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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Posturas erráticas e irracionais do governo, grandes prejuízos para o Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Posturas erráticas e irracionais do governo, grandes prejuízos para o Brasil

Paulo Roberto de Almeida
[ObjetivoInformaçãofinalidadeavaliação sobre tomada de posição]

O governo atual foi eleito de maneira até entusiástica pelos eleitores, com base numa plataforma supostamente liberal, de luta inflexível contra a corrupção e de continuidade nos ajustes econômicos necessários para superar a mais grave crise econômica – recessão, déficits e desemprego em níveis elevados – de toda a história do país, construída pelo último governo petista e em fase de reversão no anterior governo Temer. Ele teve um início relativamente promissor, a despeito de sinais contraditórios emitidos desde a campanha eleitoral, em 2018, dentre os quais, os seguintes parece apresentar relevância do ponto de vista da diplomacia e da política externa: 
(1)      aparente hostilidade à República Popular da China e preferência por Taiwan, por motivos claramente ideológicos e anticomunistas, sem consistência econômica; 
(2)      aproximação ao governo Netanyahu em Israel, em diversos temas do cenário local, e promessa de mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, por motivos também ideológicos, vinculados à base evangélica do candidato e adoção de postura anti-islâmica e anti-Palestina, mas ignara quanto a aspectos de caráter constitucional, diplomático e econômico envolvidos nessas questões; 
(3)      adesão explícita, como diretriz diplomática, não exatamente aos Estados Unidos, mas ao governo Trump; o que rompeu com a postura de autonomia na política externa e na diplomacia, mantida, com altos e baixos, desde o Império; 
(4)      uma agenda negacionista nas discussões sobre aquecimento global e supostamente desenvolvimentista no que respeita recursos naturais e especificamente a Amazônia e as reservas indígenas, o que retrocederia políticas nacionais, com impacto internacional, longamente amadurecidas ao longo de décadas, em compasso com orientações da opinião pública mundial em temas de meio ambiente; anúncio de renúncia a acolher a 25ª Conferência das Partes sobre aquecimento global;
(5)      um nacionalismo de fachada ainda no terreno ambiental, com crítica não só a ONGs estrangeiras atuando nessa área no Brasil, ao funcionamento do Fundo Amazônia (que resultou na paralisia das contribuições de Noruega e Alemanha a programas de pesquisa), mas contra a própria agenda internacional relativa a mudanças climáticas, e anúncio da retirada do Brasil do Acordo de Paris;
(6)       declarações altissonantes de luta contra a corrupção; quando sinais claros de comprometimento da família com negócios escusos já tinham sido revelados antes e durante a campanha, com repercussões negativas do ponto de vista da adesão do Brasil à OCDE, que tem um grupo de combate à lavagem de dinheiro no plano internacional, e da cooperação entre os países nesse terreno; a renúncia unilateral ao tratamento especial aos países em desenvolvimento foi gratuita e sem contrapartida; 
(7)      e um nacionalismo e estatismo entranhados no candidato – em total contradição com o espírito privatista e liberal do principal conselheiro econômico; com repercussão sobre a agenda externa de abertura econômica e liberalização comercial. 

Todas essas contradições, potencialmente problemáticas no exercício da nova gestão e apontadas desde o início por observadores mais atentos, foram deixadas de lado no decorrer da campanha e na inauguração da administração, em janeiro de 2019. Os problemas daí decorrentes começaram desde o primeiro dia, quando uma sinalização do chanceler e do próprio presidente em favor da instalação de uma base americana no território brasileiro foi imediatamente rechaçada e descartada pelos ministros militares do governo. Desde o início se registrou o desligamento do Brasil do Pacto Global das Migrações, um instrumento positivo do ponto de vista da grande emigração brasileira em diversos continentes, o que foi devido a uma adesão inconsequente e ideológica à agenda imigratória do governo Trump.
O mesmo chanceler confirmou, desde os primeiros momentos, as piores previsões quanto a essa íntima associação com o governo Trump, engajado desde o seu começo em causas ideológicas que não tinham nada a ver com os interesses nacionais do Brasil na condução de suas relações exteriores e na boa promoção de seus intercâmbios econômicos: 
(8)      hostilização da China, o maior parceiro comercial, podendo se refletir nas grandes exportações de commodities, essenciais para preservar o grande superávit bilateral;
(9)      minimização dos prejuízos incorridos com as salvaguardas abusivas (e ilegais) do governo Trump contra as exportações de aço e alumínio e adesão à agenda dos EUA no que respeita eventuais reformas na OMC, sobretudo no plano institucional, com destaque para a paralisia do órgão de solução de controvérsias, o que é grave; 
(10)   aceitação do tratamento agressivo em direção da população brasileira imigrante nos Estados Unidos com status indefinido, e que se concretizou na expulsão massiva de vários desses residentes ilegais com cooperação indevida dos consulados brasileiros no fornecimento de papéis para a expatriação; 
(11)   adesão ao projeto largamente eleitoreiro de Trump no sentido de derrubar o governo chavista, o que obrigou a “ala militar” do Planalto a se fazer presente em diferentes episódios dessa questão; a evolução do tema não foi positiva para essa agenda muito agressiva, mas culminou com a retirada de todo o pessoal diplomático e consular de todas as representações na Venezuela, sem ruptura de relações, algo absolutamente inédito na tradição do Brasil e mesmo nos anais da diplomacia mundial;
(12)   desprezo pelas instituições multilaterais, em nome de um suposto (e em grande medida fantasmagórico) globalismo, o que levou o Brasil ao isolamento mundial.

