A
cultura da esquerda
Sete pecados dialéticos que atrapalham seu
desenvolvimento
Paulo
Roberto de Almeida
(texto de 2005)
Prólogo necessário:
Faço parte daquilo que poderia ser classificado, à falta
de melhor definição, como “cultura de esquerda”, algo suficientemente
disseminado no Brasil para desobrigar-me aqui de maiores elaborações sobre seu
conteúdo específico. Talvez eu devesse dizer que pertenço hoje bem mais à
“cultura” do que à “esquerda”, et pour
cause: adjetivos desse tipo, one-sided,
são em geral reducionistas ou simplificadores e os maniqueísmos que usamos na
vida corrente não estão adaptados aos matizes da realidade e a uma visão
abrangente dos processos sociais, sempre complexos em sua totalidade.
Dicotomias como “esquerda” e “direita” são partes de um todo, mas relutam em
abrigar as particularidades que não se encaixam em seus moldes pré-concebidos.
Sem maiores considerações terminológicas ou
metodológicas, pretendo listar e em seguida discorrer sobre o que considero
serem os sete grandes pecados da cultura da esquerda, características pouco
defensáveis e que parecem atrapalhar sobremaneira seu desenvolvimento e sucesso
público. Alguns desses pecados são “veniais”, como a visão popularesca da
cultura e da vida social, outros são “mortais”, como a ojeriza ao mercado ou a
objeção à democracia simplesmente formal, mas todos eles me aparecem como
“inutilidades históricas” ou “relíquias bárbaras” que já deveriam ter
desaparecido do discurso da esquerda, se é verdade que ela pretende se colocar
como alternativa credível de poder e de administração pública.
Quais são, afinal, esses “pecados dialéticos” que
afligem a esquerda, no Brasil e no mundo? Listei apenas sete, como os sete
pecados capitais, mas eles poderiam ser mais. Contentei-me, no momento, com
estes sete, mas aceito sugestões “amplificadoras”.
1. A esquerda é estupidamente antimercado.
2. Ela é (falsamente) igualitarista.
3. Ela se posiciona contra a “democracia
formal”, preferindo a “democracia real”.
4. A esquerda é geralmente estatizante (o
que é, realmente, uma pena).
5. Ela é anti-individualista, preferindo os
“direitos coletivos”.
6. Ela é tristemente populista e
popularesca.
7. Também costuma ser voluntarista e
anti-racionalista.
Voilà: feita a listagem dos pecados “dialéticos” que julgo identificar na
esquerda, certamente atribuídos a uma história de lutas que remonta ao século
XIX (mas que ela se esqueceu de atualizar para nossos tempos de globalização),
vejamos como explicar cada um deles e, quiçá, contribuir para sua superação.
1. Antimercado.
Eu disse que a esquerda é “estupidamente” antimercado, e
tenho, infelizmente, de reforçar o adjetivo estúpido, pois isso constitui um
flagrante atestado de incoerência e de irracionalidade da parte de um grupo
que, supostamente, cultiva as boas virtudes do método dialético. Trata-se, porém,
de uma atitude muito frequente no meio acadêmico e comum às várias vertentes do
movimento. Ela deriva de um preconceito original, filiado geneticamente ao
velho barbudo, mas que sempre constituiu o mais grave pecado que prejudicou
terrivelmente a carreira da esquerda em todo o mundo. Suas consequências foram
verdadeiramente trágicas, pois que não apenas redundaram em inúteis sofrimentos
sociais, incompreensíveis inconsistências econômicas, além de catastróficos
atentados aos direitos humanos nos vários países nos quais experimentos de
esquerda tentaram “corrigir” as chamadas “insuficiências do mercado”, como elas
continuam a obstaculizar os progressos da esquerda em direção a uma administração
mais racional das “coisas”.
Mercados (e moedas) são antiquíssimas instituições
humanas – ou melhor, “societais” – que muito contribuíram para “empurrar” as
sociedades a patamares mais avançados de organização social da produção e de
distribuição de bens e serviços. São não apenas indispensáveis como
insubstituíveis, já que permitem operacionalizar, na prática, a velha lei da
oferta e da procura, sinalizando o encontro de produtores e de consumidores,
mediante esta outra instituição intangível, mas tremendamente real, que se
chama “preço”. A esquerda pode até não gostar da lei da oferta e da procura,
mas ela não tem o direito de negar sua realidade social e sua validade
histórica. Ela pode também achar que a sociedade estaria mais bem organizada segundo
o princípio vagamente utópico que proclama, seguindo Marx na sua “Crítica ao
Programa de Gotha” (da socialdemocracia alemã do século XIX), “de cada um
segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.
De fato, a ojeriza da esquerda contra os mercados deriva
diretamente de Marx, pois ela não é típica de outras correntes socialistas
(como as proudhonianas ou de autogestão, por exemplo), e provavelmente se
explica pelos horrores da exploração do trabalho durante a primeira Revolução
Industrial, dos quais Marx tinha conhecimento pela leitura de relatórios
oficiais britânicos e pelo livro de seu amigo Engels sobre a situação da classe
trabalhadora na Inglaterra (não consta que ele jamais tenha adentrado numa
fábrica). O pecado original está aí: Marx concluiu, de modo hegelianamente
falso, que o vilão da história era essa instituição singular e onipresente
chamada “mercado”, e não um fator real e diretamente responsável, chamado
“mercado laboral”, então, e ali na Inglaterra, caracterizado pelo “excesso” de
oferta de trabalhadores, o que deprimia o “preço de mercado” dos trabalhadores
em questão. Concluindo pela perversidade natural dos mercados, Marx recomendou
sua abolição, mas ele o fez de modo puramente teórico, sem maiores consequências
para a humanidade. Em todo caso, mesmo em sua época, economistas como John
Stuart Mill e Vilfredo Pareto já tinham criticado as posições de Marx sobre a
“extração de mais-valia” como inexequíveis e irracionais, mas a esquerda se
“esqueceu” de ler esses críticos do profeta maior.
As coisas se complicaram quando Lênin, um gênio em
política mas um inculto em economia, resolveu concretizar as poucas idéias
vagas de Marx sobre o funcionamento de uma “economia socialista”, na sua
concepção podendo prescindir dos mercados. Não deu outra: foi um desastre
completo, tanto que ele resolveu, rapidamente, voltar a aceitar o funcionamento
parcial dos mercados, na chamada NEP, a “nova economia política”. Mas, mesmo
nesse regime, as grandes fábricas foram nacionalizadas, burgueses e
latifundiários foram devidamente expropriados e se começou a lançar as bases do
“planejamento econômico socialista”, algo que Stalin aperfeiçoaria
tremendamente alguns anos depois, com os custos humanos que se conhecem.
