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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Isaiah Berlin: um erudito liberal - entrevista com Henry Hardy, editor


Quando alguém lê Isaiah Berlin, sente-se em boas mãos: uma conversa com Henry Hardy
Principal editor das obras de Isaiah Berlin, Henry Hardy analisa a atualidade do pensamento do filósofo.
Estado da Arte
O Estado de S. Paulo, 17/02/2019
17 Fevereiro 2019

Henry Hardy, um dos principais editores da obra de Isaiah Berlin (© The Baltic Times)

por Rodrigo Coppe Caldeira e Jonathan Goudinho


Isaiah Berlin (1909-1997) foi um dos maiores intelectuais do século XX. De origem judaica, nasceu em Riga, atual Letônia, à época pertencente ao Império Russo,  emigrando com a família para o Reino Unido ainda jovem. A mistura fina entre as culturas judaica, russa e britânica moldaram seu espírito e suas formulações intelectuais. Como filósofo e historiador das ideias, tornou-se célebre por duas contribuições em particular: o significado e a aplicação do conceito de liberdade, com a icônica distinção entre as liberdades negativa e positiva, e a noção de pluralismo dos valores morais e culturais, com a igualmente representativa metáfora do ouriço e da raposa. Presenciou a Revolução Russa, a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, a Guerra Fria e os horrores do nazismo e do comunismo. Morreu aos 88 anos, em Londres, celebrado como um dos principais pensadores liberais do século.
Berlin era um grande orador, “o maior falador do mundo”, como muitas vezes foi nomeado. Milhares de pessoas compuseram sua audiência em aulas, palestras, discursos, entrevistas e participações em programas de rádio e televisão. Ele também era um exímio ensaísta, com linguagem tão compreensível que poderia enganar incautos com a ilusão de que interpretar pensadores como Giambattista Vico, Johann G. Herder e Aleksandr Herzen fosse tarefa fácil. O que nem todos sabem é que este polímata judeu-russo não era muito afeito a sistematizar seu pensamento em textos bem organizados. O conjunto de sua obra permaneceria esparso e desconhecido se não fosse a persistência de um então entusiasmado estudante de doutorado, o filósofo Henry Hardy (1949).
Hardy conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica (como estudante, professor, pesquisador e gestor). As primeiras conversas nos espaços comuns do Wolfson College logo despertaram em Hardy o interesse em se aprofundar no pensamento de Berlin, surgindo a proposta da publicação de um volume com alguns de seus ensaios. A primeira coletânea foi Russian Thinkers, publicada em 1978. De lá para cá, Henry Hardy não parou mais: editou ou coeditou 18 livros com textos de Berlin, preparou a publicação de quatro volumes com correspondências do filósofo (que percorrem os anos de 1946 a 1997), e recorrentemente colabora com outros estudiosos do pensamento de Isaiah Berlin.
Desde 2000, Henry Hardy mantém a The Isaiah Berlin Virtual Library (http://berlin.wolf.ox.ac.uk/), um acervo do trabalho de Berlin e outras referências importantes para compreender sua reflexão. Recentemente, em outubro de 2018, lançou In Search of Isaiah Berlin: A Literary Adventure, um precioso livro de memórias que envolve tanto sua atuação como editor quanto a de intérprete do pensamento berliniano. A nova edição de The Sense of Reality: Studies in Ideias and Their History, uma coletânea de ensaios de Berlin, acaba de ser publicada pela Princeton University Press. Atualmente, Henry Hardy é pesquisador honorário do Wolfson College, do qual Berlin foi entusiasta 
e primeiro presidente.
Hardy conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica
Profundo conhecedor não somente das formulações intelectuais, mas também do próprio Isaiah Berlin, Hardy concedeu esta entrevista ao Estado da Arte por e-mail, abordando temas caros a Berlin que permanecem presentes no debate público contemporâneo. Como principal curador literário de Berlin, Henry Hardy dá razões suficientes para a atualidade do pensamento desse intelectual que tornou as ideias políticas tão fascinantes quanto possível.

