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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Planejando a próxima política externa do Brasil: trechos do livro Apogeu e Demolição da Política Externa - Paulo Roberto de Almeida

 Agora que vamos ter um novo governo, a partir de 2023, encerrando de vez a vergonhosa diplomacia bolsolavista, transcrevo abaixo alguns extratos do capítulo 9 do meu livro: 

Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira 

(Curitiba: Appris, 2021) 

Sumário e apresentação neste link: 

https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/06/apogeu-e-demolicao-da-politica-externa_18.html


9. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia 

 

Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira

Uma avaliação sumária, e consensual, da diplomacia brasileira e da política externa governamental, desde a inauguração do governo Bolsonaro em janeiro de 2019, não poderia deixar de constatar a imensa perda de qualidade formal e substantiva desses dois vetores da projeção externa do Estado brasileiro, e do próprio Brasil, nos planos regional, hemisférico e mundial, ou até para o próprio país: a política externa deixou de refletir as necessidades e carências do processo brasileiro de desenvolvimento, assim como deixou de corresponder às expectativas que vizinhos e parceiros tradicionais mantinham sobre suas características intrínsecas e sobre as qualidades próprias do corpo diplomático profissional no bom relacionamento do país com todos esses interlocutores externos e no âmbito dos organismos internacionais dos quais o país faz parte. 

(...)

Um trabalho de reconstrução da política externa, na forma e sobretudo no conteúdo, e de restauração dos princípio e padrões elevados de trabalho da diplomacia brasileira – tal como indicado no subtítulo de meu livro anterior, Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (2020) – não poderá ser iniciado antes do final da presente gestão, e não só no que se refere à chancelaria, uma vez que as principais deformações derivam da própria orientação e comando do chefe de Estado, notoriamente incapaz de se corrigir por sua vontade autônoma e que tem sob controle assessores igualmente ineptos e um chanceler manifestamente submisso às ordens dos amadores que fingem entender de diplomacia. Na ausência de uma próxima correção de todas as deformações acumuladas ao longo do período que se estende desde a sua posse, em 2019, cabe, aos próprios membros da diplomacia, assim como a personalidades vocacionadas para a área da política externa, exercer seu talento e conhecimento na formulação de algum planejamento para o futuro da ação internacional do Brasil. 

(...)

9.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional

A política externa e a diplomacia são coetâneas à própria construção da nação, aliás desde antes mesmo que ela assumisse o formato político de um Estado independente, como brilhantemente demonstrado pela obra que já nasceu clássica do embaixador Rubens Ricupero: A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). (...)

(...)

9.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais

Uma melhor avaliação que se adequaria, sinteticamente, às “fortalezas” e “fraquezas” do Brasil enquanto economia emergente, embora ainda carente de melhores indicadores de produtividade e de inovação, ganharia muito se auxiliada visualmente com uma estrutura tipo SWOT (sigla em inglês para os conceitos de forças, fraquezas, oportunidades e ameaças), tal como reproduzida abaixo. 

 

Quadro SWOT para o Brasil

Ambiente

Fatores Positivos

Fatores Negativos

 

 

 

 

Interno

Grande território; diversidade e abundância de recursos naturais; fontes diversificadas de energia (renováveis, em grande parte); demografia favorável (bônus, alta proporção de ativos); regime democrático estável; expansão da economia de mercado dependente do extremo regulacionismo estatal; população receptiva à globalização, mas tolhida pela ação intrusiva do Estado; talentos individuais disponíveis; grande unidade cultural, mesma língua, sem conflitos religiosos; federalismo atuante, ainda que contraditório; estabilidade econômica afetada pela recessão de 2015-16, não superada ainda; riscos sociais moderados; flexibilidade adaptativa da população e grande tolerância nos costumes e modos de vida; propensão ao multirracialismo.

Exploração predatória dos recursos naturais, exacerbada por novo governo descomprometido com políticas de sustentabilidade em 2019-20; bônus demográfico diminuindo rapidamente, com crescimento acelerado do número de velhos; altos custos previdenciários e de gastos com saúde; baixa capacidade tecnológica de transformação produtiva; matriz energética “poluída” por recursos de fontes fósseis; mercado interno ainda de baixa renda; regime democrático de baixa qualidade, com altos graus de corrupção política; sistema político disfuncional e democracia de baixa qualidade; altos níveis de tributação regressiva; aumento da delinquência e dos particularismos culturais, raciais e de gênero; gastos públicos elevados; baixa produtividade por má educação; burocracia estatal ineficiente.

 

 

 

 

Externo

Enorme capacidade para expandir a oferta de produtos básicos, sobretudo alimentares e minérios; agricultura capitalizada, produtividade garantida por P&D e administração conectada a mercados; lições das crises financeiras e da dívida externa trouxeram menor dependência e altas reservas internacionais; atração de IED, pelas oportunidades de mercado e desvalorização cambial; mão-de-obra sendo formalizada; possível grau de investimento nos próximos anos; diplomacia profissional qualificada, dependente de boa gestão política.

