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quarta-feira, 13 de maio de 2020

Cinco verdades inconvenientes sobre o Brasil - Felippe Hermes


Bom texto explicativo, mas ouso, de meu lado, voltar às minhas cinco regras básicas para o desenvolvimento do Brasil:
1) macroeconomia sólida e estável (essencial para o crescimento da produtividade);
2) microeconomia competitiva, num ambiente de total liberdades econômicas;
3) boa governança, sobretudo na Justiça;
4) alta qualidade do capital humano, o que exige uma revolução educacional;
5) total abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros.
Paulo Roberto de Almeida

5 verdades inconvenientes sobre o Brasil

A verdade é como poesia. E a maioria das pessoas odeia poesia.
Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores
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Georges Dairnvaell poderia ter passado despercebido pela história como mais um dos militantes panfletários da Paris do século XIX, não fosse uma descoberta feita em 2015, que o liga a origem de uma das mais conhecidas fake news da história.
Em um misto de anti-semitismo e militância contra os ricos, Dairnvaell escreveu em 1846 um panfleto, com o pseudônimo de “Satan”, no qual atribuía a Nathan Rothschild uma fraude na origem da sua fortuna.
Segundo “Satan”, Rothschild teria recebido com antecedência a informação de que a Inglaterra havia vencido a batalha de Waterloo contra Napoleão, e espalhado o oposto para provocar pânico na bolsa de Londres, fazendo fortuna com isso.
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Muito antes da banalização atual do termo “fake news” com o surgimento das redes sociais, a história registra casos do tipo, intencionais ou não, e via de regra com um componente político.
No Brasil, por exemplo, o comício das “Diretas Já”, realizado em 1984, foi transformado em “festa de comemoração do aniversário de São Paulo” pela edição do Jornal Nacional do dia 25 de janeiro, fato que o fundador Roberto Marinho e diretores da empresa minimizaram por anos.
O fato é que elas estão aí, em toda nossa história, e são bem documentadas, tendo versões para todos os gostos políticos.
Justamente por isso, a despeito do que você talvez tenha pensado até aqui, este não é um artigo sobre as fake news e seus casos curiosos ao longo da história, e sim o exato oposto, aquele ao qual não estamos treinados e nem identificamos com tanta facilidade: as verdades inconvenientes.
São verdades inconvenientes aquelas bem documentadas, discutidas, mas que muitas vezes preferimos optar por ignorar, exatamente por serem inconvenientes.
Ocorre que, como a mentira de Dairnvaell que abriu caminho para diversas outras teorias da conspiração anti-semitas, nossa opção de ignorar determinadas verdades pode nos levar a um caminho bastante ruim, uma vez que nos impede de reagir aos problemas.
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Pensando nisso, reuni aqui cinco dessas “verdades inconvenientes” da economia que liberais, conservadores ou esquerdistas pretendem ignorar.

1. Você provavelmente não verá o Brasil se tornar um país rico no seu tempo de vida

Não raro, a expressão “o Brasil é um país rico, basta dividir corretamente” aparece em papos informais e algumas vezes até em conversas de políticos e outros participantes do debate público.
De fato, a divisão de riqueza no Brasil é, por qualquer métrica que se olhe, bastante ruim. Somos o 2º país do mundo com maior concentração de renda no 1% mais rico da população, atrás apenas do Qatar, e temos metade dos brasileiros vivendo com apenas R$ 413 por mês.
A noção de riqueza contida nessa afirmação, porém, é via de regra uma noção errada: a de que possuímos muitas riquezas naturais, ou ainda, de que somos a 7ª maior economia do mundo.
Quando colocada em perspectiva, com relação a riqueza per capita, o Brasil aparece somente em 72º lugar. Caso entrássemos hoje para a OCDE, um grupo de países que cooperam entre si para desenvolver boas práticas de gestão e desenvolvimento, começaríamos em último lugar.
Quanto à ideia de que “temos recursos em abundância”, na prática não é bem assim que a banda toca.
A geografia brasileira não é tão generosa quanto parece. Nossa maior hidrovia, a do Tietê, começa a 20 km do oceano e corre na direção oposta, indo desembocar na bacia do Prata.
Isso contribui para que todas as hidrovias brasileiras somadas transportem menos do que 5% do total de carga transportado pela hidrovia do Mississipi, nos EUA (lembre-se que este é, de longe, o modal de transporte mais barato existente).
Nossas maiores cidades estão separadas por cadeias de montanhas e zonas menos densas (não há por aqui megalópoles como na costa leste americana, por exemplo), e até os anos 1970, era virtualmente impossível desenvolver agricultura em larga escala no Centro-Oeste. Foram necessárias décadas de desenvolvimento, por parte de cooperações internacionais e investimentos da Embrapa, até que o país de fato se tornasse um celeiro.
É justamente essa transformação recente em celeiro de grãos que apresenta aquilo que deveríamos possuir para nos tornarmos ricos: produtividade. Se o tema lhe interessar, recomendo este vídeo, baseado em um relatório da consultoria Stratford.
Produzir mais com menor quantidade de pessoas e capital é um fator crucial para o enriquecimento de um país, e neste aspecto, falhamos bastante.
Há 40 anos nossa produtividade cresce abaixo de 0,5% ao ano, o que, na prática, significa dizer que a maior parcela do nosso crescimento vem do aumento demográfico.
Como alertado durante a votação da nossa reforma da Previdência, o boom demográfico está acabando.
Não é impossível reverter este cenário. Para isso, basta fazermos aquilo que não fizemos nos últimos 40 anos: focar no aumento da produtividade.
O desafio é fazer isso ao mesmo tempo que a população envelhece, o sistema político se mantém viciado em um jogo de péssimos incentivos e a infraestrutura segue capenga. O mais provável até aqui é que isso não vá rolar.

