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segunda-feira, 7 de maio de 2018

Previsoes imprevidentes: sempre reincidindo na astrologia - Paulo Roberto de Almeida

Um ano atrás eu fazia minhas "previsões imprevidentes" para o ano de 2017, e elas não eram muito otimistas. Um trecho, relativo ao Brasil:
"O Brasil, infelizmente, a despeito da brilhante equipe econômica que assessora o governo de transição, ainda não conseguiu traçar, já não digo uma estratégia política, mas um simples consenso nacional, entre dirigentes políticos e lideranças econômicas, para produzir o imenso rol de reformas estruturais de que ele necessita para enveredar novamente por um processo sustentado de crescimento econômico, base indispensável a qualquer ciclo de desenvolvimento social de que o seu povo poderia desfrutar, caso dispusesse de elites dirigentes menos ineptas e corruptas."
Este ano, 2018, não tive tempo de fazer minhas "previsões", mas confirmo a maior parte dos argumentos expostos nesse longo ensaio. Alguns acréscimos podem ser feitos, para o bem -- como a aproximação entre as duas Coreias -- e para o mal, como a ameaça de uma guerra comercial deslanchada por aquele presidente imprevisível. Vou tentar atualizar minha análise do cenário mundial e brasileiro em meados deste ano.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de maio de 2018

O que esperar de 2017: economia e política internacional, por Paulo Roberto de Almeida

  1. Surpresas em 2017?

O ano de 2016 terminou com a relativa surpresa da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – embora alguns analistas a tivessem previsto – e o ano de 2017 começou com ainda mais surpresas, ao se constatar que o presidente, uma vez no poder, pretendia cumprir algumas de suas piores promessas de uma campanha eleitoral literalmente heterodoxa para os padrões normalmente menos excitantes das eleições presidenciais americanas. Todas as suas ações – proibição do ingresso nos EUA de cidadãos de alguns países islâmicos, construção de um muro na fronteira com o México, retirada dos EUA da Parceria TransPacífica (TPP), ameaça de cancelamento, ou reforma, do acordo de livre comércio da América do Norte (Nafta), reorganização da OTAN, revisão do posicionamento estratégico dos EUA em diversos cenários que representam preocupações de segurança militar para os planejadores do Pentágono e até para os parceiros envolvidos nesses diferentes esquemas, enfim, uma gama variada de assuntos que interessam, virtualmente, o mundo inteiro – causaram grande impacto mediático, algum impacto nas relações bilaterais e nos foros multilaterais, e legítimos sentimentos de inquietação ao redor do mundo.
O único país que parece ter recebido bem, pelo menos até agora, a eleição e o posicionamento do novo presidente dos EUA, é a Rússia, e alguns outros próximos da linha “quanto pior para os EUA, melhor para o mundo”. Embora seja previsível algum recuo posterior – inclusive por pressão do establishment responsável das instituições de governança nos EUA – nas medidas extremas anunciadas pelo imprevisível presidente, não há nenhuma dúvida de que neste ano de 2017, e talvez nos próximos três também, o mundo ainda vai se defrontar com inúmeras, e desagradáveis, surpresas vindas dessa nova e excitante fonte de notícias ao estilo “acredite se quiser”. Jornalistas não podem reclamar da pletora de material adicional em suas caixas de entrada, muito embora a maior parte possa ser descartada como “besteirol” inconsequente, mas o fato é que a maior parte da comunidade internacional tem, sim, razão ao ficar preocupada com as inesperadas e imprevisíveis políticas que o bizarro presidente promete ainda brindar esta nossa pobre humanidade.
Um apostador inglês, um desses bookmakers muito presentes naquele país também bizarro que se chama Grã-Bretanha, diria que nunca alguém perdeu dinheiro apostando na estupidez alheia: ela sempre se materializa, da pior forma possível. Se juntarmos, digamos assim, os personagens mais “coloridos” da presente conjuntura internacional, o constitucional Trump, o czarista Putin, o ditador da Síria, o projeto de líder bonapartista Erdogan e aquele stalinista anacrônico da Coreia do Norte, teremos material para uma penca adicional de surpresas durante todo o decorrer de 2017. Este ano, portanto, promete muito na política internacional, quando não na mobilização de tropas, de tanques, de aviões e porta-aviões. Esperemos que não passe disso, ou seja, apenas mobilização para demonstrações machistas, e um bocado de retórica vazia.
  1. E na economia, o que vem pela frente?

Na economia o quadro é mais complexo, pois embora a globalização, aquela que se processa ao nível microeconômico, promete continuar sua marcha irresistível e irrefreável, graças a seus promotores primários – empresários, grandes e pequenas companhias e o tino individual de inovadores geniais –, seu ritmo, sua extensão e sua profundidade muito dependem, de fato, de elementos macroeconômicos que dependem, por sua vez, em pequena ou grande medida, da ação de governos, que podem ser tão racionais quanto se deveria esperar de líderes responsáveis, ou tão irracionais quanto pode ocorrer com populistas altamente irresponsáveis como parecem ser os citados e vários outros. A demagogia política e o populismo econômico são características permanentes, atemporais, regulares, aborrecidamente recorrentes nos assuntos humanos e sociais, e por isso mesmo podemos contar com a ação deletéria de todos esses fugazes candidatos a uma glória qualquer nas mídias nacionais e internacional.
Mas, em minha modesta opinião, nosso mundo vive tempos não convencionais, talvez normais doravante, mas ainda assim altamente preocupantes para quem, como eu e o leitor destas linhas, nos angustiamos ao ver tanto besteirol correndo solto, tantas ações irrefletidas proclamadas por dirigentes incompetentes, tanta perda de riqueza e de oportunidades para a criação de paz e prosperidade, tudo isso ameaçado pela ação desses malucos que ascenderam ao poder em diversos países nos últimos tempos. Nunca tivemos tantos ineptos, vários corruptos, tantos demagogos e populistas exercendo cargos de alta responsabilidade em países que julgávamos ao abrigo dessas ameaças de retrocessos políticos, econômicos e até morais, ou éticos. O fato é claramente este aqui: nunca antes na história da era contemporânea tivemos tantos medíocres no comando de países que possuem alguma ascendência sobre a agenda mundial, ou seja, sobre a vida de um número considerável de pessoas, nos mais diversos continentes.
  1. Alguma nova ordem em vista?

Como sempre acontece nesses momentos de transição para alguma nova ordem que não se sabe exatamente qual será, do que será feita, como classificá-la, descrevê-la  ou o que dela esperar, ficamos desarmados ante o aluvião de más notícias, em nosso país e no mundo, em meio a um pequeno volume de boas notícias, como a indicar que, no meio de tanta loucura, algum novo Erasmo pode emergir para nos indicar o modesto caminho da racionalidade e da melhoria constante nos assuntos humanos, mesmo com a intervenção frequente de demagogos políticos, brutamontes militares e outros malucos espalhados pelas mais diversas jurisdições soberanas da comunidade internacional. Na verdade, salvo nas grandes catástrofes envolvendo número significativo de atores poderosos – como os conflitos globais do século XX –, nenhuma nova ordem é construída pela vontade puramente política de líderes mundiais e seus conselheiros políticos, mesmo os mais kantianamente bem intencionados. A maior parte das transições entre modos de organização social e configurações políticas e institucionais de um novo tipo vai emergindo progressivamente como resultado da dinâmica econômica desses diferentes atores, a evolução política das grandes formações e o próprio nascimento de novas propostas de ordenamento global com base em ideias e propostas de personalidades influentes.
Os cientistas políticos podem se desentender sobre os vários conceitos nos quais podem ser resumidos os cenários existentes e cambiantes do sistema internacional – unipolaridade imperial, multipolaridade deformada, nova bipolaridade sino-americana, ascensão das novas potências emergentes, equilíbrio de potências, balança de poder, o que seja – mas o fato é que estamos um pouco perdidos sobre o que pode ocorrer neste ano e nos anos próximos, em termos de situação econômica, de comportamento político dos principais atores, de encaminhamento das principais questões inscritas na agenda internacional – comércio, meio ambiente, miséria e guerras civis nas áreas subdesenvolvidas do globo, evolução dos debates sobre bens comuns, entre eles epidemias globais, segurança e ameaças terroristas, crimes transfronteiriços, e até circulação de pessoas comuns, não apenas homens de negócios – e sobre como todas essas questões podem ser tratadas com base em alguma autoridade moral que se eleve sobre todas as outras autoridades.
Quem possui, hoje em dia, essa autoridade moral? O presidente dos EUA? Dificilmente. Os líderes das duas grandes autocracias que contestam o velho poder hegemônico da maior potência econômica do planeta? Duvidoso. O papa? Não sei. O secretário-geral da ONU? A sua Assembleia Geral? O comandante militar da OTAN? O comitê do Nobel da Paz? O foro do G20 financeiro? Quem poderá nos salvar de nós mesmos? Não existem super-heróis, nem um conclave de sábios que possa estar sempre a postos para salvar a humanidade de seus riscos latentes ou potenciais. Tampouco existem forças multinacionais – isto é, onusianas – prontas para combater as ameaças à paz e a segurança internacional, que elimine guerras remanescentes, sobretudo no Oriente Médio e na África, ou entidades suficientemente fortes de assistência pública que consiga promover (nem esse é o caminho) o bem-estar de povos miseráveis e de populações oprimidas, que assegure a vida de povos ameaçados por catástrofes naturais ou outros fenômenos causados pela própria mão de dirigentes ineptos, líderes corruptos, autocratas assassinos, gangues de meliantes armados, como os piratas marítimos e as grandes redes de traficantes, por exemplo. O próprio Brasil, sempre saudado como estando ao abrigo de grandes calamidades naturais, tem sido frequentemente assaltado pelos mais diferentes tipos de calamidades humanas, se não é por um simples mosquito.
  1. E o Brasil, como andou nestes tempos borrascosos?

