Como o artigo precedente, sobre Henry Kissinger (com o qual este possui conexões), este também é de dez anos atrás. Mudou algo na geopolítica mundial desde então?
Provavelmente nada, mas mudou a geoeconomia do mundo, com a irresistível ascensão da China aos pináculos do sucesso em termos de crescimento, ganhos de produtividade, inovação tecnológica, ganhos de mercado.
Todo mundo tem direito a uma "tese". Pois a minha é esta aqui. A velha Guerra Fria geopolítica terminou não por um Bang, mas por um bing, com a implosão do socialismo, que deu dois suspiros e depois morreu. Estamos agora numa nova Guerra Fria, mas geoeconômica, e a China já ganhou essa guerra, inclusive porque a Europa continua letárgica e os EUA se encontram paralisados por um estupor de presidente, que abre um tapete vermelho para a maior glória do gigante asiático.
Vou ter de reler esse meu texto abaixo, o que ainda não fiz, para ver se tenho de corrigir alguma coisa, mas não costumo fazer isso em meus textos. Penso muito antes de escrever, pois subi em ombros de gigantes para ver melhor, como Raymond Aron, por exemplo...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de maio de 2018
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p style=”text-align:justify;”>Seria totalmente justificado o mau
(pré)conceito que carrega a Realpolitik no plano das atitudes possíveis
de serem adotadas pelos estadistas e outros responsáveis pelas relações
internacionais dos Estados modernos? Leva ela, necessariamente, a um
comportamento egoísta no confronto com alternativas menos
estado-cêntricas e mais voltadas para o bem comum da comunidade
internacional? Mas será que existe, de fato, uma coisa chamada
“comunidade internacional”? Estadistas responsáveis podem adotar outra
postura que não a pragmática, focada no interesse nacional, quando se
trata de administrar as relações exteriores de seus países? Vejamos o
que seria possível argumentar em torno desse conceito numa espécie de
curso concentrado.
Realpolitik é mais um método do que uma doutrina, completa e acabada.
Ela pode ser vista como uma escola de pensamento que não é boa, ou má,
em si, e sim que pode, ou não, servir os interesses daqueles que
presumidamente se guiam por seus “princípios”, algo vagos, de análise e
de ação. O que ela quer dizer, finalmente? A rigor, trata-se de um
simples cálculo utilitário, baseado nos interesses primários de um país,
um Estado, um indivíduo. Ela tende a considerar os dados do problema e
não se deixa guiar por motivações idealistas, generosas ou
“humanitárias” de tal decisão ou ação, mas apenas e exclusivamente pelo
retorno esperado de um determinado curso de ação, que deve corresponder à
maior utilidade ou retornos possíveis para o seu proponente ou condutor
da ação.
Como tal, ela responde a objetivos estritamente pragmáticos e
“racionais”, num sentido estrito, de uma determinada interação humana,
social ou estatal. Ela parte de um pressuposto básico, na vida ou na
sociedade: indivíduos e grupos sociais guiam-se, basicamente, por seus
instintos de sobrevivência ou por seus interesses imediatos de conforto,
bem-estar, segurança, maximização de satisfação, de prazer ou de
riqueza e poder, no caso de sociedades mais complexas. Não se pode negar
que, nessa perspectiva, ela corresponde, aparentemente, à natureza
humana, ou pelo menos a certa concepção da natureza humana, tal como
vista pelos filósofos utilitaristas ou individualistas.
O que oferece, em seu lugar, aquela que seria, presumivelmente, sua
contrapartida teórica, ou até prática, a Idealpolitik? Esta,
supostamente, se deixaria guiar por nobres ideais, altruística em seus
princípios e motivações, generosa nas suas interações e ações, voltada
para o bem comum, a solidariedade, a elevação moral da humanidade e a
promoção de valores vinculados aos direitos humanos, à democracia, ao
primado do direito sobre a força, à construção de uma institucionalidade
que supere, justamente, o interesse egoísta de indivíduos e Estados.