2. Um trabalhador brasileiro já recebe menos do que um chinês ou paraguaio. E isso tende a piorar

E por falar em produtividade, o seu salário vem dela, e não de uma canetada em Brasília, ao contrário do que determinados políticos querem lhe fazer crer.
Em maior ou menor grau, salários dependem essencialmente da riqueza produzida pelo trabalhador. Pode parecer óbvio, afinal, sem criação de riqueza não há recursos para os salários. Mas, para muitos, o salário ainda depende da vontade política.
Este tipo de confusão é comum, e até aceitável, dado que o Estado brasileiro fixa um salário mínimo acima da renda de boa parte da população. É razoável que se acredite, dado o baixo grau de instrução das pessoas, que se as empresas não o fazem é por “ganância” ou adjetivos do tipo.
Considerar isso como verdadeiro, porém, seria dizer que, na prática, nossos empresários são mais gananciosos do que empresários americanos, a terra do “capitalismo selvagem” para muitos.
Parece e é simplista supor isso.
Quando olhamos para países que tiveram aumentos de produtividade, em especial ao retirar sua população do campo e colocá-la em indústrias e serviços, é nítida a evolução de renda desses mesmos trabalhadores.
Pegue por exemplo a China, ainda hoje símbolo do “trabalho escravo” no mundo. Há meras 3 décadas, um trabalhador brasileiro produzia 5 vezes mais do que um chinês. Há 4 anos, produzíamos apenas 5% a mais.
O resultado? Em 2005, um chinês recebia em média US$ 1,20 por hora de trabalho, e, em 2016, ele recebia US$ 3,60. Enquanto isso, no Brasil, um trabalhador na indústria recebia em 2005 cerca de US$ 2,60 por hora, e, em 2016, ele passou a receber US$ 2,50.
Números não tão expressivos, mas, ainda assim, constantes em termos de crescimento, vêm do Paraguai.
Nosso país vizinho apresentou nas últimas décadas um saldo expressivo da sua produtividade ao transferir trabalhadores do campo para a cidade. O resultado do outro lado da Ponte da Amizade foi um aumento expressivo nos salários. O mínimo por lá chega a ser R$ 352 maior do que no Brasil.

3. A ineficiência do serviço público está diretamente relacionada ao baixo número de funcionários em algumas áreas

Poucos e caros. Sendo bastante objetivo, essa seria a melhor definição para o funcionalismo público no Brasil.
São poucos os juízes disponíveis no Judiciário mais caro do planeta. São poucos os policiais disponíveis no país com maior número de assassinatos do planeta e assim por diante.
Temos cerca de 8,2 juízes para cada 100 mil habitantes, contra 27 da Alemanha. A diferença está no fato de que os alemães gastam 0,13% do PIB com o Judiciário, enquanto o Brasil gasta 1,5%.
Como isso é possível? Com uma média salarial de R$ 43 mil, os juízes brasileiros se tornaram extremamente caros, impedindo que o Estado contrate magistrados em números suficientes. Afinal, estamos falando de algo como 1.600% vezes a renda média de um brasileiro. Na mesma Alemanha, um juiz recebe 3 vezes o PIB per capita, contra 4 vezes no Reino Unido.
Essa pequena diferença, quando somada a nossa burocracia e legislação trabalhista que ampliam a demanda de casos a serem julgados, faz com que um juiz brasileiro trabalhe em mais casos do que deveria e ainda assim tenhamos o 30º judiciário mais lento do mundo, em um ranking com 133 países.
Coloque na conta uma Previdência na qual cada juiz, mesmo sem trabalhar, continuará recebendo seu salário por 25 anos, na média (gerando um custo estimado de R$ 4,77 milhões), e tudo parece fazer mais sentido.
Em relação à segurança pública, os números são similares. Nossos policiais se aposentam com regras especiais, gerando casos de aposentadoria aos 47 anos. Para piorar, em muitos casos eles são promovidos logo antes de se aposentarem, o que gera casos surreais como os do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, estados que têm respectivamente 25 e 30 vezes mais coronéis aposentados do que na ativa. Cada um deles leva para casa R$ 25 mil todos os meses.
Sendo razoável, (afinal, sei que você já deve estar pensando “vá você colocar sua vida em risco e dizer que se aposentar aos 47 anos é privilégio”), minha postura aqui é simples e se resume a três pontos:
1) Não é razoável que os policiais mais experientes deixem a corporação tão cedo. Isso reduz nossa capacidade de combate ao crime;
2) Aposentadorias precoces impedem que se dê salários melhores para aqueles que estão no início da carreira, na linha de frente do combate ao crime; e
3) Boa parte do trabalho policial é burocrático. Não é qualquer demérito que policiais mais experientes assumam estas funções.
Se queremos dar salários melhores, contratar mais policiais e garantir maior segurança, podemos começar encarando essas verdades inconvenientes.

