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sábado, 1 de setembro de 2018

A Alca Possível: Comentarios a artigo do Ministro de Estado (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em julho de 2003, ainda trabalhando como ministro-conselheiro em Washington e ocasionalmente atuando como chefe de missão interino, nas ausências ocasionais do chefe do posto, o embaixador Rubens Barbosa, eu provavelmente cometi, aos olhos do então chanceler do lulopetismo, o maior pecado do ponto de vista de quem, junto com os outros arautos do regime, já tinha firme a intenção de implodir a Alca: ousei, num comentário a um artigo dele na FSP, criticar métodos e estratégia, assim como deixar transparecer, de forma moderada, de que alguma acomodação seria possível entre o Brasil e os EUA na questão do projeto americano de um zona de livre comércio hemisférica. Mesmo escrevendo em nome do chefe do posto – pois que o telegrama deveria ser expedido oficialmente, ousei alinhar argumentos, em resposta a circular telegráfica (ou telegrama) da SERE justamente solicitando comentários a esse artigo. Não tenho certeza de que tenha sido deliberado por parte do chanceler calculista, talvez pensando justamente em montar uma armadilha, talvez para demonstrar ao chefe do Estado que o “pessoal de Washington” – o embaixador Rubens Barbosa e eu mesmo – era irremediavelmente pró-americano e pouco confiável para o projeto de implodir a Alca que todos eles entretinham. Seja como for, coloquei no telegrama, que redigi inteiramente sozinho (ainda que interpretando o que poderia pensar o chefe do posto), todos os argumentos objetivos e honestos, que poderiam sustentar a postura do Brasil na fase difícil que já estava aberta. Esse trabalho n. 1081 – “A Alca Possível: Comentários a artigo do Ministro de Estado”, de julho de 2003 – pode ter marcado definitivamente, na concepção dos dirigentes do Itamaraty, a ideia de que eu não seria confiável do ponto de vista da política externa dos companheiros. Evitei colocar as "espertezas" que eu percebia que já estavam sendo preparadas para implodir a Alca, e fui bastante moderado na avaliação da postura confrontacionista formulada em Brasília. A partir desse momento, foram 13 anos de afastamento de quaisquer funções na Secretaria de Estado, enquanto durou o regime lulopetista no poder (e eles ainda tentam voltar). Esse meu texto talvez explique algo.
Transcrevo, em primeiro lugar, o artigo do chanceler do lulopetismo em 2003, que foi recebido em telegrama oficial solicitando comentários. Como eu estava na posição de Encarregado de Negócios interino, elaborei o telegrama de resposta, alinhando todos os argumentos que me pareciam pertinentes, para expedição em nome do chefe do posto, o que vem em segundo lugar abaixo.
Fica o registro, no sentido da transparência e honestidade de princípios.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

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Artigo do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, publicado na Folha de São Paulo - "A Alca possível" (8/07/2003)

O governo do presidente Lula não aderirá a acordos que forem incompatíveis com os interesses brasileiros

Ao assumir o comando da nação, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que as negociações comerciais são hoje de importância vital para o Brasil. Além de um esforço interno de aumento da competitividade de nossos produtos e diversificação de nossa pauta exportadora, deixou claro que não poderíamos prescindir do combate, no plano internacional, pela abertura de novos mercados e por regras mais justas, respeitado o direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.
Nesse espírito, o governo Lula tem procurado reforçar o Mercosul, promover a integração da América do Sul, explorar novas parcerias comerciais -sobretudo com os grandes países em desenvolvimento- e participar ativamente dos exercícios negociadores em curso: na OMC, no processo da Alca e entre o Mercosul e a União Europeia.
No que se refere à Alca, deparamos com um contexto negociador complexo do ponto de vista dos interesses brasileiros, sujeito a um calendário que nos deixava escassa margem para uma eventual correção de rumos. Tal como vinha se desenvolvendo nas negociações, o projeto da Alca ia muito além do que denota a expressão "livre comércio" em sentido estrito. Com efeito, as propostas em discussão incluíam aspectos normativos para serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual que incidem diretamente sobre a capacidade reguladora dos países.
Por outro lado, não pareciam encorajadoras as perspectivas de obtenção de livre acesso ao maior mercado do hemisfério para os produtos em que detemos vantagens comparativas (sobretudo, mas não apenas, agrícolas). Excluíram-se das negociações aspectos de importância prioritária para o Brasil, como os subsídios agrícolas e as medidas antidumping. As discussões sobre acesso a mercados haviam sido de fato fragmentadas, de modo que ao Mercosul fora reservado o tratamento menos favorável, com prazos de abertura mais longos do que os oferecidos a outros países do continente.
Deve-se lembrar, porém, que já dispomos de canais negociadores para levar adiante uma agenda de integração com os países latino-americanos no âmbito da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), em especial os da América do Sul. Essas tratativas se beneficiam da cobertura jurídica da chamada "cláusula de habilitação" da OMC, que autoriza a troca de preferências comerciais entre países em desenvolvimento. Assim, o maior interesse em negociarmos uma Alca reside na expectativa de acesso ao mercado norte-americano, o qual, por sua dimensão e dinamismo, não pode ser ignorado. Trata-se, pois, de encontrar o equilíbrio adequado entre nossos objetivos, por assim dizer, "ofensivos", vistos a partir de uma perspectiva a um só tempo combativa e realista, e a necessidade de não comprometer nossa capacidade de desenhar e executar políticas de desenvolvimento social, ambiental, tecnológico etc.
Após um processo de reflexão dentro do governo, que não deixou de envolver debates com o Legislativo e a sociedade civil, o presidente Lula aprovou as linhas mestras do posicionamento brasileiro nas negociações sobre a Alca. De forma sucinta, essa posição -obviamente sempre sujeita a alguns ajustes no processo de negociação- pode ser descrita da seguinte forma: 1) a substância dos temas de acesso a mercados em bens e, de forma limitada, em serviços e investimentos seria tratada em uma negociação 4 + 1 entre o Mercosul e os EUA; 2) o processo Alca propriamente dito se focalizaria em alguns elementos básicos, tais como solução de controvérsias, tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento, fundos de compensação, regras fitossanitárias e facilitação de comércio; 3) os temas mais sensíveis e que representariam obrigações novas para o Brasil, como a parte normativa de propriedade intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais, seriam transferidos para a OMC, a exemplo do que advogam os EUA em relação aos temas que lhes são mais sensíveis, como subsídios agrícolas e regras antidumping.
Esse enfoque redimensionado em "três trilhos" foi objeto de estreitas consultas com nossos sócios do Mercosul e foi exposto a nossos parceiros norte-americanos. Foi também debatido na reunião miniministerial de "Wye Plantation", em maio passado, e será apresentado, nesta semana, em El Salvador, por ocasião da 14ª Reunião do Comitê de Negociações Comerciais da Alca.
A visão brasileira foi também levada pelo presidente Lula à recente reunião de cúpula com os presidentes da Comunidade Andina, na Colômbia. O debate substantivo sobre a Alca, que se seguiu à exposição do presidente, contribuiu para um início de coordenação entre as posturas negociadoras dos países da América do Sul. Ainda que reconheçamos que há diferenças importantes entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina, o diálogo entre nós é fundamental não só para as negociações da Alca, mas para a própria integração sul-americana, nossa principal prioridade.
Assim, em vez de nos prendermos a concepções irrealistas de uma Área de Livre Comércio das Américas, em torno das quais o consenso se afigura inatingível, preferimos nos concentrar na "Alca possível", que concilie da maneira mais produtiva os objetivos necessariamente diferenciados dos 34 países participantes. Foi a partir desse enfoque consistente e realista que a declaração conjunta na reunião dos presidentes Lula e Bush em Washington expressou o entendimento de que os dois países cooperarão pela conclusão exitosa das negociações nos prazos previamente acordados.
Mas prazos, como temos dito repetidamente, não podem prevalecer sobre o conteúdo. E "negociações exitosas", no caso do Brasil, significam preservar espaço para decidir de forma autônoma nossas políticas socioambientais, tecnológicas e industriais e obter melhores condições de acesso para os setores em que mais somos competitivos -e que enfrentam as mais elevadas barreiras protecionistas. O governo do presidente Lula não aderirá a acordos que forem incompatíveis com os interesses brasileiros, mas explorará, soberanamente, todas as alternativas para a promoção de nosso comércio e a aceleração de nosso desenvolvimento.

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De Brasemb Washington à SERE
SG – ALCA
Ref Desptel 744
Washington, 17/07/2003

Negociações da Alca. Artigo do
Senhor Ministro de Estado. Pedido 
de Comentários. Brasemb Washington.

