O presente ensaio tem o objetivo principal de argumentar que a eterna relutância do Brasil em abolir o tráfico e, depois, a escravidão, constitui um dos mais poderosos fatores que podem explicar, ainda hoje, a persistente dificuldade do país em elevar os padrões e o próprio ritmo de um processo sustentado de crescimento econômico, com destaque para a área da produtividade do capital humano. Essa delonga na adoção de reformas sociais também está na raiz do grau anormalmente elevado das desigualdades sociais e da distribuição de renda, que estão vinculadas, por sua vez, à ausência de reforma agrária, ainda no século XIX, e em especial a completa ausência de uma política de educação de massa, uma deficiência permanente, praticamente desde antes da independência, que atravessa toda a fase monárquica e que se prolonga por boa parte do regime republicano. O tráfico negreiro e a escravidão foram formalmente abolidos em 1850 e em 1888, respectivamente, mas seus efeitos delongados na estrutura econômica e no tecido social nunca foram efetivamente superados em toda a trajetória da nação independente. A ausência de políticas consistentes nos terrenos da propriedade fundiária e da educação de massas é responsável, por sua vez, pelos baixos níveis de renda per capita, pela persistência da pobreza, assim como da enorme concentração de renda.
A escravidão na História Humana e o Comércio de Escravos.
A escravidão é uma das mais antigas instituições humanas, que ocupou, quase certamente,
nove décimos da história das sociedades estruturadas, ou seja, comunidades agrícolas primitivas, nações já fundadas numa divisão mais sofisticada do trabalho ou até Estados organizados. Ela coexistiu, marginalmente ou até estruturalmente, com as mais diversas formações sociais ao redor do mundo, desde a mais remota antiguidade, até já iniciada a era contemporânea, quando ela, finalmente, teve de ceder terreno às novas doutrinas de direitos humanos que derivam do pensamento iluminista dos séculos XVII e XVIII. O trabalho escravo, como uma das formas primárias de energia, nada mais é do que a substituição do esforço próprio pelo trabalho de outrem, submetido pelo uso de uma força superior, geralmente baseado na supremacia das armas.
As sociedades da antiguidade, inclusive grandes impérios, tinham o instituto da escravidão como algo natural, necessário, em si mesmo, ou como simples mercadoria, ou seja, o comércio de seres humanos. Não se tratava, então, de um problema moral, ainda que pensadores e filósofos da antiguidade tenham esboçado um discurso em defesa da dignidade do ser humano, seja nas sociedades asiáticas, seja na vertente, mais próxima de nossas próprias sociedades, do cristianismo, baseado na fraternidade humana e na igualdade moral do ser humano. Independente da filosofia abramânica, que sustenta as três principais religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), e do humanismo implícito à ética judaica, o escravismo foi mais ou menos tolerado por todas essas religiões ao longo da história, o que explica que o escravismo tenha subsistido e convivido com os mais diversos tipos de sociedades, organizações políticas e formações econômicas, mesmo nas formas atenuadas da servidão de gleba, – como sob o feudalismo europeu ou servidão russa, por exemplo – ou da escravidão por dívidas, geralmente temporária, e que existiu desde a Grécia antiga até a moderna América do Norte.
A escravidão começa a ser contestada, negada, combatida, na prática, quando os avanços
civilizatórios pós-renascentistas passam a admitir a igualdade básica do ser humano, mesmo se o novo contexto filosófico que emergiu a partir dos Descobrimentos, na primeira globalização (séculos XIV a XVI), também deu espaço, ao lado das doutrinas humanistas, ao racismo científico, com Gobineau e outros, até renascer, em pleno século XX, na horrível ideologia nazista, que admitia abertamente pretender reduzir os eslavos – aliás, a origem filológica da palavra escravo – à escravidão pura e simples. Numa outra vertente, supostamente igualitária e humanista, a do socialismo de extração marxista, ou mais exatamente leninista, a imposição do comunismo, como forma de organização da nova sociedade soviética, se fez praticamente às custas de uma versão disfarçada, mas também horrenda, de escravismo, ao submeter populações inteiras ao poder absoluto do novo Estado totalitário.