4. A corrupção não é a causa de todos males do país

Cerca de um ano antes de o TCU conseguir na Justiça obrigar o BNDES a apontar os beneficiários de empréstimos no Brasil e no exterior, publiquei uma lista com obras financiadas pelo banco em outros países.
Durante anos, essas obras foram divulgadas na imprensa e tudo corria como se não houvesse nada de estranho. Minha questão inicial, ali em setembro de 2014, não tratava de corrupção, mas de moralidade.
Minha pergunta foi simples: é justo que um país com tamanhas deficiências de infraestrutura financie estradas, portos, aeroportos, saneamento, gasodutos etc, em outros países?
Pior: é justo que isso seja feito com dinheiro do FAT, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, levando bilhões de prejuízo aos milhões de trabalhadores brasileiros? (R$ 95 em perdas para cada trabalhador todos os anos entre 2010 e 2014).
Tudo isso sempre me chocou, especialmente porque trata-se de um banco que destina 70% de seus empréstimos as 1.000 maiores empresas do país.
A despeito das revelações da Lava Jato sobre empreiteiras, devemos dizer aqui um fato nada conveniente: o BNDES emprestou R$ 1,2 trilhão, dos quais apenas uma fração envolve casos suspeitos ou comprovados.
Muito do que foi feito ali é perfeitamente legal. Quer um exemplo? Subsídios para compra de caminhões via FINAME. Não há até onde se tem notícias hoje, qualquer corrupção direcionada a este caso.
Mesmo a venda de jatinhos da Embraer figura apenas como imoralidade. Financiar um avião para um milionário com dinheiro dos trabalhadores é o absurdo dos absurdos, mas não é corrupção.
Casos como esse, conhecidos como “misallocation” (ou má alocação de capital), são o maior entrave ao Brasil.
Como a Secretaria de Política Econômica mostrou em março deste ano, o Brasil poderia ser 146% mais rico se alocasse capital de maneira eficiente.
Nossa ineficiência, que não é apenas corrupção (mas também a inclui), nos torna muito mais pobres.
Não devemos, portanto, ficar indignados apenas com aquilo que infringe a lei, mas também com a maneira como a lei é usada para favorecer determinados grupos e setores. .

5. O Brasil ainda tem solução

Essa é a mais inconveniente das verdades, de longe. Não há dúvidas que isso incomoda inúmeros grupos e pessoas acostumadas ao jogo atual.
Incomoda liberais que acreditam que o Estado brasileiro é inerentemente falido e jamais poderá mudar. Incomoda conservadores que acreditam que a política é falha e jamais poderá se tornar uma maneira de solucionar problemas, como também incomoda a parte da esquerda que acredita que não há solução consensual possível, apenas por meio de uma revolução.
São os mais variados grupos que tomam consciência da estrutura do Estado e do país e disputam neste jogo a maneira de colocarem sua visão sobre as demais. O que então pode mudá-lo?
A resposta nem de longe é simples. Afinal, trata-se de reconstruir ou fazer nascer, sobre bases bastante ruins, instituições mais inclusivas.
Como Acemoglu e Robinson mostram no clássico “Porque as nações fracassam”, as instituições são a base de qualquer nação bem sucedida.
Isso significa começarmos pelo básico: não importa se você é liberal ou de esquerda. O Estado deve caber dentro de si mesmo. Dos Estados Unidos a Austrália, toda nação bem sucedida possui um consenso de que o Estado deve ter um orçamento equilibrado.
Partindo deste princípio, de que o Estado não deve gastar mais do que arrecada, podemos avançar sobre outro ponto: o Estado não deve proteger os empresários proibindo a população de comprar bens e serviços mais baratos do exterior.
Antes de discutirmos como taxar mais os ricos e menos os pobres, um debate urgente no país, devemos começar pelo que todos podemos concordar: impedir que o Estado brasileiro financie os mais ricos.
Deste ponto em diante, os debates podem ser mais naturais. Podemos falar francamente sobre produtividade sem tratar isso como uma maneira nova de torturar trabalhadores em busca do lucro.
Podemos também falar sobre infraestrutura sem fazer disso um meio de favorecer cartéis de empreiteiras.
O Brasil tem solução, e elas vão começar quando formarmos consensos básicos sem tratar aqueles que discordam de nós como missionários de “Satan”, como fazia Dairnvaell.
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terça-feira, 12 de maio de 2020

O Brasil e o abolicionismo tardio, nunca completado - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e o abolicionismo tardio, nunca completado


Paulo Roberto de Almeida
Contribuição ao periódico O Veterano da FGV-EPGE
(https://medium.com/o-veterano).
Nota dos editoresEsta contribuição do diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida a O Veterano é feita em razão do dia 13 de Maio, no qual ocorreu a abolição da escravidão.
O Veterano (Rio de Janeiro: periódico semanal estudantil da FGV EPGE; 13/05/2020; link: https://medium.com/o-veterano/coluna-o-brasil-e-o-abolicionismo-tardio-nunca-completado-paulo-roberto-de-almeida-b0807425fd32).


O presente ensaio tem o objetivo principal de argumentar que a eterna relutância do Brasil em abolir o tráfico e, depois, a escravidão, constitui um dos mais poderosos fatores que podem explicar, ainda hoje, a persistente dificuldade do país em elevar os padrões e o próprio ritmo de um processo sustentado de crescimento econômico, com destaque para a área da produtividade do capital humano. Essa delonga na adoção de reformas sociais também está na raiz do grau anormalmente elevado das desigualdades sociais e da distribuição de renda, que estão vinculadas, por sua vez, à ausência de reforma agrária, ainda no século XIX, e em especial a completa ausência de uma política de educação de massa, uma deficiência permanente, praticamente desde antes da independência, que atravessa toda a fase monárquica e que se prolonga por boa parte do regime republicano. O tráfico negreiro e a escravidão foram formalmente abolidos em 1850 e em 1888, respectivamente, mas seus efeitos delongados na estrutura econômica e no tecido social nunca foram efetivamente superados em toda a trajetória da nação independente. A ausência de políticas consistentes nos terrenos da propriedade fundiária e da educação de massas é responsável, por sua vez, pelos baixos níveis de renda per capita, pela persistência da pobreza, assim como da enorme concentração de renda. 