Aliás, quem salvou o Brasil da Grande Destruição econômica dos anos recentes, da enorme desmoralização das instituições políticas provocada pela administração incompetente e altamente corrupta dos companheiros? Ninguém, ou pelo menos não tivemos forças oposicionistas ou instituições de controle aptas a prevenirem ou reprimirem, no devido tempo, as malversações deliberadas, as políticas equivocadas, a roubalheira evidente a que estávamos e estivemos submetidos nos últimos treze anos e meio, quando uma organização criminosa tomou de assalto o país, sua política e seus órgãos de Estado. Apenas por um acaso – justamente a Grande Destruição econômica – esses grandes bandidos do sistema político foram expulsos do poder, mas isso apenas in extremis, pois se fosse apenas pela corrupção política e pela roubalheira generalizada, os líderes da organização criminosa não teriam sido apeados do poder, já que os crimes são partilhados com os políticos. Foi preciso a intensa mobilização da cidadania consciente para obrigar os parlamentares a votarem o impeachment, ainda assim pela metade apenas, sem cuidar de limpar o corpo necrosado do sistema político dessas frutas podres que contaminam todo o resto. As frutas podres continuam lá…
Como se pode constatar, não sou muito otimista quanto ao cenário atual ou seus desdobramentos futuros, e isto por uma razão muito simples. Pela primeira vez em nossa história estamos enfrentando uma crise econômica gigantesca, que não possui nenhum vínculo com algum problema identificado da economia mundial, pois se trata de uma crise produzida inteiramente no Brasil, por nossas próprias mãos, e pés, uma crise inteiramente fabricada por dirigentes ineptos e altamente corruptos. À diferença das crises anteriores – digamos, a crise da bolsa de Nova York, em 1929, que depois precipitou a Grande Depressão dos anos 1930, ou as crises inflacionarias alimentadas pelos dois choques do petróleo dos anos 1970, a crise de balanço de pagamentos que surgiu com o aumento dos juros internacionais e seus reflexos em termos da dívida externa brasileira nos anos 1980, as crises financeiras internacionais dos anos 1990 que nos obrigaram a recorrer ao FMI, a crise da Argentina em 2001, que nos obrigou a ir por uma segunda vez ao FMI, sem mencionar a própria crise das eleições de 2002, que nos levou ao mesmo FMI por uma terceira vez, e recentemente a crise imobiliária americana e a crise bancaria internacional de 2008, que provocou o que se chamou de Grande Depressão – esta nossa Grande Destruição dos anos 2015 e 2016 pode ser debitada inteiramente na conta da mais nefasta máfia de dirigentes políticos que se apossou do país, de seu governo, do Estado brasileiro.
Essa organização criminosa o fez quase tão completamente, tão absolutamente, que ela conseguiu comprar um número significativo de parlamentares, literalmente bancadas inteiras no Congresso, conseguiu aparelhar de modo amplo o Estado brasileiro, colocar seus militantes nos órgãos os mais diversos de governo, designar apparatchiks para agências públicas, fundos de pensão, empresas do Estado e até entidades privadas, que, todos juntos, se empenharam em saquear o Estado e roubar a sociedade, numa magnitude jamais vista em toda a história anterior, numa amplitude jamais imaginada pelos órgãos de controle e de prevenção, que finalmente despertaram para as escabrosas operações desses meliantes políticos. É virtualmente impossível contabilizar o gigantesco iceberg de roubos, falcatruas, desvios, operações de sub e superfaturamento envolvendo recursos públicos, subsídios, financiamentos irregulares, “doações legais”, contratos de serviços no Brasil e no exterior, enfim, toda a gigantesca máquina de malversações perpetradas pelos companheiros e seus aliados e associados de ocasião ou oportunistas de plantão, como existem muitos espalhados em todo o sistema político brasileiro. Ainda assim, espero que o ministério público, auxiliado por economistas, consiga fazer a contabilidade dos crimes econômicos do lulopetismo.
Esse quadro lamentável no cenário doméstico ocorre numa conjuntura externa de ausência de lideranças confiáveis, e competentes, para guiar a política e a economia mundiais para caminhos não confrontacionista, para soluções racionais aos problemas de segurança e de cooperação econômica e política aos conflitos remanescentes ou às disputas sempre existentes em termos de regulação do comércio, do meio ambiente, da segurança nas zonas quentes do planeta, enfim, dos obstáculos à prosperidade dos povos do planeta. A globalização é até favorável à prosperidade dos países que sabem se abrir e se posicionar corretamente em face das oportunidades por ela criadas, em termos de comércio, investimentos, transferência de tecnologias, licenciamento de know-how estrangeiro, acolhimento de imigrantes produtivos, enfim, um sem número de coisas boas que sempre ocorrem para quem é receptivo à abertura econômica, à liberalização comercial, aos investimentos diretos, aos intercâmbios humanos, sem qualquer censura política, protecionismo comercial, paranoias nacionalisteiras e outros pecados do gênero. A globalização arrancou centenas de milhões de pessoas da miséria – que o digam os pobres da China e da Índia –, trouxe enormes benefícios aos povos integrados nos fluxos de bens, serviços, ideias que circulam pelo mundo, desde que libertos das amarras das restrições idiotas, que sempre são colocadas pelos governos, jamais pelos mercados livres.
  1. O que é que a globalização pode fazer por nós?

Mas é óbvio que a globalização não pode fazer muito por aqueles povos e nações que se enclausuram num protecionismo tão inútil quanto custoso, num nacionalismo míope, numa atitude defensiva em face das oportunidades e desafios por ela criados, como é obviamente o caso do Brasil, um país que não perde oportunidade de perder oportunidades, como dizia Roberto Campos, o maior estadista e intelectual da segunda metade do século XX no Brasil, e que estaria completando cem anos no dia 17 de abril (e por isso homenageado com um livro meu: O Homem que Pensou o Brasil, pela Editora Appris, de Curitiba). O Brasil, infelizmente, a despeito da brilhante equipe econômica que assessora o governo de transição, ainda não conseguiu traçar, já não digo uma estratégia política, mas um simples consenso nacional, entre dirigentes políticos e lideranças econômicas, para produzir o imenso rol de reformas estruturais de que ele necessita para enveredar novamente por um processo sustentado de crescimento econômico, base indispensável a qualquer ciclo de desenvolvimento social de que o seu povo poderia desfrutar, caso dispusesse de elites dirigentes menos ineptas e corruptas.
O mundo é o que ele é, e não poderemos fazer muito, ou praticamente nada, dada nossa insignificância internacional em termos de poder econômico ou militar, para mudá-lo decisivamente em nosso favor. Aliás, o que significa, exatamente, “mudar o mundo em nosso favor”? Seria torná-lo ainda menos receptivo à abertura econômica, à liberalização comercial como nos empenhamos em fazer nas últimas décadas? Seria continuar apelando para medidas absolutamente idiotas como essa mania de pretender proibir estrangeiros de adquirir terras, ou quaisquer outros ativos, como se esses estrangeiros viessem com a intenção de roubar o nosso patrimônio, dilapidar o nosso meio ambiente, saquear as nossas riquezas, explorar o nosso povo? Seria, ainda, continuar a proteger a produção nacional com normas e regulações absolutamente idiotas e nefastas, como as nossas tomadas jabuticabais, que discrepam de quaisquer outros padrões normalmente usados para o acoplamento de aparelhos e dispositivos ligados à corrente elétrica? Seria dotar as nossas escolas de normas curriculares absurdas, destinadas unicamente a oferecer uma reserva de mercado a professores ineptos, produzidos pela ideologia nefasta da Pedagogia do Oprimido, alimentados pelo besteirol ainda mais nefasto da Teologia da Libertação, por esse marxismo vulgar disseminado em praticamente todos os cursos de (des)humanidades das faculdades públicas e privadas?
O Brasil ainda não percebeu o quão atrasado ele está, em face de tantos exemplos de adequação, adaptação e acolhimento da modernidade, por tantos povos ao redor do mundo, aliás até mesmo aqui na região, quando alguns países da América Latina escolhem se juntar à grande interdependência global, em lugar de se refugiar numa suposta, e nefasta, identidade latino-americana de recalcados e de frustrados perdedores da globalização? Quando é que vamos nos libertar desses políticos rastaqueras, que prometem defender os “empregos nacionais”, e nos condenam ao atraso, desses empresários ineptos que proclamam a necessidade do protecionismo, quando eles querem apenas assegurar reserva de mercado, dessas construtoras que vivem do rentismo de obras públicas e de concessões exclusivas, bem como de generosos subsídios para justamente praticarem corrupção generalizada, no Brasil e no exterior? Quando é que vamos nos livrar do Fundo Partidário, um convite à anomia política e à corrupção, simplesmente, uma vez que partidos políticos são entes de direito privado? Quando é que o Brasil vai virar um país capitalista normal, sem os “dez vezes sem juros”, sem a opressão da Receita Federal sobre as empresas privadas, sem que as corporações de empregados públicos façam dos cidadãos os reféns de seus interesses corporativos justamente? Quando é que a educação pública vai qualificar de maneira decente os brasileiros mais humildes para o mercado de trabalho, permitindo que eles possam contribuir para o crescimento da produtividade, o que é hoje algo impossível?
  1. Da Guerra Fria geopolítica à guerra fria econômica