O tráfico de seres humanos já era uma atividade rendosa no Império romano, e depois se converteu num comércio altamente lucrativo de mercadores árabes, já islâmicos, ao longo de séculos, praticamente desde o início até meados do século XX. Não se pode olvidar, por exemplo, que a escravidão subsistiu legalmente na Arábia Saudita até o início dos anos 1960, e que só foi abolida (mas apenas formalmente) na Mauritânia em meados da década seguinte (persistindo ainda, sob diversas formas, no interior do país, quiçá em Estados circunvizinhos). O grande empreendimento comercial da escravidão moderna atravessa todo o período do mercantilismo, quando empresas e empresários individuais organizam um tráfico regular, sistemático, intenso, entre a África – que foi a grande provedora de mão-de-obra servil desde a antiguidade – e as economias do Novo Mundo, que se organizavam em culturas comerciais de exportação e de extração de outros recursos naturais e minerais. Durante cinco séculos a África abasteceu, em mais de dez milhões de unidades, a gigantesca demanda de trabalho humano criada pela implantação dos europeus no hemisfério americano. E aqui entra o Brasil.
O Brasil: Relutante em Extinguir o Tráfico.
Quatro quintos da história brasileira, desde a colonização até quase o final do Império, se
desenvolveram sob o trabalho servil, primeiramente na tentativa de utilização do elemento humano de origem indígena, depois, sobretudo e basicamente, de aportes a partir das populações africanas de diversas partes do continente, mesmo se os paulistas, mais pobres, em períodos anteriores ao da cafeicultura, ainda recorriam à captura e submissão de indígenas: não por acaso, o tupi-guarani era extensamente usado como língua franca nos territórios abertos pelos bandeirantes saídos dessa região. Não é preciso recorrer aos trabalhos de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Holanda, e de outros historiadores e cronistas da sociedade colonial brasileira para constatar como o trabalho escravo foi mais do que a argamassa e os tijolos que construíram a nação; o escravismo foi a pedra fundamental da existência da sociedade colonial e da própria emergência do Brasil independente, cuja economia continuou, em grande medida, a funcionar nas mesmas bases do antigo sistema colonial: a grande propriedade, as culturas comerciais de exportação, os empreendimentos mineiros, o trabalho doméstico, o transporte e até a satisfação sexual dos senhores da terra, do comércio e das atividades urbanas. Mesmo escravos em princípio “libertos” pelas incursões da Royal Navy contra navios negreiros nas costas do Atlântico Sul continuaram a servir ao próprio Estado, nas repartições do governo, alegadamente numa condição “temporária”.
A despeito de alguns poucos “humanistas precoces” na sociedade colonial, – entre eles Antônio Vieira e poucos outros –, apesar do esforço de estadistas esclarecidos como Hipólito da Costa e José Bonifácio, para extinguir, pelo menos, o tráfico no momento da independência, como forma de substituir gradualmente a escravidão, por meio da importação de trabalhadores agrícolas da Europa, o instituto da escravidão foi não só mantido como constitucionalizado na emergência do novo Estado. Isto confirmou o enorme poder econômico e político dos grandes traficantes e dos proprietários de terras e de negócios sobre as alavancas materiais e institucionais de uma nação que se formava no contexto do crescente movimento abolicionista disseminado a partir das novas ideias em ascensão na Europa. O século XVIII assistiu à formação de um pensamento abolicionista consequente e afirmativo, e, independentemente de suas origens religiosas ou filosóficas, ele deu origem, pouco mais tarde, à criação da Anti-Slavery Society, em 1823. Antes mesmo que essa sociedade – aliás na sua versão exclusivamente dedicada à abolição no Império Britânico, o que ocorreu por ato legal de 1833, tendo sido sucedida, em 1839, pela British and Foreign Anti-Slavery Society – fosse conhecida pelo seu ativismo abolicionista, as potências reunidas no Congresso de Viena, em 1815, começaram a pressionar os principais países escravagistas para que fosse abolido o tráfico ao norte do Equador, o que terminou por comprometer Portugal nessa demanda britânica. Tendo abolido o comércio de escravos por ato do Parlamento em 1807, a Grã-Bretanha começou logo após uma campanha militante em favor da extinção geral do tráfico, pressionando os países que detinham participação significativa nesse tipo de comércio internacional.