Resumo: Cumpro Instruções. Comento o artigo do Senhor Ministro de Estado, “A Alca Possível” (FSP, 8/07/2003), do ponto de vista de Brasemb Washington. Ressalto grande coincidência com pontos de vista defendidos anteriormente por este posto. Ressalto as dificuldades da coordenação com parceiros regionais, inclusive do Mercosul.

Retransmissão automática para Delbrasgen, Braseuropa, Brasembs Londres, Paris, Berlim (Rogo retransmissão a Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, Assunção, Brasaladi, Tóquio, Roma e Ottawa).

            Congratulo-me com o Senhor Ministro de Estado pela publicação do artigo “A Alca Possível” (FSP, 8/07/2003), que sintetiza, tanto para a sociedade brasileira, como para o público externo, alguns dos pontos de vista defendidos pelo Brasil no quadro do processo hemisférico, que estavam efetivamente demandando maior explicitação em razão de percepções eventualmente equivocadas em relação à posição brasileira e das naturais complexidades de um processo negociador que, como ressaltado no texto, não se limita ao universo tradicional de uma área de livre-comércio stricto sensu.

2.         Minha satisfação é tanto maior quanto fui levado a constatar, no texto, inúmeras coincidências e de fato uma quase perfeita identidade de pontos de vista com argumentos e sugestões de posições negociadoras desde muito defendidos por este posto, como tenho levado ao conhecimento da SERE desde minha assunção, em virtude da situação de certa forma privilegiada de que desfruto nesta capital. Washington constitui, inegavelmente, um dos pólos de poder e de influência no atual processo hemisférico (tanto do lado do Executivo quanto no âmbito congressual), bem como um terreno fértil de reflexões e de debates (com intensa osmose intelectual e intercâmbio de opiniões entre funcionários governamentais, representantes corporativos e de grupos de interesse e de inúmeros centros acadêmicos dotados de real independência), não só pelo lado dos inúmeros think tanksdedicados à temática das relações econômicas internacionais, como pela existência de organismos multilaterais que produzem insumos de alta qualidade sobre o substrato econômico das negociações (a começar pelo próprio BID, um dos integrantes da atual troika administrativa da Alca).

3.         Tanto a definição geral de política comercial externa, como a ordem de prioridades estabelecidas nos diversos processos negociadores de que o Brasil participa (objeto dos dois primeiros parágrafos do artigo) parecem corresponder amplamente a um amplo consenso na sociedade brasileira no que se refere à interface externa de nosso processo de desenvolvimento. Do ponto de vista dos EUA, as prioridades econômicas externas sempre foram, desde o imediato pós-Segunda Guerra, a preservação de um ambiente econômico aberto no plano internacional, suscetível de acomodar os interesses de suas grandes corporações desde cedo implantadas no exterior, como, do ponto de vista metodológico, a valorização dos instrumentos multilaterais sobre os esquemas mais ou menos minilateralistas de blocos comerciais excludentes, por seus líderes acusados de ostentar vários pecados econômicos, desde o desvio de comércio às práticas discriminatórias. Exceções foram, por certo, toleradas, como no caso do bloco europeu, mas elas se prendiam mais a questões de segurança geoestratégica do que a considerações de natureza econômica quanto ao caráter excludente daquela experiência, de resto facilmente contornada pela precoce implantação local de multinacionais americanas e em virtude do ambiente relativamente aberto, quanto a fluxo de capitais e acesso ao setor terciário, que caracterizou o território comum da OECE-OCDE.

4.         Essa situação começou entretanto a mudar desde o final dos anos 1980, não por acaso coincidentes com a percepção de uma “esclerose” parcial dos antigos mecanismos gattianos e a multiplicidade e diversidade natural de posições em virtude da ampliação do número de parceiros participantes do jogo multilateral. Começa então uma sutil e cada vez mais declarada adesão de Washington a mecanismos minilateralistas, consubstanciados nos acordos de livre-comércio com o Canadá, no lançamento da Iniciativa para as Américas (de Bush pai), na formação do Nafta, no apoio a mecanismos regionais de liberalização gradual (como no caso da APEC), no próprio início do exercício da Alca (sob Clinton) e, finalmente, na multiplicação de iniciativas bilaterais em diversos continentes que já conduziram à conclusão de vários FTAs e à composição de uma lista pelo menos triplicada de candidatos a novos esquemas bilaterais (desde “frameworks arrangements” até acordo formais de livre-comércio). Contribuiu para esse surto – de certa forma quase uma “epidemia” nos últimos anos – a impressão, partilhada tanto pelo Congresso como pelo Executivo – de que Washington estava perdendo a batalha para Bruxelas na estratégia de sedução (ou de reserva de mercados) de diversos parceiros regionais, quando não sendo ultrapassados pelos próprios (como Canadá e México, por exemplo). 

5.         Na medida em que essa estratégia parece ter adquirido dinâmica própria (e será portanto continuada pelos eventuais sucessores de Bush e Zoellick, sejam eles até mesmo democratas), parece-me correto, portanto, a atual estratégia brasileira de perseguir, com igual denodo nos diferentes planos, esquemas multilateralistas e minilateralistas (regionais ou com parceiros selecionados em determinadas regiões) de liberalização negociada de fluxos de comércio e de investimentos recíprocos, como forma de maximização de nossos ganhos num ambiente internacional irremediavelmente caracterizado pela imbricação multiforme, complementar e contraditória, dos processos de globalização e de regionalização. Por certo essa multiplicação de foros negociadores conduz a um certo stressnas equipes responsáveis, fenômeno visível até mesmo no bem aparelhado USTR, mas ela parece ser a única estratégia suscetível de minimizar as perdas potenciais no cenário “mercantilista-multilateralista” em que parece ter se convertido o sistema de comércio internacional contemporâneo. 

6.         A participação plena no exercício da Alca parece-me, portanto, corresponder aos interesses brasileiros, ainda que eventuais resultados positivos apareçam como duvidosos, no presente momento, em virtude das características gerais desse processo e pelas condições particularistas da oferta dos EUA, como ressaltado no artigo do Sr. Ministro de Estado. Uma percepção exata do que poderia vir a ser (não a, mas) uma Alca se vê dificultada pelas incertezas ainda remanescentes da posição negociadora dos EUA, dadas as ambigüidades e indefinições deliberadas do documento original que solicitou mandato negociador ao Congresso e em razão das condicionalidades estritas – mas nem sempre explícitas – colocadas no instrumento autorizativo do Congresso, que solicitou ser informado estreitamente e até mesmo ser consultado sobre ofertas liberalizadoras em setores de direto interesse brasileiro. Como ressaltado diversas vezes por várias autoridades dos EUA, a começar pelo próprio USTR, nada está excluído do mandato negociador, mas de fato as ofertas são moduladas em função de objetivos maximalistas nas áreas de real competitividade americana e de retraimento ou exclusão implícita naquele setores de exposição mais frágil (agro, de forma geral, algumas indústrias, assim como diversos serviços sujeitos a legislação restritiva) ou de natureza regulatória (defesa comercial).

7.         Partilho da convicção de que eventuais esquemas aladianos (típicos da “cláusula de habilitação”) e sua transposição num espaço econômico sul-americano de liberalização ampliada, suscetível até mesmo de consolidar-se numa área de livre-comércio regional, constituem o principal terreno de manobra da diplomacia comercial brasileira na atualidade, muito embora eu acredite que a eventual consecução plena desse objetivo requeira uma margem maior de liberdade negocial do que aquela permitida pelos atuais mecanismos mercosulianos, de consulta, coordenação e negociação conjunta. O objetivo acima descrito seria certamente mais fácil de ser atingido se o Brasil se dispusesse a (ou se ele pudesse) converter-se no “livre-cambista universal” no âmbito da América do Sul, mas por outro lado perderíamos, por certo, as vantagens do espaço ampliado de intercâmbio já consolidado ao abrigo da união aduaneira de 1995. Tal não é possível, entretanto, em virtude dos compromissos já firmados sucessivamente em Assunção e em Ouro Preto, e que vem sendo confirmados pelos atuais esforços de revitalização e de consolidação do Mercosul, inclusive com metas que ultrapassam os objetivos relativamente modestos dos “pais fundadores”, que não previram instrumentos parlamentares ou monetários comuns.

8.         Preservada a atual estrutura institucional e o cenário já conhecido de difíceis negociações inter-blocos entre o Mercosul e a CAN, tenho, entretanto, legítimas dúvidas, se me permitem tal atitude, quanto à solidez da disposição negociadora e à consistência dos compromissos sub-regionais de nossos parceiros continentais, por razões de ordem eminentemente práticas: (a) os imensos atrativos do mercado e dos investimentos dos EUA para a maior parte desses parceiros (inclusive do Mercosul); (b) pressões políticas, financeiras e até mesmo de ordem psicológica a serem exercidas pelo império em direção desses participantes hoje em sua maioria fragilizados; (c) disparidade de resultados percebidos entre nossos acenos de “coordenação de políticas setoriais” e de “integração física” com os vizinhos regionais e a promessa de ganhos imediatos, ainda que a rigor ilusórios em sua maior parte, do lado do Big Brother. Pode-se observar, por outro lado, que poucos países na região dispõem de condições ótimas para o exercício soberano e a execução concreta, como o Brasil, de projetos, políticas e programas setoriais de desenvolvimento integrado (social, ambiental, tecnológico etc.). 