Outras medidas do chanceler, ou posturas do próprio presidente, redundaram em outros grandes prejuízos não só para a imagem do Brasil na região e no mundo, como para eventuais processos em curso de interação econômica global do Brasil, sua inserção em novos foros negociadores ou para relações bilaterais na região;
(13)   ofensas gratuitas contra o candidato peronista à presidência argentina, o que rompe um princípio constitucional – o da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados – mas também com a simples cortesia diplomática, o que já tinha ocorrido em ocasiões anteriores em relação a antigos ditadores no Chile e no Paraguai, e em outra tentativa de intervenção nas eleições presidenciais uruguaias; 
(14)   o próprio chanceler recrudesceu nas ofensas ao candidato peronista, assim como a outras personalidades políticas na região, em nome de um outro fantasmagórico inimigo, o Foro de São Paulo, com repercussões negativas do envolvimento direto do chanceler na política interna na Venezuela, da Bolívia e outros países; 
(15)   tanto o chanceler quanto o ministro da Economia mantiveram uma postura hostil e mesmo confrontacionista em relação às posições da Argentina em relação ao tema do Mercosul, o que inviabilizou qualquer projeto de reforma do bloco no futuro previsível, assim como negociações comerciais consensuais com novos parceiros;
(16)   ofensas pessoais a líderes europeus, assim como a postura agressiva do presidente e do chanceler nas questões ambientais e da Amazônia inviabilizaram por completo a possibilidade de se colocar em vigor o acordo Mercosul-União Europeia, talvez o maior desastre de um dos grandes “sucessos” apresentados pelo governo;
(17)   frustração idêntica na questão do ingresso brasileiro na OCDE, não apenas em virtude da postura ambígua dos EUA, como também da sabotagem presidência no plano interno na questão do COAF, instrumento fundamental para a cooperação em matéria de combate à lavagem de dinheiro e da convenção anticorrupção da OCDE;
(18)   postura agressiva da delegação brasileira em todos os temas relativos a direitos humanos e agenda de minorias, mas sobretudo direitos da mulher, o que rendeu críticas praticamente universais da comunidade diplomática internacional;
(19)   deterioração completa das possibilidades de diálogo e concertação na região, com a eliminação de antigos esquemas de cooperação – inclusive na área militar –, o que deixa a América do Sul sem qualquer estrutura política de interação, num momento de especial preocupação com respeito à disseminação da pandemia na região.

Existem muitos outros temas nos quais as políticas erráticas e contraditórias do governo provocam prejuízos concretos ao Brasil, em especial nas áreas ambiental, de relações exteriores e agora relativamente ao tratamento das medidas contra a pandemia, mas três deles são especialmente relevantes para os negócios e os investimentos no Brasil, com um potencial de prejuízos de enorme dimensão na balança comercial e nos investimentos: 
(20)   a contínua hostilização da China pelos membros da família e pelo próprio chanceler, que chegou a acusar o país de ter introduzido um “comunavirus” para prejudicar os países ocidentais e conquistar a hegemonia mundial, o que é uma alucinação total; o mesmo se aplica ao caso do 5G, o que pode representar atraso no campo das TICs e retaliação da China em diversos campos dos intercâmbios bilaterais, não apenas no comércio; esse é muito possivelmente o de maior impacto negativo para Brasil; 
(21)   a postura ambiental desastrosa reiterada pelo presidente e pelo ministro da área pode prejudicar enormemente exportações do agronegócio brasileiro, em bilhões de US$; 
(22)   no caso da pandemia, o tratamento vergonhoso registrado nas posturas do presidente e das autoridades do setor levou à denúncia do presidente no âmbito do TPI; mesmo sem abertura de processo formal nesse foro, trata-se de fato negativo para a imagem do Brasil no mundo, com potencial para cessação completa dos investimentos estrangeiros, o que já era o caso no tocante ao tratamento igualmente desastroso das queimadas na Amazônia e das políticas relativas às populações indígenas, item igualmente inscrito nas denúncias apresentadas ao TPI.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3724, 26 de julho de 2020

terça-feira, 23 de junho de 2020

Análise: A declinante reputação do Brasil - Hussein Kalout (OESP)

Acho que "declinante" é muito otimista: a imagem já caiu um profundo precipício com grande estrondo.
Paulo Roberto de Almeida

Análise: A declinante reputação do Brasil
O que define a reputação de um país no mundo? Quais são as razões para o declínio da imagem do Brasil? Que responsabilidade o governo tem sobre tal degradação?
Hussein Kalout*, O Estado de S.Paulo
22 de junho de 2020 | 12h00