Desde os acordos desiguais de 1810, Portugal se encontrava sob forte pressão inglesa para
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abolir o tráfico: em Viena, a delegação portuguesa teve de comprometer-se com uma prometida abolição do tráfico ao norte do Equador, apenas para contar com certa tolerância, ou vista grossa britânica, em relação ao tráfico no Atlântico sul. O negócio era simplesmente muito lucrativo para que os comerciantes privados, ou a própria Coroa consentissem em sua extinção, uma vez que a taxação das “peças da África” era uma das grandes receitas das Alfândegas. Ele também era a base de grandes fortunas no próprio Brasil, como demonstrado pelo historiador Manolo Florentino: “... para cada carregamento de escravos que chega ao Brasil, vários outros, com produtos tradicionais e mesmo manufaturados europeus, tinham de ser mandados em direção à África como pagamento” (Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 218).
É um fato que os argumentos abolicionistas que então começam a ser esgrimidos em conferências internacionais fundavam-se em razões alegadamente “humanitárias”, mas as pressões constantes exercidas pela diplomacia britânica – e de modo direto pela Royal Navy – respondiam mais exatamente a razões comerciais de produtores coloniais e de mercadores metropolitanos da Grã-Bretanha. É também um fato que o aporte mínimo de imigrantes europeus, no início do século XIX, não seria capaz de fornecer os braços necessários à grande plantação de exportação, seja em açúcar, algodão ou, crescentemente no café. Como afirmou um grande especialista na questão, o historiador Robert Conrad, o número exato de escravos introduzidos no Brasil durante o período de mais de três séculos de tráfico jamais será conhecido, mas ele certamente foi muito grande, provavelmente superior a à cifra de 3,6 milhões de africanos no total (Tumbeiros, o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 34). Nesse período, o Brasil importou cerca de dois quintos dos escravos remetidos para as Américas entre 1451 e 1870. Só na primeira metade do século XIX, o volume importado entre 1800 e 1852, poderia ser estimado em em cerca de 1,6 milhão, sendo responsável, sozinho, por mais de 60% do total de escravos africanos expedidos para as Américas nesse período.
Os acordos contraídos a respeito do tráfico entre Portugal e Inglaterra, em 1810 e no quadro do Congresso de Viena, já prometiam a interrupção do tráfico negreiro ao norte do Equador, o que implicava o comércio com a Costa da Mina, na África, tradicional rota para o escambo com os portos da Bahia. Em 1826, o Brasil independente firmou um tratado com a Inglaterra pelo qual se comprometia a cessar o tráfico num prazo de três anos: efetivamente, lei de 1830 proibiu a introdução de escravos no Brasil, mas grandes quantidades de escravos continuaram a ser desembarcados ilegalmente nas costas do Brasil. Estimativas britânicas colocam em cerca de 486 mil o número de escravos importados ilegalmente entre 1831 e 1855, cifra que o historiador da escravidão Leslie Bethell considera subestimada (The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trade question, 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, Appendix, “Estimates on slaves imported into Brazil, 1831-1855”, pp. 388-395). Trabalhando sobre as estatísticas disponíveis, Bethell especula com 500 mil escravos importados, e possivelmente mais, depois de 1830, e um número igualmente importante — talvez mesmo 750 mil — entre 1800 e 1830 (metade dos quais “ilegalmente”, isto é, da África ao norte do Equador a partir de 1815), após aproximadamente 3 milhões nos 300 anos precedentes.
A despeito de todos os compromissos solenemente firmados por Portugal, e depois pelo Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, a importação de escravos intensificou-se bastante nesse período e nas décadas seguintes. Nas primeiras três décadas do século, a média de importações anuais cresceu constantemente, passando de 24 mil entre 1801 a 1810, para 33 mil escravos entre 1811 e 1820, alcançando um máximo de 43 mil na década seguinte. Entre 1831 e 1840, provavelmente já refletindo a política de repressão britânica, a média cai para 33 mil escravos por ano, mas volta a crescer na última década antes da abolição do tráfico, para 38 mil importados anuais, com uma nítida intensificação do movimento em sua segunda metade (Cf. Herbert Klein, “Tráfico de escravos” in IBGE, Estatísticas Históricas do Brasil, séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1985. Rio de Janeiro: IBGE, 1987; Séries estatísticas retrospectivas, vol. 3, pp. 51-60, tabela 2.2, p. 58). De fato, na segunda metade dos anos 1840, o volume do tráfico aumenta ainda mais, em razão da expansão das culturas de exportação, sobretudo o café, mas também o açúcar e o algodão.