Desde o início, entretanto, um economista “liberal” como
Ludwig Von Mises advertia para a impossibilidade de funcionamento de uma
“economia socialista” naquelas bases, pela ausência do mecanismo absolutamente
indispensável ao cálculo econômico: a fixação dos preços via mercado, ou seja,
a velha lei da oferta e da procura. A esquerda também preferiu ignorar essas
advertências e seguiu construindo o socialismo a seu risco e perigo. Deu no que
deu: um imenso desperdício de “forças produtivas”, uma coerção absolutamente
inimaginável, em termos históricos, das “relações de produção”, e uma ausência
notável de progresso econômico sob aquele “modo de produção”, em virtude dos
reduzidos (ou inexistentes) incentivos à inovação tecnológica, em vista da
recusa de “riqueza proprietária” (ou de acumulação em bases individuais).
Podemos até compreender, e de certa forma aceitar, que
tais erros tenham sido cometidos no passado, uma vez que até mesmo “engenheiros
sociais” de espírito e vocação eminentemente capitalista (e até mesmo
aristocrática), como Saint Simon por exemplo, puderam incorrer na ilusão de que
mercados e sistemas produtivos pudessem ser organizados pelos homens de maneira
mais “racional” do que aquela permitida pelo simples funcionamento da lei da
oferta e da procura. O inacreditável é que, ainda hoje, pessoas que se
consideram de esquerda – mantendo, portanto, certo comprometimento com o
progresso social e o bem estar das pessoas – mantenham o preconceito totalmente
equivocado contra o mercado alimentado pelos pais fundadores do marxismo. Marx
certamente cometeu um erro, Lênin persistiu no equívoco e Stalin simplesmente
acumulou crime sobre crime, ao pretender fundar uma nova economia na ausência
total de mercado e de sinalização de preços. O fracasso só poderia ser
completo.
Tanto isso é verdade que os primeiros experimentos de
“reforma socialista”, no pós-Segunda Guerra, inspirados por economistas que
tinham vivido sob o capitalismo como Oskar Lange, pretenderam introduzir
mecanismos de mercado na “economia planejada”, voltando a utilizar os preços
como sinalizadores do cálculo econômico. Não deu muito certo, nem naquela
época, nem posteriormente, em tempos de glasnost
e perestroika, uma vez que a
autonomia operacional e gestora requerida pelos mercados, com livre disposição
dos bens em função do custo de produção e apropriação de renda segundo as
oportunidades de mercado, revelou-se incompatível com o monopólio partidário
exercido por uma nomenklatura que se
apropria do processo de decisão sem medir a raridade relativa dos fatores de produção
e organizando ela mesma a distribuição, segundo critérios não econômicos de
“mérito”.
Esse desastre conceitual se perpetua ainda hoje pelo
simples fato de que os principais produtores e disseminadores de
“conhecimento”, que são os professores da rede pública, em especial os
universitários, mantêm a ilusão (e o autoengano) de viver à margem do mercado,
pois que eles recebem sua paga independentemente dos seus níveis de
produtividade relativa. Esta é uma das muitas distorções do serviço público,
mas que sempre são sancionadas pelo mercado e pelos preços (neste caso
indiretamente, via retorno social dos investimentos feitos ou gastos incorridos
no sistema de ensino público), independentemente do que possam pensar tais
“disseminadores” de cultura antimercado.
O preconceito da esquerda contra os mercados, e seus
sinalizadores, pode até ser aceito no pequeno mundinho semi-produtivo da
cultura universitária, mas ele se revela absolutamente catastrófico quando
transmutado para o terreno das políticas públicas, em especial as de cunho
diretamente econômico. A pretensão de certos intelectuais, em geral diretamente
saídos do mundo universitário, de organizar a sociedade e a economia em bases
“socialmente justas”, isto é, “corrigindo as imperfeições dos mercados”,
traduziu-se em desastres incomensuráveis do ponto de vista da riqueza social, o
que geralmente se refletiu na “desacumulação”, no “desinvestimento” e em
manifestações mais prosaicas como fuga de capitais, alocação sub-ótima (senão
totalmente errada) de recursos escassos e assistencialismo inconsequente do
ponto de vista da produtividade do trabalho humano.
Os “intelectuais” que assim procedem pensam que seu
trabalho de “planejador” é pago com “recursos públicos”, quando a única fonte
de riqueza, em qualquer sociedade, é o trabalho diretamente produtivo dos
agentes econômicos que possuem ou manipulam fatores de produção (e a
administração estatal não é um deles, muito menos o ensino universitário, ainda
que este possa contribuir para “acumular conhecimento”, base do progresso
tecnológico). Em todas as instâncias de geração de riquezas, repito “em todas”,
os mercados são absolutamente indispensáveis para o bom funcionamento do
mecanismo econômico da sociedade. Pretender ignorá-los, e a seus sinalizadores
imediatos que são os preços, constitui uma atividade de imenso risco social,
como aliás já deveríamos ter descoberto aqui no Brasil. A esquerda precisaria
refletir sobre isso.
2. Igualitarismo.
A esquerda é igualitarista, o que é compreensível: isso
faz parte de seu credo evangelizador e legitima o discurso político pelo qual
ela pretende conseguir adeptos e ter sucesso social. O mesmo ocorre com outros
cultos ou mesmo religiões inteiras: pregar a simplicidade na vida, uma partilha
equitativa dos bens e um usufruto razoavelmente equilibrado dos recursos
disponíveis sempre soou como disposição de bom senso e de inegável mérito
humanitário. Mas, e sempre tem um mas, existe um problema aqui: não existe
almoço grátis, como reza uma velha arenga, e se você está se alimentando de
graça é porque alguém está pagando por isso. Em outros termos, como não existe
maná dos céus ou uma cornucópia infindável jorrando alimentos a partir do nada,
os recursos escassos têm de ser organizados para servir a fins socialmente úteis.
A sociedade humana inventou uma outra instituição tão
velha quanto os mercados e as moedas para tentar organizar essa escassez
relativa: a propriedade. Ela é apropriada individualmente (sempre quando isso é
possível) porque a fonte de toda a riqueza é o trabalho humano – como ensinavam
Adam Smith e Marx – e se supõe que as instituições estatais (que também surgem
muito cedo na história das sociedades) respeitem esse princípio da “acumulação
individual”. Quando isso não ocorre é mais do que provável que não haverá um
incentivo à acumulação e, portanto, ao aumento da riqueza social, com o que
todos serão mais pobres, mas especialmente os mais pobres dentre os pobres, uma
vez que os verdadeiramente ricos sempre distribuem um pouco de seu patrimônio
em torno de si, sob a forma de trabalho doméstico e outros serviços
“aliviadores” do seu próprio trabalho.
