Sobre a Identidade Internacional do Brasil
CELSO
LAFER
Professor
Emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP; foi Ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
O Estado de S. Paulo, 17/02/2019
Tratei da
identidade do Brasil e seu significado
para a política externa brasileira num pequeno livro de 2001, que teve uma
versão ampliada publicada em 2004. Retorno à questão e sua problemática porque
creio que é útil para a discussão e análise da diplomacia brasileira, neste
início do governo Bolsonaro.
Observo,
preliminarmente que o tema da identidade é parte da pauta da política externa
dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões
internas ou externas, da ação diplomática de um país. Busca esclarecer, como
observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantém o fio da
continuidade que permite falar da identidade internacional de um país. França,
Japão Estados Unidos são muito diferentes do que foram no passado, contudo,
muito da identidade e continuidade foi
preservada em cada um deles no correr dos anos.
No meu livro
recordei, para tratar da identidade internacional do Brasil, a lógica
organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam de “forças profundas”,
explicativa dos elementos históricos da continuidade da política externa
brasileira desde a Independência, argumentando que mantém uma coerência, de
duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências
conjunturais que são uma consequência
natural das contradições da vida e das ações políticas. É esta dimensão de
coerência que muito contribui para explicar o papel da diplomacia na construção
do Brasil, sobre a qual se debruçou
Rubens Ricupero, no seu recente e admirável livro de 2017.
Explico-me
com um exemplo. O Brasil é um país
de escala continental, como os EUA, a
China, a Rússia e a Índia. O que singulariza a nossa identidade internacional
em relação a este outros países de escala
continental é o modo mais pacífico com o qual foi construído e que
resultou do que foi a definição do
espaço nacional, a subsequente
consolidação, inclusive jurídica, da consolidação do espaço nacional e o
sentido de sua unidade e a posterior dedicação ao recorrente tema do desenvolvimento do espaço nacional.
O conceito
de identidade é complexo e problemático. Passa pelo relacionamento com outros
conceitos, tais como alteridade, diferença, igualdade. Por via de aproximação,
pode ser entendido como um conjunto de predicados ´por meio dos quais se
responde a pergunta quem se é?
Para os propósitos deste artigo,
cabe valer-se da dicotomia indivíduo/coletividade. A construção da identidade individual baseia-se
na diferença, que distingue uma pessoa de outra na pluralidade da condição
humana.
A construção
da identidade coletiva, baseia-se como observa Bovero, na ideia de um bem ou
interesse comum, que leva as pessoas que integram uma coletividade a afirmarem
uma identidade por semelhança, lastreada numa visão compartilhada deste
bem ou interesse comum.
A política
externa e a atividade diplomática tem
como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano
internacional. Identificar estes interesses para traduzir necessidades internas
em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos
demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de
representação da identidade internacional de um país. Isto passa pelo histórico
da relação com o Outro. Assim, por exemplo, a identidade internacional do
México e sua dimensão de resistência
passa pela sua relação com os EUA, assim como a dos países bálticos passa
pela sua relação com a Rússia.
Ortega y
Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Neste contexto, numa
acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um
ponto-de-vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil,
existem fatores de persistência que esclarecem a dimensão da continuidade deste
ponto-de-vista que resulta da memoria de uma tradição diplomática que o Itamaraty
preserva. É por isso aliás que os antecedentes tem um papel na coerência da
ação diplomática brasileira que se conjuga com fatores de inovação, conferindo
à política externa a dimensão de uma “obra aberta”, voltada para construir o
futuro através da apropriada asserção da
identidade internacional do Brasil.
Na relação
passado e futuro, tradição e renovação
em matéria de política externa, San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política
externa, observando que isto não ocorre da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do
país, no âmbito dos quais a mudanças de rumo não tem os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do
Estado. Com efeito, como ponderava San Tiago Dantas, em relação à política
externa, é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da
sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito
aos compromissos assumidos”.
Pois bem, na
minha avaliação esta dimensão de continuidade e estabilidade, está sendo posta
em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu
Chanceler, com impacto na credibilidade internacional do país.
Observo, em
primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda
diplomática. O Brasil não é um estado confessional. É, desde a República, um Estado
laico como discuti no meu último artigo neste espaço (20/01/2019). A laicidade
do Estado está positivada no art. 19–I da Constituição, que veda à União
estabelecer culto religioso ou igrejas e manter com eles ou seus representantes
relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política
externa evocar, e de maneira inédita, suscitar o tema da religião na vida
internacional, posto que contribui para a intolerância da geografia das paixões
religiosas, que são uma das fontes das tensões internacionais contemporâneas,
inserindo o nosso país numa problemática na qual não precisa envolver-se. É uma
visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.
O direito ao
meio-ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva
do povo brasileiro, e cabe ao poder público defende-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações nos termos do art. 225 da Constituição Federal. É
também um direito individual do cidadão (art. 5º, LXXIII). Meio-ambiente é
indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos que vivem na terra. A
sensibilidade em relação à importância do tema e os dispositivos
constitucionais, levaram o Brasil na Rio-92 a liderar a inserção do tema na
agenda internacional sob a égide do conceito do desenvolvimento sustentável. A
sustentabilidade é uma exigência de uma
economia internacionalmente competitiva, inclusive para o comércio
internacional dos produtos agrícolas, posto que, o acesso a mercado de outros
países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.
É por estas
razões, que o Brasil desde a Rio-92 passou
a ter uma construtiva e ativa participação na agenda internacional
do meio-ambiente, que tornou-se um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As
manifestações de recuo nesta matéria do governo Bolsonaro, comprometem a
projeção do Brasil na sociedade internacional, e colocam em questão
compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais. A associação
com os EUA do governo Trump nesta matéria, ajuda a enfraquecer a autonomia do
Brasil no controle de variáveis relevantes para o seu próprio destino, que
passa pela transição para uma economia de baixo carbono.
O art. 4º da
Constituição estabelece os princípios que regem as relações internacionais do
Brasil, que podem ser consideradas uma positivação de elementos da identidade
internacional do país. Entre elas a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos
e a cooperação entre os povos
para o progresso da humanidade.
Vivemos num
mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que
acentua a porosidade das fronteiras e
propaga em todos as esferas as tensões difusas presentes na vida internacional.
Para lidar com os desafios inerentes a estas tensões pelo caminho da efetivação
destes princípios, que estão em consonância com a identidade internacional do
Brasil, é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais,
no âmbito dos quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do
multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar
desta participação à partir da rejeição auto-centrada do “globalismo”, ignora,
como dizia Hannah Arendt, que somos do Mundo e não apenas estamos no Mundo,
inclusive em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes
migratórias. Isto, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos
humanos (art.4º, II) e da abertura à
concessão de asilo político (Art. 4º, X) que são diretrizes
constitucionais da política externa.
Em síntese,
os acima mencionados exemplos entre muitos que podem ser apontados, são
indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu
Chanceler, revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo.
É de se esperar que, no confronto com a realidade interna e externa, estas
manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a
coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.