Relações internacionais, política externa do Brasil e
carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional
Paulo Roberto de Almeida
Notas para aula inaugural no quadro do curso do Ibmec
Global Affairs, em 20/08/2021, 19hs.
Agradecimentos pelo convite.
Como sempre faço, tomo notas do que gostaria de expor, mas como também
sempre acontece, fica muito grande, e por isso acabo não lendo, mas colocando à
disposição de todos as minhas reflexões do momento, para que todos possam ler
com mais calma, do que numa exposição ex-catedra, que teria virtudes dormitivas.
Comecei pelo assunto do momento, a retirada dos Estados Unidos do
Afeganistão e o reflexo disso para as relações internacionais e para a posição
dos EUA, e para isso me vali de um interessante artigo na revista The New
Yorker, da colunista Robin Wright, “Does
the Great Retreat from Afghanistan Mark the End of the American Era?” (16/08/2021; que coloquei à disposição de todos em uma
postagem no meu blog Diplomatizzando: “A Grande Retirada do Afeganistão
marca o fim da Era Americana?”).
Faço uma série de considerações sobre a
questão dos Impérios, um pouco com base na conhecida obra de Arnold Toynbee, Estudo
da História, mas também recomendo um livro que estou lendo atualmente: Empires
in World History, de Jane Burbank e Frederich Cooper, que downloadei no meu
Kindle (Princeton, 2010). É um livro diferente das histórias convencionais,
pois que justamente trata das questões de poder, desde a antiga Roma e a China
até o fim do sistema imperial, o que não está perto de ocorrer. Não vou retomar
aqui tudo o que escrevi sobre os variados impérios, com destaque para o
americano, em aparente declínio, até a irresistível ascensão da China e a sua
volta ao seu antigo status imperial. Apenas me refiro ao fato de que o moderno sistema de relações
internacionais, baseado numa representação supostamente igualitária dos Estados
nacionais, têm no máximo 75 anos, ou seja, pouco mais de três gerações. O
próprio sistema de Estados nacionais, se sistema existe, têm aproximadamente
quatro ou cinco séculos, mas isso de uma perspectiva ocidental, pois que outros
impérios e civilizações existiram, coexistiram se combateram e se suplantaram
durante muitos séculos antes, e em várias outras regiões do mundo.
O império chinês, que existiu por meio de mais de duas dezenas de
dinastias, através dos séculos, por mais forte e inovador que tenha sido, não
pode evitar sua conquista por povos de fora de suas muralhas supostamente
inexpugnáveis: os mongóis, no século XII, e os manchus, no século XVII. O
império romano do Ocidente, com sua capital em Roma, existiu durante mais de
quatro séculos, até ser submerso pelos povos germânicos ou eslavos que viviam
na sua periferia, no século V despois de Cristo. O império romano no Oriente,
com sua capital em Constantinopla, ou Bizâncio, sobreviveu durante mil anos,
aproximadamente, até ser conquistado pelos otomanos, que mantiveram, por sua
vez, o seu império por mais de 600 anos.
Mais próximo de nós, o império britânico, o maior do mundo entre o final
do século XIX e o início do XX, dominou o comércio internacional, pagamentos e
financiamentos durante décadas, até o seu declínio, a partir da Grande Guerra e
finalmente em Suez. Foi a partir de 1917 que tem início a era do império americano,
começando pelo lado financeiro para depois se traduzir num domínio econômico e
estratégico claramente preeminente, pelo resto do século XX: o século americano
parecia predestinado a durar mais um século inteiro, todo o século XXI. A China
recém emergia dos anos destruidores de maoísmo demencial – depois do fracasso
mortífero do Grande Salto para a Frente e dos anos turbulentos da Revolução
Cultural – e não parecia estar minimamente em condições de desafiar a
superpotência americana.
O que assistimos, nos últimos trinta anos, desde os anos 1990, quando
começa, verdadeiramente, a fulgurante ascensão da China, foi algo absolutamente
excepcional na história econômica mundial, jamais visto nos registros de
crescimento econômico e de capacitação tecnológica e de construção de poderio
militar.
O
mundo está próximo, agora, de ver a China conquistar o primeiro lugar na
formação do PIB global, como já é o caso em grande parte do comércio
internacional e será certamente o caso dos investimentos diretos e dos
financiamentos em mais alguns anos. Os chineses, não alcançarão, provavelmente,
o PIB per capita dos americanos no corrente século ou em qualquer tempo, mas
existem outros elementos que sinalizam a mudança de cenário.
Três
observações podem ser feitas a esse respeito. Em primeiro lugar, a ascensão da
China não significa, inevitavelmente, o declínio, mesmo relativo, do poderio
científico e tecnológico ocidental, ou seja, americano, europeu, japonês (e de
alguns outros membros do clube das nações avançadas). Em segundo lugar, o
impulso excepcional da China pode não ser tão irresistível quanto parece
atualmente, sobretudo em vista de tremores geopolíticos na Ásia Pacífico ou no
próprio Império do Meio, Em terceiro lugar, não se pode conceber que, após essa
“era americana” – que ainda não terminou, cabe esclarecer – virá uma “era
chinesa”, o que está longe de ser admitida universalmente ou consensualmente.