A escravidão na História Humana e o Comércio de Escravos.
A escravidão é uma das mais antigas instituições humanas, que ocupou, quase certamente,
nove décimos da história das sociedades estruturadas, ou seja, comunidades agrícolas primitivas, nações já fundadas numa divisão mais sofisticada do trabalho ou até Estados organizados. Ela coexistiu, marginalmente ou até estruturalmente, com as mais diversas formações sociais ao redor do mundo, desde a mais remota antiguidade, até já iniciada a era contemporânea, quando ela, finalmente, teve de ceder terreno às novas doutrinas de direitos humanos que derivam do pensamento iluminista dos séculos XVII e XVIII. O trabalho escravo, como uma das formas primárias de energia, nada mais é do que a substituição do esforço próprio pelo trabalho de outrem, submetido pelo uso de uma força superior, geralmente baseado na supremacia das armas. 
As sociedades da antiguidade, inclusive grandes impérios, tinham o instituto da escravidão como algo natural, necessário, em si mesmo, ou como simples mercadoria, ou seja, o comércio de seres humanos. Não se tratava, então, de um problema moral, ainda que pensadores e filósofos da antiguidade tenham esboçado um discurso em defesa da dignidade do ser humano, seja nas sociedades asiáticas, seja na vertente, mais próxima de nossas próprias sociedades, do cristianismo, baseado na fraternidade humana e na igualdade moral do ser humano. Independente da filosofia abramânica, que sustenta as três principais religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), e do humanismo implícito à ética judaica, o escravismo foi mais ou menos tolerado por todas essas religiões ao longo da história, o que explica que o escravismo tenha subsistido e convivido com os mais diversos tipos de sociedades, organizações políticas e formações econômicas, mesmo nas formas atenuadas da servidão de gleba, – como sob o feudalismo europeu ou servidão russa, por exemplo – ou da escravidão por dívidas, geralmente temporária, e que existiu desde a Grécia antiga até a moderna América do Norte. 
A escravidão começa a ser contestada, negada, combatida, na prática, quando os avanços
civilizatórios pós-renascentistas passam a admitir a igualdade básica do ser humano, mesmo se o novo contexto filosófico que emergiu a partir dos Descobrimentos, na primeira globalização (séculos XIV a XVI), também deu espaço, ao lado das doutrinas humanistas, ao racismo científico, com Gobineau e outros, até renascer, em pleno século XX, na horrível ideologia nazista, que admitia abertamente pretender reduzir os eslavos – aliás, a origem filológica da palavra escravo – à escravidão pura e simples. Numa outra vertente, supostamente igualitária e humanista, a do socialismo de extração marxista, ou mais exatamente leninista, a imposição do comunismo, como forma de organização da nova sociedade soviética, se fez praticamente às custas de uma versão disfarçada, mas também horrenda, de escravismo, ao submeter populações inteiras ao poder absoluto do novo Estado totalitário. 
O tráfico de seres humanos já era uma atividade rendosa no Império romano, e depois se converteu num comércio altamente lucrativo de mercadores árabes, já islâmicos, ao longo de séculos, praticamente desde o início até meados do século XX. Não se pode olvidar, por exemplo, que a escravidão subsistiu legalmente na Arábia Saudita até o início dos anos 1960, e que só foi abolida (mas apenas formalmente) na Mauritânia em meados da década seguinte (persistindo ainda, sob diversas formas, no interior do país, quiçá em Estados circunvizinhos). O grande empreendimento comercial da escravidão moderna atravessa todo o período do mercantilismo, quando empresas e empresários individuais organizam um tráfico regular, sistemático, intenso, entre a África – que foi a grande provedora de mão-de-obra servil desde a antiguidade – e as economias do Novo Mundo, que se organizavam em culturas comerciais de exportação e de extração de outros recursos naturais e minerais. Durante cinco séculos a África abasteceu, em mais de dez milhões de unidades, a gigantesca demanda de trabalho humano criada pela implantação dos europeus no hemisfério americano. E aqui entra o Brasil.

O Brasil: Relutante em Extinguir o Tráfico.
Quatro quintos da história brasileira, desde a colonização até quase o final do Império, se
desenvolveram sob o trabalho servil, primeiramente na tentativa de utilização do elemento humano de origem indígena, depois, sobretudo e basicamente, de aportes a partir das populações africanas de diversas partes do continente, mesmo se os paulistas, mais pobres, em períodos anteriores ao da cafeicultura, ainda recorriam à captura e submissão de indígenas: não por acaso, o tupi-guarani era extensamente usado como língua franca nos territórios abertos pelos bandeirantes saídos dessa região. Não é preciso recorrer aos trabalhos de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Holanda, e de outros historiadores e cronistas da sociedade colonial brasileira para constatar como o trabalho escravo foi mais do que a argamassa e os tijolos que construíram a nação; o escravismo foi a pedra fundamental da existência da sociedade colonial e da própria emergência do Brasil independente, cuja economia continuou, em grande medida, a funcionar nas mesmas bases do antigo sistema colonial: a grande propriedade, as culturas comerciais de exportação, os empreendimentos mineiros, o trabalho doméstico, o transporte e até a satisfação sexual dos senhores da terra, do comércio e das atividades urbanas. Mesmo escravos em princípio “libertos” pelas incursões da Royal Navy contra navios negreiros nas costas do Atlântico Sul continuaram a servir ao próprio Estado, nas repartições do governo, alegadamente numa condição “temporária”. 
A despeito de alguns poucos “humanistas precoces” na sociedade colonial, – entre eles Antônio Vieira e poucos outros –, apesar do esforço de estadistas esclarecidos como Hipólito da Costa e José Bonifácio, para extinguir, pelo menos, o tráfico no momento da independência, como forma de substituir gradualmente a escravidão, por meio da importação de trabalhadores agrícolas da Europa, o instituto da escravidão foi não só mantido como constitucionalizado na emergência do novo Estado. Isto confirmou o enorme poder econômico e político dos grandes traficantes e dos proprietários de terras e de negócios sobre as alavancas materiais e institucionais de uma nação que se formava no contexto do crescente movimento abolicionista disseminado a partir das novas ideias em ascensão na Europa. O século XVIII assistiu à formação de um pensamento abolicionista consequente e afirmativo, e, independentemente de suas origens religiosas ou filosóficas, ele deu origem, pouco mais tarde, à criação da Anti-Slavery Society, em 1823. Antes mesmo que essa sociedade – aliás na sua versão exclusivamente dedicada à abolição no Império Britânico, o que ocorreu por ato legal de 1833, tendo sido sucedida, em 1839, pela British and Foreign Anti-Slavery Society – fosse conhecida pelo seu ativismo abolicionista, as potências reunidas no Congresso de Viena, em 1815, começaram a pressionar os principais países escravagistas para que fosse abolido o tráfico ao norte do Equador, o que terminou por comprometer Portugal nessa demanda britânica. Tendo abolido o comércio de escravos por ato do Parlamento em 1807, a Grã-Bretanha começou logo após uma campanha militante em favor da extinção geral do tráfico, pressionando os países que detinham participação significativa nesse tipo de comércio internacional.
Desde os acordos desiguais de 1810, Portugal se encontrava sob forte pressão inglesa para