Rodrigo Coppe e Jonathan Goudinho: Em “Uma Mensagem para o Século XXI” (Âyiné, 2016), o “credo breve” de Isaiah Berlin, ele tece notas de otimismo em relação ao “futuro brilhante” que projetava para o novo século, afirmando haver razões suficientes para tal. Curiosamente, ele não deixa tão claro quais seriam essas razões. Você, que o conhecia tão bem, saberia apontar quais eram suas esperanças?
Henry Hardy: A passagem final desse texto é estranhamente otimista, e os eventos subsequentes fazem com que pareça excessiva. Devemos nos lembrar que o texto foi escrito para uma cerimônia de graduação [doutorado honorário em Direito] em Toronto, e talvez ele quisesse encorajar seu público a ser esperançoso com a humanidade. Contudo, há uma tendência em todo o trabalho de Berlin de ‘acentuar o positivo’ na natureza humana e subestimar o negativo. É claro que ele reconheceu o quão espantosamente podemos nos comportar, como fez no começo desse discurso, e ele não era um panglossiano simplista. Mas seu temperamento era caloroso e positivo, e ele preferiu se concentrar em nossas potencialidades benéficas. Elas existem, é claro, e embora haja retrocessos e avanços na nossa luta para melhorar o estado político do mundo, acho que no geral Berlin acreditava que o bem prevaleceria sobre o mal, ainda que a luta nunca terminasse e fosse renovada em cada geração. Aqui ele fala do poder da racionalidade, da tolerância e da democracia liberal para melhorar o nosso mundo. Ele acreditava, em geral, no poder das ideias, considerando ser dever dos pensadores profissionais promover as boas e desacreditar as más, para que estas não ganhassem influência. No discurso, ele está cumprindo esse dever e, ao fazê-lo, fornece motivos para a esperança.
RC e JG: Quase 25 anos depois de “Uma Mensagem para o Século XXI”, que avaliação é possível ser feita sobre as esperanças de Berlin em relação ao que a realidade tem mostrado?
HH: Deve-se admitir que, em retrospecto, podemos ver que o otimismo de Berlin foi até certo ponto prematuro. Se isso é um revés temporário ou um caso de “reculer pour mieux sauter”, ainda não se tem certeza. Mas se não buscarmos melhorias, mesmo a um nível irreal, nunca conseguiremos alcançá-lo. Portanto, o erro de Berlin, se for isso mesmo, é certamente um erro na direção certa.