Mas vamos voltar para a economia política internacional. Muitos analistas contemporâneos, partindo da constatação, aliás evidente, da nova agressividade da Rússia de Putin em relação ao Ocidente em geral – isto é, a UE e os EUA – e da velha desconfiança do Império do Meio, ou seja a China, em relação a esse mesmo Ocidente, já estão falando de uma nova Guerra Fria, agravada sobretudo pela invasão russa da Ucrânia oriental e pela incorporação forçada da Criméia à Rússia, bem como outros gestos em direção dos bálticos e da Geórgia que, no conjunto, revelam uma tomada de postura contra a expansão irrefletida da OTAN nos confins imediatos da Rússia. A China de Xi Jin-ping também tem demonstrado uma política de maior assertividade na defesa dos seus interesses nacionais, inclusive no controle da sua própria população, como se pretendesse demonstrar que sua maior, enorme, inserção econômica mundial não significa que ela esteja caminhando na direção dos valores e princípios típicos das economias democráticas de mercado, e que essa atitude positiva na defesa do livre comércio e da livre concorrência internacional não se traduz em maior liberalidade no plano político interno.
Do outro lado do mundo, confirmando a atitude típica dos militares, em todo e qualquer lugar do planeta – que é a da paranoia securitária –, o pessoal do Pentágono e do próprio governo americano elegeu a China como a substituta da Rússia nos possíveis embates decorrentes de algum choque futuro de interesses, seja nos mares da China, os do sul e os do leste, seja na velha questão de Taiwan, ou seja, reforçando a hipótese de uma nova Guerra Fria, podendo desdobrar-se em algum futuro conflito bélico, ou seja, uma guerra quente. Alguns analistas, até famosos, acreditam, ou fingem acreditar, numa Terceira Guerra Mundial, isto é, envolvendo as grandes potências militares, dotadas de um poder propriamente devastador em todas as áreas das ferramentas militares, das mais convencionais às nucleares. Não partilho absolutamente desse tipo de temor.
Não apenas não acho que haverá uma terceira grande conflagração global, como tampouco considero que estejamos assistindo a uma nova Guerra Fria no sentido usual, geopolítico, da expressão. A Guerra Fria foi um episódio circunscrito das relações internacionais do imediato pós-Segunda Guerra, e se pode dizer até um aspecto peculiar das relações bilaterais de competição política estratégica entre os dois grandes atores do sistema mundial, EUA e URSS, naquela conjuntura histórica específica da história mundial, que não tem mais chance de se reproduzir atualmente entre os dois novos grandes atores das relações internacionais contemporâneas, os EUA e a China. Não creio que estejamos caminhando para uma grande confrontação estratégica suscetível de configurar uma nova Guerra Fria entre esses dois gigantes, com atuação de conflitos entre atores secundários, que seriam o equivalentes dos cenários regionais de enfrentamento estratégico, do tipo proxy wars, como vimos naquele período histórico (digamos a guerra civil na Grécia e a guerra da Coreia, na era Truman-Eisenhower, o episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, nos anos Kennedy, a guerra do Vietnã, que atravessa diversas administrações americanas, ou diferentes guerras civis na África, servindo também a essa competição estratégica, notadamente em Angola).
Essa Guerra Fria tipicamente geopolítica dos anos 1940 aos 80 passou e não voltará mais. E nem foi a Guerra Fria que determinou o desaparecimento de um dos dois grandes atores daquele período, nomeadamente a União Soviética, dotada de um arsenal militar impressionante, incluindo um número formidável de ogivas nucleares e seus respectivos meios de delivery. A União Soviética não desapareceu por causa dessa competição, ou mesmo, isso ocorreu apenas indiretamente, se considerarmos o efeito da Strategic Defense Initiative, a “guerra nas estrelas” de Reagan, no enfraquecimento decisivo de sua capacidade econômica ao tentar competir com a enorme fortaleza do império americano no plano econômico. A URSS desapareceu por uma espécie de implosão auto-induzida, pela pressão de suas próprias contradições internas, por que simplesmente ela não consegui satisfazer economicamente o seu próprio povo, e também por que a inevitável fome de liberdade dos povos submetidos ao seu império despótico ajudou na sublevação geral de todo o sistema coletivista criado na Europa central e oriental durante a era do moderno socialismo escravocrata.
Segundo o novo autocrata de Moscou, referindo-se à essa auto-implosão, “o desaparecimento da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX”, uma opinião com a qual se pode facilmente concordar, desde que se façam os ajustes necessários para medir o real impacto dessa “catástrofe geopolítica”. Ela teve, de fato, um enorme impacto, não apenas nas relações internacionais, mas também, e sobretudo, para o próprio povo russo, até então escravizado sob o jugo soviético do Partido Comunista. O desaparecimento da União Soviética deu um golpe fatal na legitimidade do comunismo enquanto forma de governo, retirou as bases econômicas de um sistema totalmente ineficiente de organização social da produção e libertou milhões de pessoas da entropia totalitária, trazendo, talvez, um pequeno acréscimo ao PIB global das economias de mercado, mas um enorme aporte de trabalhadores podendo, enfim, serem integrados à divisão internacional do trabalho e aos fluxos mundiais de consumo. Foi, portanto, uma “catástrofe” eminentemente positiva para os povos antes submetidos a um regime de exclusão interna e externa, e para a própria interdependência global.
O que temos hoje é algo completamente diferente da Guerra Fria geopolítica daqueles tempos, da velha confrontação entre dois impérios absolutamente opostos nos planos ideológico e de organização econômica e política, uma confrontação geopolítica por poder e prestígio entre aqueles dois gigantes, o que não é o caso, de nenhuma forma, da suposta confrontação estratégica entre EUA e China. O que temos atualmente, em minha opinião, é uma Guerra Fria econômica, entre esses dois atores, mas uma que não significa uma competição entre polos opostos do sistema internacional de poder: tanto os EUA quanto a China representam dois representantes da moderna interdependência global, duas jurisdições políticas distintas e separadas, mas unidas no mesmo universo das economias de mercado, ainda que, de um lado, tenhamos uma velha democracia política e do outro, uma ainda mais velha tirania política administrando uma nova economia de mercado. Trata-se, obviamente uma nova situação política, inédita nas relações internacionais, que é difícil de ser mentalmente aceita, e considerada como válida, por aqueles que tendem a visualizar o mundo sob o prisma das mesmas velhas concepções que vigoraram em períodos anteriores.
Em outros termos, não é possível analisar a nova Guerra Fria Econômica ficando prisioneiro dos mesmos esquemas mentais da velha Guerra Fria geopolítica, o que é o que parece estar acontecendo com os estrategistas do Pentágono e com um número considerável de analistas políticos contemporâneos (mas ainda raciocinando com base em antigos cenários, que não mais vão se reproduzir na atual fase das relações internacionais contemporâneas). Esses estrategistas anacrônicos, mais especializados em desperdiçar os recursos da coletividade do que em analisar as reais ameaças ao seu país, elegeram a China como o grande contendor da atual fase da política mundial, o que representa um erro monumental em termos de alocações orçamentárias e de disposições táticas sobre o terreno, ademais de investimentos exagerados em novos meios de combate que provavelmente nunca serão usados nas dimensões imaginadas.
A China é um império emergente, mas com imensas deficiências internas, o que os novos mandarins do regime comunista buscam remediar mediante uma estratégia de desenvolvimento econômico extensivo e intensivo, a única maneira de conferir alguma aparência de legitimidade a um sistema de dominação política de caráter despótico, mas profundamente nacionalista e basicamente defensivo, não ofensivo externamente. A projeção militar em curso no novo Império do Meio se destina, essencialmente, a garantir o aprovisionamento da população chinesa em alimentos e em energia, e a sua base industrial em matérias primas e outros insumos necessários ao funcionamento contínuo de um imenso aparato produtivo aparentemente imbatível no plano da concorrência internacional (mas apenas temporariamente).
As bases que a China constrói nos mares que ela considera como seus (a Leste e mais ao Sul de suas águas), assim como margeando o Índico e o Atlântico Sul, numa miríade de países da Ásia do Sul e do continente africano, se destinam precisamente a garantir a livre circulação de sua frota comercial nacional e de todos os demais navios participando desse abastecimento e dessas rotas comerciais que estão na base de sua ascensão irresistível para a prosperidade e a modernidade tecnológica. Essas bases são uma espécie de bem público que deveriam supostamente servir, igualmente, aos interesses brasileiros nessas mesmas regiões, uma vez que a segurança e os postos avançados que são construídos pelos chineses – bem como os portos, ferrovias e outras infraestruturas materiais e de comunicações – em todos esses países devem aumentar os fluxos comerciais de todos os participantes da economia global, uma inserção à qual o Brasil relutantemente busca se adaptar da forma mais lenta possível.
Se ouso arriscar uma projeção geopolítica – o que não deveria ser permitido a diplomatas, mesmo astrólogos –, eu diria que a China vai emergir como nitidamente vitoriosa dessa Guerra Fria econômica, que não se destina, obviamente, a confrontar qualquer “adversário estratégico” com a finalidade de ocupar “espaços vitais” de maneira excludente, ou para desmantelar a capacidade de resistência desses supostos adversários. Creio que os analistas sérios saberão reconhecer na Guerra Fria econômica uma estratégia sofisticada de capacitação própria em “armas produtivas” e outras ferramentas de projeção estratégica em termos de serviços, investimentos, finanças, soft power e outros elementos que integram a interdependência global. A China não pode se dar ao luxo de criar conflitos até a beira do precipício com seus principais parceiros, pois é neles que ela se abastece, legal e ilegalmente, dos bens e da inteligência que são absolutamente necessários para elevar continuamente o seu povo na escala do bem-estar e da prosperidade. A potência militar é uma decorrência disso, não o contrário, como aliás ocorre com qualquer império que se preze (mas militares e diplomatas tendem a esquecer a verdadeira ordem dos fatores). Que o Pentágono e seus equivalentes ao redor do mundo, inclusive na China, mantenham orçamentos superdimensionados e sejam responsáveis por desperdícios absurdos de recursos, sempre apostando numa infinita corrida armamentista, mesmo quando não proclamada e conveniente escondida, tudo isso faz parte da paranoia obrigatória a que todos os planejadores militares são supostos alimentar, para alimentar suas próprias carreiras e a irracionalidade das burocracias. A China, provavelmente, é tão perdulária quanto o Pentágono em seus gastos militares, e tudo isso se auto-alimenta numa progressão contínua. Mas ela vai, presumivelmente, ganhar essa guerra fria econômica, pois mantém a estratégica correta, visando apenas e tão somente o seu interesse nacional, sem algumas das obrigações “universais”, ou regionais, do outro grande império (e destinado a sê-lo no futuro previsível).
  1. O que o Brasil faz, o que ele não faz, e o que ele deveria fazer?

