Os dois grossos volumes, quase uma Gesamtwerke, estão inteiramente disponíveis na Biblioteca Digital da Funag. Eu, modestamente, dei minha contribuição a este empreendimento absolutamente essencial para todos os alunos de relações internacionais, candidatos à carreira diplomática ou simples curiosos por obras de qualidade.
Transcrevo minhas contribuições a esse projeto.
Paulo Roberto de Almeida
“A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao
mestre”, posfácio ao livro Celso Lafer:
Relações
internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
(Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6;
762 p.; link 1o. volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=970&search=Celso+Lafer;
2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.), 2o. vol., p. 1335-1347 (link
2o volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=971&search=Celso+Lafer).
3368. “Índice
onomástico: livro Celso Lafer”, Brasília, 2 dezembro 2018, 18 p. Listagem de
todos os nomes relevantes de atores e autores que constam dos dois volumes da
obra Relações internacionais, política
externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018,
2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN:
978-85-7631-788-3, 675 p.); enviado para impressão.
3377. “Je ne fais rien sans finesse: homenagem
a Celso Lafer”, Brasília, 14 dezembro 2018, 4 p. Texto para ser lido na sessão
de lançamento da obra de Celso Lafer: Relações
internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
(Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6;
762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.). Agregado ao trabalho 3379.
3379. “A Casa de Rio Branco
recebe Celso Lafer”, Brasília, 19 dezembro 2018, 8 p. Junção dos trabalhos 3375
e 3377, para postagem em substituição a eventuais pronunciamentos no lançamento
de sua obra em dois volumes: Relações
internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação
(Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6;
762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.; disponível na Biblioteca
Digital; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/search&search=Celso%20Lafer).
Postado no blog Diplomatizzando
(link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/12/a-casa-de-rio-branco-recebe-celso-lafer.html).
Trechos reproduzidos em artigo de Pedro Rodrigues, no Diário do Poder (20/12/2018; link: https://diariodopoder.com.br/celso-lafer-de-volta/)
e igualmente reproduzido no blog Diplomatizzando
(21/12/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/12/celso-lafer-de-volta-ao-itamaraty-pedro.html).
Livros de Celso Lafer disponíveis nos seguintes links: 1o. volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=970&search=Celso+Lafer;
2o. volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=971&search=Celso+Lafer.
Podem ser complementados, para a diplomacia recente (2016-2018), pelo livro
contendo discursos e pronunciamentos do presidente Michel Temer: O Brasil no mundo: abertura e
responsabilidade – Escritos de diplomacia presidencial (2016-2018) (Brasília:
Funag, 2018, 420 p.; ISBN: 978-85-7631-791-3 http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=969&search=Michel+Temer).
A educação de Celso Lafer:
um reconhecimento
ao mestre
Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
in: Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira:
pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN:
978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.), 2o.
vol., p. 1335-1347.
Se as Confissões de Santo Agostinho – que
ocupam um lugar central na cultura cristã do Ocidente latino, ao dar início à
tradição intelectual da autobiografia consciente e deliberada – apresentam essa
característica de, pela sua própria natureza confessional, terem influenciado
fortemente, segundo Stéphane Gioanni (L’Histoire,
junho de 2018), o subjetivismo moderno, A
Educação de Henry Adams inaugura, por sua vez – como construção consciente
e deliberada de uma trajetória de vida tão confessional quanto as memórias do
bispo da velha Hipona –, a moderna autobiografia intelectual,
combinando objetivismo político com algum subjetivismo filosófico. Mais do que
uma história de vida, ou uma simples memória, o livro de Henry Adams
representa, mais exatamente, um grande panorama de história intelectual dos Estados
Unidos entre a Guerra Civil e a Grande Guerra, um empreendimento talvez sem
paralelo, até o início do século XX, na tradição ocidental das biografias “confessionais”.