Uso extensivo, mais do que intensivo, dos recursos naturais; políticas setoriais (industrial e comercial) incompatíveis com aumento da oferta externa; má infraestrutura de exportação; baixo coeficiente de abertura externa; poupança interna insuficiente; oferta externa de baixo valor agregado, baixa elasticidade; mão-de-obra protegida, cara; baixa competitividade externa; inserção reativa na globalização; volatilidade das políticas econômicas externas, defensivas; política externa errática, contraditória e ineficiente desde 2019.

Elaboração: Paulo Roberto de Almeida, 08/12/2020

 

Os traços econômicos mais relevantes do Brasil contemporâneo, tanto pelo lado de suas vantagens relativas, quanto pelo lado das limitações percebidas, estão por demais evidentes no quadro acima para merecer elaboração mais detalhada. (...)

(...)

9.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa 

A esfera de atuação dos governos, em geral, e o leque de interesses e de atividades abertos às instituições diplomáticas nacionais, em particular, estão sendo cada vez mais ampliados, em função, justamente, da crescente complexidade dos processos produtivos, da integração e especialização da economia mundial pelo desenvolvimento desigual e combinado das cadeias globais e regionais de valor. Tais características impõem uma sobrecarga sobre as ferramentas diplomáticas, que passam a ter de tratar de uma gama crescente de assuntos nos foros internacionais, multilaterais, regionais e plurilaterais, temas geralmente de base técnico-científica. (...)

(...)

9.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos

Qualquer técnico médio de uma profissão manual devotado a um bom serviço para seus clientes sabe que uma caixa de ferramentas diversificada e bem guarnecida é a melhor garantia de um trabalho bem feito. As caixas do bombeiro, de mecânico, do técnico precisam ter ferramentas para todos os tipos de parafusos, porcas e roscas. 

Todas as três ferramentas diplomáticas são relevantes, cada uma adaptada a circunstâncias específicas. Pretender privar-se de uma delas — do multilateralismo, por exemplo —, por puro preconceito “soberanista” e inaceitável miopia “nacionalista”, representa uma recusa irracional das simples regras de trabalho do técnico médio. Nenhum serviço diplomático digno desse nome pode pretender desempenhar bem suas funções privando-se dos instrumentos mais adequados a cada contexto negociador. (...)

(...)

9.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas

O multilateralismo é, simplesmente, o terreno mais frequente de interações entre Estados soberanos desde pouco mais de um século. A despeito de, por vezes, mais lento e mais complicado, é a melhor garantia de um ambiente sadio para a cooperação externa. Apenas grandes impérios autossuficientes têm a pretensão — mas muitas vezes ilusória — de atuar sozinhos nos foros externos e internacionais. Certamente não é o caso do Brasil; mas, mesmo sendo o maior país no âmbito regional, o Brasil teria muito mais vantagens em atuar de maneira uniforme, isto é, multilateral, com seus vizinhos.

O multilateralismo é a forma predominante da cooperação entre Estados num ambiente cada vez mais interdependente como é o nosso atualmente, mas ele não elimina a cooperação regional e a bilateral para objetivos mais específicos em temas mais sensíveis (segurança, por exemplo). No caso de Estados pequenos, ou dotados de meios modestos de defesa de seus interesses concretos, o multilateralismo pode oferecer salvaguardas relativamente eficientes para defender-se dos abusos dos poderosos. No plano econômico, é evidente que o ambiente multilateral oferece maiores oportunidades de acesso a mercados e regras uniformes do que regras específicas para alguns poucos membros ou participantes em esquemas mais restritos, regionais ou plurilaterais. 

 

9.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores

Apenas noções antiquadas de geopolítica pretendem limitar a esfera dos interesses nacionais ao âmbito de uma geografia determinada, ainda que de alcance regional ou mesmo mundial. A complexa estrutura da economia mundial contemporânea determina, quase que de modo imediato, uma imbricação necessária das economias nacionais, que de resto já funcionam em interdependência crescente, não tanto em função de determinações e escolhas governamentais, mas sobretudo em função de decisões tomadas em nível microeconômico, por parte das empresas privadas, que atuam segundo seu próprio cálculo de modo independente para uma alocação ótima de investimentos diretos. Critérios básicos nesse terreno são a abertura econômica, a criação de um ambiente favorável aos investimentos estrangeiros e a liberalização comercial de modo amplo, se possível ou necessário de modo unilateral. (...)

(...)

9.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado

Durante aproximadamente um século – e a despeito de uma inclinação inicial do regime imperial, sobretudo nas Regências, por uma diplomacia sul-americana –, a referência básica da diplomacia regional brasileira apoiava-se no conceito político de América Latina, que na verdade era mais terminológico do que prático, pois nunca houve, de verdade, uma articulação concreta em torno de objetivos “latino-americanos” comuns, além da confrontação vaga com o grande vizinho do Norte. (...)

(...)