O Brasil, obviamente, está longe de todos esses cenários estratégicos e, pelo andar da carruagem, está destinado a permanecer num soberbo isolacionismo pelos tempos que correm e outros mais à frente. Os partidários da diplomacia “ativa e altiva” até podem se vangloriar de terem “colocado o Brasil no mapa do mundo”, mas tudo isso é uma grande ilusão, fruto da megalomania do grande chefe da organização criminosa e de alguns assessores diplomáticos. Eles pretendem justificar essa “grandeza” nacional – mais um resquício da era militar, junto com o intervencionismo exacerbado, o estatismo irracional, o protecionismo vergonhoso – agitando a bandeira das chamadas “parcerias estratégicas”, como Ibas, Brics, com a UE, etc., e alguns outros ativos, como por exemplo o fato de a China ter se convertido no primeiro parceiro comercial. Tudo isso, ouso repetir, é uma grande ilusão, a começar por essa pretensa parceria comercial com a China: a China se abastece no Brasil como poderia se abastecer em qualquer outro país do mundo nas mesmas commodities, que, à exceção da jabuticaba (que aliás ainda não entrou nessa categoria), não são exclusiva de nosso patrimônio natural ou construído.
A maior parte dessas alianças, se elas não servem unicamente a fins de prestígio político dos dirigentes do momento (como é o caso do UE), representa uma herança mal concebida e mal implementada do lulopetismo diplomático, com todos os vícios de forma e de substância que isso possa acarretar, inclusive em termos de passividade diplomática. Os esquemas regionais constituem, igualmente, um grande empenho de esforços, e portanto de gastos (sem qualquer análise de custo-benefício), para ganhos muito circunscritos e que poderiam, nas mais diversas hipóteses, serem conquistados com uma ação puramente unilateral (abertura voluntária a todos os parceiros da região, por exemplo, o que conformaria automaticamente um espaço econômico integrado no continente) ou em bases bilaterais negociadas com certa generosidade de intenções.
O Brasil precisa aprender a ficar sozinho, o que não significa ficar isolado do mundo, muito pelo contrário. O Brasil precisa se integrar ao mundo, e da maneira a mais ampla possível, mas a maior parte desses grupos age como um clubinho fechado – desde o Mercosul ao Brics – se congratulando mutuamente e atuando pela via do mínimo denominador comum, o que é propriamente péssimo para nosso processo de inserção mundial e de interdependência global, segundo aqueles melhores valores e princípios que exibimos frequentemente, pelo menos no plano constitucional. Atuar em conjunção com ditaduras e autocracias não deveria fazer parte de nossos exercícios habituais de diplomacia. Ou seja, uma profunda revisão das escolhas e opções feitas nos últimos quinze anos se impõe de qualquer maneira aos nossos dirigentes políticos.
O Brasil não se abre ao comércio internacional, por exemplo, e muitos – não só no setor privado, mas no âmbito governamental – acham que ele só pode se abrir a novos patamares de inserção econômica global quando forem satisfeitas todas estas condições, sucessiva ou simultaneamente: (a) que se consiga reduzir o “custo Brasil”, que na verdade é o “custo do Estado brasileiro”, pois até mesmo uma “externalidade” como a (péssima) educação, em todos os níveis, resulta de falta de ação do Estado, o que incide sobre nossa baixíssima produtividade; (b) que se possa encontrar parceiros dispostos a negociar acordos comerciais nos nossos termos (ou seja, os menos ambiciosos possíveis, descartando todos os penduricalhos dos acordos de “última geração”); (c) que se observe a mais estrita reciprocidade em cada um deles.
Não vou comentar cada um desses aspectos em detalhe, pois isso demandaria uma outra longa exposição, mas vou dizer simplesmente que a maior parte dos argumentos em defesa desses requerimentos são francamente ridículos, pois o esforço próprio, e o interesse também, tem de ser nosso, unilateralmente, para o nosso próprio bem, não condicionado a quaisquer pré-condições que se possam estabelecer para nossa integração ao mundo. Mas o Brasil não falha apenas na área econômica, ele também tropeça, e se arrasta, penosamente, no domínio político também.
Para começar, nossa governança é péssima, a despeito de termos construído um dos Estados mais modernos dentre os países da antiga periferia europeia, dotado de instituições sofisticadas, mas que funcionam muito mal, em total descoordenação entre si, a despeito de algumas ilhas de excelência aqui e ali. Mas, entre nós ainda vigora o velho patrimonialismo de origem portuguesa, já estudado no clássico de Raymundo Faoro, e transformado, modernamente, num outro tipo de patrimonialismo, como estudado, por exemplo, por observadores escrupulosos como Antonio Paim e Ricardo Vélez-Rodríguez; pode-se até dizer, com base nesses novos estudos, que já deixamos o velho patrimonialismo tradicional, e reforçamos tremendamente o “estamento” (à falta de melhor conceito) burocrático, que chegou até a ser, com os companheiros, um patrimonialismo de tipo gangster. O Estado brasileiro é hoje um corpo quase inerme, servindo apenas para a extração de recursos da sociedade em benefício próprio, com algumas migalhas indo para investimento ou para fins socialmente úteis, ademais das mais corriqueiras e comezinhas atividades clássicas. O problema é que ele se colocou demasiadamente à serviço desses estamentos que o assaltam oficialmente e de uma ampla gama de capitalistas promíscuos, que o prostram sob os golpes contínuos de concorrências viciadas, superfaturamentos e propinodutos regulares.
Na área econômica – mas ela está intimamente vinculada à área política – os desafios de reformas estruturais são enormes, e o Brasil não decaiu o suficiente, ainda, ou não teve um choque realmente falimentar, para obrigar os ineptos e corruptos eleitos e dirigentes a alcançar um consenso mínimo em vista de reformas significativas. Até quando isso vai persistir? Difícil dizer: se o Brasil não ficar insolvente, internamente, nos próximos dois ou três anos, ele vai continuar a se arrastar penosamente em direção a um futuro incerto, feito de crescimento medíocre, divisão política exacerbada, ausência de lideranças suficientemente fortes para catalisar os esforços de uma nova coalizão política verdadeiramente moderna, e não mentalmente atrasada como hoje. Ou seja, o Brasil se encontra a meio do caminho entre a decadência argentina, já longa por sinal, e a inadimplência grega, sem ter uma coalizão de credores dispostos a salvá-lo do desastre no qual já se encontra.
Não tenho muitas razões para ser otimista, inclusive porque vejo outros países avançando na escala do progresso, enquanto o nosso permanece paralisado por disputas absolutamente ridículas, algumas até vergonhosas (como a tentativa da classe política de se safar dos dispositivos legais que vedam a corrupção nos assuntos públicos). Vamos avançar para algum lugar? Duvido, pois isso depende de bons diagnósticos e de prescrições adequadas. Ainda não vi nem uns, nem outros.
Vale!

Sobre o autor

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI-MRE (paulomre@gmail.com).


Como citar este artigo

Mundorama. "O que esperar de 2017: economia e política internacional, por Paulo Roberto de Almeida". Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 06/05/2018]. Disponível em: <https://www.mundorama.net/?p=23347>.

domingo, 6 de maio de 2018

A Russia e o resto: a nova guerra fria - Book review, Richard Sakwa

'Russia against the Rest: The Post-Cold War Crisis of World Order' [review]

Richard Sakwa. Russia against the Rest: The Post-Cold War Crisis of World Order. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. ix + 362 pp. $84.99 (cloth), ISBN 978-1-107-16060-6; $24.99 (paper), ISBN 978-1-316-61351-1.
 