Setembro
de 2018 marca o centenário da primeira publicação completa da obra do bisneto
de John Adams e neto de John Quincy Adams, dois antecessores presidentes. Sua
educação primorosa, objeto da autobiografia (escrita na terceira pessoa), aproxima-se,
em certa medida, da sólida formação intelectual de um dos maiores
representantes da vida acadêmica e diplomática do Brasil: Celso Lafer. Cem anos
depois da publicação daquela autobiografia pioneira, parece inteiramente
pertinente seguir a “educação” de Celso Lafer, três vezes ministro, sendo duas
como chanceler, chefe de missão em Genebra, professor emérito da USP, articulista
consagrado, mestre de várias gerações de estudiosos de relações internacionais
e de direito.
A
melhor forma de fazê-lo é por meio de uma compilação de seus muitos escritos sobre
as relações internacionais, a política externa e a diplomacia brasileira, textos
até aqui dispersos em um grande número de veículos impressos e digitais. A trajetória
intelectual de seu autor se confunde com a própria evolução dos estudos e da
prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois
volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção
acadêmica, profissional ou jornalística, deixando de integrar, por
especialização temática nas áreas do título, uma outra parte essencial de suas
atividades intelectuais, que cobrem os terrenos literário, cultural e mesmo de
política doméstica.
A
colaboração que pude prestar na montagem e revisão da presente coleção de
textos – artigos, palestras, discursos, conferências, capítulos de livros – de
Celso Lafer constituiu, ao longo do ano de 2018, uma das maiores gratificações
intelectuais de minha relativamente curta trajetória como diretor do Instituto
de Pesquisa de Relações Internacionais, (IPRI), um modesto think tank,
subordinado, como o Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) – seu
contraparte do Rio de Janeiro –, à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), esta
por sua vez vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Digo uma das
maiores gratificações porque, justamente, dois de meus critérios na organização
de eventos e publicações no IPRI são justamente esses: tudo o que for intelectualmente
gratificante e inovar sobre a agenda “normal”.
Ainda
antes de assumir formalmente a direção do IPRI, pude colaborar na montagem e
realização de um seminário, de uma exposição e de um livro sobre o patrono da
historiografia brasileira, o também diplomata, Francisco Adolfo Varnhagen: Varnhagen (1816-1878): diplomacia e
pensamento estratégico (Brasília: Funag, 2016). Nesse primeiro
empreendimento junto ao IPRI ofereci um estudo sobre o “pensamento estratégico
de Varnhagen: contexto e atualidade”, no qual tive a oportunidade e o lazer de atualizar
suas propostas de “reforma do Brasil”, apresentadas pela primeira vez em 1849,
no Memorial Orgânico, documento
magistralmente retirado das cinzas pelas mãos do presidente do IHGB, o
historiador Arno Wehling, um especialista e também admirador da obra
historiográfica de Varnhagen.
Logo em
seguida, dediquei-me a retirar das “cinzas” de um injusto ostracismo político
um outro colega diplomata, o economista de formação Roberto Campos, por meio de
uma obra coletiva feita inteiramente à base da admiração de amigos: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória
intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017). O livro, entretanto,
por razões de oportunidade e de cálculo político, não foi publicado pela Funag,
tanto quanto um outro, sobre o historiador e diplomata Oliveira Lima. Em
seguida, aproveitando o desafio da publicação da magistral Fotobiografia de Oswaldo Aranha por seu neto, Pedro Corrêa do Lago
(Rio de Janeiro: Capivara, 2017), e ajudado pela perícia documentalista de seu
outro neto, Luiz Aranha, decidi montar, com a preciosa e estratégica ajuda do
historiador Rogério de Souza Farias, uma compilação praticamente completa dos
escritos de relações internacionais e de diplomacia brasileira produzidos ao
longo de trinta anos pelo grande estadista gaúcho, o segundo maior chanceler
brasileiro do século XX depois de Rio Branco, segundo Rubens Ricupero: “Oswaldo
Aranha dominou a política exterior dos meados do século XX como Rio Branco o
fizera na sua primeira década. Depois do Barão, ninguém mais alcançou, dentro e
fora do país, o prestígio e a influência de Aranha, nenhum outro dirigiu a
diplomacia com tanto acerto em tempos perigosos e de escolhas difíceis.”
(Apresentação de Rubens Ricupero a: Oswaldo
Aranha: um estadista brasileiro; Brasília: Funag, 2017, 1o.
vol.).