abolir o tráfico: em Viena, a delegação portuguesa teve de comprometer-se com uma prometida abolição do tráfico ao norte do Equador, apenas para contar com certa tolerância, ou vista grossa britânica, em relação ao tráfico no Atlântico sul. O negócio era simplesmente muito lucrativo para que os comerciantes privados, ou a própria Coroa consentissem em sua extinção, uma vez que a taxação das “peças da África” era uma das grandes receitas das Alfândegas. Ele também era a base de grandes fortunas no próprio Brasil, como demonstrado pelo historiador Manolo Florentino: “... para cada carregamento de escravos que chega ao Brasil, vários outros, com produtos tradicionais e mesmo manufaturados europeus, tinham de ser mandados em direção à África como pagamento” (Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 218).
É um fato que os argumentos abolicionistas que então começam a ser esgrimidos em conferências internacionais fundavam-se em razões alegadamente “humanitárias”, mas as pressões constantes exercidas pela diplomacia britânica – e de modo direto pela Royal Navy – respondiam mais exatamente a razões comerciais de produtores coloniais e de mercadores metropolitanos da Grã-Bretanha. É também um fato que o aporte mínimo de imigrantes europeus, no início do século XIX, não seria capaz de fornecer os braços necessários à grande plantação de exportação, seja em açúcar, algodão ou, crescentemente no café. Como afirmou um grande especialista na questão, o historiador Robert Conrad, o número exato de escravos introduzidos no Brasil durante o período de mais de três séculos de tráfico jamais será conhecido, mas ele certamente foi muito grande, provavelmente superior a à cifra de 3,6 milhões de africanos no total (Tumbeiros, o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 34). Nesse período, o Brasil importou cerca de dois quintos dos escravos remetidos para as Américas entre 1451 e 1870. Só na primeira metade do século XIX, o volume importado entre 1800 e 1852, poderia ser estimado em em cerca de 1,6 milhão, sendo responsável, sozinho, por mais de 60% do total de escravos africanos expedidos para as Américas nesse período. 
Os acordos contraídos a respeito do tráfico entre Portugal e Inglaterra, em 1810 e no quadro do Congresso de Viena, já prometiam a interrupção do tráfico negreiro ao norte do Equador, o que implicava o comércio com a Costa da Mina, na África, tradicional rota para o escambo com os portos da Bahia. Em 1826, o Brasil independente firmou um tratado com a Inglaterra pelo qual se comprometia a cessar o tráfico num prazo de três anos: efetivamente, lei de 1830 proibiu a introdução de escravos no Brasil, mas grandes quantidades de escravos continuaram a ser desembarcados ilegalmente nas costas do Brasil. Estimativas britânicas colocam em cerca de 486 mil o número de escravos importados ilegalmente entre 1831 e 1855, cifra que o historiador da escravidão Leslie Bethell considera subestimada (The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trade question, 1807-1869Cambridge: Cambridge University Press, 1970, Appendix, “Estimates on slaves imported into Brazil, 1831-1855”, pp. 388-395). Trabalhando sobre as estatísticas disponíveis, Bethell especula com 500 mil escravos importados, e possivelmente mais, depois de 1830, e um número igualmente importante — talvez mesmo 750 mil — entre 1800 e 1830 (metade dos quais “ilegalmente”, isto é, da África ao norte do Equador a partir de 1815), após aproximadamente 3 milhões nos 300 anos precedentes.
A despeito de todos os compromissos solenemente firmados por Portugal, e depois pelo Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, a importação de escravos intensificou-se bastante nesse período e nas décadas seguintes. Nas primeiras três décadas do século, a média de importações anuais cresceu constantemente, passando de 24 mil entre 1801 a 1810, para 33 mil escravos entre 1811 e 1820, alcançando um máximo de 43 mil na década seguinte. Entre 1831 e 1840, provavelmente já refletindo a política de repressão britânica, a média cai para 33 mil escravos por ano, mas volta a crescer na última década antes da abolição do tráfico, para 38 mil importados anuais, com uma nítida intensificação do movimento em sua segunda metade (Cf. Herbert Klein, “Tráfico de escravos” in IBGE, Estatísticas Históricas do Brasil, séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1985. Rio de Janeiro: IBGE, 1987; Séries estatísticas retrospectivas, vol. 3, pp. 51-60, tabela 2.2, p. 58). De fato, na segunda metade dos anos 1840, o volume do tráfico aumenta ainda mais, em razão da expansão das culturas de exportação, sobretudo o café, mas também o açúcar e o algodão.
Segundo o historiador da diplomacia brasileira Carlos Delgado de Carvalho, a supressão do tráfico foi “um problema interno que se tornou internacional” (História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 105), ao passo que historiadores conservadores, como Hélio Vianna, por exemplo, estimavam que o conflito com a Inglaterra sobre essa questão só se deu porque ela, por processos arbitrários, pretendia obstar a continuidade da importação da mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola do Império. Os estadistas da época reconheciam a influência inglesa na supressão do tráfico, como afirmado pelo ministro dos Estrangeiros, Paulino Soares de Souza, quando da adoção da lei Eusébio de Queirós; discursando na Câmara dos Deputados, ele assentia que tinha sido “a pressão britânica que finalmente compelira o Brasil a terminar com o tráfico negreiro” (Alaôr Eduardo Scisínio, Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial, 1997, p. 176). A relutância do Brasil em abolir o tráfico de escravos induziu o Governo britânico a reforçar as medidas punitivas. O ministro do Exterior, Lord Aberdeen, fez o Parlamento aprovar, em agosto de 1845, uma lei equiparando os negreiros brasileiros a piratas, sendo, portanto, passíveis de julgamento no Alto Tribunal do Almirantado ou em qualquer tribunal dentro dos domínios de Sua Majestade Britânica. 
O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Limpo de Abreu, passou Nota, em 22 de outubro, protestando vigorosamente contra o ato do Parlamento, “evidentemente abusivo, injusto e atentatório dos direitos de soberania e independência da nação brasileira”. Nessa Nota, o Visconde de Abaeté deixava claro os motivos da recusa brasileira em negociar a abolição total do tráfico: “...a razão foi porque o Governo Imperial viu-se colocado na alternativa, ou de recusar-se, malgrado seu, a tais negociações ou de subscrever a completa ruína do comércio lícito de seus súditos, que aliás deve zelar e proteger”. A Nota representava, ironicamente, uma aula de direito internacional, e nela também se procurava fazer uma distinção entre tráfico de escravos e pirataria: “O tráfico não ameaça o comércio marítimo de todos os povos como a pirataria” (Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1846, p. 12). O protesto foi entregue ao enviado extraordinário e ministro plenipotenciário inglês no Rio de Janeiro e chegou às mãos do governo britânico em dezembro de 1845, mas nunca teve resposta. 
A despeito da repressão ainda mais severa que passou a se abater sobre os navios brasileiros demandando a África, aumentou significativamente a importação de escravos: a razão estava evidentemente nos altos lucros que o tráfico permitia. Os custos financeiros, políticos e diplomáticos do tráfico estavam, contudo, se tornando muito altos para o Brasil, mormente numa conjuntura de conflitos no Prata, em função dos quais o Governo imperial esperava obter suporte financeiro junto à praça londrina. Em setembro de 1850, efetivamente, o Parlamento aprovava a lei Eusébio de Queiroz, proibindo o comércio de escravos e introduzindo ao mesmo tempo dispositivos eficazes para sua repressão. A lei Aberdeen, contudo, foi revogada pelo Parlamento britânico apenas em 1869, numa conjuntura de conciliação de interesses entre os dois países, depois que a crise montante nas relações bilaterais, agravada pelo caráter arrogante do Ministro Christie, tinha conduzido, em princípios da década, à própria ruptura de relações diplomáticas. A escravidão, no entanto, persistiu, por três longas décadas. 