Já não é segredo que a imagem do Brasil na Europa, América LatinaEstados Unidos e África sofre de crescente desprestígio – não carece aqui mencionar China e Ásia. Os governistas e seus apoiadores mais fanáticos consideram injusto atribuir tal retrato à imagem do país. Culpam a mídia e os adversários políticos “desprovidos de patriotismo”. Toda essa balela se pronuncia sem que se ofereça um único argumento verossímil. 
Da destruição do meio ambiente à negligência no apropriado combate aos efeitos da pandemia da covid-19, passando pelos retrocessos no campo dos direitos fundamentais, a culpa parece ser de todos menos de quem possui a primazia de propor as soluções e para tal foi eleito.
Em mundo competitivo e comandado pela tecnologia, onde o acesso à informação é dinâmico e se dá em tempo real, já não é mais possível para tapar o sol com a peneira e adotar narrativas insustentáveis. Governos estrangeiros, fundos de investimentos, empresas privadas de mídia e organizações de direitos civis atualmente aquilatam a reputação de um país com base em quatro fatores fundamentais: 1) estabilidade política; 2) solidez econômica; 3) arcabouço das garantias e dos direitos; e 4) compromisso com a proteção do meio ambiente e da biodiversidade.
Lamentavelmente, o Brasil não vai bem em nenhuma dessas quatro vertentes. A degradação da imagem do país é, em termos simples, resultado da incapacidade do governo de administrar as crises surgidas – afora as que são geradas de forma endógena por
autoridades boquirrotas que têm mais compromisso com sua claque de extremistas do que com a nação.
No primeiro quesito, estabilidade política, bom, os fatos falam por si. À parte o imobilismo na relação com o Congresso Nacional, o governo não consegue se manter afastado de embates polêmicos com a classe política e com o Poder Judiciário. E isso para não trazer à luz a confrontação com a mídia e com a sociedade civil. A arte de bem governar passa longe do Palácio do Planalto. A confiança fica abalada quando o governo procura dotar minoria para bloquear potencial processo de impeachment, entregando os aneis e os dedos, em vez de buscar organizar maioria para fazer avançar seus projetos no parlamento.
No que diz respeito à robustez econômica, o governo vendeu a si expectativa exageradamente superior aos resultados coletados. O PIB de 2019 foi inferior ao de 2018. A reforma da previdência não catapultou as demais reformas. O capital externo e os investimentos esperados seguem à espreita. Investidores, empresas e governos estrangeiros sabem que o Poder Executivo está sem alavancagem no Congresso.
Estão cientes também de que quem mobilizou e salvou a agenda econômica foi Rodrigo Maia. As demais reformas, como a tributária e administrativa, ainda não fizeram a travessia do Ministério da Economia ao Congresso nacional. O que tramita em matéria de reforma nas duas casas legislativas são projetos dos próprios congressistas. Achar que taxa de juros baixa ou discurso de confiança bastam para que a economia deslanche não passa de autoilusão. O cenário econômico, já nebuloso antes da pandemia, agora ficou mais incerto.
No tocante às garantias e aos direitos, não fica bem para país que pretende se desenvolver e que tem o enorme desafio de reduzir as desigualdades lançar-se à inépcia de bradar nostalgicamente pelo AI-5 ou advogar o armamento da população. Quando a imprudência chega a esse nível, é a segurança jurídica que passa a estar ameaçada.
Afasta-se do cenário em que se casam desejo de investir e ambiente político estável – e, com isso, vai minguando a simpatia de países amigos. Ademais, quando também se tenta, por exemplo, manipular a autonomia universitária e minar a política de cotas por meio de gambiarras burocráticas, atinge-se a democracia e o Estado de Direito, que se tornam mais opacos.
No mundo atual, o compromisso de proteção do meio ambiente tornou-se medida inescapável da qualidade da governança de um país, fundamental para que os interesses nacionais se legitimem com o atestado de “boa governança”. Quando o objetivo declarado
passa a ser a mudança das regras do jogo e o afrouxamento da fiscalização (entenda-se: “passar a boiada”), não há narrativa capaz de suavizar seus efeitos deletérios. A política é feita de ações e impressões. Foi o Brasil que desistiu de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP25).
O país abriu mão de margem para influenciar as narrativas e o processo decisório na governança de tema ambiental central e, de quebra, delegou sua liderança a terceiros. Foi também o Brasil que ameaçou sair do Acordo de Paris. Quando malogrou a tentativa de macaquear Trump, o governo recuou, ficando com todo o passivo diplomático. Dito isso, ninguém é mais responsável pelo declínio acachapante da imagem do Brasil no mundo do que os atuais donos do poder.
Instituições de mídia como The Economist e Financial Times são insuspeitos da pecha de “comunista”. As publicações nas páginas desses meios são, no fundo, o reflexo daquilo que pensa o leitor empresário, financista e acadêmico. Em verdade, a imagem que se projeta hoje é a de que o Brasil está acéfalo e padece de governança que se possa considerar ao menos regular. Se o governo considera injusta a imagem que atribui ao país no mundo, é preciso então iniciar a mudança de rota. Seria bom começo trabalhar para restaurar a força dos quatro vetores que condicionam a reputação do país.
HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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Análise: A imagem de um Brasil desgovernado


segunda-feira, 20 de abril de 2020

A diplomacia brasileira na corda bamba, sem qualquer equilíbrio - Paulo Roberto de Almeida (Estado da Arte)

Meu mais recente trabalho publicado, com os agradecimentos ao Gustavo Morbach e Eduardo Wolf: 


3637. “A diplomacia brasileira na corda bamba, sem qualquer equilíbrio”, Brasília, 16 abril 2020, 17 p. Publicado no Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (20/04/2020; link: https://estadodaarte.estadao.com.br/diplomacia-brasileira-corda-bamba/).







A diplomacia brasileira na corda bamba, sem qualquer equilíbrio


por Paulo Roberto de Almeida
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A primeira pandemia do século XXI nasceu no extremo oriente e se disseminou rapidamente pelo mundo. Ao chegar ao Brasil, mergulhou os brasileiros numa “dor assim pungente”, sem que se saiba quantos poderão ser ceifados pelo primeiro cavaleiro do apocalipse, entre eles o autor da música-símbolo da redemocratização. Enquanto escrevo estas linhas, Aldir Blanc encontra-se na “corda bamba”: não sabemos ainda se ele vai cair, “feito um viaduto”, para retornar depois, um pouco “bêbado”, que é o que todos esperamos.
Como diplomata, muito antes da chegada do flagelo, eu já tinha detectado que a política externa brasileira tinha passado de um equilíbrio instável, depois de quase uma década e meia de lulopetismo diplomático, para uma situação próxima da embriaguez conceitual e da confusão operacional. Os traços principais da diplomacia companheira foram por mim analisados em duas obras: a primeira, ainda em seu “esplendor”, no livro Nunca antes na diplomacia (2014); a segunda, já na fase agônica, em Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2019). A diplomacia do olavo-bolsonarismo, por sua vez, foi por mim dissecada no segundo livro desse ano: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (livremente no blog Diplomatizzando).
Pela primeira vez numa história de quase dois séculos, o Itamaraty se viu confrontado a um chanceler que ousava proclamar – não se sabe bem se por dedução própria ou indução de terceiros – um antiglobalismo inédito para os padrões de um Serviço Exterior que vive em cenários globais, um antimultilateralismo bizarro para quem precisa trabalhar sobretudo no quadro de entidades intergovernamentais, um anticomercialismo ainda mais estranho para um país que tem uma participação mínima nos intercâmbios externos, além de um adesismo dos mais estranhos, não aos Estados Unidos como país, mas ao seu presidente especificamente. As surpresas foram se acumulando de forma tão surpreendente que aquele segundo livro de 2019 surgiu quase por acaso, ao sabor dos pronunciamentos e escritos do chanceler.
Não vou me deter no personagem, pois acredito que ele não é representativo de qualquer corrente de pensamento existente na Casa de Rio Branco, mas expressa ideias de terceiros, que não guardam nenhuma conexão com os temas e agendas do Itamaraty, hoje parcialmente paralisado pela falta absoluta de diretrizes gerais que deveriam guiar a política externa brasileira numa fase de grandes desafios que se apresentam ao país e ao mundo. O fato é que os diplomatas não dispõem, desde o início do atual governo até este momento, de nenhum documento-síntese expressando as diretrizes básicas da diplomacia brasileira, ou indicando quais são as questões prioritárias da política externa nacional. Em seu lugar, estão aquelas invectivas estranhas, contra o globalismo e o multilateralismo, contra o “marxismo cultural” e suas manifestações na Ásia ou na América Latina, ou atitudes contraditórias com respeito à China e aos Estados Unidos. Antes mesmo do governo ter início, já se anunciava a denúncia do último ato da diplomacia anterior, a adesão do Brasil ao Pacto Global das Migrações, um documento plenamente respeitador da soberania do Brasil, um país que tem dez vezes mais emigrantes do que imigrantes.
Estarrecido, como a maioria de meus colegas, por essas “manchas torturadas” no “mata-borrão do céu” da nossa diplomacia, vou abordar, nos parágrafos seguintes, os principais temas de uma política externa ainda mais torturada e tortuosa, tentando detectar nossas chances de passar impunemente por uma das fases mais sombrias da história do Itamaraty. Também acredito, como concluiu em seu samba o poeta-compositor, que depois da EA, da Era dos Absurdos, o show deve continuar.
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O Meteoro, de Bruno Giorgi (Itamaraty)