A coletânea Aranha preenche, sem dúvida alguma, uma
lacuna na historiografia brasileira da diplomacia contemporânea, ao recolher
discursos, entrevistas, cartas e escritos diversos do político rio-grandense
convertido em estadista de estatura mundial. Ela cobre momentos cruciais das
relações internacionais e bilaterais do Brasil em pleno século XX, quando a
diplomacia esclarecida de Aranha influenciou decisivamente a política do
governo Vargas ao adotar a opção correta na voragem da Segunda Guerra Mundial,
aliás a única concebível para um discípulo de Rui Barbosa, no formidável embate
que se travou entre as democracias do Ocidente, capitaneadas por Churchill e
Roosevelt, e os totalitarismos liderados pelos fascistas da Alemanha, Itália e
Japão.
Esse trabalho de garimpo documental e de lapidação
redacional dos escritos dispersos de Oswaldo Aranha, esteve, provavelmente, na
origem da idealização, organização e montagem da obra que agora se apresenta: uma
compilação seletiva dentre os muitos, incontáveis escritos até aqui dispersos
de Celso Lafer, primeiro reunidos e organizados por ele mesmo, com a ajuda de
Carlos Eduardo Lins da Silva, depois revistos e padronizados por mim, ao longo
de muitas noites de indescritível prazer intelectual. Não sei se por pura emulação
historiográfica, se por alguma secreta indução bibliográfica e documental, ou
se por um evidente paralelismo diplomático, Celso Lafer e eu mesmo cogitamos, quase
simultaneamente, que depois da “compilação Oswaldo Aranha” estava mais do que na
hora de também pensarmos numa “compilação Celso Lafer”. Material, aliás
abundante, não faltava para esse novo empreendimento.
A decisão foi então tomada em vista da existência,
dispersa até aqui, dos seus muitos escritos de relações internacionais, de
política externa e de diplomacia do Brasil, que constituem, ao mesmo tempo, um
grande panorama do cenário mundial, político e econômico, nas últimas cinco
décadas. Esses textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas,
andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia
brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na
diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras
instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões
relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na
integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo
contemporâneo.
Esta obra,
construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação
formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo
carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas,
apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma
contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida
intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui. Suas qualidades
intrínsecas, combinando sólida visão global e um conhecimento direto dos
eventos e processos que o autor descreve e analisa, representam um aporte fundamental
a todos os estudiosos de diplomacia e de relações internacionais do Brasil, uma
vez que reúne os relevantes escritos do mais importante intelectual desse
campo, com a vantagem dele ter tido a experiência prática de conduzir a
diplomacia brasileira em momentos significativos da história recente. As
“questões polêmicas” da quarta parte reúnem alguns de seus artigos de jornal,
nos quais exerceu um olhar crítico sobre a “diplomacia” implementada a partir
de 2003, rompendo pela primeira vez a tradição secular da política externa
brasileira, no sentido de representar o consenso nacional em torno dos
interesses do país, para adotar o sectarismo míope de um partido que tentou monopolizar
de forma canhestra (e corrupta) o sistema político.
Henry
James, ao escrever em 1907 a sua autobiografia intelectual, admitia, indiretamente
– segundo o prefácio de Henry Cabot Lodge à obra finalmente publicada em setembro
de 1918 pela Massachusetts Historical Society –, que a grande ambição do neto e
bisneto de presidentes era a de “completar as Confissões de Santo Agostinho”. Mas, diferentemente do pai da
Igreja Cristã, que, como grande intelectual, trabalhou a partir de uma
multiplicidade para a unidade de ideias em torno da fé cristã, seu moderno êmulo
americano reverteu a metodologia, passando a trabalhar a partir da unidade para
a multiplicidade de ideias (The Education
of Henry Adams: an autobiography, p. xxxiv, da edição de 1999 da Modern
Library). Isso talvez porque, à diferença da angustiada defesa de uma rígida
crença nos dogmas cristãos, exibida no quarto século da nossa era pelo pai
intelectual da Igreja Católica, Henry Adams ostentava o agnosticismo científico
típico dos primeiros darwinistas sociais do final do século XIX.