Segundo o historiador da diplomacia brasileira Carlos Delgado de Carvalho, a supressão do tráfico foi “um problema interno que se tornou internacional” (História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 105), ao passo que historiadores conservadores, como Hélio Vianna, por exemplo, estimavam que o conflito com a Inglaterra sobre essa questão só se deu porque ela, por processos arbitrários, pretendia obstar a continuidade da importação da mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola do Império. Os estadistas da época reconheciam a influência inglesa na supressão do tráfico, como afirmado pelo ministro dos Estrangeiros, Paulino Soares de Souza, quando da adoção da lei Eusébio de Queirós; discursando na Câmara dos Deputados, ele assentia que tinha sido “a pressão britânica que finalmente compelira o Brasil a terminar com o tráfico negreiro” (Alaôr Eduardo Scisínio, Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial, 1997, p. 176). A relutância do Brasil em abolir o tráfico de escravos induziu o Governo britânico a reforçar as medidas punitivas. O ministro do Exterior, Lord Aberdeen, fez o Parlamento aprovar, em agosto de 1845, uma lei equiparando os negreiros brasileiros a piratas, sendo, portanto, passíveis de julgamento no Alto Tribunal do Almirantado ou em qualquer tribunal dentro dos domínios de Sua Majestade Britânica.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Limpo de Abreu, passou Nota, em 22 de outubro, protestando vigorosamente contra o ato do Parlamento, “evidentemente abusivo, injusto e atentatório dos direitos de soberania e independência da nação brasileira”. Nessa Nota, o Visconde de Abaeté deixava claro os motivos da recusa brasileira em negociar a abolição total do tráfico: “...a razão foi porque o Governo Imperial viu-se colocado na alternativa, ou de recusar-se, malgrado seu, a tais negociações ou de subscrever a completa ruína do comércio lícito de seus súditos, que aliás deve zelar e proteger”. A Nota representava, ironicamente, uma aula de direito internacional, e nela também se procurava fazer uma distinção entre tráfico de escravos e pirataria: “O tráfico não ameaça o comércio marítimo de todos os povos como a pirataria” (Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1846, p. 12). O protesto foi entregue ao enviado extraordinário e ministro plenipotenciário inglês no Rio de Janeiro e chegou às mãos do governo britânico em dezembro de 1845, mas nunca teve resposta.
A despeito da repressão ainda mais severa que passou a se abater sobre os navios brasileiros demandando a África, aumentou significativamente a importação de escravos: a razão estava evidentemente nos altos lucros que o tráfico permitia. Os custos financeiros, políticos e diplomáticos do tráfico estavam, contudo, se tornando muito altos para o Brasil, mormente numa conjuntura de conflitos no Prata, em função dos quais o Governo imperial esperava obter suporte financeiro junto à praça londrina. Em setembro de 1850, efetivamente, o Parlamento aprovava a lei Eusébio de Queiroz, proibindo o comércio de escravos e introduzindo ao mesmo tempo dispositivos eficazes para sua repressão. A lei Aberdeen, contudo, foi revogada pelo Parlamento britânico apenas em 1869, numa conjuntura de conciliação de interesses entre os dois países, depois que a crise montante nas relações bilaterais, agravada pelo caráter arrogante do Ministro Christie, tinha conduzido, em princípios da década, à própria ruptura de relações diplomáticas. A escravidão, no entanto, persistiu, por três longas décadas.
O lento e delongado processo abolicionista.
Nessa época, as pressões internas e internacionais para a abolição do regime de escravidão se fazem mais presentes, seja em virtude do triste cenário de destruições e de secessão que o problema tinha ocasionado nos Estados Unidos, seja porque a preservação dessa instituição afastava o Brasil do convívio com as nações civilizadas. De fato, a partir da segunda metade do século XIX, em especial depois que a França decretou a abolição total, em 1848, sem indenização, para suas colônias, restaram poucos países, nas Américas, nos quais tal instituto permanecesse legal; mesmo esses, à exceção da Espanha na sua colônia de Cuba, foram desfazendo-se rapidamente desse verdadeiro “cancro social”, como caracterizado em 1823 por José Bonifácio.