Mas eu disse que a esquerda é falsamente igualitarista
porque não conheço, em qualquer parte do mundo, uma sociedade que tenha
conduzido um experimento inovador de igualitarismo radical. Aceitando-se que
alguns possam dispor de bens sem qualquer correspondência com sua contribuição
efetiva para a criação da riqueza que os sustenta, como todas as sociedades
socialistas admitem, tem-se que existe uma igualdade para os simples iguais e
um pouco menos de igualdade para os “mais iguais”. Admitamos que estes sejam
“detalhes” numa situação distributiva bem mais complexa e tratemos daquilo que
incomoda realmente a esquerda: o excesso de desigualdade distributiva e os absurdos
da ostentação social de riqueza, por um punhado de ricos, entenda-se, numa
situação de relativa penúria para a maior parte da sociedade.
Essa situação realmente existe e sua origem é geralmente
atribuída, pela esquerda, ao capitalismo, aos mercados, à apropriação
individual de riquezas, ou a todos esses fatores reunidos. Passemos por cima da
tremenda simplificação que significa equacionar capitalismo a mercados, quando
o primeiro convive com os mais diferentes tipos de mercados e se puder tenta contornar
e conformar os mercados segundo seus gostos e preferências particulares (sempre
no sentido da acumulação e da concentração). Existe, por certo, certa tensão
entre “acumulação capitalista” e distribuição de riqueza, mas as relações
causais entre uma e outra não são unívocas ou unidirecionais: um dos países nos
quais é maior o crescimento das desigualdades distributivas é justamente a
China atual, formalmente descrita como “socialista de mercado” ainda
oficialmente comprometida com a igualdade de condições dos cidadãos. Devemos
assim observar que os diferenciais mais gritantes de distribuição de riqueza
geralmente são encontrados em sociedades muito pouco capitalistas pela sua
organização e tradição e que as sociedades plenamente ou tipicamente capitalistas
apresentam um perfil distributivo bem mais, arrisquemos a palavra,
“igualitário”.
Isto se dá porque o capitalismo plenamente eficaz e
funcional implica em relativa “anomia” dos mercados, isto é, total “anarquia”
dos sistemas produtivos e distributivos. Em princípio, todos são livres para
produzir e vender o que desejam fabricar e distribuir, nada se opondo à
constituição de pequenas firmas ou grandes empresas que arriscam o patrimônio
de seus proprietários (e os ativos de outros participantes, acionistas diretos
ou investidores longínquos) no livre jogo da oferta e procura de bens e
serviços, triunfando apenas o menor preço e a maior qualidade. Quando os
mercados são verdadeiramente livres, o capitalismo exerce todas as suas
qualidades de melhor sistema para criar e distribuir riquezas; quando eles, ao
contrário, são pouco livres, até o capitalismo ostenta suas mais horrendas
feições, sob a forma de cartéis e de monopólios que distorcem a concorrência e
alimentam, aí sim, o mais iníquo dos perfis distributivos de riqueza (pois que
baseado na exploração impiedosa daqueles que foram alijados do mercado por
critérios outros que não os diretamente econômicos).
O problema da distribuição, que está na base das
vocações (e das pretensões) supostamente igualitaristas da esquerda, deriva
justamente do fato de que ela pode ser organizada em bases que não têm
diretamente a ver com a dotação de fatores existentes num determinado sistema
produtivo. Ou seja, havendo um Estado que atua como agente regulador e “distribuidor”
de bens e serviços “públicos”, é muito provável que os atores estatais sejam
tentados a organizar a distribuição desses bens, mesmo daqueles que não são
necessariamente “públicos”, em bases “socialmente justas”, praticando um pouco
de “Robin Hood” a serviço dos mais pobres. É até “normal” que isso ocorra e
plenamente compreensível nos termos “morais” em que o assunto é colocado pelo
discurso da esquerda (que nesse caso se confunde com as pregações religiosas de
muitos cultos). O problema começa quando se passa do “fluxo” de riquezas para a
gestão dos “estoques”.
Expliquemos mais um pouco, pois a esquerda tende
geralmente a confundir fluxos com estoques. Os fluxos são constituídos por todo
produto do trabalho humano, sendo tanto maiores quanto forem elevados os
índices de produtividade desse trabalho. Já os estoques são simplesmente
riqueza acumulada, ativos de diversos tipos em formas por vezes não diretamente
líquidas, e que representam apropriação individual ou coletiva. Tanto fluxos
como estoques variam tremendamente, entre as sociedades e dentro delas,
dependendo da capacidade produtiva e da maior ou menor propensão a poupar dos
agentes sociais (a poupança é uma atitude eminentemente individual, mas existem
indutores estatais de poupança “compulsória”). A poupança e o investimento são
dois elementos absolutamente indispensáveis ao crescimento da riqueza social, e
sem eles simplesmente não haveria o que distribuir, pois que os estoques
existentes seriam simplesmente dilapidados entre os atores do jogo social.
Um dos problemas da esquerda não é o de pretender ao
igualitarismo social – o que poderia ser até perdoado on moral grounds –, mas é o de pretender fazê-lo atuando sobre os
estoques existentes, em lugar dos fluxos continuamente criados para aumentar a
riqueza disponível. A esquerda parece querer realmente ser “Robin Hood”, ou
seja, tomar dos ricos para dar aos pobres, quando o que ela consegue fazer, por
essa via, é incitar os ricos a esconder ou expatriar sua riqueza, diminuindo a
poupança, ou os investimentos, e em geral a ambos, o que impede o aumento
contínuo de riqueza social. Que o mundo seja injusto e desigual, isso é
conhecido desde os tempos bíblicos e até antes disso. Que a correção dessa
desigualdade – equiparada ou não a uma “injustiça social” – possa ser feita
mediante repartição dos estoques existentes, significa que esse tipo de
“engenharia social”, quando praticada, pode teoricamente acarretar outras
injustiças individuais, irracionalidades econômicas e até mesmo certo grau de
violência social.
A melhor forma de praticar “igualitarismo” é, portanto,
atuar sobre os fluxos, isto é, fazer com que os atores sociais possam retirar o
máximo de remuneração e de retorno social possíveis de suas atividades
diretamente produtivas (também distributivas, isto é, nas áreas que têm a ver
com a intermediação e os serviços, inclusive o ensino público). Isto geralmente
consegue-se elevando os padrões de produtividade do trabalho humano, o que tem
a ver com a capacitação educacional e profissional dos atores sociais. Daí se
conclui que a melhor forma de se fazer uma distribuição “igualitária” das
chances de sucesso social (e de acumulação de riqueza, portanto) seria via
qualificação educacional de todos, segundo padrões universais (e mínimos, mas
quanto maiores melhor) de ensino e de aprendizado técnico profissional. Isso se
consegue por um ensino fundamental de boa qualidade, o que geralmente é
admitido pela esquerda, mas apenas teoricamente, pois que ela prefere se
dedicar ao ciclo universitário (que pode ser tudo num país, menos universal).
