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domingo, 12 de junho de 2022

O acadêmico e o militante: resenha do livro de P.R. Almeida, Apogeu e Demolição da Política Externa, por Sergio Florencio

 O acadêmico e o militante

 


Resenha (parcial) do livro de Paulo Roberto de Almeida: 

Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira

Curitiba: Editora Appris, 2021.

Embaixador Sérgio Florêncio (12/06/2022)

 

O livro de Paulo Roberto de Almeida (PRA) é um percurso rico de dados e de reflexão sobre os territórios vizinhos da política externa e da diplomacia brasileira. É o denso depoimento de um diplomata de carreira que combina duas vocações raramente conciliáveis – o acadêmico e o militante. Geralmente situadas em terrenos opostos, quando as duas vocações se encontram, podem render bons frutos. É o caso de “Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira”. 

A primeira explicação para esse difícil, mas frutífero encontro entre os dois personagens - o acadêmico e o militante - reside, no caso de PRA, no confronto entre uma formação intelectual sólida e diversificada – sociologia, relações internacionais, economia, história - e uma indomável natureza contestatária. 

Outra explicação resulta da trajetória profissional do autor, com experiência em postos de relevância política, como Washington, e de peso econômico, como Genebra e ALADI. Seu trabalho com dois embaixadores de reconhecido valor – Rubens Barbosa e Rubens Ricúpero – certamente também teve influência positiva. Ao mesmo tempo que ambos reconheciam o conhecimento e a erudição acadêmica de PRA, tiveram generosidade suficiente para respeitar sua natureza indômita de polemista, numa instituição pautada pela disciplina e pela hierarquia. 

Mas o reconhecimento do valor de PRA, por parte de colegas e amigos, não impediu que fosse vítima de injustiça. Suas contundentes críticas aos desvios e excessos da diplomacia da era Lula-Dilma lhe valeram longo ostracismo que estacionou sua carreira por uma década e meia. Somente na gestão do Chanceler Aloysio Nunes, no governo Temer, o valor de PRA foi resgatado. Então, como Diretor do Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais – IPRI, teve desempenho exemplar e altamente dinâmico. Foram frequentes os seminários no Instituto, sempre com a participação de prestigiosos acadêmicos brasileiros, norte-americanos e europeus. Era o homem certo no lugar certo. 

Mas o iluminismo foi efêmero. Bolsonaro assumiu a Presidência da República e logo inaugurou a barbárie numa instituição de reconhecida excelência. Com o auxílio do chanceler Ernesto Araújo, passou a vigorar a inédita diplomacia do delírio, da submissão, do orgulho de ser pária internacional, como por ele próprio declarado em formatura de alunos do Instituto Rio Branco. O destino estava traçado. PRA foi afastado do IPRI e por um motivo tão ridículo que merece ser lembrado – autorizou a publicação, nos Cadernos de Política Exterior da FUNAG, de entrevistas de FHC, de Rubens Ricúpero e do próprio chanceler. 

Recordo aqui essas adversidades da trajetória profissional porque PRA soube sublimá-las de forma original e criativa. Recolheu-se à Biblioteca do Bolo de Noiva, onde escreveu vários livros, produziu artigos contundentes, mas fundamentados, contra a atual política externa. O acadêmico abraçava o militante. 

 

A contribuição da historiografia para entender o pensamento diplomático

O livro tem grande utilidade para o momento atual do Brasil. PRA relata e analisa a “grande marcha” da diplomacia e da política externa, com foco mais detido nas últimas décadas e na passagem do Apogeu (1990-2010) para a Demolição (2019 até hoje). Atenção maior é dada à transição de uma diplomacia profissional, prestigiada no mundo pela credibilidade (período FHC) e pela projeção (era Lula), para uma diplomacia personalista, inimiga do interesse nacional: Presidente e Chanceler determinam aquilo que precisa ser “destruído”, de forma a adequar o sólido patrimônio do passado aos ditames de um governo de extrema direita, isolado no mundo e orgulhoso de ser pária internacional.

Apesar de ter o foco voltado para as últimas décadas, o livro começa pela historiografia das relações internacionais do Brasil. Assim, cobre terrenos que ajudam o leitor a melhor visualizar a transição do Apogeu para a Demolição, tanto no plano substantivo (política externa), como no plano operacional-institucional (diplomacia). 

Nesse início do livro, o leitor fica familiarizado com a contribuição para a política externa de conhecidos historiadores, como Francisco Varhagen, Oliveira Lima, João Ribeiro e Pandiá Calógeras. Ao mesmo tempo, são relembrados os grandes livros de síntese da história das relações internacionais do Brasil: Hélio Vianna, Delgado de Carvalho, José Honório Rodrigues, Amado Cervo, Clodoaldo Bueno e Rubens Ricúpero.

O acadêmico não deixa de registrar o valor do pai da historiografia, Varnhagen, mas o militante não perde a oportunidade de, citando José Honório Rodrigues, revelar a sombra desse pai – “extremamente parcial, adulador dos mais poderosos”. 

 Em Oliveira Lima – o maior dos historiadores diplomatas – destaca duas avaliações centrais sobre a política externa do Império: (i) “A Grã-Bretanha nunca exerceu sobre o Brasil a espécie de protetorado que, sob o disfarce de aliança, há um século exerce sobre Portugal”; e (ii) Ao analisar as questões do Prata, reconheceu que “a política de intervenção nunca aproveitou ao Brasil”. Acrescenta ainda que essa política, desde a Cisplatina, foi antagonizada pelos argentinos. “A guerra do Paraguai foi uma consequência da política brasileira, de intervenção, combinada com o exclusivismo ofensivo do segundo Lopez”. Sobre Mauá, “talhado para ser o agente de nosso imperialismo” ressalta a política de “franca intervenção” e especula que “a política do patacão teria porventura evitado a chacina”. 

Pandiá Calógeras, Ministro da Agricultura, Fazenda e o primeiro civil Ministro da Guerra, considerava a política externa como “um prolongamento da política interna, da mesma forma que Clausewitz considerava a guerra como a política que se desdobra nos campos de batalha”, o que lhe valeu o epíteto, atribuído por Tristão de Athaíde, de “o Clausewitz da história diplomática”. 

Dentre os manuais didáticos de história diplomática, PRA lembra a contribuição de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, que desenvolvem os conceitos de “alinhamento” e de “nacional desenvolvimentismo”. Mas os destaques maiores se dirigem a José Honório Rodrigues e a Rubens Ricupero. Para o primeiro, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial, sempre foram a acumulação de poder e a manutenção do status quo. Sustenta ainda que “toda política externa é uma expressão do poder nacional, em confronto antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais”.