9.         As linhas de ação para a Alca, propostas em documento do Senhor Ministro de Estado e referendadas pelo Senhor Presidente da República – basicamente consistentes nos “três trilhos” já conhecidos e como tal referidos no artigo em questão – parecem-me corresponder, efetivamente, à realidade atual do processo negociador, como aliás vinha sendo observado pela Embaixada em Washington desde a aprovação pelo Congresso do mandato negociador para o Executivo americano. Há uma compartimentalização de fato e uma segmentação de ofertas segundo os parceiros, a partir das quais o Brasil deve tirar as conseqüências práticas e avançar suas próprias propostas negociadoras, tanto quanto a métodos, como no que se refere á substância das ofertas realizadas e a serem melhoradas. Permito-me observar entretanto que se, a maior parte dos elementos negociais constantes de cada um dos trilhos pertence, efetivamente, ao mandato original de Miami, a componente dos “fundos de compensação”, inserida no contexto da Alca propriamente dito, não parece ter integrado aquele pacote fundador, sendo portanto suscetível de contestação numa visão mais legalista ou formalística do processo da Alca. De resto, estou basicamente de acordo com a repartição funcional e temática desses elementos entre os três trilhos sugeridos.

10.       A questão mais relevante a esse respeito, porém, tem a ver com a própria aceitabilidade dessa nova estratégia, ou dessa “metodologia revisionista”, aos olhos não apenas do Grande Irmão, mas dos demais parceiros regionais, inclusive Chile, Canadá e as chamadas “small economies”, cuja principal motivação pode estar, por exemplo, em investimentos ligados a serviços (em suas próprias economias, entenda-se). Não estou certo, assim, que esses parceiros – por certo algo recalcitrantes, mas nem sempre opostos aos desígnios do império, e em alguns casos até predispostos à satelitização – estejam prontos a seguir o Brasil nessa nova compartimentalização que oferecemos como uma solução elegante aos atuais impasses do processo hemisférico. 

11.       Não estou nem mesmo seguro de que nossos sócios do Mercosul manifestarão completa (e sincera) adesão ás teses e métodos propostos pelo Brasil, a despeito mesmo das juras repetidas e das promessas de solidariedade a cada novo encontro de cúpula. Não se pode, por exemplo, eludir o fato real de que os outros três parceiros sempre perceberam a TEC como uma construção essencialmente brasileira, daí as inúmeras exceções (nacionais, continuadas, divergentes e conflitantes) ao principal instrumento da união aduaneira. Tampouco se pode ignorar a realidade de um leque consideravelmente menor de interesses nas regras de acesso e nas normas regulatórias que esses mesmos parceiros mantêm em relação aos exercícios da Alca, das negociações UE-Mercosul e da própria rodada de Doha. 

12.       Por outro lado, pela minha própria experiência desde o início dos anos 90, no quadro do Mercosul (e mesmo antes, como representante brasileiro na Aladi), percebo os esforços de coordenação com a CAN como essencialmente ilusórios, quando não como diretamente frustrantes, dado o alto grau de “surrealismo institucional” e de “esquizofrenia operacional” existentes no bloco (bastante esgarçado) dos andinos. Na verdade, o único país consistentemente coerente em seus propósitos negociais, e de fato assumidamente livre-cambista e aberturista, tem sido o Chile, disposto a negociar acordos de livre-comércio com todo e qualquer país, em qualquer continente, que apresente oportunidades concretas em termos de suas vantagens comparativas. Essa facilidade negocial tem algo a ver, provavelmente, com o perfil tarifário único da pauta aduaneira chilena e com a preferência do país por políticas não indutoras de desenvolvimento, opções provavelmente difíceis no caso brasileiro, dada a natureza mais diversificada e regionalmente diferenciada de sua economia. 

13.       Partilho igualmente da opinião de que seria melhor ao Brasil concentrar-se no perfil de uma “Alca possível” do que procurar atingir todos os resultados originalmente inscritos no mandato de Miami, mas não estou certo de que a “minimização” dos grandes objetivos proclamados uma dúzia de anos atrás seja uniformemente acolhida por todos os parceiros do hemisfério. Tenho dúvidas inclusive de que o enfoque realista oferecido pelo Brasil, aparentemente acolhido pelos nossos parceiros americanos nos recentes encontros ministeriais e de cúpula, desfrute do mesmo entendimento do que seja uma “conclusão exitosa das negociações nos prazos previamente acordados”, sobretudo se considerarmos que interesses de grandes corporações americanas – certamente bem acolhidas pela atual administração americana – manifestam-se justamente naquelas áreas que desejaríamos ver transferidas para Genebra. 

14.       Permito-me, por fim, expressar minha convicção de que o problema principal da Alca não se refere mais a prazos ou a modalidades negociadoras, mas apresenta uma dupla vertente, segundo cada uma das co-presidências. Do lado americano, a prioridade parece centrar-se na maior “inclusividade” possível, ao passo que para o Brasil a tendência é exatamente inversa. Termino, portanto, afirmando que se quisermos fazer do atual processo hemisférico, não um exercício meramente dilatório mas, uma oportunidade singular para ganhos localizados em áreas de competitividade sistêmica brasileira, teríamos de abandonar o cenário das “grandes estratégias” – necessariamente generalizantes e pouco suscetíveis de acomodar nossos interesses concretos – e passar a concentrarmo-nos, desde já, em simulações econométricas quanto a ganhos possíveis e realizáveis em situações reais de barganhas setoriais (a serem conduzidas, eventualmente, até num esquema bilateral Brasil-EUA, e não necessariamente no formato 4+1). 

15.       A “Alca possível”, nesse sentido, não seria nenhum grande projeto de integração hemisférica, e muito menos a realização perfeita e acabada de uma área de livre-comércio (para mim utópica, nas atuais circunstâncias), mas uma “colcha de retalhos” (de geometria variável segundo os parceiros e setores “colados” entre si), na qual teríamos de colocar na nossa “periferia” todas as nossas vantagens comparativas naturais e adquiridas e deixar no “centro protetor” os setores e ramos dotados ainda de relativa fragilidade sistêmica. As simulações econométricas acima aludidas nos permitiriam, precisamente, medir a situações de maiores ganhos de bem estar para a economia brasileira, adotando então um perfil absolutamente pragmático (e não necessariamente uniforme) nas áreas selecionadas para abertura seletiva. Não se poderia excluir nem mesmo, a esse respeito, entendimentos ad hoccom os EUA relativos a medidas de defesa comercial, um dos nossos “demônios” principais nos vários exercícios negociais e absolutamente intratáveis até mesmo para as autoridades americanas em virtude dos humores congressuais. 

16.       Estou, por outro lado, absolutamente certo de que, assim como – no dito conhecido – os generais tendem a planejar a próxima guerra segundo as condições e técnicas militares dos combates precedentes, os diplomatas também negociam segundo cenários existentes em processos anteriores, sendo uns e outros ultrapassados pela dinâmica efetiva dos acontecimentos que se sucedem na vida real. Dessa forma, acredito que as empresas e os agentes econômicos, quando concluído o presente exercício negociador, terão avançado consideravelmente nos fluxos cruzados e nas interconexões recíprocas de investimentos produtivos, associações empresariais, fusões e outras formas diversas (e simultâneas) de market sharing, de cooperação e de competição, que diminuirão sensivelmente o impacto efetivo de uma futura (e ainda hipotética) Alca, assim como o Nafta, por exemplo, revelou-se bem menos transformador do que o “imenso sorvedouro de empregos” ou o “fabuloso manancial de modernização tecnológica”, imaginados por uns e temidos por outros.

17.       A Alca (em grande parte imaginada e imaginária) cresceu a ponto de “seqüestrar” boa parte da agenda diplomática brasileira, quando ela não é, de verdade, nem o monstro metafísico temido por alguns, nem a solução mágica do desenvolvimento brasileiro desejada por outros. Uma visão mais modesta desse exercício negociador, certamente complexo, mas nem por isso totalizador e totalitário, poderia contribuir para reduzi-lo às suas reais dimensões e eliminar, assim, os componentes ideológicos que hoje cercam o debate em torno dessa questão em nosso País. Quanto aos EUA, uma “Alca pragmática” – que provavelmente não será a mesma “possível” para o Brasil – certamente pode vir a satisfazer os setores da administração que buscam “quaisquer” resultados politicamente aceitáveis, para o eleitorado e para o Congresso, ainda que não para as corporações mais exigentes em termos de programa maximalista. Entre a Alca possível e a pragmática, tenho certeza de que existe espaço para um entendimento razoável entre o Brasil e os Estados Unidos. Espero poder contribuir para isto ainda à frente deste posto. 