Celso
Lafer, herdeiro intelectual de grandes pensadores judeus do século XX, é,
provavelmente também, um agnóstico pragmático, combinando destreza acadêmica e
tino empresarial, como sempre foi a outra vertente de seus familiares e de um
grande antecessor na diplomacia, seu tio Horácio Lafer, ministro da Fazenda e
das Relações Exteriores na República de 1946. O modelo da autobiografia de
Henry Adams, com suas três dezenas de capítulos seguindo a trajetória do
ilustre herdeiro dos Adams nas grandes capitais do mundo ocidental –
Washington, Londres (seu pai foi ministro na Corte vitoriana), Berlim, Paris (a
Exposição Universal de 1900), Roma e muitas outras cidades dos Estados Unidos e
da Europa–, poderia servir, eventualmente, para retraçar a carreira intelectual
e diplomática de Celso Lafer, que também percorreu as grandes capitais da
diplomacia mundial, como intelectual ou ministro das Relações Exteriores.
O jovem
Adams, ao acompanhar como secretário o seu pai, designado em 1861 ministro
plenipotenciário de Abraham Lincoln junto à corte da rainha Vitória, construiu
uma educação “diplomática” no centro do que era então o maior império do
planeta; ele pode encontrar-se com líderes britânicos da estatura de um
Palmerston ou Gladstone, assim como, em suas andanças pela Europa, com
“anarquistas” bizarros, ao estilo de um Garibaldi. Celso Lafer, por sua vez,
construiu sua educação diplomática na observação direta do que foi feito por
seu tio, Horácio Lafer, antes como ministro da Fazenda do Vargas dos anos 1950,
depois à frente do Itamaraty, numa segunda fase do governo JK, dedicando a
ambos trabalhos analíticos posteriores que figuram com realce em sua
bibliografia. Da gestão do tio na política externa, destacou sobretudo sua ação
no campo econômico: acordos comerciais, integração regional e aproximação à
Argentina.
Essa
educação continuou nos anos seguintes, de forma não surpreendente nos mesmos
grandes temas focados anteriormente e, como Henry James, no contato direto com
personalidades de realce na cena mundial; percorrendo as páginas dos dois
volumes de Celso Lafer é possível registrar alguns dos grandes nomes do
estadismo mundial, com quem Celso Lafer encontrou-se ou conviveu ao longo
dessas décadas. Ele discorre, sempre de modo empático, mas penetrante, sem
dispensar aqui e ali o bom humor, sobre líderes estrangeiros como Mandela,
Shimon Peres, Koffi Annan, Antonio Guterres e, retrospectivamente, sobre o
êmulo português do embaixador Souza Dantas, o cônsul Aristides de Souza Mendes,
um justo entre os injustos do salazarismo. Dentre os diplomatas distinguidos do
Brasil figuram os nomes de Saraiva
Guerreiro e de Sérgio Vieira de Mello, para mencionar apenas dois nessa
categoria.
Comparecem
igualmente vários colegas e autores de renome, intelectuais da academia ou da diplomacia,
como José Guilherme Merquior, Sergio Paulo Rouanet, Gelson Fonseca Jr., Synesio
Sampaio Goes, Rubens Ricupero, Gilberto Dupas, Celso Furtado, Miguel Reale, Fernando
Henrique Cardoso, entre os brasileiros. Estudiosos estrangeiros, alguns conhecidos pessoalmente,
aparecem sob os nomes de Karl Deutsch, Raymond Aron, Andrew Hurrell, Octavio
Paz, Morgenthau, Kissinger e Prebisch. Suas resenhas e prefácios registram autores
conhecidos na área, a exemplo de Sérgio Danese, Fernando Barreto, Gerson Moura
e Eugenio Vargas Garcia, contemplados com extensas notas publicadas na revista Política Externa, da qual foi um dos responsáveis,
junto com Gilberto Dupas e Carlos Eduardo Lins da Silva, durante vários anos.
