Não mudo nada do que escrevi dez anos atrás, apenas acrescentaria alguns novos comentários sobre as "afinidades" pouco eletivas entre Mr Kissinger e a China, como realista cínico que ele sempre foi.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de maio de 2018
O legado de Henry Kissinger, por Paulo Roberto de Almeida
p style=”text-align:justify;”>Não, o velho adepto da realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado 85 anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo das idéias aplicadas às relações de poder).
Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger – querem ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa.
Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de “vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena (1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”.
O legado de Henry Kissinger é multifacético e não pode ser julgado apenas pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta anti-comunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction -, como consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriomente a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações internacionais.
A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros lançamentos.
Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal, em sua opinião, o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais comprometidos com a causa anti-comunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos seus olhos.
Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto.
O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista” – como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de juizes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à “causa democrática” no mundo -, tem de ser necessariamente diferente do julgamento daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”. Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu En-lai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos.
Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet – que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não “acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar.
Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação – qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena.
Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano, tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico, ou histórico. Grandes estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de suas ações e pensamento.
Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos. Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser apenas o seu intérprete tardio. Nada mal, afinal de contas, para alguém que foi, acima de tudo, um intelectual…
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); diplomata de carreira do serviço exterior brasileiro desde 1977; professor de Economia Política Internacional no Mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasilia (Uniceub); autor de diversos livros de história diplomática e de relações internacionais (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).
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