O lento e delongado processo abolicionista.
Nessa época, as pressões internas e internacionais para a abolição do regime de escravidão se fazem mais presentes, seja em virtude do triste cenário de destruições e de secessão que o problema tinha ocasionado nos Estados Unidos, seja porque a preservação dessa instituição afastava o Brasil do convívio com as nações civilizadas. De fato, a partir da segunda metade do século XIX, em especial depois que a França decretou a abolição total, em 1848, sem indenização, para suas colônias, restaram poucos países, nas Américas, nos quais tal instituto permanecesse legal; mesmo esses, à exceção da Espanha na sua colônia de Cuba, foram desfazendo-se rapidamente desse verdadeiro “cancro social”, como caracterizado em 1823 por José Bonifácio. 
Em 1864, quando Dom Pedro manifestou pela primeira vez sua vontade de encaminhar uma solução para a questão servil, além do Brasil apenas a Espanha mantinha a escravidão em algumas de suas colônias e, mesmo assim, já sofria uma onda de pressões internas no sentido de extingui-la. Este fato, sem dúvida, num momento em que o Império vivia seu ápice e se abria para o exterior como um parceiro da Europa, dava um certo travo de isolamento e de afastamento dos parâmetros reconhecidos pelo mundo civilizado. Sob o impacto das estradas de ferro, da navegação a vapor, do telégrafo e de outras inovações tecnológicas, havia cada vez mais um sentimento de modernidade e civilização, em contraposição ao atraso e barbárie, cuja extensão a todo planeta a ideologia de um novo colonialismo transformaria, em breve, na missão e no fardo do homem branco. (Ricardo Salles, Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, pp. 161-162)