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Globalização, globalismo, multilateralismo
Parece até ridículo, para um diplomata, ter de se opor a uma postura antiglobalista, tal como exibida atualmente pelos novos dirigentes do Itamaraty (que não são necessariamente os diplomatas), na medida em que tal posicionamento vai contra o mecanismo fundamental das relações internacionais contemporâneas, que é o multilateralismo e a cooperação em bases técnicas, de mútua conveniência. A ideia de que existe uma conspiração destinada a retirar soberania dos Estados nacionais, por parte de um pequeno grupo de globalistas enrustidos nas organizações internacionais e nas grandes empresas globais, congregando ainda os últimos marxistas do planeta, é tão absurda que nem seria preciso desmenti-la, se não fossem as reiteradas afirmações por parte dos ideólogos que envergonham nossa diplomacia profissional. Como os antigos antiglobalizadores – aos quais dediquei este livro: Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (2011; disponível na plataforma Academia.edu) –, os novos antiglobalistas utilizam-se de todos os recursos da contemporaneidade virtual para disseminar suas ideias bizarras. Nacionalistas ao extremo, eles pensam aproveitar-se de atual pandemia para retirar o Brasil da globalização perversa, o que significaria, nas palavras de Marx, fazer girar para trás a roda da história.
Como a confusão a esse respeito é muito grande – inclusive disseminada pelo próprio chanceler, cujo blog pessoal, Metapolítica 17, tem como subtítulo “contra o globalismo” –, permito-me simplesmente dizer que a ideia de tal retrocesso não só é propriamente absurda, como totalmente impossível. A globalização é um processo multiforme, impessoal, irrefreável, incontrolável e indiferente ao que possam pensar ou agir os principais atores inseridos nesse movimento, que pode ser comparado à força dos ventos ou das correntes marítimas, quase o equivalente funcional de uma lei da gravidade. Mas aqui é preciso fazer uma distinção, entre o que poderia ser chamado de globalização macro e globalização micro, o que requer alguma explicação.
A globalização verdadeira, real, incontornável e contínua, corresponde aos processos que se desenvolvem em nível micro, ou seja, no plano dos indivíduos e das empresas que atuam em conexão com fluxos e interações transnacionais, que estão inovando e criando novos produtos e serviços, realizando novas “descobertas” científicas, produzindo soluções geniais aos problemas mais prosaicos da humanidade, que são imediatamente transmitidas ao mundo inteiro, pelos canais comerciais online e nas redes de comunicação social, nas quais novas ferramentas acabam inexoravelmente substituindo as antigas (de seis meses atrás). A atual pandemia deve, inclusive, acelerar os processos de inovação, em todas as esferas, na científica, na tecnológica, na comercial, na mídia ou em praticamente todas as demais áreas do trabalho humano (temporariamente colocado em isolamento físico).
Essa globalização não será interrompida, ainda que possa enfrentar algumas barreiras ou obstáculos, colocados em nível local, ou nacional, assim como pela ação contraditória da “outra globalização”, a de caráter macroeconômico, ou macrossocial. Na verdade, este tipo de globalização mais se aproxima de uma antiglobalização, pois é aquela que corresponde à ação dos governos e das organizações internacionais, que em sua sanha regulatória mais se aproxima do mercantilismo, do dirigismo, do regulacionismo intrusivo, das restrições aos intercâmbios e comunicações entre os povos. Não são apenas governos autoritários, ou ditaduras abertas que se opõem à globalização micro, e sim monopólios e carteis temporários em nível nacional ou plurinacional, com todos os tipos de justificativas “legítimas” ou, mais das vezes ilegítimas: censura política, direitos proprietários, normas protecionistas e o que mais houver na panóplia de dirigentes caipiras, sujeitos à tirania eleitoral de sua constituency ou francamente ignorantes, como pode ser o caso de populistas de esquerda e de direita.
A despeito do que possam pensar antiglobalistas e antiglobalizadores, a globalização sobreviverá, embora com sobressaltos temporários, que serão inevitável e fatalmente contornados pelo engenho e arte dos atores primários da globalização, indivíduos criadores e empresas inovadoras (oportunamente substituídas por empresas ainda mais inovadoras). Países abertos e democracias de mercado são mais suscetíveis de preservarem as bases materiais e humanas do “modo de produção inventivo” que está na base da globalização, mas alguns regimes autoritários – a exemplo da China atual, ou a Coreia de décadas atrás, ou ainda regimes fortemente “disciplinados”, como Japão e Singapura – podem também continuar participando intensamente da globalização macro e micro, com algumas peculiaridades que são o próprio dos processos nacionais de organização social da produção, sempre únicos e originais com respeito a todos os demais.
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(Denis Balibouse/Reuters)