“A Diplomacia na Construção do Brasil”, livro seminal de Rubens Ricúpero, tem como motivação principal mostrar como a política externa era um fio inseparável da trama da história nacional. Para Ricúpero, nossa bibliografia os quase não falavam de política externa. Já as histórias diplomáticas continham o erro oposto: só tratavam de diplomacias, sem mencionar a política interna e a economia. Sobre isso, PRA escreve. “Ao produzir, portanto, sua versão da história da política externa, ele procurou mostrar como a diplomacia ajudou a dar forma à história e à identidade do Brasil”. Nessa linha, a diplomacia marcou profundamente cada uma das etapas definidoras de nossa história: abertura dos portos; independência; fim do tráfico de escravos; inserção no mundo (comércio, migrações, consolidação da unidade nacional – ameaçada pela instabilidade na região platina) ; modernização; industrialização; e desenvolvimento econômico. Essas marcas profundas na nossa história refletem a grande orientação “vocacional” da diplomacia brasileira: o trabalho de consolidação da independência e o reforço do processo de desenvolvimento econômico. 

 

As relações internacionais em perspectiva

 

(i)             A herança portuguesa: maldita na economia, bendita na diplomacia

O Estado brasileiro surgiu com a grave questão do reconhecimento do novo país, particularmente por parte da Grã-Bretanha, com a qual tínhamos pesados compromissos: o tratado de comércio de 1810; os empréstimos contraídos pela Coroa e assumidos pelo Brasil; e o problema do tráfico, o irritante nas relações, agravado pela prepotência britânica. A outra vertente de preocupação para a diplomacia imperial era o sempre precário equilíbrio no Prata. Era necessário sobretudo garantir a independência de Uruguai e Paraguai, ameaçados pelas pretensões argentinas de reconstruir o Vice-Reinado do Prata. A intervenção brasileira no Uruguai irritou Solano López e culminou na tragédia humana da Guerra do Paraguai, e no caos financeiro de sucessivos empréstimos externos.

A República nasce simpática aos EUA, entoando o refrão do Partido Republicano “Somos da América e queremos ser americanos”. (P.78) Mas a política externa ficou marcada pela falta de rumos, visível na sucessão de onze chanceleres em dez anos. Essa instabilidade da Velha República só foi estancada pelo Barão do Rio Branco, Chanceler durante dez anos, a quem coube a transição da velha hegemonia imperial britânica para a crescente ascendência da nova potência norte-americana. 

PRA conclui a breve referência ao Barão com interessante comparação com Oswaldo Aranha, que conseguiu “preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas ... numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas”. (P.80) 

 

(ii)           Vargas e o segundo maior chanceler da história. JK sem Plano Marshall. O saudosismo inerente à PEI.

A referência de PRA à era Vargas também começa com um justo tributo a seu grande chanceler. “Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução de outubro de 1930 ... e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos, que se mantiveram neutros - na verdade simpáticos aos nazifascistas – até quase o final da guerra.” (p. 80)Os tributos prestados por PRA ao Chanceler contrastam com sua visão ácida a respeito do presidente, “Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas ... para preservar-se no poder durante breves 15 anos, como ele mesmo mencionou”. (p. 80) 

Ao avaliar a República de 1946, PRA cita Hélio Jaguaribe, para quem praticávamos então uma política externa tradicional, por ele chamada de “ornamental “e que outros apelidavam de “punhos de renda”. “De fato, antes que os militares entrassem com seus punhos de aço ... os bacharéis da diplomacia brasileira conduziram ... um alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de aparente modernização.” (p. 81). 

Nesse período, que coincide com a criação da OEA, na Conferência de Interamericana de Bogotá, em 1948, com a ascensão da CEPAL, com a Operação Pan-Americana de JK, a grande aspiração do Brasil era “que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano Marshall para a América Latina”. (p.81) Na análise desse momento relevante de nossa história, PRA contrasta com muitos historiadores que lamentam e criticam a falta de visão e de solidariedade dos EUA em relação à América Latina e ao Brasil, ao negar vultosos recursos para o desenvolvimento da região.

 Em lugar dessa visão mais convencional de um antiamericanismo, o livro focaliza a ausência de reformas essenciais para habilitar a região a fazer uso produtivo de eventual ajuda externa. “Os EUA sempre responderam - aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá - que os países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar- se bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de terras.” (p. 81)

Essa manifestação do credo liberal de PRA fica clara ao enfatizar que o país “deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena nessa época”. “O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo.” (81) 

Ao analisar esse período de nossa história que vai de Vargas a 1964, PRA explicita sua visão de mundo liberal. Podemos ver isso com mais clareza ao contrastar o perfil que ele traça de dois personagens -chave de nossa história. Um Vargas – “como se sabe, era basicamente um hesitante” - e um Juscelino, arquiteto do “primeiro passo (do Brasil) no sentido de avançar na industrialização plena “. (p. 81). Assim, na visão liberal de PRA, o “primeiro passo” não consistiu na substituição de importações operada por Getúlio com seu keynesianismo anterior a Keynes CSN, mas sim com o take off de JK, com os capitais privados da indústria automobilística e outras. 

Estamos visualizando o PRA militante liberal. Esse perfil se consolida, no plano da diplomacia, em sua avaliação bastante cética da “política externa independente”, iniciada com Jânio Quadros e Afonso Arinos, continuada com Jango e Santiago Dantas, que “converteu-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente, como tendo sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. “As a avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão talvez ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda”. (p. 82) 

 

(III) Regime militar. Retrocesso na política doméstica. Avanço na economia, mas amplo estatismo. Política externa livre de interferências: o soldado valoriza o diplomata 

PRA avalia COM realismo e equilíbrio o regime militar, que reconhece como “período feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados pelo grande centralismo estatal e uma política de enorme aquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda hoje”. (p. 82)

Passado o triste, mas breve, interregno do alinhamento automático, com nossas tropas presentes na intervenção na República Dominicana, PRA assinala corretamente o padrão desenvolvimentista e terceiro-mundista da política externa do regime militar, em linha com teses reformistas da ordem internacional: tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento (PED’s), princípio da não-reciprocidade no comércio internacional e maior acesso a mercados, por parte das economias em processo de industrialização. 

Entretanto, essas virtudes precisam ser matizadas. “Os problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados” (p. 83) e o rol de constrangimentos: salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, conflitos potenciais com países nucleares e rivalidade com a vizinha Argentina. Os acertos na economia e na política externa tampouco escondem o abominável envolvimento do regime no “sangrento golpe militar” no Chile, contra o Presidente Salvador Allende e em outras operações clandestinas no Uruguai e na Argentina.

