fizeram vários outros, prevendo a tempestade. Não quis fazê-lo, pois nunca fui de pedir nada a ninguém. Na verdade, gosto do mundo das ideias e das leituras, de reflexão e de produção intelectual. Era o que pretendia fazer, até o chanceler ordenar “retaliação maciça”.
Com efeito, o chanceler e o seu chefe de gabinete deram ordens à administração para seguir escrupulosamente minha “catraca eletrônica”. Sem qualquer aviso prévio ou demanda de compensação, publicaram no Boletim de Serviço “faltas injustificadas” e “atrasos e saídas antecipadas”, para a partir daí passar a ordenar descontos punitivos no contracheque, assim como “reposição ao Erário” por “pagamentos a maior” por “horas não trabalhadas”. A ironia de toda essa história é que estou lotado, mas apenas formalmente, na Divisão do Arquivo – respondendo a um primeiro secretário, a quem tenho de pedir autorização para sair de férias ou qualquer outra providência administrativa; sem qualquer função precisa, as “horas não trabalhadas” seriam para ficar olhando as paredes oito horas por dia, cinco dias por semana.
Por todas essas razões, meu caso pode ser assimilado ao de K, no Processo de Franz Kafka, como sugeriu o embaixador Rubens Ricupero: deu o título ao meu artigo “Kafka no Itamaraty”. Como os descontos já foram feitos, e outros se prenunciam – sendo que a intenção real, do chanceler acidental e do chefe de gabinete, seria um processo administrativo para demissão sumária por “inassiduidade habitual” –, meu único recurso, na presente fase, foi o de abrir uma ação na Justiça para obstar às manobras intimidatórias e punitivas da dupla. Parafraseando o camponês da Prússia, acredito que ainda existam juízes em Brasília.


Gustavo Nogy
**Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.