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O sistema multilateral de comércio e o futuro do “comercialismo”
O que sobreviverá, igualmente, e se reforçará ainda mais, é o multilateralismo, que é o formato diplomático obrigatório das relações internacionais contemporâneas. Os acordos multilaterais (ou plurilaterais) – que conformam, historicamente, a maioria dos arranjos que emergiram lentamente a partir do Congresso de Viena (1815) e, com mais força, a partir da criação da ONU e suas agências especializadas –, vão continuar existindo, inclusive porque, depois de mais ou menos dois séculos de “Grande Divergência”, o mundo parece caminhar cada vez mais para uma “Grande Convergência”, bem mais evidente na Ásia Pacífico do que nos demais continentes periféricos.
A pandemia atual pode reverter – mas apenas temporariamente – a característica básica da ordem econômica internacional surgida a partir de Bretton Woods: o crescimento mais acelerado da divisão internacional do trabalho (já expressa na obra clássica de Adam Smith), refletida nos fluxos de comércio sempre alguns pontos acima – por vezes até o dobro – da expansão dos PIBs nacionais e do PIB global. Desde a crise de 2008, registrou-se pela primeira vez em décadas uma redução do ritmo de expansão dos intercâmbios comerciais, agora com ainda mais vigor sob o efeito da pandemia. Em contrapartida, os fluxos de dados, os serviços intangíveis, que já cresciam de modo quase exponencial, devem continuar num ritmo ascensional, até empurrados pela pandemia, o que pode também configurar o surgimento de novos tipos de acordos entre países e grupos de países.
O teletrabalho, usado emergencialmente na crise atual, não será revertido depois que ela for revertida, inclusive pelo conforto e comodidade que proporciona. Mas, muitas outras atividades serão transpostas para plataformas virtuais, o que incitará os promotores da “globalização macro” – a regulada – a imprimir novos modelos de acordos plurilaterais e, marginalmente, bilaterais. Novos softs vão criar equivalentes funcionais a “taxímetros” para medir o valor – ou os preços de mercado – dessas novas formas de trabalho, que podem até conformar um novo “modo de produção”. Mais uma vez, essas inovações serão introduzidas pela “globalização micro”, sendo depois tentativamente domadas e “controladas” pelos dirigentes políticos, atuando eventualmente a serviço de alguns lobbies retardatários.
O programa de governo do então candidato Bolsonaro revelava sua preferência por acordos comerciais com países “alinhados ideologicamente”, o que já era absolutamente ridículo; o chanceler chegou a deblaterar contra um “ismo” desconhecido, o comercialismo. O que se encontra paralisado, no presente momento, são as velhas rodadas multilaterais de negociações comerciais, que talvez abram espaço para formas ainda mais antigas de abertura econômica e liberalização comercial. Os países verdadeiramente inovadores poderão recorrer, no lugar das antigas rodadas, a uma abertura unilateral erga omnes, ou seja, em bases universais, assim como fez a Grã-Bretanha, ao abolir as “leis dos cereais”, em 1846. Mas isso não está restrito às democracias de mercado. Um país autoritário, como a China, pode conduzir esse mesmo processo, inclusive porque ela já constitui a maior potência econômica capitalista do planeta, quaisquer que sejam seus atuais atributos autoritários no plano político.
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A Anti-Corn Law League, em 1846

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Se isto for verdade – o que ainda é duvidoso, já que os promotores da “globalização macro”, os governos nacionais e as entidades intergovernamentais, tendem a atuar defensivamente –, a importância relativa das entidades da interdependência global do pós-Segunda Guerra pode diminuir, permanecendo apenas como dinossauros burocráticos da velha ordem, uma vez que o mundo passará a funcionar em novas bases. Essas características prospectivas podem se aplicar não apenas ao terreno comercial, mas estender-se igualmente a movimentos de capitais – investimentos diretos, empréstimos e financiamentos, mercados de capitais cada vez mais off shore e desregulados, mesmo contra a vontade dos governos nacionais –, embora bem menos ao fluxo de pessoas.
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Movimentos nacionalistas e migrações
Não se pode impedir que nacionalistas xenófobos ascendam a posições de poder, mesmo nos países mais avançados. Tampouco se pode impedir que miseráveis das periferias continuem a buscar, avidamente, paragens mais tranquilas e mais generosas, tanto por conflitos pontuais em seus países de origem, como pelo marasmo econômico ou retrocessos sociais e políticos. Os movimentos de pessoas, nas condições atuais da globalização – assimetricamente espalhada nos diversos continentes –, são mais difíceis de serem enquadrados em arranjos plurilaterais, como o foram, a seu tempo, os intercâmbios comerciais e os fluxos de capitais. As transições demográficas em curso nos países avançados, assim como o stress atual em seus mecanismos de assistência pública, por razões essencialmente fiscais e declínio da produtividade, tornam inaceitável para dirigentes políticos obtusos uma inversão na postura restritiva adotada pela maior parte dos países no tocante à imigração.
A imigração, no entanto, será incontornável para a maior parte desses países, assim como ela é positiva em quaisquer circunstâncias, em quaisquer épocas e países. Os Estados Unidos e o Brasil se fizeram e se desenvolveram com base em imigrantes, e deveriam continuar receptivos a esses fluxos. Os países da Eurásia precisaram, durante certo tempo, “exportar” seus excedentes populacionais, e isso foi imensamente positivo para todos, exportadores e importadores de capital humano, geralmente jovem e produtivo. Existe alguma tensão atual, e natural, mais por razões culturais, talvez religiosas, do que por dificuldades materiais ou financeiras, contornáveis. Mas, as mentalidades demoram bem mais a mudar do que adaptações práticas na organização social de diferentes povos e comunidades circulando de forma organizada ou num nomadismo errático. Quanto mais restritivos forem os atuais países “importadores”, mais caóticos serão os movimentos de pessoas.
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(Nicholas Kamm/AFP)