RUBENS ANTONIO BARBOSA, Embaixador

Washington, 17/07/2003



Historia Virtual: limites e possibilidades (2003) - Paulo Roberto de Almeida

História Virtual: limites e possibilidades

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 7 de julho de 2003

Parece trivial, e sem maiores conseqüências práticas, fazer conjecturas em direção do passado, já que a linha contínua do tempo não nos permite operar qualquer mudança no curso efetivo da história, com a ajuda de alguma máquina do tempo imaginária. Especular é contudo possível em direção do passado, sendo em todo caso menos perigoso do que fazê-lo no presente e ainda menos arriscado do que “contra” o futuro. Um famoso historiador europeu, Johan Huizinga, chegou mesmo a afirmar que o historiador deveria se colocar de um ponto de vista que o permitisse considerar fatos conhecidos como podendo conduzir a resultados diferentes: e se os persas tivessem vencido em Salamina?; e se Napoleão tivesse fracassado em seu 18 Brumário? 
Assim, é possível selecionar alguns dos turning points da história para realizar exercícios controlados de imaginação, que não são todavia completamente arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras da história virtual, já explorada por historiadores fecundos como Niall Ferguson, é a de que o novo curso estabelecido deve ser “plausível” ou “possível”, isto é, seus desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica histórica do momento imediatamente antecedente. De fato, o próprio Ferguson responde à questão de saber quem se importa com desenvolvimentos que nunca ocorreram. Diz ele que, nós mesmos, na vida cotidiana, estamos sempre nos colocando questões “contrafatuais”: por que eu não obedeci aos limites de velocidade?; por que ter aceito aquele último copo?; quanto eu teria ganho se tivesse apostado naquele número? [1]
Nos imaginamos, assim, acertando no milhar, escolhendo uma outra profissão ou simplesmente evitando alguns erros cometidos no passado. Um outro famoso historiador, Thomas Carlyle, via a história como um eterno caos, que o historiador deveria avaliar cientificamente. As conseqüências alternativas poderiam, para ele, levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da história, um pouco como na atual alegoria do bater de asas da borboleta sugerido pela teoria do caos. Seria mesmo assim?
O argumento a favorda história virtual consiste em seu poder de despertar uma certa curiosidade pela própria trama da história real, ao sugerir desenvolvimentos diversos do que aqueles que efetivamente ocorreram e que, segundo o curso sugerido, poderiam ter provocado outras conseqüências, algumas até decisivas do ponto de vista do curso ulterior. Mas a história virtual não é o reino do arbítrio, e sim uma construção cuidadosa sobre as vias alternativas da vida humana, explorando fatores contingentes do processo histórico, onde os homens podem, sim, fazer uma grande diferença, ao contrário da aparente rigidez do determinismo histórico. Desse ponto de vista, a história virtual possui virtudes eminementemente didáticas, pois que ela permite isolar o que é únicoespecial ou peculiar num determinado evento ou processo histórico, ao imaginar que esse fator ou essa ação particular poderiam ter deslanchado um curso totalmente inesperado (do ponto de vista do que efetivamente se passou), mas que estaria inteiramente inserido na lógica e na trama do curso precedente. 
Aos que recusam a utilidadeda história virtual pode-se observar que ela está de certa forma contemplada numa vertente mais séria, e quantitativamente embasada, da disciplina, identificada, por exemplo, com a chamada “cliometria”, na qual argumentos contrafatuais são mobilizados para determinar o peso de determinados fatores ou processos históricos. Um dos mais conhecidos utilizadores desse tipo de exercício é, obviamente, o prêmio Nobel americano Robert William Fogel que, numa obra famosa (Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History, 1964), tenta isolar o papel das ferrovias no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. [2]
Assim, o que teria acontecido com o Brasil – que talvez não fosse nem “Brasil” – se a linha divisória de Tordesilhas, por desatenção dos portugueses ou resistência dos negociadores espanhóis, tivesse ficado lá mesmo onde a tinha colocado a bula do papa Alexandre VI, no meio do oceano? Teriam as Américas permanecido uniformemente espanholas, contentando-se os portugueses com seus domínios apenas africanos? O mais provável é que incursões de conquistadores concorrentes – franceses, holandeses, ingleses, entre outros – tivessem “esquartejado” bem mais cedo o hemisfério ocidental entre reinos e impérios mercantis europeus.
Muitos outros eventos ou processos podem ser sugeridos nessa linha da “história alternativa”. Cursos diferentes para episódios conhecidos devem, contudo, guardar conexão com o desenvolvimento possível ou com o curso efetivo de cada um deles. É o que se poderia chamar de plausibilidade histórica, o que significa que o curso sugerido não pode ser nem “anacrônico”, nem totalmente arbitrário, no sentido em que a alternativa selecionada poderia ter sido efetivamente “oferecida” aos, ou considerada pelos homens que tomaram tal ou tal decisão em momentos por vezes dramáticos para seus países ou para si mesmos. 
A idéia da contingência na história, uma das bases da história fatual, milita, assim, contra o determinismo histórico, muitas vezes exemplificado pela famosa frase de Marx na abertura do seu 18 Brumário de Luís Napoleão, segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas o fazem em condições determinadas por forças que estão fora do controle desses mesmos homens.
Resumindo, idéias virtuais também podem constituir uma “boa” matéria prima para a história real, desde que ela se faça em condições aceitáveis de causalidade e de encadeamento das ações humanas. Afinal, o Rubicão, Waterloo, a batalha da Inglaterra, Stalingrado, poderiam, sim, ter conhecido outros desfechos e ter apresentado outras conseqüências. A relação (sempre ambígua) entre a liberdadee a necessidade nunca está determinada previamente e é isso, justamente, que constitui um dos fascínios da história. 

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 7 de julho de 2003


[1]Ver Niall Ferguson, “Introduction, Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in Niall Ferguson (ed.), Virtual History: Alternatives and Counterfactuals (New York: Basic Books, 1997), pp. 1-90, cf. p. 2.
[2]Cf. R. W. Fogel, “The New Economic History: its findings and methods” in Fritz Stern (ed.), The Varieties of History: From Voltaire to the Present (New York: Vintage Books, 1973), pp. 456-473.

Como eliminar a retorica vazia e o bullshit diplomatico - Paulo Roberto de Almeida

Eu estava apenas brincando, e nunca divulguei esse ataque ao estilo itamarateca de encher linguiça.
Como muito tempo já se passou, desde que esse bullshit foi pronunciado, mas tendo em conta que as mesmas práticas retóricas continuam, resolvi transcrever uma brincadeira de 15 anos atrás.

Duas versões de um mesmo discurso
Exercício de exegese diplomático-vocabular

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 6 de julho de 2003

Primeiro uma notícia de jornal chamou-me a atenção para um fato pelo menos inusitado nos últimos seis meses de presidência Lula: o de que um discurso do presidente, no caso sua intervenção na reunião de cúpula do Mercosul (Assunção, 17 de junho de 2003), deixou de encantar a platéia e se apresentava, ao contrário, como “impessoal, típico do Itamaraty”, segundo a caracterização oferecida pela imprensa paraguaia. Eis a notícia:

Folha de São Paulo, 18 junho 2003

Imprensa paraguaia critica atitude de Lula

Denize Bacoccina
da BBC, em Assunção (Paraguai)
“Apesar de ter elogiado a disposição brasileira de dar vantagens ao Paraguai e ao Uruguai, a imprensa paraguaia reclamou da atitude do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a cúpula do Mercosul. Lula era o presidente mais aguardado no país, uma espécie de estrela do evento.
Mas os três jornais paraguaios que cobriram a reunião criticaram a consistente recusa do presidente brasileiro em falar com a imprensa. Lula só falou na entrevista coletiva oficial de encerramento -- e desconversou numa pergunta sobre a dívida do Paraguai com a Eletrobrás por causa de Itaipu.
O jornal La Nacióndiz que Lula ‘não honrou’ a fama de carismático que tinha no país. Na chegada à cidade, ele foi recebido com saudações carinhosas dos jornalistas paraguaios e estrangeiros que o esperavam no aeroporto e não ouviram uma palavra sua.
La Nacióncriticou também o discurso de Lula durante a reunião, considerando-o ‘impessoal, típico do Itamaraty’.”