Independentemente, dessas tribulações de antes e de agora, de avanços e recuos no eterno e recorrente projeto de integração regional, é certo que a América do Sul pertence orteguianamente à nossa circunstância, e como tal oferece ao Brasil a grande oportunidade de realizar o velho sonho da constituição de um amplo espaço econômico integrado, e isso só pode ser feito sob a liderança do Brasil, não naquele conceito de comando e controle, como costumam ser os projetos imperialistas, mas num conceito de abertura unilateral de seus mercados a todos os vizinhos sul-americanos, sem exigências de contrapartida ou reciprocidade. O Brasil seria capaz de fazer isto, pelo vigor de sua economia, pelos avanços de sua tecnologia e pela capacidade de absorver os produtos agrícolas e industriais, os serviços de todos os seus vizinhos. Mas, o Brasil será capaz de fazer isso? A resposta dependeria, obviamente de algum estadista diplomático.

 9.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país

Participante da conferência de Bretton Woods, em 1944 (que criou o FMI e o Banco Mundial), fundador do Gatt, em 1947 (ainda que não gostasse dele no início), participante da conferência de Havana, em 1948 (que criou uma primeira organização internacional do comércio, mas que não entrou em vigor), animador de diversas outras conferências econômicas internacionais (geralmente sobre produtos de base) e da reforma do Gatt, em 1964, quando também passou a ser um dos principais “agitadores” da Unctad e de todas as demais iniciativas de criação de uma “nova ordem econômica internacional”, debatedor ativo em praticamente todas as rodadas de negociações do Gatt e, depois, da OMC, o Brasil sempre foi, a despeito de um baixo coeficiente de abertura externa, um grande promotor de reformas no sistema multilateral de comércio e nas demais iniciativas na frente das relações econômicas internacionais, e como tal tem todo interesse em reforçar uma estrutura de normas a serem seguidas por todos os países participantes, evitando o arbítrio unilateral a que recorrem alguns sócios poderosos. 

(...)

9.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos

Apenas a franja lunática de céticos políticos nega as evidências de mudanças climáticas sob a ação da economia industrial e da diminuição da cobertura vegetal natural pela atividade agrícola e de criação, mudança que se faz não apenas no sentido do aquecimento global, mas também da poluição e da diminuição de espécies animais. Infelizmente este é o quadro no Brasil de Bolsonaro, sendo que tais posturas estão sendo implementadas contra os interesses do próprio Brasil, nomeadamente o seu setor do agronegócio, mas também com graves efeitos na sua imagem internacional, pois que combinadas ao negacionismo do presidente e de vários de seus ministros em várias esferas do debate internacional do meio ambiente e da cooperação científica mundial.

(...)

9.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país

Existem acordos, resoluções, declarações, cortes e decisões na área dos direitos humanos, a começar pela Declaração de 1948 e todos os demais instrumentos setoriais que foram sendo criados desde então nessa área crucial dos progressos civilizatórios. Com a democracia, a situação é mais fluída, pois existem menos instrumentos e meios de comprometimento com um conjunto de cláusulas básicas, de seguimento de suas poucas disposições e de monitoramento de seu cumprimento: o Compromisso Democrático da OEA, por exemplo, é bem mais abrangente e avançado do que o Protocolo Democrático do Mercosul, que só pode ser acionado se houver “ruptura democrática”: ou seja, se o eventual membro (como ocorreu com a Venezuela, quando fazia parte) tiver eleições razoavelmente legítimas, mas destruir a democracia por dentro (como aliás vem ocorrendo até em países membros da UE), pode continuar no bloco sem problemas. Nada disso impede o Brasil e sua diplomacia de serem impecáveis em matéria de direitos humanos e de respeito ao espírito e ao conteúdo mesmo dos sistemas democráticos mais avançados, o que está longe de ser o caso no Brasil atualmente. (...)

(...)

9.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa

Blocos e alianças estratégicas deveriam ser como esses remédios de tarja preta, que só podem ser receitados em condições especiais, depois de um bom exame do paciente, da avaliação de seus efeitos colaterais e com um bom seguimento regular por especialistas na questão. Tais agrupamentos têm sido sobre-estimados e sobretudo vendidos a um preço acima de seu valor de mercado. Ao longo da história, muitos desses grupos foram constituídos, geralmente com objetivos econômicos ou de defesa.

Os mais frequentes são os blocos de comércio, mas mesmo aqui, as variedades são muitas, desde os analgésicos das áreas de preferências tarifárias (como os acordos da Aladi, e vários outros pelo mundo, sobretudo entre países em desenvolvimento), ao fortificante das zonas de livre comércio (são centenas e centenas já registradas na OMC (como a EFTA, por exemplo, embora algumas fossem bem mais musculosas, como o antigo Nafta), à vitamina da união aduaneira (o próprio Mercosul é uma, mas parece uma colcha de retalhos, muito perfurada), à anfetamina do mercado comum (o que gostaria de ser o Mercosul, mas ainda não consegue, e que corresponde à Comunidade Europeia nos anos 1960), passando depois aos antibióticos das uniões econômicas e monetárias (só a União Europeia adentrou por essa via, não considerando os países que renunciaram a ter moeda própria), até chegar nos barbitúricos da união política (por vezes por incorporação voluntária ou consentida, em outras por absorção). 

(...)