Em 1864, quando Dom Pedro manifestou pela primeira vez sua vontade de encaminhar uma solução para a questão servil, além do Brasil apenas a Espanha mantinha a escravidão em algumas de suas colônias e, mesmo assim, já sofria uma onda de pressões internas no sentido de extingui-la. Este fato, sem dúvida, num momento em que o Império vivia seu ápice e se abria para o exterior como um parceiro da Europa, dava um certo travo de isolamento e de afastamento dos parâmetros reconhecidos pelo mundo civilizado. Sob o impacto das estradas de ferro, da navegação a vapor, do telégrafo e de outras inovações tecnológicas, havia cada vez mais um sentimento de modernidade e civilização, em contraposição ao atraso e barbárie, cuja extensão a todo planeta a ideologia de um novo colonialismo transformaria, em breve, na missão e no fardo do homem branco. (Ricardo Salles, Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, pp. 161-162)
No período final do regime da escravidão no Brasil, a demanda sempre crescente da agricultura cafeeira em expansão no Centro-Sul por cada vez mais braços seria atendida parcialmente pelo tráfico interno de escravos, a partir das províncias do Norte, e, crescentemente, pelo apelo à imigração estrangeira de colonos livres, numa combinação nem sempre bem-sucedida. Enquanto persistiu o instituto da escravidão, com efeito, todas as tentativas de introdução de trabalhadores da Europa ou da China não foram bem conduzidas, ou redundaram claramente em fracassos empresariais. A questão da servidão em si, no Brasil, continuava a interessar os grupos abolicionistas e humanitários europeus.
Em 1866, por exemplo, a Junta Francesa de Emancipação, encaminha ao Imperador D. Pedro II correspondência assinada por membros ilustres da Academia Francesa na qual se mencionava a liberdade que vinha de ser concedida, após longa e mortífera guerra, a quatro milhões de escravos norte-americanos, para apelar em favor da supressão da escravidão no Brasil. Na resposta que o ministro da Justiça preparou em nome do Imperador, se afirmou que a emancipação dos escravos, “consequência necessária da abolição do tráfico, é somente uma questão de forma e oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país [referência à guerra contra o Paraguai] o consentirem, o Governo brasileiro considerará como objeto de primeira importância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado” (Cf. Heitor Lyra, História de Dom Pedro II, fastígio, 1870-1880. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1977, pp. 340-341).
De fato, um projeto de lei sobre a liberdade dos nascituros e a emancipação completa chegou a ser enviado para apreciação do Conselho de Estado, mas a opinião dominante foi a de que não havia urgência, naquele momento, para uma solução ao problema, encaminhando-se a questão para depois de concluída a guerra. Um dos mais notáveis paradoxos da história da abolição no Brasil foi o fato de que os Liberais eram, teoricamente, abolicionistas, mas as leis que destruíram a escravidão foram todas obras dos Conservadores. Na verdade, como salienta o historiador João Camillo de Oliveira Torres, havia abolicionismo e escravagismo nos dois partidos, “em função de suas ligações pessoais, convicções íntimas e interesses eleitorais.” O fato é que desde a abolição do tráfico, em 1850, obra de um gabinete Conservador puro, todas as demais leis foram de iniciativa de Conservadores: Lei do Ventre Livre, em 1871, por José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco; Lei dos Sexagenários, em 1885, por Cotegipe (João Maurício Wanderley), a despeito deste ser um escravagista intransigente; finalmente abolição total, em 1888, por João Alfredo Correia de Oliveira, (Cf. Os Construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, pp. 178-180).
A extrema relutância da classe proprietária, que dominava a Assembleia, em avançar no quesito abolição estimulou a formação dos primeiros movimentos abolicionistas, no contexto dos quais se situa a ação de Joaquim Nabuco. A “lei do ventre livre”, promovida por Rio Branco em 1871, lhe pareceu uma indevida postergação da questão, motivando uma intensificação de seus esforços emancipacionistas. Em 1880, no Rio de Janeiro, ele inaugura com André Rebouças e vários outros abolicionistas, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a qual lançou manifesto dizendo ser o Brasil “uma grande senzala”. No Brasil, o debate se colocava essencialmente no plano ético e moral, mas os escravocratas não se cansavam de alertar para as consequências econômicas “catastróficas” que redundariam da libertação do que eles pudicamente chamavam de “elemento servil”.