A avaliação do período me parece muito correta tanto no plano da substância (política externa), como na esfera institucional (diplomacia). “Pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”... a corporação dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e operacional”. (p. 84) Tendo subjacente a fórmula de Raymond Aron – soldados e diplomatas são os dois funcionários por excelência do Estado – PRA se refere ao “mútuo respeito que mantinham as corporações mais tradicionais do Estado brasileiro”. (p. 84) Daí deriva tanto o diagnóstico de “relativa introversão do corpo diplomático”, como o refrão elogioso de diplomatas latino-americanos – “Itamaraty no improvisa”. 

 

(iii)         As múltiplas vertentes da redemocratização. Experimentalismo que levou à hiperinflação. Reformismo econômico e credibilidade externa (FHC). Projeção externa matizada pelo partidarismo (Lula). O declínio da diplomacia (Dilma) e sua volta ao leito normal (Temer). 

O período pós-1985, foi marcado pela Constituição de 1988, portadora de importantes conquistas sociais mas, como corretamente apontado por PRA, também com impacto negativo, “distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil .. . O contrato social efetuado andou na direção de distribuir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada.” (p. 89). Uma das consequências foi deterioração econômica, diversos planos de estabilização fracassados até o advento do Plano Real, com FHC à frente do Ministério da Fazenda e um grupo de economistas da PUC do Rio, com formação liberal. “Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que tenha tido cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras. (p.89). 

O livro contribui para fazer justiça às transformações na política externa introduzidas em 1990. “O governo Collor tinha a pretensão de deslocar o país ... do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE ... Collor operou, portanto, a primeira viragem decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares, ao aceitar a ratificação plena do Tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento à construção de confiança com a Argentina nessa área.” (p. 91)

No âmbito regional, transformou o processo de integração com a Argentina, iniciado em meados dos anos 1980. Mais de uma dezena de protocolos setoriais, visando à complementação produtiva e à abertura apenas recíproca, foram alterados. Com base na Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, os protocolos foram substituídos por um mecanismo automático, irrecorrível e universal de reduções tarifárias, destinadas a construir o livre comércio com a Argentina. “Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sob os mesmos dispositivos de abertura econômica e liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e Menem.” (p. 92)

A curta transição, operada por Itamar Franco, teve a virtude de dar carta branca a FHC para formular e implementar o Plano Cruzado, em julho de 1994 - a chave da exitosa estabilização de um país com inflação crônica e galopante. “O Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do milhar e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração”. (p. 94)

Com a casa em ordem, FHC deu continuidade à abertura moderada no plano regional e global, abandonou o conceito difuso de América Latina para o espaço geográfico mais concreto da América do Sul. Além do reformismo econômico doméstico, avançou no diálogo com s instituições de Bretton Woods, o que foi providencial para o país enfrentar a sequência de turbulências financeiras internacionais : moratória mexicana de 1994; crise asiática de 1997; crise russa de 1998; e a própria crise brasileira do ano seguinte. Avançou também na “inserção do país nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial e de exportações de equipamentos de uso dual”. (p. 94)

O perfil acadêmico de PRA e sua natureza de contestador se combinam para, ao final da avaliação do governo FHC, fazer referências que, por um lado, são coerentes com a pesquisa acadêmica e, por outro, espelham sua militância liberal. Os trechos a seguir refletem essa dupla vocação. “Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs frontalmente à sua implementação, em qualquer de suas etapas, tentando inclusive embargar a Lei de Responsabilidade fiscal em processo movido junto ao STF. ... Felizmente, a primeira administração do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superavit primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como confirmado pelos principais indicadores econômicos.”

Alguns livros e muitos artigos de PRA se dedicam à análise da atuação externa do período Lula-Dilma, por ele caracterizado como a diplomacia do “nunca antes”. “Diversas dentre as iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 ... tinham sido de fato iniciadas sob os dois mandatos de FHC. ... O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento meteórico da China ... Bafejado pela procura chinesa, este último (Lula), pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC.” (p. 95)

Nessa linha, PRA refere a uma interpretação de Rubens Ricúpero, segundo o qual Lula conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General De Gaulle. (p. 96). Segundo PRA, diversos colegas diplomatas confirmam que “o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais.” (p. 96) 

Em contraste com a divulgação ampla dos êxitos da diplomacia da era Lula, PRA focaliza episódios que resultaram em prejuízos ao país. O primeiro foi a passividade diante da expropriação dos ativos da Petrobrás, no âmbito da nacionalização dos hidrocarburos na Bolívia, então sob Evo Morales. O segundo foi a ruptura com o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros países, evidenciada no apoio ostensivo do governo brasileiro a candidatos presidenciais no Peru e na Bolívia. Outro episódio foi a iniciativa turco-brasileira destinada a encontrar uma solução para o complexo nuclear iraniano, que resultou em derrota contundente dos dois países em votação no CSNU. 

Fonte adicional de prejuízo para o país foi a ausência do Brasil nas dezenas de acordos de livre comércio negociados nas primeiras décadas deste século. A hipertrofia da diplomacia presidencial também mereceu críticas, sobretudo pelo fato de algumas visitas do Presidente terem sido improvisadas, com falta de estudos e avaliações de diplomatas sobre os assuntos bilaterais ou multilaterais. PRA se refere de forma crítica e um tanto irônica, por exemplo, à proliferação, por iniciativa e sob os auspícios do Brasil, de reuniões de cúpula de Chefes de Estado da América do Sul e Caribe, dos países árabes e de nações africanas. “Nunca anates na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, nunca antes os presidentes foram tão amigos entre si. Não se pode dizer, todavia, que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente, mesmo com toda a retórica a seu favor.” (p. 99) 

Ao referir-se aos três grandes objetivos da diplomacia lulista – cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; reforço e expansão do Mercosul; e conclusão exitosa das negociações multilaterais da Rodada Doha – PRA conclui que “nenhum deles foi conquistado, sequer arranhado.” (p. 98)

 A avaliação das diretrizes econômicas e da diplomacia de Dilma Rousseff é igualmente muito negativa, “pela mediocridade de sua política econômica e pela total inexpressividade de sua política externa”. (p. 100) Os fracassos: o diagnóstico de PRA a respeito do impeachment da Presidente é no sentido de que “a natureza da crise foi basicamente fiscal”: aceleração inflacionária acima das metas de inflação; alguma desvalorização cambial. As causas formais do impeachment incluem a manipulação do orçamento, o financiamento irregular de déficits setoriais, a utilização ilegal dos bancos públicos, e o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tais irregularidades, somadas aos desentendimentos com líderes partidários e ao clamor das ruas, desembocaram no afastamento da Presidente.