Quando a esquerda admitir que a melhor forma de ajudar os “pobres”, no Brasil,
seria praticando uma revolução educacional radical (mas isso deve ser feito
essencialmente em favor dos mais pobres, que não passam do segundo ciclo),
talvez possamos começar a pensar na diminuição dos níveis absurdamente altos
(iníquos e imorais, em todos os planos) de concentração de riqueza em nosso
país.
3. A esquerda é contra a democracia formal.
A esquerda sempre foi contra a “democracia burguesa”,
por ela considerada como simplesmente formal, ou “vazia de conteúdo social”,
com consequências trágicas para as liberdades em várias épocas e
circunstâncias. O que ela pretende é uma “verdadeira” democracia, querendo com
isso dizer que todos devem dispor de igualdade de chances, e de um patamar
mínimo de subsistência, para exercer plenamente os “direitos políticos”.
Isto é um equívoco grave, pois é como se o conteúdo do
regime político fizesse parte de seu “envelope” social. A democracia nada mais
é do que um “método”, um conjunto de regras do jogo que se situa na esfera das
relações sociais, mas que não podem determinar, essas mesmas regras, as formas
pelas quais os membros da sociedade irão repartir as riquezas e administrar as
competências individuais, na produção de bens e no seu consumo.
Em outros termos, a democracia não pode ultrapassar sua
vocação original, que é a de simplesmente determinar como os cidadãos delegarão
mandatos e poderes a seus representantes para o desempenho de funções
administrativas (executivas e legislativas), técnicas (serviços públicos),
corretivas (justiça) ou defensivas. Mas todas essas funções – e algumas outras
não eventualmente compreendidas nessas acima – são meramente redistributivas de
alguma riqueza previamente criada em outras esferas da vida social, e não
podem, elas mesmas, criar riquezas para que a “democracia” as distribua. Isso é
virtualmente impossível. Pretender o contrário seria pedir demais à democracia.
Por isso mesmo que a democracia deve permanecer formal,
pois qualquer outra atribuição concreta e real, no plano das desigualdades
distributivas, implicaria certo grau de “violência social” que comprometeria as
bases do regime democrático. A esquerda deveria lutar para aperfeiçoar o regime
democrático no plano da representação – não necessariamente de tipo corporativo
– e no âmbito do controle dos recursos públicos (que são eminentemente
“privados”, como já se esclareceu) que são colocados à disposição desses
representantes para o desempenho de suas funções eminentemente políticas (e não
econômicas).
Parece óbvio, por exemplo, que a democracia brasileira,
plenamente existente no plano das instituições, é de “baixa qualidade”, seja no
que se refere à representação – o que deriva da educação política da população
–, seja no que se refere ao exercício mesmo das funções delegadas, muito pouco
controladas pelo povo representado e, sobretudo, se prestando a diversos abusos
de forma e de conteúdo (como o fato de que certos delegados do povo façam dessa
representação um verdadeiro negócio privado). Quanto mais formal for a
democracia brasileira, isto é, menos sujeita a injunções pessoais e
idiossincrasias das corporações em que se organiza o Estado e mais atenta às
regras da boa gestão pública, com controle social das funções delegadas, melhor
será para a população.
A democracia brasileira não será mais ou menos
“burguesa” se ela se apresentar como simplesmente “formal”, mas ela será de
melhor qualidade se esse formalismo for capaz de diminuir ou simplesmente
minimizar as demandas particularistas – seja da burguesia, do proletariado ou
de qualquer outra categoria social – em direção de um sistema de organização
política que pretende, meramente, dispor sobre as “regras do jogo” (na feliz
definição de Norberto Bobbio), sem avançar na definição de “direitos sociais”
ou “econômicos” que podem inviabilizar seu modo de funcionamento. A esquerda
brasileira deveria parar de pretender atribuir rótulos à democracia e
empenhar-se, tão simplesmente, em construir uma “boa democracia formal” em
nosso país.
4. A esquerda é estatizante.
É realmente uma pena que assim ocorra, pois que o
próprio Marx não era estatizante, pelo menos não no sentido finalista. Verdade
que no Manifesto do Partido Comunista,
texto que alguns consideram a “bíblia” do comunismo ideal – mas que não
constituiu senão uma plataforma preliminar para a tomada do poder pelos
trabalhadores, escrita muito rapidamente no início de 1848 para responder à
onda revolucionária então em curso na Europa –, várias das medidas preconizadas
“para os países mais avançados”
comportam uma estatização integral de diversos setores da economia: sistema
bancário, transportes, latifúndios e instrumentos de produção em geral.
Tratava-se, contudo, de um programa imediato de correção das desigualdades
sociais, não de uma proposta definitiva para a organização social da produção
em regime socialista, já que logo em seguida se afirmava que “uma vez
desaparecidas no curso do desenvolvimento as diferenças de classe e concentrada toda a produção nas mãos dos
indivíduos associados, o poder público perde o seu caráter político”.
Marx certamente não era anarquista, mas ele via o Estado
como um instrumento de dominação de classe, podendo, portanto, desaparecer uma
vez superada essa situação, como registrado nos textos posteriores à Comuna de
Paris. Ele pretendia mesmo, como confirmado por Lênin em uma de suas últimas
obras “teóricas”, o fim do Estado e, na expressão de Engels, a “substituição do
comando dos homens pela administração das coisas”. O Estado era visto por Marx
e por Engels, como também (hipocritamente) por Lênin, como um mero expediente
temporário, um “mal necessário” na transição para uma sociedade sem classes.
Deixemos de lado essa pretendida (e ilusória) abolição da sociedade de classes,
que acarretaria a consequente eliminação do Estado, para nos concentrarmos no
seu papel econômico, que não é, obviamente, um simples comitê gestor dos
negócios da burguesia, como está escrito no Manifesto.
Os socialistas marxistas partilham, de certa forma, da boutade de Proudhon, segundo a qual toda
propriedade é um roubo. No sentido mais especificamente marxista, a eliminação
da extração de mais valia e de sua apropriação individual pelo capitalista, por
meio da revolução proletária, deveria resultar em uma gestão coletiva dos meios
de produção, com uma administração igualmente coletiva dos mecanismos
redistributivos. Ora, não há forma mais eficiente de fazê-lo, acredita a
cultura de esquerda, do que pela intervenção direta do Estado, uma instituição
que deveria ser colocada acima das classes e servir tão somente de instrumento
temporário de redistribuição equânime de riquezas.
