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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Sobre a Identidade Internacional do Brasil - Celso Lafer (OESP)



Sobre a Identidade Internacional do Brasil


CELSO LAFER
Professor Emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP;  foi Ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
O Estado de S. Paulo, 17/02/2019


Tratei da identidade do Brasil e seu  significado para a política externa brasileira num pequeno livro de 2001, que teve uma versão ampliada publicada em 2004. Retorno à questão e sua problemática porque creio que é útil para a discussão e análise da diplomacia brasileira, neste início do governo Bolsonaro.
Observo, preliminarmente que o tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da ação diplomática de um país. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações  da conduta externa mantém o fio da continuidade que permite falar da identidade internacional de um país. França, Japão Estados Unidos são muito diferentes do que foram no passado, contudo, muito da identidade e  continuidade foi preservada em cada um deles no correr dos anos.
No meu livro recordei, para tratar da identidade internacional do Brasil, a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam de “forças profundas”, explicativa dos elementos históricos da continuidade da política externa brasileira desde a Independência, argumentando que mantém uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais  que são uma consequência natural das contradições da vida e das ações políticas. É esta dimensão de coerência que muito contribui para explicar o papel da diplomacia na construção do Brasil, sobre a  qual se debruçou Rubens Ricupero, no seu recente e admirável livro de 2017.
Explico-me com um  exemplo. O Brasil é um país de  escala continental, como os EUA, a China, a Rússia e a Índia. O que singulariza a nossa identidade internacional em relação a este outros países de escala  continental é o modo mais pacífico com o qual foi construído e que resultou do que foi a  definição do espaço nacional, a  subsequente consolidação, inclusive jurídica, da consolidação do espaço nacional e o sentido de sua unidade e a posterior dedicação ao recorrente tema  do desenvolvimento do espaço nacional.
O conceito de identidade é complexo e problemático. Passa pelo relacionamento com outros conceitos, tais como alteridade, diferença, igualdade. Por via de aproximação, pode ser entendido como um conjunto de predicados ´por meio dos quais se responde a pergunta quem se é?  Para os propósitos  deste artigo, cabe valer-se da dicotomia indivíduo/coletividade. A  construção da identidade individual baseia-se na diferença, que distingue uma pessoa de outra na pluralidade da condição humana.
A construção da identidade coletiva, baseia-se como observa Bovero, na ideia de um bem ou interesse comum, que leva as pessoas que integram uma coletividade a afirmarem uma identidade por semelhança, lastreada numa visão compartilhada deste bem ou interesse comum.
A política externa e  a atividade diplomática tem como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar estes interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país. Isto passa pelo histórico da relação com o Outro. Assim, por exemplo, a identidade internacional do México e  sua dimensão de resistência passa pela sua relação com os EUA, assim como a dos países bálticos passa pela  sua relação com a Rússia.
Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Neste contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto-de-vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, existem fatores de persistência que esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto-de-vista que resulta da memoria de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva. É por isso aliás que os antecedentes tem um papel na coerência da ação diplomática brasileira que se conjuga com fatores de inovação, conferindo à política externa a dimensão de uma “obra aberta”, voltada para construir o futuro através da apropriada asserção  da identidade internacional do Brasil.
Na relação passado e futuro, tradição e renovação  em matéria de política externa, San Tiago Dantas esclarecia que a  continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não ocorre da mesma maneira  em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais a mudanças de rumo não tem os mesmos inconvenientes  do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado. Com efeito, como ponderava San Tiago Dantas, em relação à política externa, é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.
Pois bem, na minha avaliação esta dimensão de continuidade e estabilidade, está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu Chanceler, com impacto na credibilidade internacional do país.
Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um estado confessional. É, desde a República, um Estado laico como discuti no meu último artigo neste espaço (20/01/2019). A laicidade do Estado está positivada no art. 19–I da Constituição, que veda à União estabelecer culto religioso ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa evocar, e de maneira inédita, suscitar o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para a intolerância da geografia das paixões religiosas, que são uma das fontes das tensões internacionais contemporâneas, inserindo o nosso país numa problemática na qual não precisa envolver-se. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.
O direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações nos termos do art. 225 da Constituição Federal. É também um direito individual do cidadão (art. 5º, LXXIII). Meio-ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos que vivem na terra. A sensibilidade em relação à importância do tema e os dispositivos constitucionais, levaram o Brasil na Rio-92 a liderar a inserção do tema na agenda internacional sob a égide do conceito do desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade é uma  exigência de uma economia internacionalmente competitiva, inclusive para o comércio internacional dos produtos agrícolas, posto que, o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam  a requisitos de sustentabilidade ambiental.
É por estas razões,  que o Brasil desde a Rio-92 passou a ter uma  construtiva  e ativa participação na agenda internacional do meio-ambiente, que tornou-se um ingrediente de  continuidade e  coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nesta matéria do governo Bolsonaro, comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional, e colocam em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais. A associação com os EUA do governo Trump nesta matéria, ajuda a enfraquecer a autonomia do Brasil no controle de variáveis relevantes para o seu próprio destino, que passa pela transição para uma economia de baixo carbono.
O art. 4º da Constituição estabelece os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, que podem ser consideradas uma positivação de elementos da identidade internacional do país. Entre elas a defesa da paz, a solução pacífica dos  conflitos  e a cooperação entre os povos  para o progresso da humanidade.
Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua  a porosidade das fronteiras e propaga em todos as esferas as tensões difusas presentes na vida internacional. Para lidar com os desafios inerentes a estas tensões pelo caminho da efetivação destes princípios, que estão em consonância com a identidade internacional do Brasil, é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito dos quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar desta participação à partir da rejeição auto-centrada do “globalismo”, ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do Mundo e não apenas estamos no Mundo, inclusive em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isto, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos (art.4º, II) e da abertura à  concessão de asilo político (Art. 4º, X) que são diretrizes constitucionais da política externa.
Em síntese, os acima mencionados exemplos entre muitos que podem ser apontados, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu Chanceler, revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de se esperar que, no confronto com a realidade interna e externa, estas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a  sua identidade internacional.

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