Os revezes da diplomacia de Dilma em muito superaram os escassos êxitos: “a suspensão irregular do Paraguai do Mercosul, o ingresso ilegal da Venezuela no bloco, e a demissão do primeiro chanceler por causa de uma crise com a Bolívia”, provocada pelo asilo de senador boliviano por mais de 400 dias na Embaixada do Brasil em La Paz, e de sua retirada clandestina da Bolívia, com ajuda de nosso Encarregado de Negócios. (p. 101) 

Os dois chanceleres do governo Temer, José Serra e Aloysio Nunes, ao reduzirem a interferência partidária na política externa, foram objeto de uma campanha, no Brasil e no exterior, de uma campanha que denunciava o “golpe” do impeachment. Nas palavras de PRA, aqueles chanceleres conduziram “uma bem-sucedida reversão a padrões mais tradicionais de condução diplomática e de orientação em política externa”. (p. 103)

O livro de PRA, além da síntese de nossa historiografia, e da visão em perspectiva de nossas relações internacionais, examina, nos capítulos subsequentes, dois aspectos fundamentais de nossa ação externa: o processo decisório e as diplomacias presidenciais. 

 

(iv)          Política externa e diplomacia do governo Bolsonaro. O império da barbárie. 

A avaliação abrangente e altamente crítica de PRA a respeito da política externa e da diplomacia do governo Bolsonaro perpassa os diversos capítulos do livro. As duas vocações que se revelam nos trabalhos de PRA e indicados no início desta resenha - o acadêmico e o militante – aparecem, a partir de agora, com grande nitidez. Vejamos como se desdobra a análise crítica de PRA a respeito da ação externa do atual governo. 

 

(continua...) 

sábado, 4 de junho de 2022

Lançamento digital, livros de Paulo Roberto de Almeida: Apogeu e Demolição, O Itamaraty Sequestrado

 Lançamento digital de dois livros meus, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, na companhia de colegas também autores: embaixador Sergio Florencio, acadêmico Arnaldo Godoy e diplomata Paulo Fernando Pinheiro Machado. 




quinta-feira, 3 de março de 2022

A política externa do Brasil a caminho do delírio - notícias de jornais

A política externa do Brasil a caminho do delírio

Reina a maior confusão na política externa do Brasil; não existe nenhuma voz coerente e a culpa principal sabemos de quem é...

Paulo Roberto de Almeida



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BRASIL x EUA

A omissão do presidente Jair Bolsonaro em criticar a Rússia ou condenar a guerra na Ucrânia é explicada em parte pela afinidade ideológica que ele tem com Vladimir Putin e é vista com incômodo pelos Estados Unidos, diz Michael Shifter, presidente do The InterAmerican Dialogue, centro de estudos em Washington. Shifter, afirma ao jornal Valor Econômico, que o governo americano vê com preocupação a postura de Bolsonaro, que deve deteriorar as relações bilaterais. 

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Entre o WhatsApp e a ONU, os sinais difusos de Bolsonaro na guerra
O Globo | Política, 03 de março de 2022

Enquanto o Brasil condena formalmente invasão à Ucrânia, presidente repassa texto com viés 'olavista' e acena para a Rússia

Ao mesmo tempo que o Brasil votou a favor da resolução do Conselho de Segurança da ONU para condenar a invasão da Rússia à Ucrânia, o presidente Jair Bolsonaro resolveu repassar para alguns grupos de WhatsApp de que participa um texto sobre o que seria o contexto do conflito. Conforme publicou o colunista do GLOBO Lauro Jardim em seu blog, a postagem traz uma visão "olavista" - corrente do ideólogo de direita Olavo de Carvalho, que morreu em janeiro - e logo no início já adverte: "Os Estados Unidos não são mais uma nação virtuosa." Apócrifo e intitulado "A única verdade", o texto alerta que "o comunismo tem outro nome, se chama Progressismo e seu berço é a Europa". O tom alinhado às ideias de Olavo de Carvalho prossegue com a afirmação: "Só existem a Rússia, a China e a Liga Árabe capazes de enfrentar a NOM (Nova Ordem Mundial). O Brasil está no radar da NOM e de toda a esquerda. Três ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e a mídia brasileira (via fraude eleitoral), estão prontos a entregá-lo pela metade do preço que o presidente da Ucrânia entregou seu país."

Em outro trecho, cita a soberania do Brasil sobre a Amazônia, que estaria ameaçada: "Os mesmos que desejam que o presidente brasileiro tome uma posição firme no conflito Rússia X Ucrânia, são aqueles que desejam tomar de nós a Amazônia". Por fim, a publicação diz que o comunismo passou por uma transformação e que a alegada nova ordem mundial está pronta para "instalar um governo hegemônico mundial", do qual o Brasil seria parte fundamental.

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"Não vamos tomar partido, vamos continuar pela neutralidade e ajudar, na medida do possível, a busca da solução "

Foto: Jair Bolsonaro, durante entrevista coletiva, ao falar sobre a invasão da Rússia à Ucrânia

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CHOQUE COM O ITAMARATY

Desde o início da invasão russa à Ucrânia, Bolsonaro tem feito declarações que seguem em sentido contrário às posições do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Para diplomatas, o Itamaraty vocaliza uma atuação ligada às tradições e aos valores constitucionais. As afirmações do presidente sobre solidariedade à Rússia e "neutralidade" diante da invasão têm sido consideradas uma narrativa para um público interno que, inevitavelmente, causa dano à imagem do país no exterior.

Durante entrevista no último domingo no Guarujá (SP), cidade em que passou o carnaval, Bolsonaro disse que o Brasil "não vai tomar partido" e deve manter posição neutra em relação ao conflito. Na declaração, a primeira manifestação pública sobre o conflito, Bolsonaro fez referência a uma conversa que teve com o presidente russo, Vladimir Putin:

- Não vamos tomar partido, vamos continuar pela neutralidade e ajudar, na medida do possível, a busca da solução.

O desencontro de declarações entre o que diz Bolsonaro e o Itamaraty levou auxiliares do presidente a esclarecer a embaixadores estrangeiros e autoridades de outros países que, em momentos divergentes, o que vale é a posição do Ministério das Relações Exteriores, e não os discursos do presidente. Em entrevista à GloboNews, o chanceler Carlos França explicou que a posição do Brasil não é de neutralidade, e sim equilíbrio. Diplomatas de países do G7 também cobraram que o país adotasse uma postura mais firme.

"Nossa posição é de equilíbrio. Ela não é de neutralidade. Eu penso que quando o presidente (Jair Bolsonaro) falou em neutralidade ele pensava em imparcialidade. Nossa posição é dedicada à busca do diálogo e da reconciliação. Essa é a nossa fortaleza".

Aliados antigos de Bolsonaro também se manifestaram, como o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo. O ex-chanceler fez críticas ao comportamento do presidente. Nas redes sociais, Araújo destacou que Bolsonaro reproduz "desinformação russa" e que a posição de "neutralidade" demonstra preferência pela Rússia: "Me parece que a posição correta do Brasil, compatível com nossos valores morais e interesses materiais, seria um apoio à Ucrânia, junto com as grandes democracias ocidentais".