Em 1884, a Anti-Slavery Society quis marcar o cinquentenário da abolição da escravidão nas colônias inglesas, promovendo comemoração a que compareceu o próprio Príncipe de Gales, o futuro Eduardo VII. Este, lendo discurso preparado pelo secretário da associação, referiu-se em termos nada elogiosos ao Brasil: “enquanto as pequenas Repúblicas haviam posto termo à escravidão quando cessaram de pertencer à Espanha, só o Brasil conservava a maldição que herdou dos seus governadores portugueses. No momento atual possui o Brasil quase um milhão e meio de escravos nas suas vastas plantações, muitos dos quais levam uma vida pior do que as bestas de carga” (Cf. Renato Mendonça, Um diplomata na corte de Inglaterra: o Barão de Penedo e sua época. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, pp. 392-393).
Apesar de que, em manifesto de agosto de 1883 da Confederação Abolicionista, José do Patrocínio, Aristides Lobo e André Rebouças procurassem mostrar que o regime de trabalho escravo era prejudicial à economia do País, o próprio Joaquim Nabuco considerava que o abolicionismo no Brasil era, “antes de tudo um movimento político, para o qual sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade” (O Abolicionismo, Londres, 1883; São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, p. 18). Para os abolicionistas, abolir a escravidão no Brasil significava primordialmente livrá-lo dessa “mancha de Caim”, na expressão de Nabuco, desse ultraje e dessa humilhação em face da consciência internacional, em uma palavra, resgatar a dignidade da Nação perante a América e o mundo. Nabuco argumentava juridicamente, sobretudo em termos da ilegalidade da escravidão em face do moderno droit des gens, citando Bluntschli, para quem, no seu Droit International Codifié, o direito internacional “não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos”. Ainda segundo o publicista suíço, “o comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma” e os “estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que os encontrem”. Mas ele também procurava avançar argumentos que tocassem no interesse direto dos proprietários e que chamassem a atenção dos estadistas. Assim, após abordar os fundamentos legais do abolicionismo, ele concluía:
Queremos acabar com a escravidão por esse motivos seguramente, e mais pelos seguintes:
1. Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes...
2. Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem... (O abolicionismo, op. cit., p. 100)
Nabuco estava provavelmente pensando na Argentina, que nessa época começava seu surto de progresso econômico e social, muito embora a comparação relevante devesse ser feita mais apropriadamente com a grande nação norte-americana, que passava a receber levas enormes de imigrantes europeus, em proporções jamais vistas em qualquer outra experiência histórica de transmigrações humanas voluntárias. Em face da concorrência, a política da força-de-trabalho promovida pelos estadistas brasileiros deveria operar rapidamente uma passagem da escravidão para a imigração. Essa mudança, no entanto, foi, mais uma vez, muito tímida e delongada, com o que o instituto da escravidão, essa “mancha de Caim” de que falava Nabuco, parecia ser inseparável da própria existência da monarquia no Brasil. Aliás, a Lei de Terras aprovada anos antes, em 1850, era feita expressamente para impedir o acesso a terras livres por agricultores estrangeiros, em oposição total ao Homestead Act, que seria aprovado por Lincoln, em plena guerra civil, para facilitar a posse de terras trabalhadas por cinco anos.
Nabuco certamente distinguiu-se entre os liberais radicais que desejavam a libertação dos escravos e o progresso social, pela distribuição de terras e pela extensão da educação a todos os filhos da nação, mas sua relevância foi bem mais intelectual do que prática. Ele tinha intenção de apresentar à Câmara um projeto de lei que previa a abolição total da escravidão no Brasil em 1º. de janeiro de 1890, mas não esperava que fosse aprovado, em vista da força da opinião escravista, tanto no partido Liberal quanto no Conservador. O projeto apresentado por ele ao Parlamento, em agosto de 1880, era moderado, na medida em que previa não apenas um período de dez anos antes da emancipação total dos escravos, como também oferecia indenização aos donos, como a Grã-Bretanha havia feito meio século antes em suas colônias, fato lembrado por Nabuco. Mesmo assim, o projeto não avançou no Parlamento.