Depois, outros comentários teriam se referido ao discurso como “xoxo”. Fui então buscar o referido discurso para verificar o que ele continha ou deixava de conter para justificar esses severos julgamentos da imprensa (e supostamente da opinião pública) paraguaia. De fato constatei que esse discurso segue o padrão normal dos textos itamaratianos, ou seja, muita retórica para pouco conteúdo, o que deve ser considerado como normal nesse tipo de exercício diplomático. Tudo é feito para infundir otimismo e projetar grandes realizações num futuro indefinido e pouco se diz das dificuldades reais do presente. O que poderia haver de realidade, costuma ficar nas entrelinhas desses textos oficiais, que costumam ser tão aborrecidos quanto os antigos relatórios dos secretários-gerais nos congressos dos partidos comunistas no poder. 
Resolvi então tentar um exercício de exegese discursiva, eliminando o que poderia haver de bullshitdiplomático no discurso do presidente e “reconstruindo” o texto no sentido de lhe dar mais leveza, de certa forma adaptando-o à realidade dos demais discursos presidenciais. Com isso não quero dizer que o Itamaraty deva reformar seus padrões vocabulares, mas creio, sinceramente, que um pouco de concisão, simplicidade e adequação à realidade não fariam mal nos cursos de redação da Casa de Rio Branco. 
Minha metodologia é a mais objetiva possível. Alinhei o discurso preparado pelo Itamaraty na coluna da esquerda, oferecendo, na coluna de direita, uma alternativa mais simples e mais direta. 


Discurso do Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na Reunião de Cúpula do Mercosul, Assunção, 18 de junho de 2003 (copyright: Presidência da República)
Nova versão do mesmo discurso, ligeiramente retrabalhado para torná-lo mais conciso e mais conforme a um padrão “light”
(copyright: Paulo Roberto de Almeida)
Senhores Presidentes,
Desde o início de meu mandato – e antes mesmo que assumisse a Presidência – tenho dedicado atenção prioritária à plena realização do MERCOSUL. Ele é o núcleo em torno do qual pensamos deva ser levada adiante a integração da América do Sul.
Meus caros amigos,
Sempre valorizei o Mercosul. Acho que ele é base da integração sul-americana.
Nos primeiros meses de meu governo, recebi em Brasília o ex-Presidente Eduardo Duhalde e o atual Presidente da Argentina, Néstor Kirchner, o Presidente Jorge Battle, do Uruguai, e o Presidente-eleito do Paraguai, Nicanor Duarte a cuja posse terei o prazer de assistir em 15 de agosto. Antes de assumir minhas funções, pude encontrar-me com nosso anfitrião, o Presidente González Macchi, e com os presidentes Ricardo Lagos, do Chile, e Sanchez de Lozada, da Bolívia, países-associados ao Mercosul.
Em mais de uma ocasião, reuni-me com o Presidente Hugo Chávez, da Venezuela, que nos honra aqui com sua presença. Antes do fim de agosto terei tido o privilégio de haver realizado proveitosas reuniões de trabalho com todos os presidentes da América do Sul.
Já me encontrei com todos vocês e pretendo continuar recebendo-os e visitando-os. 
Todos esses encontros permitiram conversas fraternas sobre os problemas comuns que afetam nossas respectivas economias e sociedades. Constituíram oportunidade para discussão de idéias novas e para o encaminhamento de iniciativas concretas que já estão contribuindo para a recuperação dos fluxos de comércio e de investimentos entre nossos países.
Em todos os contatos que mantive com meus colegas Presidentes, constatei profunda coincidência de visões sobre a importância do MERCOSUL como projeto estratégico de integração regional e como instrumento indispensável para o desenvolvimento econômico e social de nossos países.
Venho a esta reunião com a firme convicção de que é possível retomar os passos necessários para consolidar o MERCOSUL como União Aduaneira , em que nossos produtos encontrem mercados sem restrições, e caminhar para a construção de um verdadeiro Mercado Comum, espaço ampliado de prosperidade para nossas populações.
Nesses encontros, conversamos sobre nossas atuais dificuldades e os meios de superá-las, mediante o reforço do Mercosul.
Senhores Presidentes,
Os resultados das eleições presidenciais no Brasil, na Argentina e no Paraguai demonstram uma clara opção de nossas sociedades em favor do MERCOSUL. Em nossas campanhas eleitorais afirmamos que o MERCOSUL seria prioridade de nossos governos. Os eleitores aprovaram essa proposta. Está, assim, em gestação um novo ambiente político, muito mais propício à retomada dos esforços de integração regional. 
Tem havido um diálogo cada vez mais fluido e próximo entre todas as esferas dos Governos do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai.
Nossas democracias estão consolidadas e nossos eleitores aprovam a idéia do Mercosul.
Do ponto de vista econômico, com a recuperação da credibilidade externa e interna da economia brasileira e a estabilização argentina, estão dadas as condições para a retomada do crescimento em toda a região. Vamos reverter o quadro recessivo enfrentado por nossos países, inclusive no Paraguai e no Uruguai.
Em particular, o comércio intra-regional está se recuperando aceleradamente e deve retomar este ano, pelo menos os níveis de 2001.
Os governos dos países que integram o Mercosul têm trabalhado de forma mais determinada e coesa na construção de ampla agenda de negociações comerciais com terceiros países e blocos econômicos.
Esse novo quadro evidencia atitudes políticas coincidentes, que se somam à inequívoca determinação do Governo brasileiro em dar decidido impulso ao processo de integração do MERCOSUL.
O pior da crise já passou. Vamos agora retomar a construção do Mercosul e coordenar nossas posições nas negociações comerciais externas.
Senhores Presidentes,
Proponho hoje que nos comprometamos com uma seqüência de passos para que os objetivos constantes do projeto original do MERCOSUL possam ser atingidos dentro dos prazos previamente estabelecidos.
Vamos desenvolver um Programa de Trabalho com metas claras com vistas à consolidação, efetiva e completa, da União Aduaneira, até 2006. Esse Programa tem de prever, ainda, elementos que criem bases sólidas para o Mercado Comum do Sul.
É necessário ter presente as diferenças entre as estruturas produtivas dos Estados partes. Devemos construir instrumentos adequados para superar as assimetrias com nossos sócios de economias menores. Esse é o firme compromisso que o Brasil quer aqui assumir.
Vamos tentar, mais uma vez, cumprir o que está estipulado no artigo 1º do Tratado de Assunção, de 1991, a despeito das assimetrias internas.
O programa "Objetivo 2006", apresentado nesta reunião e para cujo aperfeiçoamento conto com o apoio de meus colegas, incorpora algumas tarefas prioritárias. A primeira delas - indispensável - é aperfeiçoar a Tarifa Externa Comum, elemento central da União Aduaneira.
Nesse processo, precisaremos ter determinação e flexibilidade.
Será fundamental para a construção final do espaço comum de produção, comércio e desenvolvimento, nossa capacidade de negociar os instrumentos de política comercial comum, tais como defesa comercial, incentivos, defesa da concorrência e compras governamentais.
Vamos revisar a TEC e coordenar nossas outras políticas setoriais.
Mas para recuperarmos o MERCOSUL temos de ir além da discussão sobre os aspectos aduaneiros. É preciso dar prioridade à implementação de políticas que favoreçam nossa integração produtiva.
Entre essas políticas, quero destacar o Programa dos Foros de Competitividade das Cadeias Produtivas do MERCOSUL, que deve envolver não só grandes empresas, mas também aquelas de pequeno e médio porte.
No último dia 31 de março demos passo concreto nessa direção com a instalação do primeiro Foro MERCOSUL, dedicado à cadeia de madeiras e móveis. Outros setores industriais, agrícolas e de serviços serão objeto de futuros foros.
Vamos integrar nossas indústrias, começando pelo setor moveleiro.
Ao mesmo tempo, sabemos que será necessário mobilizar recursos financeiros para dar apoio ao processo de maior integração das cadeias produtivas dentro da região.
O Brasil está tomando medidas para estimular parcerias no MERCOSUL, com a ampliação da participação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES.
Estamos empenhados de forma crescente e decidida no esforço imprescindível de construir em toda a América do Sul uma infra-estrutura física capaz de dar carne e osso à nossa integração.
Pela ação conjunta do MERCOSUL, poderemos mobilizar ainda maiores recursos junto aos organismos regionais para o desenvolvimento, como a Corporação Andina de Fomento, o FONPLATA e o BID.
Quero reiterar meu compromisso de valorizar o Convênio de Créditos Recíprocos (CCR) como instrumento fundamental de promoção do comércio entre os países da América do Sul, em especial os do Mercosul.
Para fazer isso, é preciso financiamento. O Brasil está disposto a colocar um pouco do seu dinheiro, mas quer mobilizar também os órgãos multilaterais.
E vamos tentar, uma vez mais, aumentar as linhas de crédito comercial.
Senhores Presidentes,
O processo de construção do Mercado Comum não poderá ser obra, exclusivamente, dos governos e dos setores empresariais interessados nas vantagens da maior liberalização comercial na região.
Na construção definitiva do MERCOSUL, é indispensável debate aberto, seja nos Parlamentos, seja na sociedade. É fundamental, nesse sentido, a valorização do Foro Consultivo Econômico e Social, que reúne representantes de entidades empresariais, sindicais e de consumidores. Temos que fazer um MERCOSUL democrático, participativo. É esse MERCOSUL que nossas populações querem. É esse MERCOSUL que defendemos em nossas campanhas eleitorais.
Por isso, é necessário fortalecer também as agendas política, social e cultural do MERCOSUL. Dar-lhe uma dimensão humana.
Precisamos conhecer-nos melhor, crescer juntos para garantir apoio duradouro ao processo de integração.
O Mercosul só se concebe enquanto processo democrático, por isso devemos consultar mais nossas sociedades.
Daremos importância à construção de instituições comuns, de políticas sociais articuladas, de parcerias na área educacional e cultural dentro do bloco, para que possa florescer uma verdadeira identidade dos cidadãos de nossos países com o Mercosul.
Faltou ao Mercosul uma dimensão política, como se bastassem apenas fórmulas econômicas. É nesse quadro que se impõe a criação de um Parlamento do MERCOSUL, eleito pelo voto direto.
Para avançar nessa agenda, estou propondo que o Mercosul tenha um parlamento comum, eleito pelo voto direto.
Temos que consolidar os avanços recentemente introduzidos pelo Protocolo de Olivos sobre solução de controvérsias e pela criação do setor de Assessoria Técnica na Secretaria do MERCOSUL.
Buscaremos implantar outros aperfeiçoamentos institucionais que preparem o Bloco para o funcionamento da União Aduaneira completa. Um passo nesse sentido é a transformação de nossas Delegações Permanentes junto à ALADI em representações também para assuntos do MERCOSUL.
Outro passo é acelerar o processo de incorporação das decisões e normas que aprovamos em reuniões às legislações de nossos países.
Desejamos estreitar a colaboração em projetos sociais entre os governos da região, em cujas sociedades a fome, a pobreza e a deterioração social representam um problema comum.
Daí a proposta de criação do Instituto Social, para conduzir a reflexão conjunta com vistas ao estabelecimento de metas e ações concretas em matéria de política social nos países do MERCOSUL.
Vamos apoiar o desenvolvimento do cooperativismo na região, tendo em conta a importância sócio-econômica dessas organizações nos níveis local e regional e o seu papel de agente de inclusão e coesão social.
Vamos também introduzir aperfeiçoamentos técnicos no Mercosul, passar a cumprir efetivamente o que for decidido e implementar uma agenda para o desenvolvimento social.
Senhores Presidentes,
O MERCOSUL está no centro da estratégia brasileira de inserção no mundo.
O MERCOSUL é parte desta América do Sul, que desejamos ver plenamente integrada e próspera. Nesse contexto, são fundamentais os acordos de livre comércio já existentes com a Bolívia e o Chile, e aquele em fase de conclusão com o Peru.
Destacaria, igualmente, o compromisso firmado em abril com a Venezuela, em Recife, e em maio com o Equador, em Brasília, no sentido de constituir, até final de 2003, uma zona de livre comércio entre os países da Comunidade Andina e do MERCOSUL, com o propósito de estabelecer um espaço econômico integrado sul-americano. O MERCOSUL precisa ter a dimensão de toda a América do Sul.
A nova América do Sul será criada pela conexão entre o MERCOSUL e a Comunidade Andina de Nações.
Por outro lado, os projetos de integração física resultantes da Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul - IIRSA - permitirão o aproveitamento efetivo das oportunidades abertas por estes acordos, além de representarem vetores de crescimento para as economias da região.
O Brasil vê o Mercosul como um dos pólos da integração sul-americana, junto com a CAN, com a qual promoveremos a integração física da região.
O fortalecimento interno do MERCOSUL é imprescindível para levar adiante as negociações com outros países e blocos. Será assim garantida uma presença influente da América do Sul no mundo.
No plano externo, é significativa a presença da Índia nesta reunião, país com o qual acabamos de celebrar um Acordo Quadro que servirá de base para as negociações de preferências tarifárias, cuja conclusão está prevista para agosto deste ano. Com a África do Sul, também aqui representada, esperamos dar novo impulso aos entendimentos comerciais, conduzidos ao abrigo do Acordo Quadro firmado em dezembro de 2000.
Reforça-se o diálogo sul-sul com a presença entre nós desses dois importantes países.
A unidade do MERCOSUL é também fundamental para permitir a consistência de posições comuns, condição necessária para fortalecer a capacidade negociadora do Bloco junto a outros parceiros comerciais, como a União Européia e os Estados Unidos.
O reforço interno do Mercosul permitirá também o estabelecimento de acordos com outros blocos e países, notadamente a Índia e a África do Sul, além de reforçar nossa capacidade de barganha nas negociações com a UE e na Alca.
Caros colegas,
Temos enormes desafios pela frente.
O maior deles é trabalhar para transmitir a nossos povos a certeza de que o MERCOSUL lhes traz vantagens concretas e maior bem-estar. Por isso vale a pena sua ampliação e consolidação.
Não podemos permitir que o burocrático, o meramente técnico ou econômico se sobreponha ao êxito do mais importante projeto político-estratégico em que estamos engajados.
Nesta Cúpula, em que inauguro minha participação formal nos trabalhos do Grupo, quero deixar claro o meu compromisso pessoal e o firme empenho do governo brasileiro pela retomada e revitalização do projeto original do MERCOSUL.
A plena realização do "Objetivo 2006" requererá esforço, determinação e sabedoria política. O Brasil cumprirá sua parte.
O Brasil acredita no Mercosul e fará a sua parte para que ele se mantenha como projeto político-estratégico.
Senhores Presidentes,
A América do Sul vive um momento privilegiado. As graves crises que nossos países enfrentaram não abalaram as convicções democráticas de nossos povos.
Elas estão hoje mais fortalecidas do que nunca.
Nossa confiança e auto-estima são maiores.
Temos, portanto, enormes responsabilidades.
A principal delas talvez seja a de enfrentarmos unidos os desafios que temos diante de nós.
A unidade do Mercosul e da América do Sul nos permitirá retomar o crescimento, combater as desigualdades, promover a inclusão, aprofundar a democracia e garantir nossa presença soberana no mundo.
Estamos conscientes das dificuldades, mas unidos poderemos vencê-las.
Obrigado.
Meu muito obrigado a todos vocês.