No período final do regime da escravidão no Brasil, a demanda sempre crescente da agricultura cafeeira em expansão no Centro-Sul por cada vez mais braços seria atendida parcialmente pelo tráfico interno de escravos, a partir das províncias do Norte, e, crescentemente, pelo apelo à imigração estrangeira de colonos livres, numa combinação nem sempre bem-sucedida. Enquanto persistiu o instituto da escravidão, com efeito, todas as tentativas de introdução de trabalhadores da Europa ou da China não foram bem conduzidas, ou redundaram claramente em fracassos empresariais. A questão da servidão em si, no Brasil, continuava a interessar os grupos abolicionistas e humanitários europeus. 
Em 1866, por exemplo, a Junta Francesa de Emancipação, encaminha ao Imperador D. Pedro II correspondência assinada por membros ilustres da Academia Francesa na qual se mencionava a liberdade que vinha de ser concedida, após longa e mortífera guerra, a quatro milhões de escravos norte-americanos, para apelar em favor da supressão da escravidão no Brasil. Na resposta que o ministro da Justiça preparou em nome do Imperador, se afirmou que a emancipação dos escravos, “consequência necessária da abolição do tráfico, é somente uma questão de forma e oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país [referência à guerra contra o Paraguai] o consentirem, o Governo brasileiro considerará como objeto de primeira importância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado” (Cf. Heitor Lyra, História de Dom Pedro II, fastígio, 1870-1880. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1977, pp. 340-341). 
De fato, um projeto de lei sobre a liberdade dos nascituros e a emancipação completa chegou a ser enviado para apreciação do Conselho de Estado, mas a opinião dominante foi a de que não havia urgência, naquele momento, para uma solução ao problema, encaminhando-se a questão para depois de concluída a guerra. Um dos mais notáveis paradoxos da história da abolição no Brasil foi o fato de que os Liberais eram, teoricamente, abolicionistas, mas as leis que destruíram a escravidão foram todas obras dos Conservadores. Na verdade, como salienta o historiador João Camillo de Oliveira Torres, havia abolicionismo e escravagismo nos dois partidos, “em função de suas ligações pessoais, convicções íntimas e interesses eleitorais.” O fato é que desde a abolição do tráfico, em 1850, obra de um gabinete Conservador puro, todas as demais leis foram de iniciativa de Conservadores: Lei do Ventre Livre, em 1871, por José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco; Lei dos Sexagenários, em 1885, por Cotegipe (João Maurício Wanderley), a despeito deste ser um escravagista intransigente; finalmente abolição total, em 1888, por João Alfredo Correia de Oliveira, (Cf. Os Construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, pp. 178-180).
A extrema relutância da classe proprietária, que dominava a Assembleia, em avançar no quesito abolição estimulou a formação dos primeiros movimentos abolicionistas, no contexto dos quais se situa a ação de Joaquim Nabuco. A “lei do ventre livre”, promovida por Rio Branco em 1871, lhe pareceu uma indevida postergação da questão, motivando uma intensificação de seus esforços emancipacionistas. Em 1880, no Rio de Janeiro, ele inaugura com André Rebouças e vários outros abolicionistas, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a qual lançou manifesto dizendo ser o Brasil “uma grande senzala”. No Brasil, o debate se colocava essencialmente no plano ético e moral, mas os escravocratas não se cansavam de alertar para as consequências econômicas “catastróficas” que redundariam da libertação do que eles pudicamente chamavam de “elemento servil”. 
Em 1884, a Anti-Slavery Society quis marcar o cinquentenário da abolição da escravidão nas colônias inglesas, promovendo comemoração a que compareceu o próprio Príncipe de Gales, o futuro Eduardo VII. Este, lendo discurso preparado pelo secretário da associação, referiu-se em termos nada elogiosos ao Brasil: “enquanto as pequenas Repúblicas haviam posto termo à escravidão quando cessaram de pertencer à Espanha, só o Brasil conservava a maldição que herdou dos seus governadores portugueses. No momento atual possui o Brasil quase um milhão e meio de escravos nas suas vastas plantações, muitos dos quais levam uma vida pior do que as bestas de carga” (Cf. Renato Mendonça, Um diplomata na corte de Inglaterra: o Barão de Penedo e sua época. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, pp. 392-393).
Apesar de que, em manifesto de agosto de 1883 da Confederação Abolicionista, José do Patrocínio, Aristides Lobo e André Rebouças procurassem mostrar que o regime de trabalho escravo era prejudicial à economia do País, o próprio Joaquim Nabuco considerava que o abolicionismo no Brasil era, “antes de tudo um movimento político, para o qual sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade” (O Abolicionismo, Londres, 1883; São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, p. 18). Para os abolicionistas, abolir a escravidão no Brasil significava primordialmente livrá-lo dessa “mancha de Caim”, na expressão de Nabuco, desse ultraje e dessa humilhação em face da consciência internacional, em uma palavra, resgatar a dignidade da Nação perante a América e o mundo. Nabuco argumentava juridicamente, sobretudo em termos da ilegalidade da escravidão em face do moderno droit des gens, citando Bluntschli, para quem, no seu Droit International Codifié, o direito internacional “não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos”. Ainda segundo o publicista suíço, “o comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma” e os “estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que os encontrem”. Mas ele também procurava avançar argumentos que tocassem no interesse direto dos proprietários e que chamassem a atenção dos estadistas. Assim, após abordar os fundamentos legais do abolicionismo, ele concluía:
Queremos acabar com a escravidão por esse motivos seguramente, e mais pelos seguintes:
1. Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes...
2. Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem... (O abolicionismo, op. cit., p. 100)