O fato de Bolsonaro não condenar diretamente os ataques também provocou reflexos na corrida eleitoral. O ex-presidente Lula afirmou no Twitter que "ninguém pode concordar com guerra", enquanto Sérgio Moro (Podemos) acusou Bolsonaro e o PT de estarem do lado de ditaduras que apoiam os ataques à Ucrânia: Venezuela, Nicarágua e Cuba. Ciro Gomes (PDT) preferiu focar os comentários nas consequências diretas da guerra ao Brasil, e João Doria (PSDB) disse que a invasão da Ucrânia pela Rússia é "condenável".

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Apogeu e Demolição da Política Externa: finalmente chegou-me o livro, e um poster - Paulo Roberto de Almeida

 Recebi nesta segunda-feira, caixa da Editora Appris com exemplares do meu livro, ademais de um poster para eventual lançamento presencial, ou até virtual. Ainda não organizei nada, mas permit-me relembrar que o sumário e apresentação estão neste link do meu blog: 

https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/06/apogeu-e-demolicao-da-politica-externa_18.html




quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Apogeu e demolição da política externa: Itinerários da diplomacia brasileira - Palestra de Paulo Roberto de Almeida na FMU (15/09/2021)

Apogeu e demolição da politica externa: 

itinerários da diplomacia brasileira


PALESTRA com o Embaixador Paulo Roberto de Almeida (15/09/2021) 

(com base no vídeo da FMU: palestra a partir dos 9 minutos)


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984), mestre em Planejamento Econômico e Economia Internacional pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade de Estado de Antuérpia (1976), e diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977. Começou sua carreira acadêmica nas Faculdades Metropolitanas Unidas em 1977, antes de ingressar na diplomacia profissional. Defendeu tese de doutorado em temática de Sociologia Histórica, sobre as revoluções burguesas e a modernização capitalista do Brasil; elaborou tese de história diplomática no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores (1997) sobre a diplomacia econômica do Brasil no século XIX. Entre 2004 e 2021 foi professor no Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub); foi professor orientador no Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco do Itamaraty. Na carreira diplomática exerceu diversos cargos na Secretaria de Estado e em postos no exterior, notadamente como ministro-conselheiro na embaixada em Washington. De 2016 a 2018 foi diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, vinculado à Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty. Possui vários livros de relações internacionais, sobre as relações exteriores e de história diplomática do Brasil, ademais de centenas de publicações em formato de artigos em revistas acadêmicas e de capítulos em obras coletivas."

 No seguinte link: 

https://www.youtube.com/watch?v=-5hG5YtS5pE&list=PLO1x3kNEq3Hk5G6buE2OKPrlxyvHVe-au&index=3

Foram poucos slides, que coloquei na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/52478111/3972_Apresentação_palestra_FMU_Apogeu_e_demolição_da_pol%C3%ADtica_externa_2021_); e que divulgo a seguir: 













Esta palestra pode ser vista em complemento a este outro texto, remetido anteriormente: 

3968. “Apogeu e demolição da política externa: o que temos agora?”, Brasília, 5 setembro 2021, 7 p. Notas para palestra na Semana de RI da FMU-SP (quarta-feira, 15/09), das 19h10 às 20h30), sob a forma de confrontação direta com o trabalho n. 3724, sobre as posturas erráticas e irracionais do governo Bolsonaro no plano diplomático. Postado no blog Diplomatizzando (9/09/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/09/apogeu-e-demolicao-da-politica-externa.html)l disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/51650867/3968_Apogeu_e_demolicao_da_politica_externa_o_que_temos_agora_2021_).



quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Apogeu e demolição da política externa: palestra na Semana de Relações Internacionais da FMU: 15/09/2021, 19hs

Subsídios preliminares à palestra a ser proferida na Semana de Relações Internacionais da FMI, em 15/09/2021, para a qual prepararei uma outra apresentação.

O texto abaixo visa apenas suscitar questões a serem eventualmente abordadas na palestra. 

Link para visualização no canal YouTube da FMU: 

https://www.youtube.com/watch?v=-5hG5YtS5pE&list=PLO1x3kNEq3Hk5G6buE2OKPrlxyvHVe-au

Apogeu e demolição da política externa: o que temos agora?

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

 

O título deste texto retoma o exato título de meu livro recém-publicado, cujo subtítulo é: itinerários da diplomacia brasileira. Não pretendo estender-me sobre o seu conteúdo, pois cada um pode recorrer a essa minha obra mais recente para constatar o que eu disse sobre os diversos temas nele abordados: a historiografia das relações internacionais do Brasil – ou seja, as grandes obras que figuram necessariamente na bibliografia dessa área –, um segundo capítulo sobre essas relações internacionais, ou seja, a matéria de fato, em perspectiva histórica, mais um capítulo sobre os processos decisórios em matéria de política externa, seguido de dois outros também de caráter histórico, sobre as diversas diplomacias presidenciais desde Vargas, e sobre alguns tropeços diplomáticos ao longo dos últimos 200 anos, consoante meu espírito cético ou contrarianista sobre as supostas excelências de nossa política externa; finalmente, eu termino com um exercício de planejamento diplomático para uma nova fase da governança no Brasil, uma que seja menos errática do que a atual.

Justamente: pouco mais de um ano atrás, mais exatamente em 26 de julho, eu escrevia um trabalho chamado “Posturas erráticas e irracionais do governo, grandes prejuízos para o Brasil”, que consistiam em notas sintéticas sobre os grandes desastres da política externa bolsonarista, mas eu apenas apontava os problemas, sem oferecer, naquela ocasião, algum remédio salvador para esses desastres; afinal de contas, ainda estávamos em pleno triunfalismo da diplomacia bolsolavista e de alguns outros aprendizes de feiticeiro na Esplanada dos ministérios, entre eles o certamente pior ministro da deseducação de toda a história do Brasil, cujo destino agora é obscuro em Washington, mais o antiministro do Meio Ambiente, que também foi entregue à obscuridade, depois de ter contribuído com ampla destruição do seu objeto de trabalho, sem mencionar o próprio responsável da área diplomática, aquele a quem eu chamei de “chanceler acidental” (mas ele não passava de um joguete nas mãos de amadores ignorantes em política internacional e em diplomacia). 