Voilà: num caso se tem 1.821 palavras (11.967 caracteres com espaço), enquanto no outro nos contentamos com 300 palavras (1.930 caracteres), ou seis vezes menos. Acho, sinceramente, que o Mercosul pode ser construído com discursos de apenas uma página, mas o Itamaraty parece preferir fazê-lo com 4 ou 5 páginas cada vez. Talvez seja uma característica da região: dizem que Bolívar também escrevia bastante sobre a integração dos povos da região e um seu descendente político gosta muito de entreter os cidadãos com 4 ou 5 horas de conversa no rádio. Deve haver alguma relação de causa a efeito entre metas e resultados…

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 6 de julho de 2003

Numeros inaugurais de revistas de historia - compilação

O que escreveram os editores nos números inaugurais de revistas de História


            “Com o objetivo de descrever mais detalhadamente para os nossos leitores o ponto de vista e a direção na qual o empreendimento que aqui começa deseja seguir, transcrevemos estas passagens do prospecto que distribuimos aos nossos colaboradores.
            Este periódico deverá ser, acima de tudo, científico. Sua primeira tarefa, assim, deverá ser o de representar o verdadeiro método da pesquisa histórica. 
            Por um lado, não é nosso objetivo discutir questões não resolvidas da agenda política corrente, nem nos comprometer com um partido político particular.
            Por outro lado, não queremos estabelecer uma revista de simples “antiguidades”. Mas, queremos, sim, tratar preferencialmente de matérias e de relações documentais que possuam uma ligação essencial com a vida atual.”
Prefácio ao número inaugural de
Historische Zeitschrift
Munique, fevereiro de 1859

            “O estudo da história em nossos dias está se tornando crescentemente importante e é de mais em mais difícil, mesmo para o estudioso profissional, manter-se atualizado com todas as descobertas e com as novas pesquisas que estão sendo produzidas a cada dia nesse vasto campo. 
            Desejamos estabelecer um terreno comum de trabalho com todos aqueles que, independentemente de suas orientações particulares, apreciam a história pelos seus méritos próprios e com aqueles que não usam a história como uma arma em defesa de suas convicções filosóficas ou sus idéias políticas. Ao mesmo tempo em que deixamos nossos colaboradores livres e responsáveis por suas próprias opiniões, pedimos a eles para tratar as questões de que se ocupam com o rigor metodológico e a ausência de preconceitos e partidarismos como requerido pela ciência, e não procurar argumentos históricos a favor ou contra as doutrinas que estão apenas indiretamente envolvidas.
            Não vamos criar, dessa forma, nem uma revista de polêmicas, nem de simples vulgarização, assim como nossa revista não será uma obra de pura erudição.”
Prefácio à