Ainda que se possa conceber a existência, e mesmo a atuação, de
indivíduos, instituições e Estados que se deixem guiar por tal conjunto
de princípios e valores, não tenho certeza de que eles são seguidos na
prática quando se trata do interesse maior de indivíduos e sociedades
organizadas, que são os da sua segurança e da sua sobrevivência física.
Em qualquer hipótese, algumas distinções são possíveis, e passíveis, de
serem feitas e elas têm a ver com a organização geral das ações do
Estado no plano exterior. Teoricamente, a “doutrina” idealista seria
mais comprometida com a cooperação internacional – no plano bilateral ou
multilateral – e com a promoção de instituições comprometidas com tal
finalidade, atualmente representadas pela ONU (mesmo com toda a
corrupção e desvios comprovados), ao passo que a “doutrina” realista
teria unicamente como base o interesse egoísta dos Estados, fechados,
portanto, a esforços de cooperação ampliada, assistência a necessitados
ou promoção de interesses comuns da humanidade. Tal dicotomia é
dificilmente encontrável na prática, pois todos os Estados, e
indivíduos, acabam cooperando na prática, ainda que tratando de cuidar,
primariamente, de seu interesse próprio.
Finalmente, pode-se conceber uma Realpolitik “esclarecida” que,
voluntariamente ou não, busca, de forma ativa ou secundária, a promoção
de valores “altruísticos”, uma vez que eles poderiam ser funcionais, em
última instância, para a promoção e a manutenção do interesse próprio do
Estado ou do indivíduo em questão. Ou seja, a busca do “bem” redundaria
em maior bem primeiramente para o seu promotor.
Estas considerações, necessariamente de cunho generalizante ou
conceitual, não têm muito a ver com realizações práticas, ou correntes,
de alguma Realpolitik em ação, “esclarecida” ou não. Normalmente se
tende a identificar o exercício desse tipo de política com manifestações
práticas de “diplomacia blindada” de alguma grande potência, na
suposição de que apenas potências dominantes têm condições de cuidar de
seu interesse próprio de maneira egoísta ou arrogante, o que é um
entendimento enviesado, ou capcioso, do que seja Realpolitik. Por certo,
pequenos Estados ou indivíduos desprovidos de poder próprio não têm
condições de impor sua vontade aos demais, daí a identificação da
Realpolitik com a política de poder. A rigor, qualquer indivíduo ou
Estado pode tentar exercer seu quantum de Realpolitik, embora dentro de
limites próprios à sua liberdade de ação (ou de reação).
Para tocar num exemplo sempre invocado de doutrina “realista” do
interesse nacional, num sentido estreitamente egoísta e unilateral,
referência é feita à chamada “doutrina Bush” de ação preventiva, com
vistas a antecipar a qualquer iniciativa por parte de Estados inimigos
ou grupos terroristas de atacar os EUA, o que justificaria, aos olhos de
seus dirigentes, um ataque preventivo contra esses supostos inimigos.
Ao mesmo tempo, caberia lembrar que essa doutrina vem sendo apresentada
ou vem “envelopada” num conjunto de argumentos justificadores da ação
americana, condizentes, supostamente, com uma visão mais “altruística”
das relações internacionais, posto que identificada com a promoção da
democracia, a defesa dos direitos humanos – em especial da mulher -, a
capacidade de iniciativa individual no plano econômico, a liberdade
religiosa e vários outros elementos de natureza supostamente
“iluminista”.
Que isto esteja sendo feito por bombas e ocupação militar, e não por
professores e missionários, poderia ser visto como secundário do ponto
de vista da escola “realista”, embora não o seja para os “destinatários”
da ação: afinal de contas, parece difícil implementar a democracia na
ponta dos fuzis, ou mediante canhões e mísseis. Desse ponto de vista, a
visão e a ação de Kissinger pareciam sinceras, ainda cinicamente
realistas: ele não pretendia “melhorar” o mundo, apenas torná-lo
suportável no plano dos interesses nacionais americanos, o que já lhe
parecia um programa realisticamente enorme (em face dos perigos
percebidos, reais ou ilusórios).