A
educação de Celso Lafer se fez, primordialmente, em intensas leituras e
eventuais contatos, com grandes nomes do pensamento histórico, filosófico e
político da tradição ocidental, desde mestres do passado remoto – Tucídides, Aristóteles,
Grócio, Vico, Hume, Bodin, Hobbes Montesquieu, Kant, Tocqueville, Charles de
Visscher e outros – até mestres do passado recente, inclusive alguns deles encontrados
em carne e osso: Hans Kelsen, Carl Schmitt, Isaiah Berlin, Hanna Arendt,
Norberto Bobbio, Raymond Aron, Hedley Bull, Martin Wight, Albert Hirschman,
Stanley Hoffmann e muitos outros. Um desses “grandes mestres” aparece apenas
marginalmente, ou episodicamente nos textos aqui coletados: Karl Marx, objeto
de várias referências indiretas no exame da literatura especializada. Henry
James, de seu lado, faz, em sua autobiografia, diversas referências ao pai do
“socialismo científico” e afirmou ter seriamente considerado, junto com as teses
ousadas de Darwin, os argumentos defendidos em O Capital, embora não demonstrasse entusiasmo com os anúncios
precursores quando à derrocada do capitalismo.
James,
na verdade, demonstra certo esnobismo em relação à maior parte dos teóricos que
digeriu, em Harvard ou em suas leituras posteriores. Ao referir-se, por
exemplo, à necessidade de conhecer os ensinamentos de Marx, continua dizendo
que o confronto também devia ser feito em relação à “satânica majestade do
livre comércio de John Stuart Mill” (p. 72). Mais adiante, ao fazer o balanço
de sua visita à Exposição Universal de Paris, em 1990, que representava o
triunfo do capitalismo da belle Époque,
ele revela que “tinha estudado Karl Marx e suas doutrinas da história com
profunda atenção, mas que não podia aplicá-las a Paris” (p. 379). No caso de
Lafer, não há menção a algum estudo sério da doutrina marxista, mas as
referências não faltam, seja por meio de Raymond Aron, seja através de obras de
Hélio Jaguaribe.
Ambos,
porém, Henry James e Celso Lafer, exibem o mesmo compromisso incontornável com
os princípios do liberalismo político e dos governos democráticos. James, ao
conviver mais longamente com o sistema parlamentar inglês, considerava que “o
governo de classe média da Inglaterra constituía o ideal do progresso humano”
(p. 33). Por classe média, ele queria dizer, obviamente, burguesia, em oposição
à velha aristocracia de títulos, que não existia no seu país natal; ela estava
surgindo, em sua própria época, mas apenas a partir do exibicionismo ostensivo
dos “barões ladrões”, enobrecidos financeiramente a partir da idade dourada do
capitalismo americano. Celso Lafer, do seu lado, sempre foi um liberal doutrinal
e filosófico, não obstante seu alinhamento pragmático com a socialdemocracia na
política brasileira, no que, aliás, ele combina com um de seus mestres, o
jurista e intelectual italiano Norberto Bobbio.
Mais de
uma centena de textos comparecem nos dois volumes, organizados em cinco partes
bem identificadas, embora algumas repetições sejam detectáveis aqui e ali. O
conjunto dos escritos constitui, sem dúvida alguma, um completo curso acadêmico
e um amplo repositório empírico em torno dos conceitos exatamente expressos no
título da obra: Relações internacionais,
política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Os artigos,
ensaios, conferências e entrevistas podem servir, em primeiro lugar, a todos os
estudantes desses campos, não restritos, obviamente, aos próprios cursos de
Relações Internacionais, mas indo ao Direito, Ciência Política, Filosofia,
Sociologia, História, além de outras vertentes das Humanidades. Mas, os
diplomatas profissionais e os demais operadores consolidados trabalhando direta
ou indiretamente nessas áreas também encontrarão aqui um rico manancial de
ideias, argumentos e, mais importante, “recapitulações” em torno de
conferências, negociações, encontros bilaterais, regionais ou multilaterais que
figuraram na agenda internacional do Brasil nas últimas décadas.