Na verdade, os argumentos abolicionistas encontravam pouco eco na Assembleia porque os proprietários relutavam em se desfazer de uma mão-de-obra essencial, na ausência de uma clara política pública no sentido de lhes fornecer os substitutos eventuais, trabalhadores europeus, mas desprovidos de qualquer projeto ou possibilidade de se instalarem por conta própria em terras devolutas. Por outro lado, os abolicionistas eram, em grande medida românticos sonhadores, sem real contato com o objeto de sua atenção política, como revelou um dos maiores africanistas brasileiros, o embaixador Alberto da Costa e Silva:
A impressão é que nossos grandes abolicionistas, excetuado José Bonifácio, nunca conversaram com os escravos para saber como era a África. Na obra de Castro Alves, sua África é literária, herdeira do orientalismo francês, com desertos, tendas, areais sem árvores, o inverso da África de onde vieram aqueles trazidos para o Brasil. Esta era verde, igual à natureza do Brasil. Castro Alves foi talvez o mais generoso dos poetas brasileiros, sensualmente visual, um autor que marcou o abolicionismo e a nossa imagem do poeta romântico. Mas, para os abolicionistas, era como se os africanos tivessem sido concebidos no navio que os trouxe para o Brasil, sem raízes mais profundas. (“África, e tudo mais”, entrevista de Alberto da Costa e Silva a Rachel Bertol, Valor Econômico; caderno Eu&Fim de Semana, 16/09/2011)
Finalmente, a Princesa Imperial, D. Isabel, na sua condição de Regente, em sua “fala do trono” em 3 de maio de 1888, reconhecia que o Brasil precisava desfazer-se da “infeliz herança [da escravidão], que as necessidades da lavoura haviam mantido” e convidava os parlamentares a “apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal de nossas instituições” (Cf. Brasil, Imperador. Falas do trono: desde o ano de 1823 até o ano de 1889, acompanhados dos respectivos votos de graça. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 504). Dez dias depois, ela promulgava a lei de abolição da escravidão. Um ano e meio mais tarde, por meio de um golpe militar sustentado ativamente por republicanos e abolicionistas, era abolida a própria monarquia. Mesmo depois da abolição, pelo decreto imperial de 13 de maio de 1888, as propostas feitas por Nabuco desde 1883, no seu famoso livro, para que a emancipação dos escravos fosse acompanhada de um grande programa de reforma agrária e da universalização da educação pública, compulsória e gratuita, com vistas à elevação do padrão educacional de milhões de brasileiros pobres, e não apenas dos negros libertos, jamais foram seriamente consideradas pela República oligárquica que se seguiu logo depois.
Um País Notável Pela Ausência de Qualquer Sentido de Política de Capital Humano.
O Brasil republicano, desde o início, e provavelmente até hoje, continua a pagar muito caro pela ausência de medidas desse tipo, para elevar a capacidade produtiva do seu povo. A reforma agrária, na verdade, se tornou inócua pela modernização capitalista da economia rural, mas no campo da educação continuamos a exibir atrasos, se não quantitativamente (a taxa de escolarização, no início do primário, alcançou, por fim, a dos países avançados, mas 150 anos depois), certamente em qualidade do ensino. O Brasil, na frase imortal de Roberto Campos, é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades: o caso da não modernização do capital humano, pela delonga registrada nos processos de abolição do tráfico e da escravidão, e pela ausência de uma estrutura consistente de educação de massas, constitui, provavelmente, a mais relevante lacuna de toda a sua trajetória em dois séculos de construção, deficiente, da nação.
Não há dúvida de que a responsabilidade por essas falhas pavorosas no itinerário da sociedade nacional incumbe às elites do país, não apenas às elites proprietárias, economicamente dominantes, mas um pouco a todas as elites que comandaram politicamente aos destinos da nação nesses quase duzentos anos de Estado independente. Uma dessas falhas mais impactantes para o desenvolvimento passado e atual da nação, nos 132 anos decorridos desde a Abolição, foi a incapacidade das elites e da sociedade como um todo de lidar com as consequência de mais de três séculos e meio de escravidão negra – antes indígena, depois predominantemente africana, ademais da persistência daquelas práticas laborais que a Anti-Slavery Society chama de formas análogas à escravidão, ainda hoje – e seus reflexos sociais bem visíveis em nossos dias. Esse legado persiste atualmente, como revelado na trilogia do historiador Laurentino Gomes sobre o nefando regime.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de maio de 2020