Por características próprias das sociedades modernas, o
Estado acabou assumindo um papel econômico exagerado em relação aos velhos
princípios da economia política de Adam Smith e do próprio Marx: guerras,
revoluções e outros conflitos civis, e mais frequentemente crises financeiras e
bancarrotas industriais, acompanhados ou não de ciclos econômicos depressivos,
com alto desemprego e sofrimentos sociais, levaram o Estado a assumir um papel
incomparavelmente maior do que o normalmente esperado numa economia de livre
mercado. Por outro lado, a forma especificamente estatizante assumida pelo
socialismo bolchevista, com a expropriação completa dos produtores privados e o
desenvolvimento do planejamento centralizado, também contribuiu para essa
concentração enorme de poderes econômicos nas mãos do Estado moderno, algo
inédito, mesmo para os padrões dos antigos “despotismos orientais”.
Disso redundou que, durante todo o decorrer do século
XX, tanto nas sociedades capitalistas como nas socialistas, o Estado assumiu um
papel central na organização e na gestão de diversas atividades econômicas que,
ainda que estivessem na esfera dos chamados “bens públicos” (serviços de infraestrutura
e de comunicações são os mais típicos, mas educação e saúde também podem ser
arroladas), poderiam ser fornecidas e garantidas em bases totalmente privadas,
ou segundo a conhecida fórmula dos mercados regulados. Com efeito, não existe
nenhuma razão racional, à exceção daqueles serviços de retorno difuso e
contabilidade aleatória – como são as atividades de defesa e justiça –, pela
qual a maior parte dos bens e serviços “públicos” não possa funcionar em bases
de mercado: a demanda por determinados serviços, como se sabe, é desigual
segundo as famílias e não há justificativa econômica, por exemplo, para que
solteiros ou casais sem filhos paguem pela educação dos filhos de terceiros. O
mesmo se aplicaria à saúde e à maior parte das chamadas public utilities: o critério de mercado é o que melhor se ajusta à
alocação ótima de recursos segundo a demanda, evitando desperdícios indevidos
que sempre vêm associados à chamada apropriação coletiva de serviço públicos.
Trata-se de uma posição absolutamente racional,
suscetível de convencer aqueles que mais deveriam prestar atenção ao bom uso
dos recursos públicos, de maneira a maximizar os ganhos de bem estar do
conjunto da sociedade. Um Estado eficiente, bom gestor dos recursos que lhe são
atribuídos pela sociedade – e sabe-se que esta possui um limite de tolerância
para a imposição tributária –, estaria em melhores condições de prestar
serviços aos verdadeiramente desprovidos de meios e condições de prover à sua
própria subsistência, ou à educação e saúde dos familiares. Da mesma forma, uma
gestão não estatal do sistema de previdência social poderia, provavelmente,
obter melhores resultados em termos de retorno futuro, eventualmente sob a
forma de contas individuais de capitalização das contribuições recolhidas, do
que o atual sistema de fundos difusos, administrados na base do pay-as-you-go, que coloca todos os
recursos nas contas globais do Estado, de onde eles saem segundo as
necessidades momentâneas da administração em vigor.
O culto que a esquerda devota ao Estado, como provedor
de “bens públicos”, é absolutamente antimarxista e, de toda forma irracional,
pois que ele não foi feito para arcar com responsabilidades gestoras que têm
uma dimensão própria e um modo peculiar de provimento, geralmente de cunho
microeconômico (como são os “mercados” já referidos, segmentados segundo os
usuários, forçosamente desiguais em suas demandas), e que nada têm a ver com
suas funções típicas – legislativas, judiciárias ou de defesa nacional –, que
seriam mais bem desempenhadas se o Estado a elas se dedicasse de maneira mais
focada. A esquerda deveria refletir sobre essas realidades e revisar um
pensamento já por si anacrônico e responsável, nos dias de hoje, por perdas
sociais cumulativas, que só podem acarretar prejuízos para os mais pobres, como
sempre ocorre.
5. A esquerda é anti-individualista.
Este é um axioma do pensamento da esquerda, pelo menos
desde a Revolução Francesa, ou quiçá antes, desde alguns filósofos iluministas.
Esta não é, obviamente, a tradição do liberalismo e do utilitarismo britânicos,
dos iluministas escoceses e dos liberais ingleses. Karl Popper já tinha feito
amplos esclarecimentos sobre algumas das raízes dessa tradição, que ele faz
remontar a Platão e vem dar direto em Hegel e Marx no século XIX. A Revolução
Francesa atravessa e alimenta essa corrente, de forma algo contraditória aliás,
pois ela tinha começado por uma proclamação sobre os direitos do homem e do
cidadão, de cunho absolutamente liberal e “burguês”. Mas a esquerda prefere
apoiar a tradição termidoriana que se manifesta com clareza em Robespierre
(seguido por Lênin quase que ipsis
litteris). É a linha dos direitos coletivos, da “razão do Estado”, que vai
resultar no Stato totale de Mussolini
e outros (como Salazar, em Portugal, com seu “Estado novo”, e nossos
autoritários caboclos, que o seguiram até meados do século XX pelo menos).
Antes disso, Lênin já tinha manifestado sua apreciação
pelos métodos de “justiça expedita” seguidos por Robespierre. Homenageando a
criação da polícia política do novo Estado bolchevique, ele dizia, sem
hesitação: “Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a
burguesia enquanto classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o
indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão?
Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror
Vermelho” (in Paul Johnson, Tempos
Modernos. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998, p. 56). Em síntese, os
direitos individuais devem se anular face aos “direitos coletivos” e a
sociedade sempre tem preeminência em relação ao indivíduo.
O problema não é apenas filosófico ou moral, uma vez que
ele tem consequências práticas, segundo o tipo de política pública privilegiada
pelos indivíduos que ocupam temporariamente (por vezes de modo delongado) o
Estado. A questão é claramente exemplificada pelo caso de Cuba, que constitui,
como se sabe, um dos mais tradicionais bastiões de luta política da esquerda
brasileira. A defesa da Revolução cubana se faz de modo integral, em bloco, sem
distinguir os aspectos meritórios da luta anti-ditatorial conduzida por Fidel
Castro e seus seguidores – contra um regime, o de Batista, enfeudado ao
imperialismo americano e praticando uma política de entrega do interesse
nacional –, de outros aspectos menos gloriosos, ligados à repressão política
indefensável contra o direito dos cidadãos cubanos desenvolverem atividades
econômicas privadas, de expressar opiniões diferentes das do partido único ou,
simplesmente, de emigrarem, de acordo com sua consciência ou vontade própria.