9.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais

Existem os que podem ser escolhidos, por afinidade política, por intensidade de laços humanos e econômicos, e aqueles que não podem ser escolhidos, que são dados pela natureza e pela história, por contiguidade geográfica ou por vínculos profundos, derivados da própria formação do país e seu desenvolvimento ulterior. O Brasil esteve mais vinculado a Portugal e à Europa durante a maior parte de sua história, depois teve nos Estados Unidos seu principal parceiro para quase tudo, adquirindo agora um grande parceiro comercial e provedor de investimentos e outras vantagens econômicas, numa conjuntura da história mundial em que a Ásia, e a Ásia Pacifico em especial, voltará a ser a região mais rica do mundo, como já foi no passado, superando o mundo norte-atlântico, que dominou a economia (e a política) mundial nos últimos cinco séculos. 

(...)

9.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades

Vantagens comparativas, justamente, constituem a base sobre a qual se assentam os duplos fluxos, in e out, que todo país mantém com todos os demais, à base das assimetrias naturais que são as que sustentam as interações de todos os tipos. O Brasil tem inúmeras vantagens comparativas, absolutas e relativas, e uma análise prospectiva pode revelar em quais direções o país deve dirigir os seus esforços de investimento nos próximos anos, o que exige, obviamente, um governo que escape do jogo mesquinho da política corrente para visualizar os cenários futuros abertos ao engenho e arte do povo brasileiro, dos seus agentes econômicos, dos seus artistas, músicos e esportistas. O mapa diplomático brasileiro é um dos mais extensos do mundo, o que deveria facilitar um esforço de identificação de tendências de consumo e de desenvolvimento em cada um dos países nos quais temos representação. Por uma vez, caberia, sem descurar nossas vantagens baseadas em recursos naturais dos últimos 500 anos, explorar as futuras vantagens, com base na projeção do que podemos fazer no quadro da economia do conhecimento e da sustentabilidade.

 

9.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento

Essa integração sempre existiu, mesmo quando se tratava de defender o tráfico e a escravidão, ou a defesa dos interesses do café e da “valorização” das matérias primas de modo geral. Na fase da industrialização, a postura foi mais defensiva, na justificativa das medidas protecionistas, restritivas e de atração de investimentos. A verdade é que poucos diplomatas se distinguiram na exposição de ideias econômicas que destoassem do consenso geral das elites dominantes, do contrário o Brasil poderia ter exibido uma trajetória mais positiva de desenvolvimento econômico, o que poderia ter sido por eles registrado em alguns exemplos asiáticos que tiveram desempenho bem superior ao do conjunto da América Latina até recentemente. (...)

(...)

9.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil

Não tenho certeza de que o Itamaraty possa servir de força motriz, ainda que ele deveria se esforçar para fazê-lo. Ele tem excelente quadros, gente muito bem preparada e experiente, mas a própria Casa é muito conservadora, muito recatada, quando não submissa aos dirigentes do momento. Para ser força motriz, a Casa ou seus integrantes deveriam oferecer ideias próprias, baseadas no conhecimento profundo que eles devem ter sobre o Brasil e na experiência adquirida na observação atenta de fatos e processos ocorridos na história e na trajetória recente de outros países, todos eles, os bem sucedidos e os fracassados (pois se retiram mais ensinamentos destes últimos do que dos primeiros). Os diplomatas deveriam ousar mais, se é que pensam poder oferecer subsídios a um novo processo de desenvolvimento nacional.

(...)

9.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança

Sempre considerei que, com seus sacrossantos princípios militares da hierarquia e da disciplina, o Itamaraty sempre foi mais feudal do que weberiano, embora tenha sido também razoavelmente meritocrático. Ele consagra, em todo caso, o esforço daqueles que oferecem dedicação integral à Casa, ainda que a custa de certo compadrio e de algumas relações de vassalagem, numa burocracia de boa qualidade que deveria ser bem mais executiva do que relacional. Mas ele não é exatamente patrimonialista, uma praga que infesta várias outras administrações brasileiras, mesmo se alguns barões da Casa tenham aproveitado situações de prestígio e de certa promiscuidade com outros membros das elites do poder para circular entre bons postos no exterior e chefias na Secretaria de Estado, criando uma certa aristocracia da diplomacia. Poucos são os diplomatas de origem modesta que galgaram o cimo da carreira, mas os que o fizeram foi à custa de muito estudo, muito trabalho, bastante dedicação e algumas janelas de oportunidade que podem surgir em determinados momentos da política brasileira.

Uma gestão moderna da Casa teria de preservar as tradições e peculiaridades do serviço diplomático e combiná-las a métodos de trabalho desenhados para a gestão de uma complexa rede de postos no exterior, muito desiguais entre si, e de uma Secretaria de Estado que tampouco pode funcionar como um ministério entre outros. Um bom diagnóstico da situação presente poderia ser feito por uma dessas firmas de organização e métodos, mas isso provavelmente não seria suficiente para um novo esforço de modernização do funcionamento da Casa e dos postos no exterior. O mais provável seria mobilizar mais uma vez a competência dos diplomatas espalhados pelos grandes postos para um grande estudo comparativo sobre a estrutura burocrática e os métodos de trabalho, de comunicação e de processamento das informações com os postos no exterior desses grandes países. Mas teria de ser preciso, mais do que tudo, encontrar um diplomata com alma de burocrata, para processar tudo isso e oferecer algum diagnóstico, em grupo de trabalho, para a partir daí definir as grandes linhas da próxima reforma (elas são sempre necessárias).