Isaiah Berlin

RC e JG: Berlin repetidamente criticava o “sacrifício humano nos altares das abstrações” (em uma referência à Aleksandr Herzen), isto é, a entrega total a grandes causas morais e políticas, como o comunismo, o nazismo e o nacionalismo.   Quais seriam os novos altares do nosso tempo? O que Berlin teria a dizer, por exemplo, sobre as controversas causas identitárias de hoje?
HH: O principal altar do nosso tempo me parece ser a crença religiosa fundamentalista, especialmente como visto entre muçulmanos fanáticos. Em minha opinião, esse sempre foi um dos principais altares em que os humanos foram sacrificados, e lamento que Berlin não tenha insistido mais nisso. O fundamentalismo religioso é um exemplo perfeito da excessiva certeza monista totalitária à qual ele se opunha terminantemente, mas que por alguma razão não viu dessa maneira. Quanto à política de identidade, não há nada de errado com isso em princípio. Na verdade, é outra maneira de descrever a necessidade de pertencer que Berlin, seguindo J. G. Herder, acreditava ser fundamental e permanente na natureza humana, e não uma aberração temporária que deveríamos aspirar a transcender. Contudo, isso pode sair do controle, como foi com o nacionalismo, e se tornar agressivo e maligno. Uma identidade não deve ser promovida às custas de outra igualmente legítima, e não devemos nos tornar fanáticos por questões de identidade, vendo tudo como algo que apoie ou seja hostil a esse propósito primordial. Mantida sob controle, a identidade (ou um grupo de identidades sobrepostas) faz parte de uma vida humana normal e saudável.
RC e JG: O nacionalismo foi outro tópico recorrente no pensamento de Isaiah Berlin, que já demonstrava preocupação com o fenômeno em textos da década de 1990. O que temos visto atualmente, com a explosão de novos nacionalismos ao redor do mundo, fazia parte do diagnóstico de Berlin? Como você avalia, por exemplo, fenômenos como o Brexit, no seu Reino Unido?
HH: Sim, o relato de Berlin sobre o nacionalismo em termos de uma reação à humilhação nacional se encaixa em muitos desenvolvimentos modernos. Ele aprovou a consciência nacional benigna, que é parte da identidade aceitável e necessária mencionada na minha resposta anterior. Mas quando isso saiu do controle, tornando-se autoafirmativo às custas de outras instâncias de pertença nacional, ele viu como algo injustificável e destrutivo a ser preterido. Quanto ao Brexit, não me parece ser necessariamente um caso de nacionalismo maligno. Há uma questão real sobre qual é o melhor tamanho para as unidades políticas e quantas culturas diferentes podem ser efetivamente administradas a partir de um único centro. Imagine uma democracia mundial: isso seria uma receita para o caos. Parte do apoio ao Brexit se deve à Europa ser vista como uma unidade política muito grande para funcionar bem para todos os seus povos constituintes, cujas necessidades e identidades diferem, às vezes profundamente. Outra razão é que, em algum grau, [a Europa] é antidemocrática, e se a pessoa acredita na democracia em princípio, essa é uma lacuna grave. É claro que existem outros casos, como os EUA, onde unidades ainda maiores operam com uma medida de sucesso, mas o contexto histórico é completamente diferente.
RC e JG: Embora Isaiah Berlin seja muito conhecido pela discussão sobre os conceitos de liberdade, sua principal contribuição intelectual é a doutrina do pluralismo, que à época de sua formulação já era uma noção desafiadora. Qual é a relevância do pluralismo de Berlin nos nossos dias, em que parece haver um acirramento de grupos disputando a hegemonia cultural?