Reviewed by Gerard Toal (Virginia Tech) Published on H-Diplo (May, 2018) 
Printable Version: http://www.h-net.org/reviews/showpdf.php?id=51562

Richard Sakwa does not like the term the “new Cold War.” To him, the label is misleading and obscures a much broader shift in global politics since 2014. His new book, Russia against the Rest: The Post-Cold War Crisis of World Order, is an account of that larger shift, and Russia’s place within it. Sakwa is Professor of Russian and European Politics at the University of Kent and an associate fellow at Chatham House. He is a remarkably productive scholar. This is his seventh book on Russian politics since 2008, and there is another, The Putin Phenomenon, in the works (cited p. 119). Sakwa, who is of British Polish decent, is also no stranger to controversy. His 2015 book, Frontline Ukraine: Crisis in the Borderlands, argued that Euro-Atlantic expansionism and Ukrainian nationalism were key negative forces contributing to the Ukraine crisis of 2014. The book was strongly criticized by some Ukraine scholars though critically appreciated by others. Sakwa is part of a select group of scholars regularly invited to the Valdai Discussion Group (which includes the chance to hear Vladimir Putin in person) and his latest book reflects his deep knowledge of Russian elite thinking on world order and geopolitical change.
Sakwa provides a comprehensive account of post-Cold War geopolitics, with a decided emphasis on great power diplomacy, institution-building, strategic competition and its baleful results. He dubs the twenty-five years between 1989 and 2014 an era of “cold peace,” one characterized above all by the failure of Western security organizations to transcend Cold War institutions and habits. Russia was shut out of negotiations over the creation of a post-Cold War security order in Europe as NATO and the EU saw matters in terms of enlargement of their own existing structures, not the creation of something new in dialogue with Russia. By denying “the logic of transcendence,” Sakwa argues, this enlargement precipitated the result it sought to avert. “Europe could not be ‘whole and free’ if Russia was effectively excluded” (p. 6) is an arresting early claim (repeated p. 165). Throughout Sakwa uses a distinctive vocabulary of contrasting geopolitical visions to describe this dynamic. The EU and NATO represented the Historical West; they viewed themselves as victors in the Cold War. Afterwards, they wanted to create a Wider Europe based around extended and radicalized Historical Western norms and practices (what others term an expanded liberal empire). Russia’s aspiration, however, was to become a founding member of a transformed Greater West that would establish a Greater Europe on the Eurasian landmass. Mikhail Gorbachev’s “common European home” and Charles de Gaulle’s Europe “from the Atlantic to the Urals” are expressions of this vision. Greater Europe is ostensibly pluralist, open to political regimes of many different types. The European Union is only one of many different visions of being European. The problem of the cold peace, according to Sakwa, was that NATO and the EU represented monological visions of security and prosperity. The Historical West viewed the United States as the security lynchpin on the European continent and liberal market democracies as normative for the domestic structure of states. Willing only to enlarge not to change, the Historical West generated accumulating frustration, disillusionment, and resistance on the part of an excluded Russia. With Greater Europe off the table, Russia sought instead to create a Greater Eurasia (the Eurasian Economic Union). In 2014, the cold peace impasse on the European continent gave way to a hot war in Ukraine. Russian neorevisionism emerged as a predictable backlash against the expansionist logic of Euro-Atlantic liberal hegemony. Today, Russia and China are both neorevisionist powers. It is not, in the end, Russia against the Rest but Russia as part of the Rest against the Historical West.
Sakwa documents this thesis in great detail in the book, providing an impressive synthesis of international relations theory, post-Cold War history, and in-depth discussion of contemporary contentious issue areas. The great value of Sakwa’s work is its thorough articulation of Russian leadership perspectives and commentariat writings on the dilemmas of cold peace geopolitics alongside those of select Western observers, usually political realists but not exclusively so. Sergei Karaganov, dean of the faculty at the Higher School of Economics in Moscow, and honorary chairman of the Council on Foreign and Defence Policy, and Henry Kissinger are liberally quoted through the text. Karaganov argued in 2016 that the West after the Cold War sought to continuously limit Russia’s freedom, sphere of influence, and markets while expanding its own. The West “used Russia’s weakness to take away its centuries-old gains and make it even weaker” (p. 39). Sakwa sees this argument as “going too far” for the West was open to Russia’s inclusion in Western security structures but “it wanted a different Russia to the one on offer; while Russia wanted to join the community, but on its own terms” (p. 39). Kissinger argued that Russia should have been engaged by the West in traditional realpolitik terms. The goal should not have been transformation of Russia but the development of a strategic concept that could manage their differences within an emerging multipolar world order.
There are some standout chapters in Russia against the West. Using English school international relations theory, Sakwa provides a compelling account of the Kremlin’s geopolitical attitude towards world order. This distinguishes between two levels of the international system, the primary institutions of international society which are states, and the secondary level of institutions which are collective organizations that seek universal practices and norms. Russia is a clear supporter of the primary level of institutions, which rest on state sovereignty and bargaining between great powers in a multipolar system. The secondary level is the realm of international organizations, regimes of norms, and systems of global governance. These bind and constrict state sovereignty in the name of universal norms and aspirations. Russia and other non-Western powers object to what they see as the capture of this second level by liberal internationalist norms and values, which ultimately advance the self-interest of Western states. Sakwa argues that Russia is not a revisionist power seeking to tear up the current international order. Rather, it is a neorevisionist state, critiquing the hegemonic ambitions and double standards of the liberal international order but, at the same time, defending the autonomy of an international society organized around state sovereignty. “Moscow assumed the paradoxical position of challenging the practices of the liberal order while defending the principles of international society” (p. 129). Putin is a traditionalist, not a radical; a “legitimist,” not a revolutionary. Neorevisionism is “an unstable combination of attempts to modify the structures and practices of the hegemonic global order while remaining firmly ensconced in that order” (p. 132). International law has different meanings in this contest. To neorevisionist states, international law belongs to the primary level of international society. It is or should be delimited by respect for state sovereignty above all else. To liberal hegemony, international law is an expression of universal values and rules. It can and should be used against states that violate these.
Sakwa also gives us a succinct chapter on Russia’s grievances against the West, one that is empathetic without being uncritical. NATO enlargement gets a full discussion but so does missile defense, critique of Western interventionism, and objections to “trans-democracy.” This latter notion describes how democracy got absorbed into Euro-Atlantic visions of security. The spread of democracy and the pursuit of security became fused in practice. Democratic peace theory became dogma: “the security of the Atlantic power system is best advanced by creating a system of states moulded in the Western image and committed to liberal internationalism, the ideological foundations of post-war American power” (p. 99). This liberal imperial compound generated a Kremlin backlash that saw “colored revolutions” as Western-sponsored active measures, interpreting popular protests against autocratic and kleptocratic rules on Russia’s borders as Western plots. Implicit here is a Kremlin domino theory wherein the West is toppling autocratic regimes as a means of eventually knocking over the final piece: Putin’s Russia. Sakwa will infuriate many when he writes: “In a philosophical sense Putin was right: popular democratic revolutions have become a way for the Atlantic ideological and power system to advance. There is plenty of evidence that Western agencies have prepared for, funded and provided ideological support for pro-democracy movements whose ideological orientation is Atlanticist” (p. 102). But he also writes that this denies independent agency and popular demands for free and fair elections, less corrupt administrative systems, and, above all, civil dignity (p. 102). This mode of reasoning—affirming a Kremlin-friendly position yet articulating criticism also—is one he adopts on the all-important question of Crimea: “Crimea’s return can legitimately be considered a ‘democratic secession,’ since the overwhelming majority of the population (as later independent opinion polls confirmed) favored being part of Russia; although the view that it represents an ‘imperial annexation’ is justified to the degree that it lacked agreement with the country from which the territory seceded” (p. 157). Sakwa also writes that the armed insurgency in the Donbas was “covertly assisted by activists and some state bodies in Russia” (p. 157).
Sakwa’s work is impressively comprehensive. He discusses in relative detail the evolution of Russian foreign policy and European Union diplomacy, Eurasian integration, the Ukraine crisis, Western sanctions, Russia’s evolving military doctrines and modernization efforts, NATO’s responses to Russia, the breakdown of arms control regimes, US foreign policy and Russian interventionism in the Syrian civil war, information warfare, and Russia’s aspirational pivot towards China. The book concludes by outlining what he describes as a “global impasse.” This is a new “normal” of wide-ranging and increasingly deeply rooted confrontation between Russia and the United States. The United States is concerned to maintain its hegemonic status while China, Russia, and other powers are forcing a global realignment of power and the rules governing international affairs. He sees a rising of McCarthyism in the United States which is having a chilling effect on the quality of public debate, with those advocating “dissident” views condemned as “Putin apologists” (p. 313). On the central issue inflaming elite opinion in the United States (Russia’s information operations during the 2016 presidential election), Sakwa is skeptical that Russia’s role has been fully proven. The Steele dossier “hit a new low in its puerile collection of unsubstantiated allegations” (p. 241). Instead, he sees a renewed “Russian threat” as generating considerable budget increases for US and NATO agencies to fight Russian “information warfare.”
Sakwa’s work has some clear weaknesses. First, his focus is largely on great power politics. As a result, he has little to say about the strategic dilemmas faced by post-Soviet states next to Russia. There is some discussion of Ukrainian crisis but little about Belarus, Moldova, Georgia, Azerbaijan, or Armenia, nor of the enduring territorial conflicts in the near abroad. Central Asia is discussed but only as it relates to the great powers. He shows little interest or empathy for the position of these states. Instead his arguments are shaped by conversations on panels at Valdai, Moscow, London, and Brussels—not Kyiv, Tbilisi, and Tallinn. Sakwa’s book is valuable in terms of enriching the quality and depth of debate over topics that tend to quickly polarize interlocutors, but debate should extend to consider the historical experiences and aspirations of small and medium states too. This does not mean privileging that experience over Russian experiences, as often happens in the West where curated nationalist versions of subaltern experiences, and traumas, are a means of establishing superior victimhood. Rather, the conversation need to include everyone and hold all to the same critical standards of reasoned debate.
Second, Sakwa’s schemas and categorizations tends to structure debate toward Russian standpoints and positions. In some ways, this is a function of his desire to be a correction to widespread antipathy against Russia. But this correction itself needs a critical check. For example, Sakwa makes frequent use of the distinction between “monological” and “pluralist” perspectives, with the former standing in for Western liberal hegemony or Ukrainian nationalism whereas the latter expresses tolerance for diverse regime types and civil nationalist traditions. In practice, however, this reduces divergent traditions of politics—liberal, center-right and social democratic—into a singularity while creatively configuring acceptance of autocracy as “pluralism.” Indeed, autocracy is a category that is largely missing from Sakwa’s discussion. It deserves greater consideration as do variant kleptocratic state arguments made by scholars of Eurasian states. Sakwa does articulate positions that are critical of Russian government behavior, but in a mild manner. The Duma election of December 4 2011, is described as “flawed” (p. 115). Putin’s lies to Angela Merkel early in the Crimea crisis were his “being economical with the truth” (p. 217). Russia’s endorsement of European populists has damaging reputational consequences (p. 276). Because he is much more a hermeneutist of Putin than critic, Sakwa’s arguments shows considerable empathy for Russian government positions. This leads him to re-present arguments more than probe them for contradictions. Thus, for example, he writes that “Russia is not so much concerned with changing international hierarchy, but to defend a space for the conduct of international relations for itself, through the universal application of international law and respect for state sovereignty throughout the international system” (p. 129). Needless to say, many of Russia’s neighboring states would scoff at this.
Third, Sakwa engaged throughout his work with international relations theory but only the most traditional kind: realism (offensive and defensive), liberalism, and some constructivism. Emergent issue areas like cyber warfare and climate change are discussed in passing. There is little consideration of gendered practices or the role of affect, of feminist analysis, or of contemporary scholarship on visuality, memory, and nonhuman agency. This is not because it is absent in the speeches, debates, and practices he discusses. Rather, it is not called out and given separate analytical treatment by him. We need to think deeply, after all, about the micro- and macrosociological dynamics of respect, humiliation, frustration, anger, fear, and reassurance, as well as about the gripping power of spectacles of revolution, “self-determination,” and national glory. Sakwa’s work is more a deliberative approach to Russia-explaining, focused on presenting contentious debates and divergent practices based on clashing conceptualizations.
Finally, some may find the book frustrating because its key concepts and arguments are discussed again and again in the text. Because the book strives to engage with nearly all aspects of current debates on Russia, it sometimes feels like Sakwa has written too much and that his chapters are not as joined up as they could be. In sum, however, Russia against the West is a valuable addition to the growing literature on the “new cold war” (that may not be a new cold war). It deserves to be read,  debated, and criticized.
 