Para acesso integral ao livro e aos seus textos, pode ser encomendada à Editora Appris ou à Amazon.


terça-feira, 2 de agosto de 2022

Apogeu e demolição da Política Externa, livro de Paulo Roberto de Almeida, por Ruben Maciel Franklin

Resenha de livro: 

Paulo Roberto de Almeida: 

Apogeu e demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira

Curitiba: Appris, 2021, 292p.

Ruben Maciel Franklin

 

Introdução 

 

Lançado em 2021, o livro Apogeu e demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira, do sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeida, se propõe a elucidar os problemas centrais que percorreram as Relações Internacionais do Brasil nas últimas três décadas. Abrange, então, um período que vai desde a estabilização democrática, em meados dos anos 1990, até a implementação hodierna do programa fundamentalista e ideológico de Jair Messias Bolsonaro. 

O “apogeu”, para o autor, significou uma maior visibilidade de atuação do Itamaraty - o think tank do Ministérios das Relações Exteriores (MRE) -, a partir de relações consensuais e relativamente coordenadas entre os chefes de Estado e diplomatas. Tal situação havia adquirido ânimo com a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1994 – 2002), e se manteve, mesmo com alguns reveses, nas orientações do Governo Lula (2003 – 2010) até o encerramento do lulopetismo, quando do impeachment de Dilma Rousseff e a breve promoção do vice-presidente Michel Temer. A partir de 2019, contudo, após o triunfo da candidatura de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, a Política Externa brasileira conheceria seus anos de “demolição”, sendo submetida a uma reformulação com base em teorias da conspiração que enxergavam o globalismo, o comunismo e o “marxismo cultural” como grandes inimigos do mundo ocidental, numa assimilação esquizofrênica dos slogans de Donald Trump e da extrema-direita estadunidense.

É verdade que o autor se concentra no tempo presente, o que lhe coloca diante das armadilhas de interpretar os eventos no “calor da hora”, quando as ações dos sujeitos históricos se mostram dúbias e atravessadas pelas motivações políticas e ideológicas de sua época. Por outro lado, ele também é bastante arguto em considerar as múltiplas e contraditórias relações temporais que influenciaram os itinerários da nossa diplomacia. Para ele,a compreensão do que significou (e do que significa) a ruptura bolsonarista só é possível mediante uma investigação que situe os conceitos fundamentais e as bases operacionais da diplomacia brasileira nos últimos dois séculos, isto é, a partir das experiências próprias dosurgimento da diplomacia profissional e do Estado independente pós-1822.

O autor

Paulo Roberto de Almeida é Licenciado em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1975), possui Mestrado em Planejamento Econômico e Economia Internacional (Universidade de Antuérpia, 1977) e Doutorado em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984). Entre os anos de 1996 e 1997, elaborou tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco(IRBr), do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Diplomata de carreira, concursado em 1977, o autorexerceu diversos cargos na Secretaria de Estado do MRE e em embaixadas do Brasil no exterior, sendo ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington (1999- 2003) e Assessor Especial do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003  2007)Entre agosto de 201e março de 2019, exerceu o cargo dediretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), da Fundação Alexandre Gusmão, órgão vinculado ao Itamaraty.

Econjunto com a carreira diplomática, ele acumulou vasta experiência na pesquisa e docência universitárias, destacando-se o período em que foi orientador no Mestrado em Diplomacia dIRBr, entre 2004 e 2009, e professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub), de 2004 a 2021.Desde o início dos anos 1990, publicou dezenas de livros e artigos em que investiga os mais diferentes objetos na disciplina das Relações Internacionais do Brasil: historiografia, integração regional e diplomacia econômica, além da produção de ensaios sobre história das ideias políticas. Seu livro Apogeu e demolição da Política Externa encerra um conjunto de cinco obras que ele denominou de ciclo bolsolavistaMiséria da diplomacia (2019), Uma certa ideia do Itamarat(2020), O Itamaraty num labirinto de sombras (2020) e O Itamaraty sequestrado (2021). Nestas, o autor avalia o processo deideologização da política externa a partir da eleição de Jair M. Bolsonaro, bem como suas implicações negativas para a identidade e performance do país nos foros multilaterais.

É importante frisarmos proeminência que o autor adquiriu no campo da historiografia brasileira das relações internacionais, sendo nome recorrente nas ementas de disciplinas universitárias, ao lado de outros intelectuaiscontemporâneos, tais como: Paulo F. Vizentini, Norman B. dos Santos e Henrique A. OliveiraSeu livro Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalizaçãolançado em 1998, é uma das poucas interpretações que realiza uma síntese histórica das relações internacionais do Brasil de modo a situar as linhas gerais de atuação da diplomacia e sua relevância nos projetos de formação da nação.