HH: O pluralismo, se verdadeiro (e certamente eu acho que é), está na raiz de uma compreensão adequada da situação humana, e se aplica em todos os níveis, individual e coletivo, de choques dentro da consciência de uma pessoa à incompatibilidades entre culturas e nações. Nesta época de globalização, na qual culturas diferentes não vivem mais isoladas umas das outras, precisamos mais do que nunca de uma compreensão verdadeira da relação entre bens e objetivos diferentes, entre uma ampla variedade de aspirações culturais incompatíveis, para que as diferenças não levem a conflitos desnecessários.  O pluralismo gera tolerância e compreensão mútua entre indivíduos e grupos de todos os tamanhos. Monismos rivais derramam sangue. O próprio termo “hegemonia cultural” reflete um entendimento errado das relações das culturas entre si. Não é a questão de uma cultura dominar outra, mas de coexistir com ela de forma pacífica. Berlin acreditava que uma cultura deveria ser preponderante em uma dada entidade política em favor de um mínimo de coesão e ordem necessários, mas esse papel não é sensivelmente descrito como “hegemonia”, termo que tem reflexos indesejados de supressão e superioridade. O pluralismo é uma maneira de compreender conflitos de valores, identidades e culturas que torna possível vê-los como aspectos positivos de uma humanidade saudável, não como batalhas que devem ser vencidas por um dos competidores em detrimento dos outros. Nós vivemos em um jardim de muitas flores.
RC e JG: Há décadas existe uma disputa sobre as posições ideológicas de Isaiah Berlin: foi admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda e simpático à social democracia. No cenário político atual, com tamanha polarização e radicalização, qual seria o posicionamento de Berlin, o filósofo do conflito e do diálogo?
HH: Berlin escreveu “Se alguma vez houve um liberal de centro, extrema-esquerda da direita e extrema-direita da esquerda, sou eu mesmo”. Ele acreditava em uma quantidade generosa de liberdade negativa, mas também apoiava o New Deal e o Welfare State. Ele se identificou com Turgenev, que estava aflito com a capacidade enlouquecedora de ver todos os lados de uma questão com igual convicção. Isso é o que ele chamou de “a situação liberal”, e não me parece um motivo de disputa, exceto entre aqueles que anseiam por soluções excessivamente simples. Como Turgenev, ele não conseguiu se simplificar. Suas visões e vida refletem seu reconhecimento do pluralismo, que é complicado, mas realista.
RC e JG: Nos últimos anos, o Brasil está experimentando uma “onda liberal”, com grupos que se fortaleceram à medida que os governos de esquerda fracassaram. Que lição Berlin deixaria para aqueles que estão sendo iniciados na doutrina política liberal?
HH: “Neither a be-all nor an end-all be” (um lema outrora sonhado pelo filósofo J. L. Austin). Reconheça o múltiplo, não entre em conflito por uma única perspectiva. Tolere a diferença, não a enfrente, a menos que seja maligna. Entenda a natureza humana da melhor maneira possível e use essa compreensão como base para decidir o que deve ser aceito e o que deve ser resistido; o que deve ser reforçado e o que deve ser corrigido.
RC e JG: Em ‘In Search of Isaiah Berlin’, seu novo livro, você dedica parte considerável para tratar de pluralismo e religião. Atualmente, vários países experimentam um novo vigor das disputas entre grupos religiosos e não-religiosos (ou seculares) no debate público. Que lições as ideias pluralistas podem oferecer nesse cenário?
HH: Um bom pluralista tolerará as crenças religiosas mesmo que não concorde com elas, desde que elas próprias não conduzam à intolerância a outras crenças desse tipo. No entanto, eu próprio acredito que o pluralismo é incompatível com as principais religiões do mundo, que me parecem inevitavelmente monistas e, portanto, propensas à intolerância e ao autoritarismo. Portanto, sou a favor de um estado secular; sou um oponente da religião organizada, e defendo que é dado à religião muito espaço no discurso público. (Berlin, devo acrescentar, provavelmente não compartilhava plenamente dessa visão, pelo menos na forma em que a sustento.)
RC e JG: Nos últimos anos, houve um considerável interesse no conjunto da obra de Isaiah Berlin ao redor do mundo. A que você atribui isso? Que tipo de sinal essa busca pelo trabalho de Berlin parece indicar?
HH: Berlin me parece ser um pensador de grande humanidade e sabedoria, que aborda os problemas humanos centrais em prosa acessível e elegante. Sua compreensão da natureza humana, seu “senso de realidade”, é raro e profundo, e qualquer pessoa inteligente que queira fazer perguntas sondando sobre a situação humana, encontrará em seus escritos uma rica mina de insights satisfatórios. Quando alguém o lê, sente-se em boas mãos.

Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Jonathan Goudinho é jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


Anne Kruger: a derrocada venezuelana como tragedia social


O mundo testemunhou muitos declínios econômicos ao longo dos anos, mas o da Venezuela é, certamente, um dos piores até o momento. O país vivenciou uma perda de PIB real (corrigida pela inflação) maior que a da maioria dos países devastados pela guerra durante a Segunda Guerra Mundial, e sua taxa de inflação deverá alcançar 10.000.000% neste ano. A muito mais de 100 vezes a taxa do mercado negro, a taxa de câmbio oficial se desvaloriza tão rapidamente que uma cotação, no momento em que é publicada, terá deixado de fazer sentido.

Sob essas condições, os alimentos - 90% dos quais têm de ser importados - são tão escassos que estima-se que o venezuelano médio tenha perdido 10,9 quilos); e estimados 3 milhões de venezuelanos (cerca de 10% da população) fugiram do país. Quedas de fornecimento de energia elétrica, escassez de água e de medicamentos e condições próximas da inanição têm sido características persistentes do domínio truculento e incompetente do presidente Nicolás Maduro.

Até a década de 1960, o PIB per capita da Venezuela era o mais elevado da América Latina, e equivalia aproximadamente a 80% do dos Estados Unidos. Atualmente, é inferior a 30% e está também bem abaixo dos de Chile, Brasil, México e Colômbia. Como base de comparação, em 1990, o PIB per capita da Colômbia correspondia mais ou menos à metade do da Venezuela.

Dona das maiores reservas de petróleo do mundo, mais de 90% da receita de exportação da Venezuela se deve aos hidrocarbonetos. Mas sua produção de petróleo caiu a partir de um pico de aproximadamente 3,5 milhões de barris ao dia, do final da década de 1990, para algo em torno de 1,3 milhão em 2018, e a previsão é de que recuará para 700 mil barris/dia nos próximos anos.

Na verdade, apesar de o preço do petróleo ter subido, a produção do país recuou, devido à falta de manutenção e de investimentos, a roubos de material, à nomeação, por Maduro, de aliados militares inexperientes como gerentes e à emigração de trabalhadores do setor petrolífero, que conseguem ganhar muito mais em outro país. Um trabalhador do setor petrolífero da Petróleos de Venezuela (PDVSA), a petrolífera estatal, disse recentemente a "The Wall Street Journal" que ganha cerca de US$ 8 mensais, corrigidos por paridade de poder de compra.

O drama por que passa a Venezuela é, em grande medida, autoinfligido. Apesar do avanço dos preços do petróleo, o regime chavista permitiu que os déficits inflassem para 24% do PIB em 2014. E, desde que os preços do petróleo ainda estavam próximos de seu pico, naquele ano, esses déficits foram financiados pela impressão de dinheiro, o que levou à aceleração da inflação. Para piorar, o governo impôs controles de preços tão severos que os varejistas são obrigados a vender seus produtos com prejuízo.

Para além dessas tentativas desastradas de regulamentar a atividade econômica, as medidas restritivas cada vez mais violentas sobre a dissidência e a corrosão das instituições democráticas agravaram o quadro ainda mais. Sob a gestão de Maduro, os serviços básicos deixaram de funcionar. Em 2016, os servidores públicos foram orientados a comparecer ao trabalho por apenas dois dias por semana, a fim de conservar a energia elétrica; mesmo assim, o país sofreu apagões em massa.

Em tempos de guerra, a produção tende a cair porque o inimigo torna inoperantes as bases da infraestrutura. Na Venezuela é como se o país tivesse movido guerra total a si mesmo: centros vitais funcionam pessimamente porque a manutenção de rotina é negligenciada

Em janeiro, Maduro tomou posse pela segunda vez, após sair vencedor de uma eleição presidencial fraudulenta realizada em maio passado. Em reação, muitos países latino-americanos, juntamente com Canadá, EUA e alguns países da União Europeia (UE), reconheceram o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, como o presidente legítimo da Venezuela, em consonância com a linha constitucional de sucessão do país. Além disso, os EUA, um dos mercados relevantes das exportações de petróleo venezuelanas, impôs sanções ao regime de Maduro, congelou suas contas bancárias e canalizou os pagamentos das empresas americanas por petróleo venezuelano para uma nova conta que será disponibilizada para Guaidó.

Diante das manifestações de massa, Maduro continuou a recorrer à intimidação, às detenções e à condenação à inanição de personalidades da oposição, ao mesmo tempo em que paga propina a dirigentes militares em troca de seu apoio. Mas a pergunta não é se Maduro conseguirá se manter no poder, e sim por quanto tempo. Seu regime não pode durar indefinidamente e, quando cair, a Venezuela apresentará necessidades prementes.

Para começar, o país precisará de ajuda humanitária em ampla escala. Os hospitais têm de ser reabastecidos, as escolas, reabertas e o transporte público e outros serviços essenciais, restabelecidos. E os alimentos têm de se tornar disponíveis para uma população gravemente subnutrida.