Esse meu trabalho sobre as “posturas erráticas e irracionais do governo” pode ser encontrado em meu blog Diplomatizzando (27/07/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/07/posturas-erraticas-e-irracionais-do.html). Muito bem, como estamos agora há seis meses, aproximadamente, da troca desse “chanceler acidental” por um diplomata profissional, talvez seja útil retomar aquele trabalho para ver o que mudou, ou não mudou, para saber se ainda existem riscos de grandes prejuízos ao Brasil, em decorrência do caráter errático e irracional deste governo. Para isso vou fazer um exercício comparativo, entre o que eu escrevi um ano atrás, refletindo o estado da “arte” (se arte existia) da época, e o que temos hoje, depois de um ano de avanços e recuos, aos trancos e barrancos. Vejamos como a situação se apresenta agora.

 

Posturas erráticas e irracionais do governo, grandes prejuízos para o Brasil (26/07/2020)

O que temos agora? O que mudou, o que ficou, o que melhorou e o que piorou (15 de setembro de 2021)

Caracterização geral da situação em 2019-2020 e na atualidade

O governo atual foi eleito de maneira até entusiástica pelos eleitores, com base numa plataforma supostamente liberal, de luta inflexível contra a corrupção e de continuidade nos ajustes econômicos necessários para superar a mais grave crise econômica – recessão, déficits e desemprego em níveis elevados – de toda a história do país, construída pelo último governo petista e em fase de reversão no anterior governo Temer. Ele teve um início relativamente promissor, a despeito de sinais contraditórios emitidos desde a campanha eleitoral, em 2018...

Não tivemos nem liberalismo, nem luta contra a corrupção (ao contrário, foram desmantelados os mecanismos existentes para tal efeito, inclusive o juiz-ministro); os ajustes econômicos não foram feitos, e não foi apenas por causa da pandemia, e sim por incompetência mesmo do ministro Guedes ou veto do seu chefe; continuamos em recessão, déficits e desemprego elevados, e juros em alta e fuga de capitais. Ou seja, no plano econômico, o Brasil está muito pior do que estava ao final do governo Temer, e isso não se deve apenas à pandemia. O Grande Capital já desembarcou do governo.

Os primeiros sete grandes equívocos da diplomacia bolsolavista, e o que mudou

1)     aparente hostilidade à República Popular da China e preferência por Taiwan, por motivos claramente ideológicos e anticomunistas, sem consistência econômica;

Desde fevereiro de 2018, os Bolsonaros revelam hostilidade à “China comunista”; isso permaneceu, mas reprimidos pelo agronegócio, tiveram de reprimir seus próprios instintos; o atual chanceler se esforça por corrigir o cenário.

2)     aproximação ao governo Netanyahu em Israel, em diversos temas do cenário local, e promessa de mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, por motivos também ideológicos, vinculados à base evangélica do candidato e adoção de postura anti-islâmica e antipalestina, mas ignara quanto a aspectos de caráter constitucional, diplomático e econômico envolvidos nessas questões;

O entusiasmo com a mudança da embaixada (no seguimento de ato similar por Trump) diminuiu também sob pressão do pessoal árabe no Brasil e dos exportadores de carne Hallal; mas instalaram um escritório da Apex na cidade e mantiveram boas relações com Netanyahou, que esteve na posse de Bolsonaro; expedição à cata de spray nasal foi um completo fracasso. A gestão atual desdramatizou a situação; primeiro-ministro Netanyahou saiu do governo. 

3)     adesão explícita, como diretriz diplomática, não exatamente aos Estados Unidos, mas ao governo Trump; o que rompeu com a postura de autonomia na política externa e na diplomacia, mantida, com altos e baixos, desde o Império;

O entusiasmo e provavelmente negócios com Trump perduraram durante toda a presidência dele, inclusive em detrimento dos interesses do Brasil e numa submissão que jamais ocorreu em toda a história do Brasil; Trump saiu, mas continua procurado pela família Bolsonaro.

4)     uma agenda negacionista nas discussões sobre aquecimento global e supostamente desenvolvimentista no que respeita recursos naturais e especificamente a Amazônia e as reservas indígenas, o que retrocederia políticas nacionais, com impacto internacional, longamente amadurecidas ao longo de décadas, em compasso com orientações da opinião pública mundial em temas de meio ambiente; anúncio de renúncia a acolher a 25ª Conferência das Partes sobre aquecimento global;

Antes mesmo de iniciar o governo já tinha ocorrido a recusa de sediar a 25ª COP e ameaça de sair do Acordo de Paris (tudo por sabujice ao governo Trump). A política antiambiental foi aos extremos e poder ser tida como responsável pela recusa dos europeus de ratificarem o Acordo Mercosul-EU, assim como por um potencial boicote às exportações brasileiras do agronegócio (o que é equivocado, pois não existe conexão). Sob a gestão atual, a política para fora recebeu nova roupagem, mas dentro do país continua a degradação ambiental.

5)     um nacionalismo de fachada ainda no terreno ambiental, com crítica não só a ONGs estrangeiras atuando nessa área no Brasil, ao funcionamento do Fundo Amazônia (que resultou na paralisia das contribuições de Noruega e Alemanha a programas de pesquisa), mas contra a própria agenda internacional relativa a mudanças climáticas, e anúncio da retirada do Brasil do Acordo de Paris;

O governo Bolsonaro se empenhou de forma totalmente irracional em sabotar as boas relações com importantes parceiros do Brasil nos programas de pesquisa na região amazônica em torno do conceito de sustentabilidade; outro fator foi obviamente o aumento da devastação florestal e as queimadas não só na Amazônia, mas também no Pantanal; no conjunto, o tema do meio ambiente foi um desastre gigante. Cabe à atual gestão tentar reparar os prejuízos.

6)     declarações altissonantes de luta contra a corrupção; quando sinais claros de comprometimento da família com negócios escusos já tinham sido revelados antes e durante a campanha, com repercussões negativas do ponto de vista da adesão do Brasil à OCDE, que tem um grupo de combate à lavagem de dinheiro no plano internacional, e da cooperação entre os países nesse terreno; a renúncia unilateral ao tratamento especial aos países em desenvolvimento foi gratuita e sem contrapartida;

A questão da luta contra a corrupção foi um dos fracassos mais monumentais do governo e o que motivou a saída do ministro Moro. Com isso também foi afetado o ingresso do Brasil na OCDE, tanto do lado ambiental, quando na questão do combate à corrupção e à lavagem de dinheiro: o COAF, parceiro do GAFI nesse setor, foi completamente manietado, tanto que motivou relatório oficial da OCDE registrando a não cooperação do Brasil com a entidade; outros retrocessos se manifestaram em diversos setores dos organismos multilaterais. Não há previsão de melhoria nessa frente.

7)     e um nacionalismo e estatismo entranhados no candidato – em total contradição com o espírito privatista e liberal do principal conselheiro econômico; com repercussão sobre a agenda externa de abertura econômica e liberalização comercial.