Citation: Gerard Toal. Review of Sakwa, Richard, Russia against the Rest: The Post-Cold War Crisis of World Order. H-Diplo, H-Net Reviews. May, 2018. URL: http://www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=51562
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O “golpe” em marcha dos corruptos e antidemocraticos - J. R. Guzzo, Orlando Tambosi, Paulo R. Almeida

Meu amigo e colega de blog, Orlando Tambosi, resistente como eu ao longo reinado do lulopetismo autoritário e antidemocrático neste país, reproduz a crônica de José Roberto Guzzo, na Veja, sobre o golpe em marcha daqueles criminosos políticos e seus aliados na suprema magistratura, no contexto dos sentimentos sinceros (expressos em “tentações antidemocráticas”) por parte de largos estratos da população, que parecem aceitar, desesperados, a hipótese de uma nova intervenção dos militares na política para, uma vez mais, “limpar o terreno” dessa classe política avassaladoramente corrupta que tomou o Brasil de assalto.
Não parece obviamente ser a solução ideal para os males gravíssimos de mau funcionamento de uma democracia de baixíssima qualidade em que se transformou o Brasil aos 30 anos de sua mais recente (a oitava) Constituição, mas não se deve descartar como irrelevantes esses sentimentos de grande parte da população — e de amplos setores nas FFAA — que podem desembocar num governo de corte direitista autoritário que desconforta muita gente, mas que pode estar sendo visto como o último baluarte da “moralidade”, ou simplesmente de uma reação necessária ao quadro vergonhoso que nos é apresentado por essa classe política genéticamente corrupta, com seus aliados em cortes superiores.
ESperemos que essa evolução tortuosa para um novo experimento de “autoritarismo legal” não se consolide nos próximos meses, de aqui às eleições, mas eu não descarto totalmente a hipótese de um novo retrocesso institucional em nome da desesperança com a “democracia que falhou”.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 6 de maio de 2018

Há uma guerra contra o estado de direito neste país, comandada pelas forças que não podem conviver com ele, adverte J. R. Guzzo em sua coluna na revista Veja. Este blog não aceita golpe -  e que fique claro, nem de direita nem de esquerda. Exageros ideológicos sempre dão em merda. O PT tentou por todos os meios impor uma ditadura chavista no Brasil (a que a imprensa jamais se referiu), mas também não acredito que militares - mais na caserna que tatu na toca - possam oferecer algum perigo. Nada se resolve fora da democracia, por pior que ela seja - como lembrava Churchill. Mas Guzzo faz bem em ressaltar: o lulopetismo continua se negando a reconhecer o Estado de Direito. Por sinal, sempre foi um partido golpista, que não acredita na democracia e tudo fez - e tudo fará - para melar o regime jurídico-constitucional que se negou a referendar em 1988. Se há golpe em construção, é, de fato, dessa ralé totalitária:


Responda com franqueza, por favor: se amanhã ou depois o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, fosse despejado do seu gabinete no Supremo Tribunal Federal por um terceiro-sargento do Exército, enfiado num camburão verde oliva e entregue na penitenciária da Papuda por ordem do Alto Comando das Forças Armadas, quantas lágrimas você derramaria por ele? Esqueça as lágrimas. Você, ao menos, diria alguma coisa, qualquer coisa, contra a prisão do ministro? Ou, ao contrário, acharia muito bem feito o que lhe aconteceu? Só mais uma coisa: entre Gilmar Mendes (ou Toffoli, ou Lewandowski, ou Marco Aurélio, etc.) e o general que mandou todos para o xadrez, depois de passar a chave no STF e evacuar o prédio, você ficaria ao lado de quem? Para completar o exercício, basta somar ao Supremo o Congresso Nacional inteirinho, com seus 513 deputados e 81 senadores, os 27 governadores de Estado e mais os milhares de reizinhos, sem concurso público e sem competência, nomeados para mandar na máquina pública ─ onde se dedicam a roubar o erário, para si e para os chefes, e a infernizar a sua vida. Se as Forças Armadas assumissem o governo, fechassem o Congresso e demitissem essa gente toda, de preferência mandando a maioria para o xadrez, tente calcular quantos brasileiros ficariam a favor deles e quantos ficariam a favor dos militares. Chegue então às suas conclusões.

Intervenção militar, golpe militar, regime militar, ditadura militar ─ francamente, quem gosta de falar abertamente dessas coisas? É preciso ficar contra, é claro ─ e ficar contra agora pode vir a ser um belo problema depois, se a casa acabar caindo um dia. É verdade que o cidadão que tem algum tipo de interesse em política já não sente maiores incômodos em tocar no assunto, principalmente se não tem mais paciência com o lixo que as mais altas autoridades da República produzem sem parar e depositam todos os dias na sua porta. Não chega a ser uma surpresa fenomenal, assim, que um número cada vez maior de cidadãos esteja começando a achar que seria uma boa ideia se os militares assumissem de novo o governo do Brasil para fazer uma limpeza em regra na estrebaria que é hoje a vida pública do país. Mas entre os políticos, nos meios de comunicação, nas classes intelectuais e em outros lugares onde as pessoas supostamente “entendem” dessas coisas, é um assunto que se trata como um porco-espinho ─ com extremo cuidado. É melhor não ficar comentando em voz alta, dizem. Não é o momento, não é o caso, não “se trabalha com esse cenário”. É como falar mal do defunto no velório, na frente no caixão. Tudo bem. Mas não é assobiando que se faz a assombração ir embora. Nem fazendo cara de preocupado em programas de televisão ou escrevendo artigos para solicitar aos militares, por favor, que respeitem rigorosamente a Constituição, as instituições e os monstros que ambas criaram e hoje estão soltos por aí. É preciso muito mais do que isso.

Está complicado, em primeiro lugar, porque muita gente nem acha que essa assombração é mesmo uma assombração ─ ao contrário, acha que é a equipe de resgate chegando para salvar os feridos. Quantos brasileiros, hoje, seriam a favor de uma intervenção militar? É pouco provável que os institutos de pesquisa façam a pergunta, porque têm medo de ouvir a resposta ─ mas eis aí, justamente, um indicador muito interessante. Dá para se deduzir, por ele, que uma grande parte da população receberia com uma salva de palmas as imagens de tanques rolando nas ruas e políticos, ministros supremos e empreiteiros de obras se atropelando uns aos outros para fugir pela porta dos fundos. Em segundo lugar, está complicado porque democracias só ficam de pé se elas forem vistas como um bem importante e compreensível pela maioria da população ─ e se houver um número suficiente de cidadãos dispostos, de verdade, a brigar por sua manutenção. Muito bem: quantos brasileiros acham que estão sendo realmente beneficiados, em suas vidas cotidianas, por essa democracia que veem desfilar à sua frente no noticiário de cada dia? E quantos topariam sair à rua para defender, por exemplo, os mandatos dos senadores Romero Jucá, Renan Calheiros ou Jarbas Barbalho?