O fato de alguns expoentes da esquerda brasileira terem
justificado o julgamento sumário e o fuzilamento de indivíduos – que não eram
sequer dissidentes políticos –, simples “candidatos” à emigração, não é apenas
indefensável do ponto de vista político, mas é moralmente abjeto e condenável
sob todos os critérios. A justificativa se fez, e se faz, a pretexto de “defesa
da Revolução”, contra seus inimigos internos e externos, ou seja, os “direitos
coletivos” da sociedade cubana – o que quer que isso queira dizer – devem se
sobrepor aos direitos individuais dos cidadãos cubanos. Triste posição essa de
expoentes da esquerda brasileira, denegando direitos humanos a indivíduos
cubanos em nome de uma ideologia e de um movimento político.
Direitos coletivos constituem uma categoria especial de
direitos, geralmente de natureza social ou econômica, que se somam, mas não
substituem, os direitos individuais, que são inalienáveis, segundo as declarações
universais subscritas pelo governo cubano, relativas ao direito à vida, à
liberdade de pensamento e de circulação, inclusive o direito de dispor de sua
residência. A defesa dos direitos individuais, mesmo contra o Estado, constitui
um dos mais notáveis progressos da consciência coletiva e da própria
humanidade; eles não são simplesmente ocidentais ou “burgueses”, mas são
universais. Que novos direitos, de base coletiva, comunitária, étnica, social,
econômica ou ambiental, venham se agregar aos direitos existentes trata-se de
um progresso desejável, mas isto não pode se fazer em detrimento dos direitos
naturais dos indivíduos.
A esquerda não pretende negar os direitos do homem e do
cidadão, mas ela tende a defender, em primeiro lugar, a soberania dos Estados
e, em segundo lugar (e a isso ligado), os direitos coletivos, que podem ser
formulados de maneira a anular os direitos individuais. Os próprios acordos
internacionais preveem, em alguns casos, a derrogação de alguns direitos, em
caso de grave ameaça à segurança do Estado e à defesa nacional. Sabemos, pela
experiência histórica, que essa invocação é muito facilmente feita pelas
ditaduras, em casos nos quais os direitos individuais tentam se opor ao poder
discricionário desses governos, que invocam a segurança do Estado ou algum
outro “perigo público” para denegar a observância desses direitos. Trata-se de
um claro retrocesso, que não poderia ser sancionado por qualquer movimento
político que aspira ao direito de governar um país.
Dentre os direitos que não são derrogáveis, segundo a
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), estão o direito à vida, a
prescrição da tortura, a não-sujeição à escravidão ou servidão, a prisão por
dívida, a não-retroatividade penal, o direito de cada um ao reconhecimento de
sua personalidade, bem como a liberdade de pensamento, de consciência e de
religião. Que a igualdade, a solidariedade, a participação no bem-estar
coletivo e outros direitos possam igualmente ser assegurados pelos Estados
constitui, sem dúvida, um grande progresso no sentido da promoção de valores
universais, mas essa promoção não pode se fazer em detrimento dos direitos
individuais.
6. A esquerda é populista e popularesca.
Invariavelmente, os textos da esquerda, de natureza
cultural ou mesmo política, estão repletos de frases derrogatórias das “elites”
e valorizadoras das características do povo e da cultura popular. É de certa
forma patético constatar isso, mas tudo o que vem da elite é considerado como
intrinsecamente mau, ao passo que o que vem do povo é bom, por definição.
Quando esse tipo de discurso vem das hostes da direita, é identificado com o
chamado populismo e condenado de uma penada, sem apelação.
As culpas pelo nosso subdesenvolvimento material, as
características perversas do modelo social brasileiro, a corrupção e o atraso
são inevitavelmente atribuídos às elites e aos seus “500 anos de dominação”. De
certa forma, isso encerra o discurso, pois que essas elites não são em geral
definidas, nem identificadas em seu perfil próprio a cada época. Basta culpar
as elites, elogiar as virtudes do povo e a “análise sociológica” está feita. De
certa forma, o antropólogo Darcy Ribeiro foi um grande expoente desse tipo de
pensamento, que passa por progressismo de esquerda.
Ao mesmo tempo, a esquerda não consegue perceber que ela
também é de elite, ainda que não necessariamente do poder e do dinheiro. Elites
sindicais, partidárias e intelectuais são tão elites quanto quaisquer outras,
com amplo acesso aos meios de comunicação e, eventualmente, até aos círculos do
poder, quando não conseguem, elas mesmas, assumir esse poder, como ocorreu em
outubro de 2002. Recusar essa realidade é acreditar naquelas imagens que veem a
elite como um gordo capitalista de cartola e charuto, sentado num monte de
dinheiro, e achar que o povo é unicamente formado por aqueles trabalhadores de
macacão com os quais a esquerda se identifica, mas, que de fato, esse povo não
se reconhece nessa outra elite, a do pensamento.
A esquerda é dominante no establishment universitário, nos círculos culturais, nos meios de
comunicação e em vários outros ambientes influentes na sociedade brasileira.
Ela conforma, portanto, uma elite, no sentido pleno do termo. O fato da
esquerda se recusar a ver a si mesma como elite, não lhe retira o caráter de
elite, nem de fato, nem de direito. Sua identificação com o povo é meramente
retórica, tão ou mais populista do que os discursos da direita que pretende
encarnar o “verdadeiro espírito nacional”, geralmente centrista e conservador.
Com efeito, o pensamento progressista, de esquerda, só existe numa fração
esclarecida da população, geralmente da classe média para cima, no máximo entre
alguns poucos membros da “aristocracia operária”, que também são a elite da
classe trabalhadora.
De resto, a condenação genérica das elites pelo discurso
de esquerda é hipócrita e mal informada, pois que não referida a uma elite
concreta, mas sim a um simulacro de elite, que só existe no pensamento da
esquerda. Da mesma forma, a exaltação dos valores do povo, de sua “genialidade”
cultural e inventividade “natural”, soa como um escárnio, aliás uma verdadeira
manifestação de elitismo cultural, pois que redundando, igualmente, numa
aceitação acrítica e condescendente dos “produtos” populares, independentemente
de seu valor intrínseco e contribuição para o enriquecimento cultural da
população. Esse tipo de atitude termina por justificar e legitimar formas
erradas de expressão oral e letrada (por evidente incultura do “produtor
popular”), que podem até encontrar acolhimento no campo do folclore, mas jamais
no campo do conhecimento a ser promovido pelo Estado.