A
diversidade de assuntos, inclusive em relação aos próprios personagens que aqui
comparecem, em “diálogos”, homenagens, obituários ou relatos de encontros
pessoais, possuem um inegável vínculo entre si, pois todos eles têm a ver, de
perto ou de longe, com a interface externa do Brasil e com os voos
internacionais do autor. Os textos não esgotam, obviamente, o amplo leque de
interesses e de estudos do autor, que se estende ainda aos campos da literatura
e dos assuntos culturais em geral, trabalhos que figuram em diversos outros
livros publicados de Celso Lafer, vários monotemáticos e alguns na categoria de
coletâneas, como por exemplo os três volumes publicados pela Atlas, em 2015, enfeixados
sob o título comum de Um percurso no
Direito do século XXI, mas voltados para direitos humanos, direito
internacional e filosofia e teoria geral do direito. A sua produção variada,
acumulada intensa e extensivamente em tão larga variedade de assuntos, permite
o mesmo tipo de “assemblagem” ocasional efetuada na presente obra em dois
volumes. Apresentando, por exemplo, seus escritos focados em Norberto Bobbio: trajetória e obra (São
Paulo: Perspectiva, 2013), Celso Lafer começa por lembrar justamente essa
prática do mestre italiano:
Bobbio, ao fazer, em 1994, um balanço de sua trajetória, observou que a
sua obra caracterizava-se por livros, artigos, discursos sobre temas diversos,
ainda que ligados entre si [nota: a referência aqui é à obra de Bobbio, O Futuro da Democracia]. Parte muito
significativa e relevante da sua obra é constituída por volumes que são
coletâneas de ensaios, reunidos e organizados em função dos seus nexos
temáticos. Esses volumes de ensaios cobre os diversos campos do conhecimento a
que se dedicou: a teoria jurídica, a teoria política, a das relações
internacionais, a dos direitos humanos e o vinculo entre política e cultura,
rubrica que abrange a discussão do papel do intelectual na vida pública. Esses
volumes são representativos do contínuo work
in progress da trajetória intelectual de Bobbio, esclarecendo como, no
correr dos anos, por aproximações sucessivas, foi aprofundando a análise dos
temas recorrentes do seu percurso de estudioso. (p. 23)
A partir
da transcrição desse introito se poderia perfeitamente dizer: Ecce homo (talvez menos na linhagem
nietzscheiana, e mais na do original bíblico). A afirmação se aplica
inteiramente à própria trajetória acadêmica e profissional de Celso, ao seu
percurso intelectual, à sua visão do mundo, com uma vantagem adicional sobre o
jurista italiano, devido ao fato de Lafer ter sido bem mais do que um “simples
professor”, ao ter exercido por duas vezes (até aqui) o cargo de ministro das
relações exteriores (e uma vez o de ministro do desenvolvimento e de comércio
exterior), funções certamente mais relevantes, para o Brasil, do que o cargo
largamente honorífico concedido a Norberto Bobbio, já quase ao final da sua
vida, de senador da República italiana.
O
percurso de Celso Lafer, no Brasil e no mundo, sua postura filosófica, de
defensor constante dos direitos humanos e da democracia política, suas aulas na
tradicional Faculdade de Direito (e em muitas outras conferências em universidades
e várias instituições em incontáveis oportunidades), sua luta pela afirmação
internacional do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte da
diplomacia nacional, todos esses aspectos estão aqui refletidos em mais de uma
centena de trabalhos carinhosamente reunidos sob a direção do próprio mestre e
oferecidos agora ao público interessado. Não apenas o reflexo de uma vida
dedicada a construir sua própria trajetória intelectual, esses textos são,
antes de qualquer outra coisa, aulas magistrais, consolidadas numa obra
unitária, enfeixada aqui sob a tripla dimensão do título do livro.
Mais do
que uma garrafa lançada ao mar, como podem ser outras coletâneas de escritos
dispersos oferecidos a um público indiferenciado, a centena de “mensagens
laferianas” aqui reunidas constituem um útil instrumento de trabalho oferecido
aos profissionais da diplomacia, ademais de ser uma obra de referência aberta à
leitura dos pesquisadores, dos professores e dos estudantes dessas grandes
áreas de estudos e de trabalho acadêmico. Ao disponibilizar essa massa de
escritos da mais alta qualidade intelectual ao grande público, esta obra faz
mais do que reunir estudos dispersos numa nova coletânea de ensaios conectados
entre si: ela representa, também e principalmente, um tributo de merecido reconhecimento
ao grande mestre educador que sempre foi, e continuará sendo, Celso Lafer.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de julho de 2018
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