Ao mesmo tempo, a Venezuela terá de implementar reformas para pôr fim à violenta inflação, restaurar a estabilidade macroeconômica e revitalizar a atividade da economia. O país carecerá também de apoio financeiro para importar suprimentos e fazer reparos de maquinário e equipamentos. Isso não diz respeito apenas à produção petrolífera, mas a todos os setores da economia.

Reconstruir a Venezuela será um longo processo. Em tempos de guerra a produção tende a cair porque o inimigo torna inoperantes equipamentos fundamentais de infraestrutura, como entroncamentos ferroviários e centrais de geração de energia elétrica. Na Venezuela é como se o país tivesse movido guerra total a si mesmo: centros operacionais vitais estão funcionando pessimamente porque a manutenção de rotina é negligenciada e o investimento desestimulado há mais de uma década.

O desafio é reconstituir um ambiente macroeconômico e um clima para negócios estável, ao mesmo tempo em que se melhora a sorte dos cidadãos venezuelanos, para que eles continuem a apoiar reformas políticas. Isso não seria fácil mesmo num país muito menos destruído que a Venezuela.

Espera-se que os próximos dirigentes da Venezuela e a comunidade internacional entendam a natureza do desafio, e adotem as medidas necessárias para manter a paz social durante a reconstrução. Os venezuelanos podem finalmente ver luz no fim do túnel. Mas tempos difíceis os aguardam. (Tradução de Rachel Warszawski)

Anne O. Krueger, ex-economista-chefe do Banco Mundial e ex-vice-diretora executiva do Fundo Monetário Internacional, é professora pesquisadora-sênior de economia internacional da Faculdade de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Copyright: Project Syndicate, 2019.

Sobre a Identidade Internacional do Brasil - Celso Lafer (OESP)



Sobre a Identidade Internacional do Brasil


CELSO LAFER
Professor Emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP;  foi Ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
O Estado de S. Paulo, 17/02/2019