O alegado liberalismo, abertura econômica e rebaixas tarifárias nunca ocorreram, tanto por nacionalismo obtuso do presidente como oposição das associações empresariais setoriais, que dificultaram inclusive o acordo com a UE. Até aqui, mudou o discurso, não a prática.

As mudanças sutis no curso dos primeiros meses e primeiros dois anos

Todas essas contradições, potencialmente problemáticas no exercício da nova gestão e apontadas desde o início por observadores mais atentos, foram deixadas de lado no decorrer da campanha e na inauguração da administração, em janeiro de 2019. Os problemas daí decorrentes começaram desde o primeiro dia, quando uma sinalização do chanceler e do próprio presidente em favor da instalação de uma base americana no território brasileiro foi imediatamente rechaçada e descartada pelos ministros militares do governo. Desde o início se registrou o desligamento do Brasil do Pacto Global das Migrações, um instrumento positivo do ponto de vista da grande emigração brasileira em diversos continentes, o que foi devido a uma adesão inconsequente e ideológica à agenda imigratória do governo Trump.

O mesmo chanceler confirmou, desde os primeiros momentos, as piores previsões quanto a essa íntima associação com o governo Trump, engajado desde o seu começo em causas ideológicas que não tinham nada a ver com os interesses nacionais do Brasil na condução de suas relações exteriores e na boa promoção de seus intercâmbios econômicos:

Os retrocessos no plano internacional tiveram início ainda antes da posse, com o anúncio da retirada da assinatura do Brasil do Pacto Global das Migrações, um gesto totalmente sem sentido, contrário até ao espírito do Direito Internacional (convenção de Viena sobre Direito dos Tratados) e aos interesses nacionais do Brasil e de seus milhões de expatriados, muitos deles ilegais. Aqui, como em vários outros capítulos, havia uma adesão cega e estúpida a posturas do governo Trump em matéria migratória, com declarações absurdos do presidente e da família a esse respeito. Essa submissão abjeta aos interesses do governo Trump se revelaram na aceitação de uma base dos EUA no Brasil (prontamente rejeitada pelos militares do governo) e no seguimento fiel da postura em relação ao governo Maduro, na Venezuela, numa atitude que pode até ser considerada abertamente inconstitucional (artigo 4º.: interferência em outros Estados). A hostilização ao governo Maduro deixou o Brasil sem condições de atuar no plano diplomático para s ter uma solução ao problema, chegando ao ponto da retirada do pessoal diplomático e consular do país e a declaração de persona non grata ao pessoal venezuelano no Brasil.

8)     hostilização da China, o maior parceiro comercial, podendo se refletir nas grandes exportações de commodities, essenciais para preservar o grande superávit bilateral;

A hostilização à China, a empresas chinesas e ao embaixador, por parte do chanceler e de familiares do presidente, continuou sem cessar, mas, pelo menos se marcou leilão do 5G.

9)     minimização dos prejuízos incorridos com as salvaguardas abusivas (e ilegais) do governo Trump contra as exportações de aço e alumínio e adesão à agenda dos EUA no que respeita eventuais reformas na OMC, sobretudo no plano institucional, com destaque para a paralisia do órgão de solução de controvérsias, o que é grave;

O governo Bolsonaro não defendeu os interesses comerciais do Brasil na adoção de salvaguardas ilegais por parte dos EUA, no aço e no alumínio; ao contrário, colaborou com importações americanas em setores (etanol) nos quais o Brasil é competitivo; luta contra o multilateralismo, ajudou a paralisar a OMC, o que pode ter motivado a saída do DG brasileiro.

10)  aceitação do tratamento agressivo em direção da população brasileira imigrante nos Estados Unidos com status indefinido, e que se concretizou na expulsão massiva de vários desses residentes ilegais com cooperação indevida dos consulados brasileiros no fornecimento de papéis para a expatriação;

Os brasileiros residentes nos EUA votaram maciçamente em favor do Bolsonaro; como retribuição, ele aceitou tratamento ultrajante aos brasileiros ilegais, colaborando até com as expulsões expeditivas que passaram a se fazer com papeis dados pelos consulados. Cabe verificar se já ocorreu mudança no tratamento dos brasileiros expatriados.

11)  adesão ao projeto largamente eleitoreiro de Trump no sentido de derrubar o governo chavista, o que obrigou a “ala militar” do Planalto a se fazer presente em diferentes episódios dessa questão; a evolução do tema não foi positiva para essa agenda muito agressiva, mas culminou com a retirada de todo o pessoal diplomático e consular de todas as representações na Venezuela, sem ruptura de relações, algo absolutamente inédito na tradição do Brasil e mesmo nos anais da diplomacia mundial;

O tratamento do tema venezuelano pela chancelaria bolsonarista foi a mais flagrante submissão dos interesses do Brasil a Trump, pois que deixou o Brasil completamente isolado, junto com a Colômbia, na região. O próprio reconhecimento do governo dito legítimo de Guaidó contrariou nossa política tradicional de reconhecimento de Estados, segundo práticas consagradas no Direito Internacional (controle efetivo do território). Na gestão atual o Brasil tenta recompor as relações, mas a ausência de pessoal dificulta esse passo.

12)  desprezo pelas instituições multilaterais, em nome de um suposto (e em grande medida fantasmagórico) globalismo, o que levou o Brasil ao isolamento mundial.

A adesão alucinada às teorias conspiratórias dos antiglobalistas cessou completamente, o que não impede a família presidencial de continuar seus atos de submissão ao ex-presidente Trump.

Os desastres causados aos interesses do Brasil e o que temos atualmente: 

13)  ofensas gratuitas contra o candidato peronista à presidência argentina, o que rompe um princípio constitucional – o da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados – mas também com a simples cortesia diplomática, o que já tinha ocorrido em ocasiões anteriores em relação a antigos ditadores no Chile e no Paraguai, e em outra tentativa de intervenção nas eleições presidenciais uruguaias;

Uma falta total de compostura por parte do presidente levaram à mais grave deterioração de uma das mais importantes relações bilaterais do Brasil, com a Argentina, a ponto de não se ter NENHUM diálogo entre os dois chefes de governo. De forma geral, Bolsonaro não mantém nenhuma relação próxima com qualquer parceiro regional; o atual chanceler tem se esforçado no restabelecimento dos laços, mas sem a colaboração de Bolsonaro.

14)  o próprio chanceler recrudesceu nas ofensas ao candidato peronista, assim como a outras personalidades políticas na região, em nome de um outro fantasmagórico inimigo, o Foro de São Paulo, com repercussões negativas do envolvimento direto do chanceler na política interna na Venezuela, da Bolívia e outros países;

O ex-chanceler se esmerou em também ofender o presidente argentino, o que obstou qualquer contato entre as duas chancelarias. O embaixador do Brasil foi retirado do posto. A despeito de se ter retomado os contatos entre as chancelarias, a ausência de contato entre os ministros da Economia impede qualquer conversa a respeito do Mercosul. 