O(s) Contexto(s)

A publicação de Apogeu e demolição da Política Externa deve ser encarada como um projeto intelectual que reúne dimensões científicaspolíticas e ideológicasÉimpossível menosprezarmos o lugar social de seu autor, que é um diplomata de carreira, com décadas de experiência tanto no MRE quanto na docência universitária. É a partir desse lugar que ele investe contra as deformações da diplomacia brasileira inauguradas pelo governo de Jair M. Bolsonaro, sendo uma testemunha imediata das transformações ocorridas dentro do Itamaraty, assim como um investigador que procurasistematizar essa conjuntura de turbulências com relativograu de distanciamentoA tensão dialética entre subjetividade e objetividade está no escopo da obrae o autor nunca deixa que a sua defesa da tradição diplomática (isonomia, hierarquização, profissionalização) se reduza aterreno metafísicoAs feições da diplomacia bolsonarista são descobertas no campo teórico-metodológico das Ciências Sociais, pelo qual temos acesso aos modelos descritivos, comparativos e explicativos que apresentam os condicionantes históricos e as ações políticas que vieram a estabeleceo apogeu e demolição da política externa.

A polarização ideológicasobretudo, nas últimasdécadastrouxe implicações indeléveis sobre o papel das relações exteriores no tocante ao desenvolvimento social e econômico do país. A diplomacia se transformou numaplataforma de luta política no interior de uma democracia representativa e pluripartidaristaisto é, uma arena de embates sobre as alternativas e/ou caminhos de inserçãodo Brasil no capitalismo internacional. Quanto isso, o autor deixa entrever uma diplomacia que foiconstantemente sacrificada em prol de interesses ideológicos ou personalistas de algum presidente. ANova República, a partir dos anos 1980, fora gerida por uma diplomacia presidencial que oscilou entre abertura econômica e nacionalismo, o pragmatismo (FHC) o personalismo (Lula); não obstante, esse tipo de negociação se justificasse pela busca permanente dos interesses nacionaisNesse ínterimo livro averígua como a ascensão de uma nova direita, radical e sectaristacriouuma atmosfera favorável para o êxito eleitoral de Jair M. Bolsonaro e, consequentemente, de validação das teorias conspiratórias (marxismo cultural, anticomunismo e globalismo) que viriam demolir os pilares do Itamaraty.

Tem-se em vista, igualmente, a dinâmica de interação entre política interna e política externa, ocasião em que o autor desenvolve uma crítica mordaz ao negacionismo e revisionismo históricotáticas bolsonaristas que incidiram na desconstrução da imagem positiva do Brasil noexterior. A relativização da pandemia covid-19, a recusa da política ambiental e o desrespeito aos direitos dasminorias sociais (indígenas, quilombolas, mulheres, negros, LGBTQI+ etc.) implodiram o protagonismo da nação nos fóruns internacionais, transformando-a num pária diplomáticoÉ daí que Paulo Roberto de Almeida se ocupa de um novo planejamento estratégico para oMRE, almeja uma diplomacia profissional de caráter intelectualhierárquico e consultivo, imagina uma reviravolta na ideologização interna/externa e um conjunto de medidas outras no plano multilateral e de integração regional que reinventasse a projeção internacional do Brasil. 

A obra e comentários à mesma

Dos seis capítulos que compõem o livro, cinco deles analisam as diferentes conjunturas históricas da Política Externa brasileira. Eles possuem uma estrutura mais ou menos similar, embora com temáticas específicas (historiografia, periodização histórica, processos decisórios, diplomacia presidencial e profissionalização). Num primeiro momento, o autor se atém ao elitismo intelectual e aristocrático dos regimes monárquicos, depois passa um olhar sobre a orientação hierárquico-comercialista da República Velha (1889 – 1930), para, então, destacar o personalismo e a busca pela autonomia erguidas no varguismo (1930 - 1945). Mais adiante, ele desenvolve o significado de soberania, alinhamento, autonomia e/ou independência nacionais a partir do pragmatismo assumido pela Ditatura Militar (1964 – 1985), que, a despeito, abriria o horizonte para o status de profissionalização e unificação dos processos decisórios nos anos de redemocratização. 

Uma vez expostos as oportunidades e os obstáculos encontrados pela diplomacia brasileira naquela que seria sua tarefa máxima, a contínua modernização econômica, encontramos um sexto e último capítulo que mapeia as ações a serem executadas no intuito de reconstrução do papel do Itamaraty. É importante frisarmos a importância do sexto capítulo no quadro geral do livro, pois este funciona como uma agenda programática que informa alternativas para a superação daquilo que Paulo Roberto de Almeida chama de “antidiplomacia”, ou de “diplomacia bolsolavista”, isto é, as práticas megalomaníacas implementadas pela chancelaria de Bolsonaro (inspiradas nas ideais de Olavo de Carvalho) que contrariavam uma longa tradição de deferência ao Direito Internacional, de busca pelos interesses nacionais e de não-intervenção em assuntos externos. Sendo assim, obtemos um exame sucinto dos princípios que deveriam orientar as relações do Brasil no capitalismo globalizado, tais como multilateralismo, bilateralismo e regionalismo, além de proposições relativas às políticas públicas (meio ambiente, educação, renda social, combate à corrupção) a serem negociadas no âmbito de uma Política Externa que fosse conduzida como parte integrante de um projeto maisamplo de desenvolvimento nacional.