Nabuco estava provavelmente pensando na Argentina, que nessa época começava seu surto de progresso econômico e social, muito embora a comparação relevante devesse ser feita mais apropriadamente com a grande nação norte-americana, que passava a receber levas enormes de imigrantes europeus, em proporções jamais vistas em qualquer outra experiência histórica de transmigrações humanas voluntárias. Em face da concorrência, a política da força-de-trabalho promovida pelos estadistas brasileiros deveria operar rapidamente uma passagem da escravidão para a imigração. Essa mudança, no entanto, foi, mais uma vez, muito tímida e delongada, com o que o instituto da escravidão, essa “mancha de Caim” de que falava Nabuco, parecia ser inseparável da própria existência da monarquia no Brasil. Aliás, a Lei de Terras aprovada anos antes, em 1850, era feita expressamente para impedir o acesso a terras livres por agricultores estrangeiros, em oposição total ao Homestead Act, que seria aprovado por Lincoln, em plena guerra civil, para facilitar a posse de terras trabalhadas por cinco anos.
Nabuco certamente distinguiu-se entre os liberais radicais que desejavam a libertação dos escravos e o progresso social, pela distribuição de terras e pela extensão da educação a todos os filhos da nação, mas sua relevância foi bem mais intelectual do que prática. Ele tinha intenção de apresentar à Câmara um projeto de lei que previa a abolição total da escravidão no Brasil em 1º. de janeiro de 1890, mas não esperava que fosse aprovado, em vista da força da opinião escravista, tanto no partido Liberal quanto no Conservador. O projeto apresentado por ele ao Parlamento, em agosto de 1880, era moderado, na medida em que previa não apenas um período de dez anos antes da emancipação total dos escravos, como também oferecia indenização aos donos, como a Grã-Bretanha havia feito meio século antes em suas colônias, fato lembrado por Nabuco. Mesmo assim, o projeto não avançou no Parlamento. 
Na verdade, os argumentos abolicionistas encontravam pouco eco na Assembleia porque os proprietários relutavam em se desfazer de uma mão-de-obra essencial, na ausência de uma clara política pública no sentido de lhes fornecer os substitutos eventuais, trabalhadores europeus, mas desprovidos de qualquer projeto ou possibilidade de se instalarem por conta própria em terras devolutas. Por outro lado, os abolicionistas eram, em grande medida românticos sonhadores, sem real contato com o objeto de sua atenção política, como revelou um dos maiores africanistas brasileiros, o embaixador Alberto da Costa e Silva: 
A impressão é que nossos grandes abolicionistas, excetuado José Bonifácio, nunca conversaram com os escravos para saber como era a África. Na obra de Castro Alves, sua África é literária, herdeira do orientalismo francês, com desertos, tendas, areais sem árvores, o inverso da África de onde vieram aqueles trazidos para o Brasil. Esta era verde, igual à natureza do Brasil. Castro Alves foi talvez o mais generoso dos poetas brasileiros, sensualmente visual, um autor que marcou o abolicionismo e a nossa imagem do poeta romântico. Mas, para os abolicionistas, era como se os africanos tivessem sido concebidos no navio que os trouxe para o Brasil, sem raízes mais profundas. (“África, e tudo mais”, entrevista de Alberto da Costa e Silva a Rachel Bertol, Valor Econômico; caderno Eu&Fim de Semana, 16/09/2011) 

Finalmente, a Princesa Imperial, D. Isabel, na sua condição de Regente, em sua “fala do trono” em 3 de maio de 1888, reconhecia que o Brasil precisava desfazer-se da “infeliz herança [da escravidão], que as necessidades da lavoura haviam mantido” e convidava os parlamentares a “apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal de nossas instituições” (Cf. Brasil, Imperador. Falas do trono: desde o ano de 1823 até o ano de 1889, acompanhados dos respectivos votos de graça. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 504). Dez dias depois, ela promulgava a lei de abolição da escravidão. Um ano e meio mais tarde, por meio de um golpe militar sustentado ativamente por republicanos e abolicionistas, era abolida a própria monarquia. Mesmo depois da abolição, pelo decreto imperial de 13 de maio de 1888, as propostas feitas por Nabuco desde 1883, no seu famoso livro, para que a emancipação dos escravos fosse acompanhada de um grande programa de reforma agrária e da universalização da educação pública, compulsória e gratuita, com vistas à elevação do padrão educacional de milhões de brasileiros pobres, e não apenas dos negros libertos, jamais foram seriamente consideradas pela República oligárquica que se seguiu logo depois. 

Um País Notável Pela Ausência de Qualquer Sentido de Política de Capital Humano.
O Brasil republicano, desde o início, e provavelmente até hoje, continua a pagar muito caro pela ausência de medidas desse tipo, para elevar a capacidade produtiva do seu povo. A reforma agrária, na verdade, se tornou inócua pela modernização capitalista da economia rural, mas no campo da educação continuamos a exibir atrasos, se não quantitativamente (a taxa de escolarização, no início do primário, alcançou, por fim, a dos países avançados, mas 150 anos depois), certamente em qualidade do ensino. O Brasil, na frase imortal de Roberto Campos, é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades: o caso da não modernização do capital humano, pela delonga registrada nos processos de abolição do tráfico e da escravidão, e pela ausência de uma estrutura consistente de educação de massas, constitui, provavelmente, a mais relevante lacuna de toda a sua trajetória em dois séculos de construção, deficiente, da nação. 
Não há dúvida de que a responsabilidade por essas falhas pavorosas no itinerário da sociedade nacional incumbe às elites do país, não apenas às elites proprietárias, economicamente dominantes, mas um pouco a todas as elites que comandaram politicamente aos destinos da nação nesses quase duzentos anos de Estado independente. Uma dessas falhas mais impactantes para o desenvolvimento passado e atual da nação, nos 132 anos decorridos desde a Abolição, foi a incapacidade das elites e da sociedade como um todo de lidar com as consequência de mais de três séculos e meio de escravidão negra – antes indígena, depois predominantemente africana, ademais da persistência daquelas práticas laborais que a Anti-Slavery Society chama de formas análogas à escravidão, ainda hoje – e seus reflexos sociais bem visíveis em nossos dias. Esse legado persiste atualmente, como revelado na trilogia do historiador Laurentino Gomes sobre o nefando regime.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de maio de 2020