15)  tanto o chanceler quanto o ministro da Economia mantiveram uma postura hostil e mesmo confrontacionista em relação às posições da Argentina em relação ao tema do Mercosul, o que inviabilizou qualquer projeto de reforma do bloco no futuro previsível, assim como negociações comerciais consensuais com novos parceiros;

O ministro da Economia demonstrou, desde o início, não ter o mínimo conhecimento do Mercosul, e desprezou o relacionamento com a Argentina, o que afetou severamente o tratamento de assuntos de interesse dos exportadores brasileiros; o Mercosul está praticamente paralisado durante todo esse tempo e não existem perspectivas de que se possa avançar nos temas mais delicados.  

16)  ofensas pessoais a líderes europeus, assim como a postura agressiva do presidente e do chanceler nas questões ambientais e da Amazônia inviabilizaram por completo a possibilidade de se colocar em vigor o acordo Mercosul-União Europeia, talvez o maior desastre de um dos grandes “sucessos” apresentados pelo governo;

O presidente e os ministros da Economia e das Relações Exteriores ofenderam os países europeus, inclusive no plano pessoal; o desprezo do ex-chanceler pela Europa fez com que os parceiros da UE congelassem completamente a ratificação do acordo. Mesmo com as mudanças na diplomacia brasileira, não existem chances de colocá-lo em vigor.

17)  frustração idêntica na questão do ingresso brasileiro na OCDE, não apenas em virtude da postura ambígua dos EUA, como também da sabotagem presidência no plano interno na questão do COAF, instrumento fundamental para a cooperação em matéria de combate à lavagem de dinheiro e da convenção anticorrupção da OCDE;

A despeito das tentativas feitas pelo atual chanceler de restabelecer o diálogo com a OCDE, não existe nenhuma chance de o Brasil de Bolsonaro ser aceito na entidade, não apenas pelas posturas do Brasil nas áreas já mencionadas (meio ambiente e lavagem de dinheiro), mas porque o nível do diálogo decaiu desde 2019, apesar de anúncios em contrário.

18)  postura agressiva da delegação brasileira em todos os temas relativos a direitos humanos e agenda de minorias, mas sobretudo direitos da mulher, o que rendeu críticas praticamente universais da comunidade diplomática internacional;

A agenda da diplomacia no âmbito da ONU, em especial no Conselho de Direitos Humanos, tem sido a mais penosa possível, com retrocessos em todas as frentes, em especial nos temas da mulher, das minorias, dos direitos indígenas e vários outros.

19)  deterioração completa das possibilidades de diálogo e concertação na região, com a eliminação de antigos esquemas de cooperação – inclusive na área militar –, o que deixa a América do Sul sem qualquer estrutura política de interação, num momento de especial preocupação com respeito à disseminação da pandemia na região.

Muito antes que a pandemia fechasse as fronteiras com os vizinhos, o presidente e o ex-chanceler acidental já tinham isolado completamente o Brasil da maior parte dos vizinhos; a tentativa de substituir a Unasul por uma nova entidade claramente gorou e já não existem mais estruturas de consulta e coordenação entre os países; o próprio Grupo de Lima foi desativado.

Meio ambiente e pandemia: dois temas ainda na balança de perdas e danos:

Existem muitos outros temas nos quais as políticas erráticas e contraditórias do governo provocam prejuízos concretos ao Brasil, em especial nas áreas ambiental, de relações exteriores e agora relativamente ao tratamento das medidas contra a pandemia, mas três deles são especialmente relevantes para os negócios e os investimentos no Brasil, com um potencial de prejuízos de enorme dimensão na balança comercial e nos investimentos:

O Brasil encontra-se numa situação inédita de total isolamento externo, nunca vista sequer durante o regime militar. Depois do término do governo Trump, não existe nenhum governo importante no mundo com o qual o Brasil mantenha um diálogo fluído. Mesmo a Índia de Modi, um outro nacionalista de direita, esfriou contato depois de problemas com a vacina. A nova retórica do Itamaraty deve melhorar marginalmente essa situação, mas será difícil.

20)  a contínua hostilização da China pela família e pelo próprio ex-chanceler, que inventou um “comunavirus” para prejudicar os países ocidentais e conquistar hegemonia mundial, o que é uma alucinação total; o mesmo se aplica ao caso do 5G, o que pode representar atraso no campo das TICs e retaliação da China em diversos campos dos intercâmbios bilaterais, não apenas no comércio; esse é muito possivelmente o de maior impacto negativo para Brasil;

Durante a gestão do ex-chanceler acidental, a relação com a China foi a pior possível, com possível ameaça de boicote no comércio bilateral; haveria certamente retaliações da parte chinesa se ocorresse, como pedia o governo Trump (mas Biden não é diferente), o veto à participação da Huawei no leilão do 5G, mas os prejuízos já existem, dado o atraso no processo, que já deveria ter sido feito. A China mantém postura profissional; a Comissão Mista se reúne com a chefia do vice-presidente.

21)  a postura ambiental desastrosa reiterada pelo presidente e pelo ministro da área pode prejudicar enormemente exportações do agronegócio brasileiro, em bilhões de US$;

A frente ambiental é possivelmente a de maior impacto na imagem internacional negativa do Brasil, e assim deve permanecer durante toda a gestão Bolsonaro. Vai demorar a recuperação.

22)  no caso da pandemia, o tratamento vergonhoso registrado nas posturas do presidente e das autoridades do setor levou à denúncia do presidente no âmbito do TPI; mesmo sem abertura de processo formal nesse foro, trata-se de fato negativo para a imagem do Brasil no mundo, com potencial para cessação completa dos investimentos estrangeiros, o que já era o caso no tocante ao tratamento igualmente desastroso das queimadas na Amazônia e das políticas relativas às populações indígenas, item igualmente inscrito nas denúncias apresentadas ao TPI.

À diferença de outros líderes de direita, Bolsonaro foi o único que se manteve negacionista de maneira irredutível durante toda a pandemia, inclusive com denúncias apresentadas no TPI (mas com poucas chances de prosperarem). A despeito de possuir menos de 3% da população mundial, o Brasil exibe números anormalmente elevados de contaminados e mortos, por falta de uma coordenação nacional e de fato sabotagem no enfrentamento da pandemia. A questão indígena pode ainda ser objeto de exame especial por parte do TPI, o que vai impactar ainda mais a imagem internacional do Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3724, 26 de julho de 2020;

Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/07/posturas-erraticas-e-irracionais-do.html);

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3968, 5 de setembro de 2020;

blog Diplomatizzando (09/09/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/09/apogeu-e-demolicao-da-politica-externa.html)

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 5 setembro 2021, 7 p.