Ao assim fazer, a esquerda acaba confundindo
manifestações da cultura popular, plenamente aceitáveis em seu contexto próprio
e que acabam fazendo parte do chamado “patrimônio” nacional, com a cultura
formal, que não precisa ser erudita, mas que sempre é cientificamente rigorosa
e dotada de certa lógica intrínseca, e que constitui uma condição indispensável
para a elevação cultural de qualquer povo. Os raciocínios semiológicos e os
exercícios de “intuição” típicos da cultura popular, cultivados por políticos e
outros demagogos, mas que deveriam ser rejeitados por membros de uma elite
intelectual e do pensamento, como pretende ser a esquerda, constituem contrassensos
culturais e um desserviço à causa da elevação educacional do povo. Não há nada
de mais populista ou popularesco do que cultivar acriticamente o popular apenas
pelo fato de ser popular. Quanto à condenação genérica das elites, a esquerda
deveria olhar no espelho e fazer um sério exercício de autocrítica.
7. A esquerda é voluntarista e anti-racionalista.
O voluntarismo, aqui, se refere a uma suposta encarnação
da vontade popular, da qual a esquerda pretende deter o monopólio (não se sabe
bem se por direito divino). Se olharmos o registro histórico, entretanto,
veremos que as esquerdas, em suas diversas versões político-ideológicas,
estiveram muito pouco à frente de governos ou enquanto responsáveis de
políticas públicas. Esta não é uma afirmação gratuita e sim uma simples
constatação de fato: deve haver algo de errado com um movimento que se proclama
vanguarda popular, mas que na verdade esteve muito pouco em condições de
determinar políticas que influenciaram a vida das sociedades nos últimos 150
anos, pelo menos.
Mesmo na América Latina, que conheceu por longos
períodos muitos governos de direita que, aliás, combateram duramente (por vezes
cruelmente) as esquerdas, e onde as esquerdas finalmente chegaram ao poder ao
início do século XXI, não se observa uma mudança radical de políticas
econômicas ou mesmo de políticas sociais, em relação às políticas e práticas
anteriormente adotadas. Observa-se, incidentalmente, nos países que elegeram
dirigentes de esquerda, uma forte retórica mudancista, mas, de fato, práticas
cautelosas, quando não conservadoras de administração da “coisa pública”. As
próprias esquerdas são conscientes desse fato, pois elas são as primeiras a
protestar contra a não-mudança, em ruidosas manifestações de rua e em
incontáveis manifestos de intelectuais.
O que acontece, na verdade, é que se as propostas e
sugestões de políticas que são oferecidas nessas manifestações e manifestos
fossem submetidas a referendo popular elas seriam fragorosamente derrotadas.
Por outro lado, os movimentos de “esquerda” que foram eleitos tiveram sucesso
pelo fato mais prosaico de terem revertido um discurso vazio e uma retórica oca
que prometia “grandes mudanças”, em prol de uma abordagem mais realista e
cautelosa das políticas macroeconômicas e setoriais. Como as esquerdas “intelectuais”
dispõem de ampla audiência nos meios de comunicação, elas tendem a acreditar
que seu discurso mudancista, pela via da ruptura, é aceito pela sociedade,
quando na verdade ele se move em círculos auto-concêntricos, falando para seus
próprios convertidos. Quanto às esquerdas “práticas”, elas já se converteram,
de modo sub-reptício, à socialdemocracia, praticando, sem dúvida, um discurso
mudancista, agora pela via da reforma paulatina, mas sobre isso elas calam, têm
vergonha ou hesitam em confessá-lo.
Isso nos remete ao segundo conceito selecionado neste
sétimo (e último, até aqui) “pecado dialético” da cultura da esquerda: o
anti-racionalismo. A esquerda se pretende aberta ao debate público e às
controvérsias em torno de questões políticas, sociais e econômicas, mas isso
habitualmente se dá no plano mais geral das questões atinentes à própria
sociedade nacional e aos problemas internacionais, ao passo que, no terreno das
idéias, ela é sabidamente autista e infensa ao debate público sobre suas próprias
posições. O que é isso senão, de fato, anti-racionalismo?
Antes que alguém me acuse de má vontade em relação às idéias da esquerda, se o conceito se
aplica, gostaria de trazer dois pequenos exemplos em apoio ao argumento. Tenho
sido um leitor habitual e frequente das publicações da esquerda, nos últimos 40
anos, pelo menos (confesso que com crescente cansaço em relação a certa
sensação de déjà vu). Se eu fizesse
uma tabulação das matérias mais relevantes e dos temas mais frequentes nessas
revistas (agora boletins eletrônicos) os campeões absolutos seriam, pela ordem:
a crise do capitalismo, a agressividade do imperialismo, a nocividade das
políticas sociais e econômicas “burguesas” do ponto de vista dos interesses
populares e, mais recentemente, a condenação absoluta do “consenso de
Washington” e do neoliberalismo, ambos no mesmo saco indistinto da globalização
capitalista, excludente e assimétrica. Estarei exagerando? Não creio, pois
basta consultar os títulos das matérias dessas revistas (que me eximo de citar
para não fazer publicidade indevida e gratuita).
Gostaria que me indicassem quantas vezes compareceram
artigos fazendo autocríticas dos próprios erros analíticos, matérias de revisão
das previsões erradas sobre a crise geral (em alguns casos final) do
capitalismo, ensaios em torno de algum (mesmo modesto) reconhecimento pela
factibilidade nula, ou marginal, das próprias propostas da esquerda para uma
solução “inventiva” dos “graves desequilíbrios econômicos e sociais do
capitalismo”, enfim, de discussão das próprias idéias da esquerda que foram (e
são) sistematicamente derrotadas nas urnas, mesmo quando pretendem encarnar a
vontade geral do povo e a “recusa de tudo isso que aí está”. Esses exemplos são
mínimos, ou simplesmente inexistentes, pois o tom geral é de condenação das
idéias dos outros, não de reconsideração das suas próprias idéias. Mais uma
vez: gostaria que me contestassem.
Dentre os cinco exemplos práticos apontados como
representando um avanço das idéias da esquerda latino-americana no campo
eleitoral, três pelo menos podem ser considerados como excepcionais e não
representativos. O Chile emergiu de uma transição cautelosa da ditadura e
elegeu, primeiro, um governo democrata-cristão, depois um de cunho socialista
que, ambos, voluntariamente ou porque concluíram que não havia outro caminho,
praticaram as mesmas políticas econômicas em vigor na fase final da ditadura
militar. A Venezuela ainda não se recuperou da grave crise de legitimidade que
atingiu seu sistema partidário, totalmente desacreditado politicamente, e
enveredou pelo caminho do populismo voluntarista, que só se sustenta
economicamente graças à renda petrolífera, um maná do subsolo que representa ao
mesmo tempo uma maldição em termos de (baixa) diversificação de sua economia. A
Argentina, por fim, mergulhou num verdadeiro abismo econômico, também por
incapacidade de suas elites políticas, não apenas “radicais”, mas, sobretudo,
peronistas, e tem ainda um largo caminho pela frente para recuperar o terreno
perdido em anos de experimentos econômicos mirabolantes.