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O nacionalismo já foi responsável por imensas tragédias no passado, tanto quanto o fundamentalismo religioso, ou o imperialismo bárbaro de um passado que não mais existe. Mas, o nacionalismo, fruto da ignorância e de instintos primitivos, continuará existindo, e se fará presente na retórica de líderes políticos populistas (e basicamente hipócritas, uma vez que todas as comunidades humanas já foram, em algum momento, envolvidas no imenso cadinho humano das transmigrações naturais ou forçadas). O nacionalismo tende a persistir enquanto persistirem as imensas assimetrias entre os países e as soberanias nacionais, o que nada mais é do que uma insuficiência de globalização.
A ampliação da globalização, em suas diferentes vertentes, tenderá a reduzir tais assimetrias, como já ocorre no quadro do atual processo da Grande Convergência. Mas isso não é garantia de que não ocorra, ainda que temporariamente (ou seja, no espaço de uma ou duas gerações), um aumento das desigualdades internas, em contraposição à sua redução em escala internacional. Esse é o terreno explorado pelos líderes populistas, que são geralmente nacionalistas obtusos, tendência ainda explorada por economistas de inspiração “pikettyana” que buscam, ao contrário do que recomendaria a nobre missão da corporação, empobrecer os ricos, do que enriquecer os pobres.
Esse é um velho problema que surge no Iluminismo e se reforçou, filosoficamente, depois da Revolução Francesa, com sua imensa ênfase na igualdade, ao lado da liberdade. As tendências políticas e filosóficas pregando o igualitarismo continuam muito fortes, inclusive porque a situação econômica do mundo evolui muito lentamente, justamente em virtude da preservação das soberanias nacionais, e suas respectivas lideranças oligárquicas, autoritárias e patrimonialistas. Daí o crescimento dos movimentos contrários a um alegado 1% de ricos, e tendentes à expropriação dos super-ricos, os atuais bilionários, em número crescente na maior parte dos países (com um aumento temporário do coeficiente de Gini). Os efeitos laborais da pandemia incitam à aprovação de novas formas de taxação contra as grandes fortunas.
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(Albin Lohr-Jones/Sipa)

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Infelizmente, não existe nenhuma vacina contra a inveja e o despeito, uma vez que a maioria da humanidade ainda não alcançou um estágio de “classe média modesta”. As atuais camadas existentes nos países avançados perderam o antigo conforto da fase anterior à terceira onda da globalização. São estas categorias que constituem, justamente, o curral eleitoral dos líderes populistas e nacionalistas: essa situação persistirá por algum tempo. Será difícil superar os desequilíbrios materiais existentes entre os povos, mas será ainda mais difícil superar os equívocos mentais decorrentes das filosofias igualitaristas.
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A segurança no contexto da pandemia: um mundo mais fechado?
A pandemia atual não é um equivalente funcional dos ataques terroristas, embora ela possa ter efeitos semelhantes, ou similares, durante algum tempo. Depois de uma reação inicial, defensiva – sobretudo por parte de dirigentes xenófobos –, a tendência é que a cooperação internacional cresça e se estenda no terreno do intercâmbio de informações, a científica certamente, e depois no terreno da segurança estrito senso, assim como em outras esferas. Simplesmente não existem mais condições, nas configurações atuais da economia mundial, de um retorno fácil à antiga autarquia ainda praticada no entre guerras. Os países que a praticarem, o farão a seu próprio custo e prejuízo, uma vez que segurança e restrições apresentam custos mensuráveis em termos de oportunidades de mercados.
Certos líderes obtusos, nacionalistas canhestros, ou francamente ignorantes, poderão até promover impulsos temporários de “nacionalização” da produção de bens essenciais, assim como retornará a velha arenga da “segurança alimentar” e algum equivalente do gênero para as esferas médico-hospitalares. Isso não funcionará, obviamente, e depois de passado o temor atual, as fronteiras voltarão a se abrir, ainda que com controles tópicos sobre certos fluxos de bens. As cadeias de valor constituem uma realidade incontornável dos processos produtivos da contemporaneidade, sem os quais a alocação ótima de investimentos realizada pela “globalização micro” não poderia simplesmente funcionar. O doux commerce, de que falava Montesquieu, tenderá a prevalecer sobre os cálculos paranoicos dos geopolíticos, não sem algumas reações contrárias dos impérios declinantes.
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Montesquieu