Revue Historique

Gabriel Monod (1876)


            “Muitos estudiosos de temas contemporâneos afirmam discernir um descontentamento generalizado com os resultados da pesquisa histórica, tal como conduzida atualmente. Admitindo-se que este sentimento seja fundado, eles atribuem a suposta debilidade da produção histórica contemporânea a estas causas: um método pouco científico, a necessária complexidade dos temas e a incapacidade do regime democrático em estimular a imaginação, seja de tipo científico, seja de tipo literário”.
William M. Sloane, “History and democracy”
The American Historical Review(vol. I, nº 1, outubro 1895)


Pela compilação: Paulo Roberto de Almeida
Com base, para as duas primeiras transcrições, no livro de Fritz Stern (org.), The Varieties of History, from Voltaire to the Present (2a. ed.: New York: Vintage Books, 1973).
Filadélfia, 3 de julho de 2003

Sobre Jose Guilherme Merquior (2003) - Paulo Roberto de Almeida


Comentários de Paulo Roberto de Almeida
 para subsidiar número especial, 35 anos, da Revista Veja
Filadélfia, 3 de julho de 2003

A carreira pública e a trajetória intelectual de José Guilherme Merquior, brilhantes em seu mérito próprio e dignas de elogios em qualquer país que valoriza o debate de ideias, foram por um momento atacadas por certos setores de opinião e parecem ter sido atingidas de uma certa censura pública em virtude de sua associação temporária com o governo Fernando Collor de Mello, como antes com algumas figuras do espectro político que serviram ao regime autoritário encerrado em 1985. Observador à distância de algumas das polêmicas em que Merquior se envolveu contra algumas das figuras intelectuais da então oposição, e funcionário público especializado como ele nas lides diplomáticas, posso dar um testemunho que se pretende imparcial sobre a figura pública e intelectual de Merquior e sobre os problemas suscitados por essa pretendida associação com um governo e com uma figura política hoje justamente caídos no opróbrio da consciência democrática nacional.
Collor, como muitos outros políticos oportunistas e falastrões, tinha um projeto de conquista de poder com base numa agenda reformista, mas não sabia bem o que fazer ou o que falar, caso típico de um político dotado de muita vontade de poder mas de poucas idéias consistentes. Por isso, ele tinha necessidade de quem pensasse por ele, de quem lhe fornecesse algumas boas idéias, se possível uma inteira doutrina social, ou construção intelectual, que recheasse um pouco sua retórica transformista mas totalmente incoerente e inconsistente. Deixemos de lado, por um instante, o fato de que ele era um mentiroso contumaz, além de pessoalmente desonesto e na prática um amoral, ou que ele se revelou, de fato, como um dos maiores embustes políticos conhecidos na história do Brasil. Reconheçamos, por outro lado, que se tratava de alguém disposto a mudar a face do País, a reinserir o Brasil no mundo, como ele mesmo dizia, ainda que não soubesse bem como e o que fazer, exatamente.
Nessa carência de ideias e de propósitos entra, precisamente, José Guilherme Merquior, um intelectual brilhante, polemista treinado, dotado de uma certa visão do mundo (mais em política, do que em economia), mas que era também um funcionário federal, sujeito portanto a certas normas da burocracia pública, especialmente marcadas na carreira diplomática pelas regras da hierarquia e da disciplina. Merquior tinha muitas idéias, sobre o Brasil e seus problemas, nem todas elas adequadas talvez às graves dificuldades econômicas que o País enfrentava, mas todas elas inteligentes e coerentes com um conjunto de princípios que ele classificou de “liberalismo social” (apropriada como “doutrina governamental” por essa fraude moral e política que foi Collor).
Merquior foi, assim, um participante ativo e quiçá um formulador de alguns dos princípios e fundamentos conceituais do “transformismo” brasileiro, muitos dos quais ele tinha absorvido com Roberto Campos, quando ele serviu na Embaixada em Londres, em especial as noções de política econômica que ele nunca manejou muito bem, voltado que era para o combate de idéias, as lides filosóficas e a crítica literária. Merquior, por exemplo, não foi um formulador da política externa brasileira nesse período. O Itamaraty sempre ostentou formuladores razoáveis e operadores altamente eficientes da diplomacia prática e Merquior não era um deles, pois que sempre preferiu se concentrar no terreno da critica literária e dos debates filosóficos (ainda que com altas implicações políticas, como revelado em sua tese da London School of Economics sobre Rousseau e Weber e no trabalho contestador sobre o marxismo ocidental), em lugar de se adentrar nos arcanos da política externa brasileira.
Merquior exerceu algumas funções de gabinete no Brasil do regime autoritário e depois durante a transição democrática, tendo servido particularmente com Leitão de Abreu (governo Figueiredo). Era amigo do presidente Sarney, colega da Academia Brasileira de Letras e amigo de tertúlias literárias. Nessa fase, se distinguiu em alguns debates públicos, na verdade menos debates do que demonstrações de sua inteligência ferina e certeira de um lado, e de agressões verbais totalmente descabidas de outro, por aqueles que se julgavam detentores de uma verdade superior com base num suposto “sentido da história” e numa pretensa postura superior de luta democrática contra o regime autoritário. O governo Collor, particularmente, concentrou muito do maniqueísmo então reinante na academia e em certos meios políticos, ocupados ou dominados por políticos derrotados e por ideólogos frustrados pela não aceitação da agenda estatista e retrógrada que defendiam então.
Independentemente dos embustes políticos e éticos do governo Collor, tratou-se, indubitavelmente, de uma administração radicalmente reformista, com poucos sucessos reais, mas que deixou aberto o caminho para o aprofundamento da agenda de abertura econômica, de liberalização comercial, de desmonopolização e de desestatização de um imenso conjunto de setores econômicos que se mostravam deficientes nas mãos de um Estado letárgico, paquidérmico e incapaz de atender aos cidadãos enquanto simples consumidores de serviços de utilidade pública.
Merquior não foi o promotor ou o iniciador desse processo (pois devia muitas de suas ideias nesse terreno, como vimos, a homens como Roberto Campos, José Oswaldo de Meira Penna, e outros brasileiros e estrangeiros), mas ele pode ser identificado como um de seus formuladores ou apresentadores mais consistentes, dada sua capacidade de escrever e apresentar ideias. Sua função de “ghost writer” de Collor não pode ser tomada como estranha ou excepcional, pois que esse tipo de função existe com extrema freqüência no serviço público, em especial no Itamaraty. Eu mesmo, sem ter nenhuma glória por isso, já redigi discursos para os presidentes Sarney e FHC (também como chanceler) e pelo menos um artigo para Collor. Aliás, existe um dito popular no Itamaraty que diz, com razão ou não, que “você só assina artigos quando não mais os escreve”, o que denota uma certa cultura da pluma de empréstimo.
Merquior, em relação a Collor, foi certamente mais do que uma pluma a serviço do poder; em alguns momentos pode ter sido também uma espécie de conselheiro do príncipe e talvez tenha influenciado assim algumas das ações, e certamente das ideias, ostentadas por esse governo que conseguiu ser revolucionário e ao mesmo tempo bastante representativo da maneira tradicional de fazer política no Brasil. As ideias de Merquior, que depois as repassou, talvez por empréstimo involuntário, a Collor, foram talvez um pouco avançadas para a época, ou quem sabe o Brasil estava bastante atrasado em relação a idéias “capitalistas” e princípios de “boa governança” que já eram de voga na socialdemocracia europeia e mesmo no social-liberalismo na prática em vigor na maior parte das democracias avançadas.
Merquior expressava um certo consenso nos homens públicos que depois viriam a governar o Brasil nos dez anos seguintes – vindos da esquerda, da direita ou do centro – e, como tal, ele apenas antecipou diretrizes e ensinamentos que depois seriam aceitos até mesmo pelos seus adversários da época e que chegariam ao poder ao final desse período. Deve-se aliás reconhecer que todas as idéias defendidas por Merquior – defendidas muito antes dele por homens como Roberto Campos, cabe reafirmar – encontram-se hoje incorporadas ao senso comum da boa administração pública. Que essas ideias tenham sido apropriadas abertamente por Collor, entre 1990 e 1992, e depois, clandestinamente, por alguns de seus adversários daquela época apenas serve de homenagem a um homem que se distinguiu precisamente por suas ideias, assim como oferece um testemunho direto sobre a consistência e persistência dessas mesmas ideias.