A rigor, apenas o Brasil e o Uruguai poderiam ser
apresentados como exemplos de legítimas transições políticas de “esquerda”,
ainda que o conceito seja duvidoso do ponto de vista das políticas econômicas
adotadas por seus dirigentes. A retórica social progressista, que conseguiu
afastar os tradicionais partidos de centro-direita do poder, ainda não foi
capaz de realizar uma verdadeira transformação das estruturas econômicas e
sociais e é mesmo duvidoso que intentem fazê-lo, a despeito de afirmações em
contrário. Obviamente, o balanço final dos resultados concretos ainda precisa
ser feito, sendo cedo para avaliar corretamente essas experiências desses
governos de esquerda” do ponto de vista de suas próprias idéias, tal como expostas
em programas eleitorais e repetidas em incontáveis discursos nos meios de
comunicação.
Em todo caso, abstraindo-se os exemplos da Venezuela e
da Argentina, que conformam manifestações agudas de crises gerais de seus
sistemas políticos, alimentadas também por crises econômicas mais ou menos
profundas, o único modelo de crescimento econômico, de transformação produtiva
e de progresso social na região parece ser o do Chile, não por acaso
sistemática e sintomaticamente desprezado pelas esquerdas. A razão parece
simples: se há um exemplo de país que seguiu, de modo quase religioso, pode-se
dizer, as idéias do chamado “consenso de Washington” e as práticas recomendadas
pelos neoliberais, este país foi o Chile. Que ele venha experimentando anos e
anos de crescimento sustentado, de estabilidade macroeconômica e conhecendo
progressos reais, embora modestos, no caminho da elevação dos padrões de vida
da população, tudo isso pode ser mera coincidência, mas o exemplo poderia
incitar, talvez, os analistas de esquerda a se debruçarem um pouco mais de
perto sobre esse modelo “neoliberal” de desenvolvimento econômico e social.
O segundo exemplo, finalmente, de autismo e de
anti-racionalismo nas esquerdas é representado pelo chamado movimento
altermondialista, que deveria ser chamado, mais apropriadamente, de
simplesmente “antiglobalizador”, uma vez que ele recusa de modo peremptório a
globalização, mas não conseguiu, ainda, determinar qual seria esse “outro mundo
possível”. Não se tem notícia de exemplo mais patético de recusa da realidade,
como essa assemblagem de representantes progressistas e de esquerda, reunida
sob o emblema do Fórum Social Mundial, que proclama, a cada encontro e de modo
estridente, as carências da globalização capitalista, invariavelmente descrita como
excludente e concentradora, quando todas as evidências estatísticas e factuais
vão de encontro a esses argumentos enviesados.
Um pouco mais de modéstia, ou de simples atenção à
realidade, poderia fazê-los constatar que a globalização é eminentemente progressista,
que ela retira, sim, milhões de excluídos da miséria mais abjeta, e que seu
caráter capitalista não constitui uma marca de opróbrio ou uma maldição, pela
simples razão de que o único “modo de produção” que restou nos supermercados da
história foi o velho e duro capitalismo, por absoluta inexistência de qualquer
modo alternativo de se organizar a produção material e a distribuição de bens e
serviços em escala mundial. Relatórios e mais relatórios, estudos empíricos de
entidades não suspeitas de colusão ideológica com os capitalistas triunfantes
de Wall Street têm demonstrado suficientemente as transformações benéficas –
que tendem largamente a superar os impactos negativos – da globalização
capitalista, mas isso não parece comover de nenhum modo os antiglobalizadores
mais enragés.
Que um “outro mundo” seja possível não é de se
descartar, embora isso pareça pouco provável no horizonte histórico previsível,
mas os antiglobalizadores podem até fazer um esforço teórico adicional para
expor de modo mais concreto sua configuração precisa, em lugar de simplesmente
ficar atirando pedras nas vitrines do capitalismo. Que esses antiglobalizadores
não gostem do lucro, da acumulação capitalista e até das duras regras de
mercado – como também acontece com as “velhas” esquerdas – pode ser
compreensível e mesmo esperado em estudantes universitários dotados de
indignação juvenil anticapitalista, mas eles estão geralmente “excluídos” da
economia de mercado pela via do trabalho direto (ainda que não deixem de ser
consumidores). Que esse tipo de crença seja alimentado também por velhos
militantes da esquerda, por sindicalistas experimentados e, mais ainda, por
políticos profissionais, aí o caso é bem mais grave, conformando um tipo de
autismo que pode ser incurável.
Voilà: encerro por aqui meus comentários sobre a cultura da esquerda, não
sem antes lembrar que minha lista não é exaustiva. Existem, por certo, muitos
outros “pecados dialéticos” no comportamento, nas atitudes e sobretudo nas
“disposições mentais” da esquerda, mas prefiro no momento não comentar essas
outras deficiências.
Contento-me, em contrapartida, com apontar o fato de a
esquerda valorizar, reconhecidamente, muito mais o ensino universitário do que
a educação popular, o que pode contribuir para manter o Brasil nesse estado
catatônico de indigência produtiva, dada a baixa qualificação das massas
trabalhadoras. Ora, é sabido que a única fonte de riqueza de uma nação é a
produtividade do trabalho humano, que no Brasil apresenta índices reduzidos.
Que tal se a esquerda operasse uma “revolução mental” e
passasse a defender, de modo resoluto, uma verdadeira “revolução” no ensino
público fundamental do Brasil?
Paulo
Roberto de Almeida (25 de março de 2005)
Revisão:
29/01/2014.
1412.
“A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu
desenvolvimento”, Brasília, 25 mar. 2005, 22 p. Comentários sobre obsessões da
esquerda (antimercado, igualitarismo, estatismo, etc.), que conformam
pensamento ultrapassado para suas tarefas políticas. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. IV, n. 47, abr.
2005;). Objeto de crítica de Robinson dos Santos, intitulada “‘Milk-shake’ indigesto ou sete equívocos
de uma crítica à esquerda?: Réplica a Paulo de Almeida” (Espaço Acadêmico, na.
IV, n. 48, abr. 2005;). Feita tréplica registra em Trabalhos n. 1425, publicada
no número de junho. Reproduzido no blog português “O Insurgente”, em 10/2005,
com comentários agregados por leitores de Portugal (registrados no dossiê
1412). Nova réplica de outro leitor, respondida com o trabalho n. 1432. Relação
de Publicados n. 549.
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