O fato, que não vai embora por mais que se queira fazer de conta que “as instituições estão funcionando”, é que praticamente ninguém, no mundo político, merece o mínimo respeito do cidadão hoje em dia. Honestamente: alguém seria capaz de dizer o contrário? Se os encarregados de manter o regime democrático em funcionamento se desmoralizam todos os dias, e desprezam abertamente as regras da democracia com a sua conduta criminosa, fica difícil supor que está tudo bem. Nossas autoridades “constituídas” acham que está. Como a Constituição diz que é proibido fechar o Supremo, o Congresso, etc., imaginam que podem continuar fazendo qualquer barbaridade que lhes passar na cabeça. Imaginam que os militares, informados de que existe uma “cláusula pétrea” mandando o Brasil ser uma democracia, se veriam obrigados, por isso, a continuar assistindo em silêncio a anarquia promovida diante de seus olhos por magistrados do STF, ministros de Estado, líderes parlamentares e os demais peixes graúdos que têm a obrigação de sustentar o cumprimento das leis ─ mas vivem em pleno colapso moral e não conseguem mais segurar no chão nem uma barraca de praia.

É cansativo ouvir, mais uma vez, que a democracia é uma coisa e as pessoas que ocupam os cargos de governo são outra. Não se deve confundir as duas, reza a doutrina, pois nesse caso um regime democrático só poderia existir numa sociedade de homens justos, racionais e bondosos; se as pessoas que mandam estão mandando mal, a solução é substituí-las por outras através de eleições, processos na Justiça e demais mecanismos previstos na lei. Mas o Brasil está fazendo mais ou menos isso desde 1985, e até agora não deu certo. Alguém tem alguma previsão sobre quanto tempo ainda será preciso esperar? A democracia brasileira faliu; é possível que nunca tenha tido chances reais de existir, por insuficiência de gente realmente disposta a praticá-la, mas o fato é que estão tentando fazer o motor pegar há mais de 30 anos, e ele não pega. Talvez ainda desse para ir tocando adiante por mais tempo, com um remendo aqui e outro ali. Acontece que neste momento, justamente, há muito menos esforço para escorar o que está bambo do que para tacar fogo na casa inteira.

A questão central, curiosamente, é a manutenção da lei. Nove em dez golpes, ou nove e meio, são dados por quem tem a força armada e quer mandar a lei para o espaço. Aqui parece estar se montando o contrário. Os militares dizem, como deu a entender semanas atrás o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, que exigem o cumprimento da Constituição e das leis penais para continuar nos quartéis. Quem está querendo abolir a aplicação da lei são os que não têm as armas, mas chegaram à conclusão que não conseguem sobreviver se forem mantidas as regras atuais da democracia brasileira. Está mais do que claro de quem se trata. Trata-se, em primeiro lugar, do ex-presidente Lula, do PT e dos seus partidos auxiliares. Em segundo lugar vem o populoso cardume de políticos, de qualquer partido, que estão fugindo da Justiça penal por prática de corrupção e outros crimes ─ são centenas de indivíduos, literalmente. Em terceiro lugar, fechando a trindade, estão as empreiteiras de obras públicas, fornecedores do governo e o restante das gangues que vivem de roubar o Tesouro Nacional. Todos estes precisam desesperadamente de uma virada de mesa que solte Lula da prisão, salve da linha de tiro os ladrões ameaçados pela lei e devolva condições normais de operação para o negócio da ladroagem de dinheiro público em geral.

O último esforço em seu favor foi essa grosseira ofensiva dos ministros Toffoli, Lewandowski e Gilmar para tirar Lula da prisão, suprimir provas dos processos criminais que ele tem pela frente, anular sua condenação, impedir o trabalho do juiz Sérgio Moro ─ em suma, fraudar a Justiça penal brasileira numa trapaça de escala realmente monumental, com o vago objetivo de “zerar tudo”. É o sonho de Lula e seus advogados milionários de Brasília, do Complexo PT-PSOL-PCdoB etc., e de dez entre dez ladrões sob ameaça de punição: declarar a Operação Lava Jato ilegal, sumir com tudo o que ela já fez, está fazendo ou vai fazer e demitir o juiz Moro a bem do serviço público, junto com todos os magistrados que combatem a corrupção no Brasil. Eles não dizem isso, é claro: sua conversa é que estão aplicando o embargo dos embargos de agravo teratológico com efeito suspensório, diante da combinação hermenêutica de mutatis mutandisinterlocutórios com ora pro nobis infringentes. Não perca o seu tempo com o vodu jurídico do STF sobre “direito de defesa” que a mídia repassa a você com casca e tudo: é pura tapeação para ver se soltam Lula da cadeia e ajudam a ladroagem ─ primeiro para que ela escape da penitenciária e, em seguida, para permitir que continue roubando em paz.

É disso que se trata. Há, simplesmente, uma guerra contra o estado de direito neste país, comandada pelas forças que não podem conviver com ele. Lula e o seu sistema de apoio não querem a democracia. Recusam-se, abertamente, a cumprir a lei e a aceitar decisões legítimas da Justiça; sabem que não têm futuro num regime democrático, com poderes independentes, Lava Jato, imprensa livre e o restante do pacote. Estar no governo, para essa gente, não é a mesma coisa que seria para você. Eles precisam estar no governo. Não só para ter empregos, fazer negócios e ganhar dinheiro da Odebrecht, mas porque enfiar-se no poder é a diferença entre estar dentro ou fora da cadeia. É por isso que os senadores petistas Lindbergh Farias e Gleisi Hoffmann, entre outros, se agitam tanto. Se as leis continuarem a ser normalmente aplicadas, podem ter diante de si, em breve, ações penais duríssimas. É por isso que o deputado Wadih Damous, também do PT, disse outro dia que “é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal” ─ depois de reconhecer que o ministro Gilmar é um “aliado” do partido. (O deputado não esclareceu o que pretende fazer com ele, mais os Toffolis, Lewandowiskis e similares, depois de fechar o STF.)

O mundo político e a elite, caídos de quatro no chão, olham em silêncio para tudo isso, aterrorizados por Lula e assustados com a voz da tropa. Quando quiserem reclamar, podem se ver reclamando tarde demais e em muito pouca companhia.

sábado, 5 de maio de 2018

Pequena licao de Realpolitik - Paulo Roberto de Almeida

Como o artigo precedente, sobre Henry Kissinger (com o qual este possui conexões), este também é de dez anos atrás. Mudou algo na geopolítica mundial desde então?
Provavelmente nada, mas mudou a geoeconomia do mundo, com a irresistível ascensão da China aos pináculos do sucesso em termos de crescimento, ganhos de produtividade, inovação tecnológica, ganhos de mercado.
Todo mundo tem direito a uma "tese". Pois a minha é esta aqui. A velha Guerra Fria geopolítica terminou não por um Bang, mas por um bing, com a implosão do socialismo, que deu dois suspiros e depois morreu. Estamos agora numa nova Guerra Fria, mas geoeconômica, e a China já ganhou essa guerra, inclusive porque a Europa continua letárgica e os EUA se encontram paralisados por um estupor de presidente, que abre um tapete vermelho para a maior glória do gigante asiático.
Vou ter de reler esse meu texto abaixo, o que ainda não fiz, para ver se tenho de corrigir alguma coisa, mas não costumo fazer isso em meus textos. Penso muito antes de escrever, pois subi em ombros de gigantes para ver melhor, como Raymond Aron, por exemplo...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de maio de 2018