A China também foi humilhada ao longo de sua história, duas vezes por
invasores que não se intimidaram com o seu tamanho e desprezaram solenemente a
Grande Muralha, e mais algumas outras vezes pelas potências ocidentais, nas
guerras do ópio e na destruição do Palácio de Verão, em meados do século XIX,
Os impérios que humilharam a China já não poderão voltar a fazê-lo
novamente, e os impérios que ainda restam já não podem ignorar solenemente os
Estados nacionais, como frequentemente fizeram no passado. O mundo mudou, mas
veleidades imperiais permanecem presentes, assim como as mesmas paixões e
instintos que deslancharam a guerra de Troia permanecem invariavelmente
humanas, mesmo a uma distância de milhares de anos.
Como se situa o Brasil no presente contexto de uma incerta
multipolaridade?
Nos trinta anos precedentes, o Brasil e o Itamaraty construíram as bases
conceituais de suas relações exteriores e os instrumentos operacionais de uma
diplomacia autônoma e soberana, identificadas, ambas, com os grandes interesses
do desenvolvimento nacional, em todos os planos: bilateral, regional e
multilateral.
A política externa, a gestão ambiental, a condução da cultura e a da
educação nunca corresponderam, no atual governo, a padrões compatíveis com o
que se espera de uma administração normal, dotada de um programa qualquer que
pudesse garantir estabilidade macroeconômica e programas setoriais voltados
para o crescimento, o emprego e ganhos de produtividade necessários para
enfrentar a competição econômica num mundo globalizado.
Examinei, em quatro livros digitais, fase de demolição completa dos
fundamentos conceituais e de sua substância operacional nos dois anos e três
meses em que perduraram os desatinos e loucuras perpetrados por quem chamei de
“chanceler acidental”, sendo que os efeitos da virtual derrocada de nossa
credibilidade no exterior não foram ainda totalmente superados, uma vez que a política
externa continua a ser marcada pela mesma autoridade incompetente. Esses livros
receberam os significativos nomes de Miséria da diplomacia: a destruição da
inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras:
ensaios de política externa e de diplomacia brasileira e Uma certa ideia
do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia
brasileira (ambos de 2020) e O Itamaraty Sequestrado: a destruição da
diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021, o mais recente. A esses, se seguirá
um novo livro, Apogeu e demolição da política externa: itinerários da
diplomacia brasileira (em versão impressa, pela Editora Appris).
Não pretendo refazer aqui todas as críticas e comentários que já
formulei a propósito da miséria da nossa atual política externa e dos
descompassos de nossa diplomacia – no momento felizmente liberta das loucuras
alucinadas e alucinantes do ex-chanceler acidental –, tanto porque já disso
tudo o que poderia ser dito nesses cinco livros mencionados acima. Mas cabem
algumas palavras de alento aos que pensam em seguir a carreira diplomática e
que se preparam seriamente para tal.
Como diz o famoso bordão: não há bem que nunca acabe, e não há mal que
sempre dure. O Itamaraty e a política externa passaram por turbulências
inéditas em nossa história independente, mas uma recuperação está em curso, e
ela se completará no próximo governo.
A carreira diplomática é uma das mais atraentes na burocracia federal,
pelo menos para aqueles que não estão apenas à procura de um emprego público,
mas que, sim, tenham a vocação internacionalista, possuam um bom preparo
intelectual e se sintam totalmente à vontade numa vida nômade, feita de postos
excelentes, muitos médios e algumas situações de dificuldades materiais no
vasto mundo da periferia do capitalismo global.
“Dez Regras Modernas de Diplomacia”
(Chicago, 22 de julho de 2001; 19/08/2021: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html).
Se ouso concluir, seria por uma nota de otimismo. No Brasil, depois de
surpresas e frustrações, retomaremos nosso inevitável processo de crescimento
econômico, visando um grau maior de desenvolvimento social, o que virá, no
devido tempo, e reconstruiremos também a nossa política externa e a diplomacia
de qualidade, uma vez afastados os novos bárbaros do poder. É uma questão de
persistência, de resiliência, de insistência no caminho iniciado 200 anos
atrás, que construiu uma das melhores diplomacias entre novas nações saídas do
colonialismo e uma política externa das mais respeitadas entre países em
desenvolvimento.
De minha parte, continuarei me exercendo em minhas vantagens
comparativas relativas, que estão na pesquisa, no estudo, na reflexão e na
escrita e publicação de materiais diversos atinentes às relações internacionais
do Brasil, à sua política externa e à sua diplomacia, cujo itinerário estou
concluindo com plena satisfação intelectual e um registro de boas obras
realizadas, no plano profissional e no acadêmico.
Muito obrigado.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 3960,
resumo: 19 agosto 2021, 14 p.