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Tais características, obviamente, não impedem que os tais líderes obtusos possam atuar como verdadeiros “piratas”, como ainda ocorreu recentemente por parte do presidente americano, um nacionalista canhestro, que despreza a cooperação multilateral e agride inutilmente outros países, que talvez tendam a restringir antigos laços de parceria sobre a base de uma visão comum construída desde Bretton Woods, ou seja, democracias de mercado abertas aos intercâmbios globais. Populistas introvertidos desse tipo tendem a provocar perdas para as suas próprias economias, empresas e sociedades nacionais, e devem ser devidamente “esterilizados” ou “neutralizados” em processos eleitorais futuros. Em princípio, piratas e corsários – estes, à diferença dos primeiros, que são “microempresários” da contravenção, são os que atuam a serviço de governos – acabam sendo marginalizados e extintos pela cooperação plurilateral, que tende a prevalecer sobre os exclusivismos nacionais. Finalmente, a própria OTAN evoluiu para uma perspectiva universalista, e até “humanista”, criando mecanismos para acomodar os interesses da Rússia, e integrar parceiros extra-regionais. O fato do presidente americano hostilizar o ascendente competidor asiático – que já venceu a Guerra Fria Econômica, por possuir a estratégia correta –, assim como a própria OMS (cortando dotações), representa um comportamento temporário, a ser corrigido numa fase ulterior, pois nem as empresas americanas, nem o seu sistema de saúde podem dispensar tais relações, indispensáveis no contexto atual e futuro.
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Alinhamento ou adesão aos Estados Unidos?
Nosso maior parceiro econômico, financeiro, tecnológico, educacional e cultural durante mais de um século, vai continuar sendo uma das maiores e mais diversificadas interfaces em nossas relações exteriores, em todos os campos do engenho humano. Todos os países do mundo têm nos EUA um parceiro incontornável, embora a assimetria nesse relacionamento seja evidente para todos eles, o que deu à maior potência planetária, sobretudo nos terrenos militar e econômico, certa arrogância imperial que pode causar fricções localizadas em temas de interesse exclusivo do Big Brother americano. Depois de sua independência, o Brasil teve na Inglaterra, até praticamente as vésperas da Segunda Guerra Mundial o seu principal parceiro, embora os EUA fossem o principal comprador do café brasileiro desde a segunda metade do século XIX, e um grande investidor e financista desde o início do século XX. A força militar americana praticamente salvou a Europa duas vezes, na primeira e na segunda guerra mundial, de tombar sob a dominação de potências militaristas autocráticas, assim como organizou a resistência do mundo ocidental ao desafio do comunismo, o sucessor dos fascismos da primeira metade do século passado.
A política externa e a diplomacia brasileira estiveram muito fugazmente alinhadas aos interesses americanos, bem mais no auge daquele período do pós-guerra conhecido como Guerra Fria, do que em qualquer outra época. Mesmo sob regime militar, supostamente convergente na luta contra o comunismo, desde cedo se manifestaram as divergências, não só as comerciais e tecnológicas – cerceamento de acesso a tecnologias duais, em razão de nossa recusa de aderir ao Tratado de Não Proliferação Nuclear –, mas rapidamente também as políticas, em termos de prioridades na agenda internacional, na medida em que as nossas estavam bem mais focadas no desenvolvimento, e no desarmamento nuclear, do que no segurança e na contenção do comunismo ou, mais recentemente, do terrorismo. O fato de o governo atual demonstrar uma adesão beata, gratuita, unilateral, ao governo dos EUA, mais especificamente à figura do presidente Trump, revela uma incompreensão monumental do que seja uma política externa autônoma e soberana, como sempre foi a nossa desde décadas. O adesismo ideológico mais canhestro a tudo o que é proposto pelo governo Trump – em temas inclusive rejeitados pelos parceiros americanos da OTAN, ou no Ocidente em geral – envergonha a diplomacia brasileira, pois demonstra a ignorância dos amadores que pautam nossa diplomacia sobre o cenário internacional e regional com que deve lidar o Brasil.
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China: principal parceiro comercial, nêmesis dos olavo-bolsonaristas
Nosso mais importante parceiro comercial e, possivelmente, o maior investidor nos anos à frente, vem sendo maltratado da forma mais canhestra pelos preconceituosos ideólogos que pretendem mandar em nossa política externa, na aparente indiferença do chanceler, que ainda se permitiu defender o filho 03 do presidente que ofendeu gravemente a China a propósito da origem da Covid-19. Mais recentemente foi a vez do ignorante ministro da Educação – que já enfrenta sérios problemas com a gramática, o léxico e a concordância –, que também se permitiu ofender a China e os chineses, numa alegoria tão idiota quanto totalmente gratuita. Registre-se que suas ofensas jamais foram objeto de censura por parte do presidente e que nem o Palácio do Planalto, nem o Itamaraty apresentou desculpas formais pela mais recente ofensa dos bolsonaristas ao gigante asiático.
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(Reprodução: Twitter)