Pequena lição de Realpolitik, por Paulo Roberto de Almeida

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p style=”text-align:justify;”>Seria totalmente justificado o mau (pré)conceito que carrega a Realpolitik no plano das atitudes possíveis de serem adotadas pelos estadistas e outros responsáveis pelas relações internacionais dos Estados modernos? Leva ela, necessariamente, a um comportamento egoísta no confronto com alternativas menos estado-cêntricas e mais voltadas para o bem comum da comunidade internacional? Mas será que existe, de fato, uma coisa chamada “comunidade internacional”? Estadistas responsáveis podem adotar outra postura que não a pragmática, focada no interesse nacional, quando se trata de administrar as relações exteriores de seus países? Vejamos o que seria possível argumentar em torno desse conceito numa espécie de curso concentrado.
Realpolitik é mais um método do que uma doutrina, completa e acabada. Ela pode ser vista como uma escola de pensamento que não é boa, ou má, em si, e sim que pode, ou não, servir os interesses daqueles que presumidamente se guiam por seus “princípios”, algo vagos, de análise e de ação. O que ela quer dizer, finalmente? A rigor, trata-se de um simples cálculo utilitário, baseado nos interesses primários de um país, um Estado, um indivíduo. Ela tende a considerar os dados do problema e não se deixa guiar por motivações idealistas, generosas ou “humanitárias” de tal decisão ou ação, mas apenas e exclusivamente pelo retorno esperado de um determinado curso de ação, que deve corresponder à maior utilidade ou retornos possíveis para o seu proponente ou condutor da ação.
Como tal, ela responde a objetivos estritamente pragmáticos e “racionais”, num sentido estrito, de uma determinada interação humana, social ou estatal. Ela parte de um pressuposto básico, na vida ou na sociedade: indivíduos e grupos sociais guiam-se, basicamente, por seus instintos de sobrevivência ou por seus interesses imediatos de conforto, bem-estar, segurança, maximização de satisfação, de prazer ou de riqueza e poder, no caso de sociedades mais complexas. Não se pode negar que, nessa perspectiva, ela corresponde, aparentemente, à natureza humana, ou pelo menos a certa concepção da natureza humana, tal como vista pelos filósofos utilitaristas ou individualistas.
O que oferece, em seu lugar, aquela que seria, presumivelmente, sua contrapartida teórica, ou até prática, a Idealpolitik? Esta, supostamente, se deixaria guiar por nobres ideais, altruística em seus princípios e motivações, generosa nas suas interações e ações, voltada para o bem comum, a solidariedade, a elevação moral da humanidade e a promoção de valores vinculados aos direitos humanos, à democracia, ao primado do direito sobre a força, à construção de uma institucionalidade que supere, justamente, o interesse egoísta de indivíduos e Estados. Ainda que se possa conceber a existência, e mesmo a atuação, de indivíduos, instituições e Estados que se deixem guiar por tal conjunto de princípios e valores, não tenho certeza de que eles são seguidos na prática quando se trata do interesse maior de indivíduos e sociedades organizadas, que são os da sua segurança e da sua sobrevivência física.
Em qualquer hipótese, algumas distinções são possíveis, e passíveis, de serem feitas e elas têm a ver com a organização geral das ações do Estado no plano exterior. Teoricamente, a “doutrina” idealista seria mais comprometida com a cooperação internacional – no plano bilateral ou multilateral – e com a promoção de instituições comprometidas com tal finalidade, atualmente representadas pela ONU (mesmo com toda a corrupção e desvios comprovados), ao passo que a “doutrina” realista teria unicamente como base o interesse egoísta dos Estados, fechados, portanto, a esforços de cooperação ampliada, assistência a necessitados ou promoção de interesses comuns da humanidade. Tal dicotomia é dificilmente encontrável na prática, pois todos os Estados, e indivíduos, acabam cooperando na prática, ainda que tratando de cuidar, primariamente, de seu interesse próprio.
Finalmente, pode-se conceber uma Realpolitik “esclarecida” que, voluntariamente ou não, busca, de forma ativa ou secundária, a promoção de valores “altruísticos”, uma vez que eles poderiam ser funcionais, em última instância, para a promoção e a manutenção do interesse próprio do Estado ou do indivíduo em questão. Ou seja, a busca do “bem” redundaria em maior bem primeiramente para o seu promotor.
Estas considerações, necessariamente de cunho generalizante ou conceitual, não têm muito a ver com realizações práticas, ou correntes, de alguma Realpolitik em ação, “esclarecida” ou não. Normalmente se tende a identificar o exercício desse tipo de política com manifestações práticas de “diplomacia blindada” de alguma grande potência, na suposição de que apenas potências dominantes têm condições de cuidar de seu interesse próprio de maneira egoísta ou arrogante, o que é um entendimento enviesado, ou capcioso, do que seja Realpolitik. Por certo, pequenos Estados ou indivíduos desprovidos de poder próprio não têm condições de impor sua vontade aos demais, daí a identificação da Realpolitik com a política de poder. A rigor, qualquer indivíduo ou Estado pode tentar exercer seu quantum de Realpolitik, embora dentro de limites próprios à sua liberdade de ação (ou de reação).
Para tocar num exemplo sempre invocado de doutrina “realista” do interesse nacional, num sentido estreitamente egoísta e unilateral, referência é feita à chamada “doutrina Bush” de ação preventiva, com vistas a antecipar a qualquer iniciativa por parte de Estados inimigos ou grupos terroristas de atacar os EUA, o que justificaria, aos olhos de seus dirigentes, um ataque preventivo contra esses supostos inimigos. Ao mesmo tempo, caberia lembrar que essa doutrina vem sendo apresentada ou vem “envelopada” num conjunto de argumentos justificadores da ação americana, condizentes, supostamente, com uma visão mais “altruística” das relações internacionais, posto que identificada com a promoção da democracia, a defesa dos direitos humanos – em especial da mulher -, a capacidade de iniciativa individual no plano econômico, a liberdade religiosa e vários outros elementos de natureza supostamente “iluminista”.
Que isto esteja sendo feito por bombas e ocupação militar, e não por professores e missionários, poderia ser visto como secundário do ponto de vista da escola “realista”, embora não o seja para os “destinatários” da ação: afinal de contas, parece difícil implementar a democracia na ponta dos fuzis, ou mediante canhões e mísseis. Desse ponto de vista, a visão e a ação de Kissinger pareciam sinceras, ainda cinicamente realistas: ele não pretendia “melhorar” o mundo, apenas torná-lo suportável no plano dos interesses nacionais americanos, o que já lhe parecia um programa realisticamente enorme (em face dos perigos percebidos, reais ou ilusórios).
A Realpolitik, portanto, recomendaria deixar cada povo cuidar dos seus afazeres, sem interferência dos demais, até o limite dos efeitos indiretos sobre a segurança de outros da soberania exclusiva assim exercida (ou seja, eventuais spill-overs da potestade interna exercida de maneira excludente). Atualmente se invoca, ao lado do “dever de ingerência” – que seria a intervenção direta nos assuntos internos de outros Estados em caso de graves atentados aos direitos humanos – o chamado princípio da “não-indiferença”, que seria uma motivação altruística para exercer a cooperação ativa em prol do bem estar de povos menos bem aquinhoados pela natureza ou pela sua organização estatal ou social. A diferença entre um e outro estaria em que, no primeiro caso, a intervenção se daria contrariamente aos desejos ou capacidade de reação do Estado em questão, ao passo que no segundo, em total concordância e em cooperação com seus dirigentes.
Num primeiro caso, teríamos, então, a Realpolitik bem intencionada, no segundo a Idealpolitik explícita e aberta. O que se deve julgar, na verdade, é a eficiência das ações empreendidas com relação a objetivos bem determinados: no primeiro caso, o possível resultado é o salvamento de pessoas que de alguma forma pereceriam na ausência de intervenção, o que significa, simplesmente, a diferença entre a vida e a morte. No segundo caso, as ações altruísticas empreendidas podem ser rigorosamente inócuas, caso a não indiferença se exerça em direção de objetivos secundários ou totalmente marginais em relação aos verdadeiros problemas do país ou sociedade assim beneficiados com tal ação humanitária.
Não há, como se vê, um critério uniforme para se julgar princípios de ação, ou suas motivações teóricas: o que existem são situações objetivas e resultados tangíveis, em função dos quais julgar da efetividade de iniciativas e empreendimentos tomados por estadistas. O realismo e o idealismo podem ser invocados em circunstância diversas, e produzirem resultados totalmente contraditórios, em função dos objetivos pretendidos e dos meios mobilizados.
O que teria Kissinger a ver com isto, finalmente? Provavelmente nada, a não ser a perspectiva da história profunda e o sentido da razão, sempre bons conselheiros em matéria de políticas de Estado, em qualquer área que se pretenda atuar. Com todo o seu realismo cínico, Kissinger foi provavelmente um estadista altamente eficiente do ponto de vista dos interesses egoístas – portanto realistas – dos EUA. Teria sido ele tão eficiente assim caso tivesse sido, hipoteticamente, guindado à frente das Nações Unidas, num papel de cunho profundamente altruístico e humanitário? Provavelmente não, pois lhe faltaria a alavanca necessária para ser bom (ou mau, com os ditadores), segundo as circunstâncias: o poder de ordenar e de ser obedecido.
Não é segredo para ninguém que a ONU, com todos os seus bons princípios – e a despeito de uma maquinaria emperrada, por vezes corrupta – não é sequer capaz de fazer cumprir seus objetivos prioritários, e ela não o será pelo futuro previsível. Isto talvez seja uma demonstração cabal de que o realismo prático, com todos os seus supostos defeitos congenitais, ainda constitui uma boa alavanca para a ação.
Talvez, então, a melhor combinação possível, se as escolhas nos são dadas, fosse armar-se de uma doutrina inspirada nos bons princípios da Idealpolitik, ao mesmo tempo em que, no terreno da ação prática (e efetiva), buscaríamos guiar-nos pelos velhos e surrados princípios da Realpolitik. Acredito que mesmo um cínico como Kissinger não desgostaria desta combinação. Provavelmente é mais fácil propor do que implementar tal tipo de mini-max, ou seja, uma mistura de boas intenções com uma mão de ferro na sua consecução: poucos seriam capazes de fazê-lo, talvez apenas os “realistas-idealistas”. Ou serão os “idealistas- realistas”? Grande questão…
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); diplomata de carreira do serviço exterior brasileiro desde 1977; professor de Economia Política Internacional no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasilia (Uniceub); autor de diversos livros de história diplomática e de relações internacionais (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).

Henry Kissinger at 95: alive and kicking - Paulo Roberto de Almeida

Não diria que se trata exatamente de uma homenagem. Era para ser um "obituário" preventivo, mas o homem se recusa a morrer, como o velho George Kennan (nenhuma semelhança entre os dois, inclusive porque Kennan tinha, como diria Adam Smith, "sentimentos morais").
Não mudo nada do que escrevi dez anos atrás, apenas acrescentaria alguns novos comentários sobre as "afinidades" pouco eletivas entre Mr Kissinger e a China, como realista cínico que ele sempre foi.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de maio de 2018

O legado de Henry Kissinger, por Paulo Roberto de Almeida

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p style=”text-align:justify;”>Não, o velho adepto da realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado 85 anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo das idéias aplicadas às relações de poder).
Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger – querem ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa.
Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de “vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena (1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”.
O legado de Henry Kissinger é multifacético e não pode ser julgado apenas pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta anti-comunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction -, como consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriomente a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações internacionais.
A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros lançamentos.
Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal, em sua opinião,  o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais comprometidos com a causa anti-comunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos seus olhos.
Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto.
O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista” – como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de juizes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à “causa democrática” no mundo -, tem de ser necessariamente diferente do julgamento daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”. Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu En-lai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos.
Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet – que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não “acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar.
Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação – qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena.
Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano, tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico, ou histórico. Grandes estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de suas ações e pensamento.
Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos. Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser apenas o seu intérprete tardio. Nada mal, afinal de contas, para alguém que foi, acima de tudo, um intelectual…
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); diplomata de carreira do serviço exterior brasileiro desde 1977; professor de Economia Política Internacional no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasilia (Uniceub); autor de diversos livros de história diplomática e de relações internacionais (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).