Quanto a isso, enxergamos igualmente uma ênfase sobre as “grandes linhas de atuação” da Política Externa, algo que percorre a obra como um todo. A começar pelo primeiro capítulo, intitulado “Relações Internacionais do Brasil: uma síntese historiográfica”, no qual o autor analisa um conjunto de obras que, desde meados do século XIX, interpretaram os contornos da história do Brasil tendo como medida o lugar de destaque assumido pelas Relações Internacionais. Nesse ponto, o autor demarca os pontos de inflexão de uma historiografia brasileira da Relações Internacionais, optando por uma breve análise daquelas obras que ele considera como sendo as “leituras panorâmicas” ou “sínteses históricas” de uma diplomacia com feições nacionais. 

Sua periodização se detém inicialmente na “fase historicista”, cujo principal nome é Francisco A. de Varnhagen, o qual elabora a uma leitura positivista e triunfalista do Brasil que é abraçada, posteriormente, pelos manuais escolares de João Ribeiro e de Oliveira Lima. Na sequência, uma “fase cientificista” seria protagonizada por Pandiá Calógeras, que, entre 1927 e 1933, publicaria os três volumes da História da Política Exterior do Império. Somente no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, como resultado das aulas ministradas no Instituto Rio Branco (IRBr), Delgado de Carvalho (1959) e Hélio Vianna (1961) publicariam seus manuais didáticos de história diplomática, num momento em que a diplomacia começaria a angariar algum espaço nas universidades. À revelia de sua metodologia linear, cronológica e descritivados eventos, ou seja, uma história essencialmente política, Paulo Roberto de Almeida assinala que “uma das características detectadas nesses trabalhos acadêmicos [“fase academicista”] foi o objetivo de identificar as grandes linhas da política externa brasileira, que teriam influenciado ou permitido (ou não) o atingimento da autonomia nacional” (ALMEIDA, 2021, p. 57). 

A historiografia, grosso modo, evidenciaria uma atuação propositiva e relativamente autônoma do Brasil cenário global. As leituras sobre o processo de independência, a descrição do funcionamento dos tratados comerciais e das questões em torno do tráfico atlântico, assim como das negociações relativas às fronteiras e circulação no Rio da Prata durante o século XIX, podem ser vistas como os primeiros ensaios de projeção da nação recém-independente. Uma disposição político-ideológica que fora acompanhada pelo historiador José Honório Rodrigues em suas notas de aula para o IRBr, datadas de 1946 a 1956, mas publicadas somente em meados dos anos 1990, como Uma história diplomática do Brasil. De acordo com Paulo Roberto de Almeida, os novos e originais manuais de História Diplomática, de Amado Cervo & Clodoaldo Bueno (1992) e Rubens Ricupero (2017), surgiriam apenas nos anos 1990, acompanhando as exigências do crescimento da área no ensino superior e agora sob a chancela teórico-metodológica do estruturalismo (“as forças profundas”), do desenvolvimentismo e da percepção de uma identidadenacional. Em resumo, um exame da historiografia seria a chave para compreendermos os objetivos permanentes (e nunca inteiramente alcançados) da política externa brasileira, “(...) como sendo a afirmação e a consolidação da independência nacional, bem como a busca do desenvolvimento econômico” (ALMEIDA, 2021, p. 57).

A obra em questão, Apogeu e demolição da Política Externa, poderia muito bem ser incluída nesse rol historiográfico. Em seu segundo capítulo, “As Relações Internacionais do Brasil em perspectiva histórica”, o autor esboça as linhas de continuidade e ruptura da diplomacia brasileira num exercício de periodização que se inicia no Império (1822 – 1889) e alcança a “antidiplomacia” bolsonarista. Ele percorre algumas etapas cruciais de evolução das Relações Internacionais, sempre colocando em relevo a condição inegociável de autonomia e reciprocidade no que se refere as escolhas estratégicas dos agentes e instituições no sentido de construção da Nação. Exemplo significativo seria o da Era Vargas, no qual a atuação engenhosa de Oswaldo Aranha garantiria a aliança com os Estados Unidos no contexto de Segunda Guerra (1939 – 1945) e, com isso, os subsídios necessários para a implementação de uma base siderúrgica. Até mesmo durante o Regime Militar, de viés autoritário e tecnocrata, houve um expediente de não alinhamento aos interesses imperialistas estadunidenses e manutenção de uma margem de liberdade para busca de novos mercados, além de elevada autonomia para o crescimento da diplomacia profissional.

A transição para o regime democrático em meados dos anos 1980, recebendo o legado terceiro-mundista e desenvolvimentista acalentando pelos militares, bem como o endividamento externo advindo das aventuras do “Brasil Grande Potência”, teve que ser amparada por uma diplomacia presidencial que se propusesse a inserir o país num plano mundial caracterizado pelo desaparecimento da URSS e expansão do capitalismo globalizado. Paulo Roberto de Almeida afirma que, entre 1985 e 2002, os chefes de Estado (Sarney, Collor e Franco), em especial,Fernando Henrique Cardoso, acionaram o staff diplomático para avançarem nos objetivos de abertura econômica e estabilização financeira. Daí saíra a criação de uma nova moeda, o Plano Real, além do ímpeto pelas negociações inter-regionais e busca pela integração na América do Sul (MERCOSUL). 