Paulo Roberto de Almeida
Filadélfia, 3 de julho de 2003

Criticas do alto da torre de marfim (2003) - Jose Murilo de Carvalho, Paulo Roberto de Almeida

Em 2003, houve um sentimento de frustração geral por parte de acadêmicos, no sentido em que os progressos "sociais" do governo transformador eram considerados muito lentos. O historiador José Murilo de Carvalho efetuou uma dessas críticas, reproduzida no Globo, e reproduzida no Jornal da Ciência. Eu me permiti responder à crítica: 

Críticas do alto da torre de marfim

Paulo Roberto de Almeida
Filadélfia, 30 de junho de 2003


Comentários a entrevista transcrita no Jornal da Ciência (JC E-Mail), Edição 2309, de 30 de junho de 2003, publicada, sob o título “Sociólogo comenta entrevista de José Murilo de Carvalho”, na edição nº 2311, de 2 de julho de 2003 (matéria 25)
Mensagem do sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeida:

Apenas um comentario de ordem geral a respeito da entrevista de Jose Murilo de Carvalho ao Globo(29.06), transcrito no JC de 30.06.
Sua entrevista é bastante equilibrada e denota alto senso de realismo em relação aos problemas da governança, sempre difíceis em países vulneráveis à ação de forcas externas, sobre as quais não se tem controle, como o Brasil.
Mas, como muitos de seus colegas de academia (vide o manifesto dos economistas, por exemplo), ele se permite formular julgamentos a partir de uma posição relativamente confortável, pois que não assumindo funções executivas no governo.
Ele diz, por exemplo: 'Estabilizado o sistema, como já está, não há mais desculpas para a falta de resultados na área social.'
Permito-me apenas chamar a atenção para o fato de que muitos acadêmicos, num total isolamento dos problemas reais de governabilidade, estipulam metas, fixam prazos, cobram resultados, em total abstração dos problemas reais de administração da economia, como se orçamentos fossem elásticos, como se a vontade política bastasse para produzir resultados, e como se a indignação moral fosse um bom substituto da racionalidade econômica.
Ajudar o governo a cumprir as metas anunciadas durante a campanha eleitoral, quando todas as liberdades com a realidade são permitidas, implica igualmente fazer uma avaliação realista das possibilidades e limites da gestão econômica e procurar colaborar no que for possível.
Cobranças do alto da torre de marfim conseguem tão somente aumentar o grau de frustração social.

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 From: Jornal da Ciência <jcemail@jornaldaciencia.org.br
 Date: Mon, 30 Jun 2003 15:33:28 -0300

 Subject: JC e-mail 2309, de 30 de junho de 2003.
 José Murilo de Carvalho sobre o Governo Lula: 'Não há mais desculpas para a 
 falta de resultados'

 O historiador diz que o governo Lula está diante do mesmo desafio que  enfrentava ao assumir: conciliar a ortodoxia econômica com avanços sociais.  Embora diga que era preciso acalmar a "banca internacional", ele cobra  atitudes concretas, pois o desempenho no social tem sido pífio.

 Eis a entrevista com José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de 
 Ciências, feita por Carter Anderson para 'O Globo':

 - O governo Lula sofre pressões cada vez maiores para mudar a política  econômica. Acabou a lua-de-mel e começou o inferno astral? 
José Murilo de Carlaho - A lua-de-mel está acabando, o inferno astral não  começou. O presidente ainda é popular entre o povão e ainda tem cacife no  mundo político. O que está havendo é o que observadores menos parciais, ou  menos românticos, previram: a eleição de Lula não levaria à refundação do  Brasil. A forte proposta de renovação, ancorada sobretudo no carisma do  presidente, teria que enfrentar sérios obstáculos, como a resistência do  privilégio, a impaciência dos radicais e os constrangimentos dos mecanismos  democráticos de decisão. É o que está havendo.
  - Ao avaliar o primeiro mês, o senhor disse que Lula teria que juntar duas cabeças: a da ortodoxia econômica e a da reforma social. Está conseguindo? 
  José Murilo - Não está. É óbvio para todos que, por enquanto, o governo tratou  de segurar a economia recorrendo à mesma política do governo anterior, presa à  receita do FMI, em prejuízo quase total da agenda social. A frustração é  grande. Mas deve-se concluir que Lula e o PT se transmudaram em neoliberais,  traíram o eleitor, cometeram estelionato eleitoral? Tirar tal conclusão é tão  precipitado como foi esperar mudanças radicais. Com razão ou não, a banca  internacional estava em pânico, o real despencava, o risco Brasil disparava. E  isso em boa parte devido a posições defendidas pelo próprio PT quando  oposição. Seria muito arriscado alterar o rumo sem antes estabilizar o  sistema. Há ainda três anos e meio para fazer pender a balança para o lado  social. 
  - O governo briga com setores que sempre estiveram ligados ao PT. Esses setores buscarão outras formas de representação política? 
  José Murilo - Algum realinhamento de forças deverá acontecer. Alguns petistas  sairão ou serão saídos do partido. A CUT já se dividiu entre os sindicatos do  setor privado e os do setor público. Lula arriscaria ser vaiado se aparecesse  nas universidades, onde a senadora Heloísa Helena é ovacionada. Tudo isso era  de se esperar e não é necessariamente mau. Aliás, é bom, sacode ortodoxias,  abala corporativismos. Má tem sido a atitude dos caciques do PT quando acusam  correligionários que se mantiveram fiéis ao programa do partido de fazerem o  jogo da direita. A atitude denuncia mentalidade ainda não totalmente afeita ao  jogo democrático. 
  - O desempenho na área social decepcionou? 
  José Murilo - Lula e o PT prometeram reorientar a economia e priorizar o  social para eliminar, ou pelo menos reduzir substancialmente, a persistente  desigualdade social que amarra, atrofia e envergonha o país. Os resultados até  agora são pífios. Em parte, pelas razões mencionadas acima, mas também por  erros de concepção e incompetência gerencial. O que se passa com o  assistencialista Fome Zero, lançado com tanto estardalhaço? Alguém sabe o que  faz no governo a ministra da Assistência e Promoção Social? Quais são os  planos para a melhoria da qualidade do ensino fundamental? Por que o MST  continua invadindo terras? Estabilizado o sistema, como já está, não há mais  desculpas para a falta de resultados na área social. Por eles será julgado o governo Lula. 
 - Que outros aspectos estão aquém do esperado? 
  José Murilo - Há alguma movimentação na área da segurança pública, mas ainda  muito aquém do exigido pela gravidade do problema. As propostas enviadas ao  Congresso não tocam em pontos chaves para acabar com a impunidade, como a  reforma das polícias e do Judiciário, cujos lobbies sempre derrotaram medidas  reformistas. A trombada com os artistas, sobretudo os ligados ao cinema, foi  mistura de inabilidade política com concepção stalinista do que deva ser  contrapartida social. Os improvisos do presidente, em especial aquele em que  se colocou logo abaixo de Deus, acima do Judiciário e do Congresso, também não  têm ajudado. 
  - Lula diz que o Brasil nunca foi tão respeitado no exterior. 
  José Murilo - No governo passado, o Brasil também era respeitado. O que há de  novo agora é generalizada expectativa internacional em relação ao programa de  reformas do governo e grande simpatia pela pessoa do presidente. Mas há  deslumbramento da parte de Lula. As expectativas da turma do Fórum Social, dos  grupos anti-globalização, estão murchando e os membros do G-8 já demonstraram  que simpatia não é amor. Ouviram com polidez a proposta levada pelo presidente à sua reunião mas a ignoraram na declaração final. O apoio do governo ao  início da Alca em 2005 também vai gerar muito desgaste interno, inclusive no  próprio governo. Mas, no geral, a política externa foi bem. Ajudou o fato de a Venezuela ter saído das manchetes.
  - Que outros aspectos são positivos? 
  José Murilo - O que desapontou foi em parte bom. O Brasil é muito complexo  internamente e muito frágil externamente para ter agüentado uma guinada na  política econômica, sem prévia estabilização. Os custos políticos da ortodoxia  econômica têm sido muito altos, mas seis meses de arrumação não comprometerão  necessariamente o resto do mandato. A guinada brusca é que poderia ter  comprometido tudo. O que irritou também não tem sido de todo mau. Foi corajoso  da parte do governo enfrentar de saída reformas difíceis como a da Previdência  e a tributária. Sem discutir o mérito das propostas (a da Previdência pode  atingir alvos errados) pode-se concordar que nessas áreas se localizam alguns  dos focos de nossas desigualdades, alguns dos mais resistentes núcleos de  privilégios arraigados. O exemplo mais gritante disso é sem dúvida o do  Judiciário, cujo corporativismo e apego a privilégios ofendem o país. 
 (O Globo, 29/6)