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A China é absolutamente relevante para o Brasil, e para o mundo em geral, não apenas por ser a maior potência comercial do planeta, atualmente, por estar no centro da maior parte das cadeias de valor em vários setores da indústria global, e por ser a maior absorvedora mundial de matérias primas de todos os gêneros, não apenas para consumo próprio, como para incorporação nos produtos exportados. Ela é também relevante para o maior desafio pandêmico enfrentando pela humanidade, cem anos depois da chamada “gripe espanhola”, que na verdade era americana.
Independentemente das falhas iniciais na detecção e na informação à OMS sobre a extensão da então epidemia localizada, ela realizou o maior esforço de contenção de seus efeitos sobre virtualmente milhões de pessoas, isolando uma província inteira contra contágios para outras regiões, o que permitiu a preparação de seus vizinhos imediatos. Ela adquiriu um excepcional know-how de prevenção, de controle e de cuidados médicos que hoje está dispensando ao resto do mundo, em especial aos países mais afetados pela pandemia. Não há como contornar nem o know-how adquirido pela China, nem a gigantesca máquina industrial que fornece ao mundo todos os equipamentos preventivos e de cura de que os países necessitam para responder a esse enorme desafio do século XXI.
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O acordo Mercosul-União Europeia tem futuro?
Os lulopetistas tinham uma ilusão fundamental na questão dos acordos comerciais plurilaterais: achavam que torpedeando – por razões ideológicas – o projeto americano de uma área de livre comércio das Américas, poderiam impulsionar um acordo supostamente mais equitativo com a União Europeia, apenas porque ela era também uma união aduaneira e seria, alegadamente, mais conciliadora e respeitosa de equilíbrios setoriais do que a grande potência imperial da América Norte. Conseguiram implodir a Alca, em 2005, esquecendo que os europeus manifestavam interesse em negociar um acordo similar apenas pelo temor de ficar excluídos dos grandes mercados sul-americanos, o que imediata e obviamente arrefeceu qualquer entusiasmo em fazer concessões no terreno da liberalização agrícola. O acordo entre a UE e o Mercosul ficou dormindo na gaveta por mais ou menos 20 anos, quando a “guerra comercial” deslanchada por Trump contra a China, assim como contra o TPP, o Nafta, a OMC ou quaisquer outros acordos de livre comércio, induziu os europeus a retomar o velho e esquecido projeto de associação comercial com os países membros do Mercosul.
Apenas essas circunstâncias explicam a rápida conclusão desse acordo, anunciado no auge da “guerra Trump-China”, mas logo em seguida enveredando numa espécie de túnel desconhecido, em virtude das tomadas de posição do presidente brasileiro em temas de meio ambiente e das relações bilaterais com países europeus. Bolsonaro virou um vilão na Europa, da mesma forma como outros líderes políticos autoritários dos chamados rogue States, os “Estados vilões”, geralmente em matéria de direitos humanos e liberdades democráticas. Alguns parlamentos e mesmo executivos de países europeus, ademais de membros do Parlamento Europeu, já manifestaram sua intenção de bloquear a ratificação do acordo, enquanto persistirem as medidas e declarações negativas que emergem do Brasil atual. São poucas as chances desse acordo ser aprovado na vigência do atual governo brasileiro.
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O Mercosul, entre a sobrevivência e a irrelevância
O outrora mais importante bloco comercial entre países em desenvolvimento definhou significativamente desde a crise argentina de vinte anos atrás, e sua conversão em palanque político durante o regime do lulopetismo no Brasil e na preeminência de outros regimes de esquerda na América Latina, o que inclusive abriu a possibilidade totalmente bizarra da incorporação de um país absolutamente contrário ao livre comércio como a Venezuela chavista a esse bloco. Diga-se, de passagem, que, mesmo sem a exclusão política do país bolivariano do bloco, ao final do lulopetismo, não havia a menor possibilidade de que ele cumprisse qualquer regra ou normativa comercial do bloco; na prática sempre esteve fora.
Mas o problema básico do Mercosul não está nessa questão marginal, ou no seu modo de funcionamento, e sim no descumprimento, pelos países membros – em especial os seus dois maiores sócios –, das regras e normativas do Mercosul no tocante à princípio fundamental do bloco: a liberalização comercial e a convergência progressiva das respectivas legislações setoriais para a conformação do prometido mercado comum. Aparentemente, essa perspectiva está longínqua atualmente, não apenas pelas diferenças políticas entre as duas lideranças dos dois membros maiores, mas também porque, finalmente, as políticas econômicas, macro e setoriais, dos quatro membros não são sequer convergentes, mas mais exatamente contraditórias quanto não opostas entre si.
O país mais relevante do bloco, que é o Brasil, continua sendo mercantilista, protecionista, exclusivista na sua legislação fiscal e tributária, totalmente solitário nos mecanismos normativos e regulatórios, sem sequer buscar um terreno comum de entendimento com os parceiros vizinhos. Não parecem existir condições, no momento presente e no futuro previsível, tanto políticas quanto práticas, para a retomada de uma agenda comum de discussão sobre os problemas e desafios do bloco, o que torna ainda mais difícil a entrada em vigor do acordo Mercosul-UE, dependente de certas ações complementares que teriam de ser negociadas em bases comuns de parte e outra.
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Ser ou não ser membro da OCDE?
A questão da adesão à OCDE surge cada vez que um governo brasileiro anuncia uma conversão – que geralmente é de curta duração – ao “liberalismo”, entre aspas porque essa intenção é mais retórica do que efetiva. Assim foi no início do governo Collor – que proclamou sua intenção de retirar o Brasil da condição de primeiro do grupo dos países em desenvolvimento, para coloca-lo entre os últimos do grupo dos países desenvolvidos –, como também ocorreu em certas fases do governo FHC. O assunto foi retomado no governo Temer, que solicitou formalmente a adesão do Brasil, e foi entusiasticamente abraçado pelo novo governo, com a crença dos neófitos e dos verdadeiros crentes no liberalismo de fachada. A adesão teria, supostamente, o poder de atrair investimentos diretos ao Brasil, reduzindo a sua percepção de risco que deriva da instabilidade e volatilidade das políticas econômicas nacionais. Essa é uma perfeita ilusão, uma vez que países podem ter uma grande atratividade aos capitais estrangeiros sem necessariamente pertencer à OCDE, bastando, por exemplo, que suas políticas econômicas sigam certo padrão de qualidade e de fiabilidade que eleve sua classificação nas agências internacionais de rating (ou de risco soberano).
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(Beto Barata/PR)

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Em outros termos, o Brasil pode fazer tudo o que está recomendado na “cartilha” da OCDE em matéria de “boas práticas”, sem ter, em contrapartida, de aceitar cada uma das exigentes normas setoriais em praticamente todos os ramos de sua economia. Assim como no caso do Conselho de Segurança da ONU, regularmente e constantemente objeto dos desejos de diplomatas e outros aderentes a essa visão do “Brasil grande potência”, o ingresso na OCDE não deve ser um objetivo em si e por si do Brasil, bastando que ele continue seu processo interno de reformas e de elevação de padrões, para se qualificar como parceiro confiável nas missões de paz e humanitárias da ONU, bem como na condição de atraente parceiro na interdependência global das economias de mercado. Tudo o que ele precisaria fazer em matéria de requerimentos, num e noutro capítulo, depende inteiramente de sua própria vontade e disposição de empreender reformas que elevem seus padrões nacionais.
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Independentemente do tratamento que possa ser dado, pelo Itamaraty ou pelos seus controladores efetivos, a esses temas relevantes da agenda diplomática brasileira, o fato é que os diplomatas profissionais continuam sem qualquer orientação mais precisa quanto aos rumos precisos que devem ser tomados no trabalho setorial sobre cada um desses itens da agenda nacional, bilateral, regional ou multilateral. As antigas diretrizes diplomáticas, que costumavam ser apresentadas a cada começo de governo, partiram “num rabo de foguete” e não se sabe exatamente se elas voltarão a oferecer ao menos um fugaz “brilho de aluguel”. Aparentemente, a política externa brasileira continuará numa “corda bamba” interminável.

Paulo R. de Almeida

Paulo R. de Almeida é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).


(Foto: Katerina Slesar)

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