Tratei da identidade do Brasil e seu  significado para a política externa brasileira num pequeno livro de 2001, que teve uma versão ampliada publicada em 2004. Retorno à questão e sua problemática porque creio que é útil para a discussão e análise da diplomacia brasileira, neste início do governo Bolsonaro.
Observo, preliminarmente que o tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da ação diplomática de um país. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações  da conduta externa mantém o fio da continuidade que permite falar da identidade internacional de um país. França, Japão Estados Unidos são muito diferentes do que foram no passado, contudo, muito da identidade e  continuidade foi preservada em cada um deles no correr dos anos.
No meu livro recordei, para tratar da identidade internacional do Brasil, a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam de “forças profundas”, explicativa dos elementos históricos da continuidade da política externa brasileira desde a Independência, argumentando que mantém uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais  que são uma consequência natural das contradições da vida e das ações políticas. É esta dimensão de coerência que muito contribui para explicar o papel da diplomacia na construção do Brasil, sobre a  qual se debruçou Rubens Ricupero, no seu recente e admirável livro de 2017.
Explico-me com um  exemplo. O Brasil é um país de  escala continental, como os EUA, a China, a Rússia e a Índia. O que singulariza a nossa identidade internacional em relação a este outros países de escala  continental é o modo mais pacífico com o qual foi construído e que resultou do que foi a  definição do espaço nacional, a  subsequente consolidação, inclusive jurídica, da consolidação do espaço nacional e o sentido de sua unidade e a posterior dedicação ao recorrente tema  do desenvolvimento do espaço nacional.
O conceito de identidade é complexo e problemático. Passa pelo relacionamento com outros conceitos, tais como alteridade, diferença, igualdade. Por via de aproximação, pode ser entendido como um conjunto de predicados ´por meio dos quais se responde a pergunta quem se é?  Para os propósitos  deste artigo, cabe valer-se da dicotomia indivíduo/coletividade. A  construção da identidade individual baseia-se na diferença, que distingue uma pessoa de outra na pluralidade da condição humana.
A construção da identidade coletiva, baseia-se como observa Bovero, na ideia de um bem ou interesse comum, que leva as pessoas que integram uma coletividade a afirmarem uma identidade por semelhança, lastreada numa visão compartilhada deste bem ou interesse comum.
A política externa e  a atividade diplomática tem como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar estes interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país. Isto passa pelo histórico da relação com o Outro. Assim, por exemplo, a identidade internacional do México e  sua dimensão de resistência passa pela sua relação com os EUA, assim como a dos países bálticos passa pela  sua relação com a Rússia.
Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Neste contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto-de-vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, existem fatores de persistência que esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto-de-vista que resulta da memoria de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva. É por isso aliás que os antecedentes tem um papel na coerência da ação diplomática brasileira que se conjuga com fatores de inovação, conferindo à política externa a dimensão de uma “obra aberta”, voltada para construir o futuro através da apropriada asserção  da identidade internacional do Brasil.
Na relação passado e futuro, tradição e renovação  em matéria de política externa, San Tiago Dantas esclarecia que a  continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não ocorre da mesma maneira  em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais a mudanças de rumo não tem os mesmos inconvenientes  do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado. Com efeito, como ponderava San Tiago Dantas, em relação à política externa, é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.
Pois bem, na minha avaliação esta dimensão de continuidade e estabilidade, está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu Chanceler, com impacto na credibilidade internacional do país.
Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um estado confessional. É, desde a República, um Estado laico como discuti no meu último artigo neste espaço (20/01/2019). A laicidade do Estado está positivada no art. 19–I da Constituição, que veda à União estabelecer culto religioso ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa evocar, e de maneira inédita, suscitar o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para a intolerância da geografia das paixões religiosas, que são uma das fontes das tensões internacionais contemporâneas, inserindo o nosso país numa problemática na qual não precisa envolver-se. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.
O direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações nos termos do art. 225 da Constituição Federal. É também um direito individual do cidadão (art. 5º, LXXIII). Meio-ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos que vivem na terra. A sensibilidade em relação à importância do tema e os dispositivos constitucionais, levaram o Brasil na Rio-92 a liderar a inserção do tema na agenda internacional sob a égide do conceito do desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade é uma  exigência de uma economia internacionalmente competitiva, inclusive para o comércio internacional dos produtos agrícolas, posto que, o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam  a requisitos de sustentabilidade ambiental.
É por estas razões,  que o Brasil desde a Rio-92 passou a ter uma  construtiva  e ativa participação na agenda internacional do meio-ambiente, que tornou-se um ingrediente de  continuidade e  coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nesta matéria do governo Bolsonaro, comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional, e colocam em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais. A associação com os EUA do governo Trump nesta matéria, ajuda a enfraquecer a autonomia do Brasil no controle de variáveis relevantes para o seu próprio destino, que passa pela transição para uma economia de baixo carbono.
O art. 4º da Constituição estabelece os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, que podem ser consideradas uma positivação de elementos da identidade internacional do país. Entre elas a defesa da paz, a solução pacífica dos  conflitos  e a cooperação entre os povos  para o progresso da humanidade.
Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua  a porosidade das fronteiras e propaga em todos as esferas as tensões difusas presentes na vida internacional. Para lidar com os desafios inerentes a estas tensões pelo caminho da efetivação destes princípios, que estão em consonância com a identidade internacional do Brasil, é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito dos quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar desta participação à partir da rejeição auto-centrada do “globalismo”, ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do Mundo e não apenas estamos no Mundo, inclusive em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isto, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos (art.4º, II) e da abertura à  concessão de asilo político (Art. 4º, X) que são diretrizes constitucionais da política externa.
Em síntese, os acima mencionados exemplos entre muitos que podem ser apontados, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu Chanceler, revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de se esperar que, no confronto com a realidade interna e externa, estas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a  sua identidade internacional.