A Realpolitik, portanto, recomendaria deixar cada povo cuidar dos seus
afazeres, sem interferência dos demais, até o limite dos efeitos
indiretos sobre a segurança de outros da soberania exclusiva assim
exercida (ou seja, eventuais spill-overs da potestade interna exercida
de maneira excludente). Atualmente se invoca, ao lado do “dever de
ingerência” – que seria a intervenção direta nos assuntos internos de
outros Estados em caso de graves atentados aos direitos humanos – o
chamado princípio da “não-indiferença”, que seria uma motivação
altruística para exercer a cooperação ativa em prol do bem estar de
povos menos bem aquinhoados pela natureza ou pela sua organização
estatal ou social. A diferença entre um e outro estaria em que, no
primeiro caso, a intervenção se daria contrariamente aos desejos ou
capacidade de reação do Estado em questão, ao passo que no segundo, em
total concordância e em cooperação com seus dirigentes.
Num primeiro caso, teríamos, então, a Realpolitik bem intencionada, no
segundo a Idealpolitik explícita e aberta. O que se deve julgar, na
verdade, é a eficiência das ações empreendidas com relação a objetivos
bem determinados: no primeiro caso, o possível resultado é o salvamento
de pessoas que de alguma forma pereceriam na ausência de intervenção, o
que significa, simplesmente, a diferença entre a vida e a morte. No
segundo caso, as ações altruísticas empreendidas podem ser rigorosamente
inócuas, caso a não indiferença se exerça em direção de objetivos
secundários ou totalmente marginais em relação aos verdadeiros problemas
do país ou sociedade assim beneficiados com tal ação humanitária.
Não há, como se vê, um critério uniforme para se julgar princípios de
ação, ou suas motivações teóricas: o que existem são situações objetivas
e resultados tangíveis, em função dos quais julgar da efetividade de
iniciativas e empreendimentos tomados por estadistas. O realismo e o
idealismo podem ser invocados em circunstância diversas, e produzirem
resultados totalmente contraditórios, em função dos objetivos
pretendidos e dos meios mobilizados.
O que teria Kissinger a ver com isto, finalmente? Provavelmente nada, a
não ser a perspectiva da história profunda e o sentido da razão, sempre
bons conselheiros em matéria de políticas de Estado, em qualquer área
que se pretenda atuar. Com todo o seu realismo cínico, Kissinger foi
provavelmente um estadista altamente eficiente do ponto de vista dos
interesses egoístas – portanto realistas – dos EUA. Teria sido ele tão
eficiente assim caso tivesse sido, hipoteticamente, guindado à frente
das Nações Unidas, num papel de cunho profundamente altruístico e
humanitário? Provavelmente não, pois lhe faltaria a alavanca necessária
para ser bom (ou mau, com os ditadores), segundo as circunstâncias: o
poder de ordenar e de ser obedecido.
Não é segredo para ninguém que a ONU, com todos os seus bons princípios –
e a despeito de uma maquinaria emperrada, por vezes corrupta – não é
sequer capaz de fazer cumprir seus objetivos prioritários, e ela não o
será pelo futuro previsível. Isto talvez seja uma demonstração cabal de
que o realismo prático, com todos os seus supostos defeitos congenitais,
ainda constitui uma boa alavanca para a ação.
Talvez, então, a melhor combinação possível, se as escolhas nos são
dadas, fosse armar-se de uma doutrina inspirada nos bons princípios da
Idealpolitik, ao mesmo tempo em que, no terreno da ação prática (e
efetiva), buscaríamos guiar-nos pelos velhos e surrados princípios da
Realpolitik. Acredito que mesmo um cínico como Kissinger não desgostaria
desta combinação. Provavelmente é mais fácil propor do que implementar
tal tipo de mini-max, ou seja, uma mistura de boas intenções com uma mão
de ferro na sua consecução: poucos seriam capazes de fazê-lo, talvez
apenas os “realistas-idealistas”. Ou serão os “idealistas- realistas”?
Grande questão…
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em
ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); diplomata de
carreira do serviço exterior brasileiro desde 1977; professor de
Economia Política Internacional no Mestrado em Direito do Centro
Universitário de Brasilia (Uniceub); autor de diversos livros de
história diplomática e de relações internacionais (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).