Essa diplomacia presidencial teria sua culminância na presidência de Lula, o qual, a partir de 2003, inaugurou uma espécie de diplomacia às avessas, onde as decisões partiam do chefe de governo na direção dos secretários e diplomatas. Altos investimentos publicitários na figura do Presidente, seguindo-se de visitas aos líderes de países vizinhos ou das grandes potências, trouxeram uma “roupagem personalista” no exercício diplomático. Um tipo de diplomacia cujas metas se confundiam com a plataforma ideológica do Partido dos Trabalhadores (PT), isso em seu apoio aos candidatos progressistas na América Latina e a abertura de embaixadas em países africanos e asiáticos, o que, em teoria, criaria um ambiente de relações amistosas no âmbito do Sul Global. O lulopetismo, de tal modo, cultivou suas próprias antinomias em matéria de Política Externa: foi personalista, mas intensificou as relações bilaterais e multilaterais; projetou uma dinâmica de interação Sul-Sul, sem que isso fosse revertido em saltos mais significativos na integração regional ou redefinição do lugar periférico ocupado pelo Brasil nos organismos internacionais. 

É preciso ressaltar que o Itamaraty, nesse período, se mantivera como lugar de razoabilidade, resguardando seus matizes de multilateralismo e isonomia nos processos decisórios. Algo que foi preconizado no curto intervalo de tempo em que Michel Temer esteve à frente do governo, quando parecia que a Casa finalmente retornaria aos seuspadrões tradicionais de disciplina e hierarquização. Não obstante, a corrida eleitoral de 2018 e sua manifesta polarização entre esquerda e direita, colocaria as Relações Internacionais no “olho do furacão”. A vitória de um candidato de extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro, sem que apresentasse qualquer programa relativo à Política Externa, colocaria em xeque as raízes históricas e fundacionais da diplomacia nacional.

Inicia-se, então, o que Paulo Roberto de Almeida anuncia como a “diplomacia bizarra” de Bolsonaro, com a adoção de métodos e discursos “nunca antes” vistos em matéria de defesa dos interesses nacionais. Primeiramente, o diplomata recai sobre o inútil programa de Política Externa apresentando junto ao TSE, o qual se parecia mais com um panfleto partidário baseado em abstrações teóricas e revanchismos ideológicos. A ideia era romper com os princípios de cooperação e de não-intervenção, anulando os conceitos de multilateralismo e universalismo do Itamaraty ao sugerir uma subserviência inédita aos Estados Unidos, naquele momento representando pela figura de Donald Trump. Na prática, os primeiros anos de governo Bolsonaro reduziram o Brasil à condição de “pária internacional”. Além da descortesia do Presidente com os líderes estrangeiros (França, Alemanha, Chile) e do crasso louvor às ditaduras, o que se viu foi um negacionismo em questões extremamente relevantes da política exterior, como Meio Ambiente, Direitos Humanos, e, sobretudo, na ausência de mecanismo de combate à pandemicovid-19.

No terceiro capítulo, “Processos decisórios na história da Política Externa brasileira”, obtemos um quadro geral de como o fundamentalismo olavista (“o bolsolavismo”) demoliu a estrutura orgânica – formalizada, hierarquizada, burocratizada – do MRE. Na contramão de reconhecida profissionalização dos “negócios do exterior” que, desde o final do século XIX, se pautava na seleção e formação de diplomatas, aspecto que se consolidou quando da criação do IRBr, em 1945, Bolsonaro iniciou uma reformulação drástica nos quadros decisórios do Itamaraty no sentido de atender às demandas de sua “franja lunática”.

A ausência de qualquer sinal aparente de processo decisório no governo de Bolsonaro – que, na verdade, representa um amálgama altamente diversificado de grupos de influência, sem qualquer qualificação intelectual reconhecida, com grande ênfase em círculos conservadores ou de extrema-direita, quando não reacionários e saudosistas da ditadura militar – pode ser aferida antes mesmo do início do seu governo, quando o candidato e membros da sua esfera familiar começaram a anunciar as grandes linhas de um governo que já prometia, de imediato, estremecer as bases tradicionais de funcionamento das políticas públicas, em particular da política externa. Com efeito, desde vários meses antes de sua eventual eleição já se sabia que o candidato, deum anticomunismo primário que faria corar os generais mais comprometidos com a ditadura militar, exibia, em qualquer ordem que se queira destacar, as seguintes “peculiaridades”: notória ojeriza à China comunista; uma especial admiração por Israel e pelos Estados Unidos (mas em especial pelo presidente Trump); que ele odiava o “marxismo cultural” das universidades brasileiras, o “politicamente correto” dos círculos progressistas, intelectuaise da esquerda em geral; que ele detestava todas as medidas em favor de minorias – sua homofobia foi várias vezes ressaltada, por ninguém menos do que ele mesmo –, com ênfase nos direitos indígenas, das mulheres, de eventuais contraventores (naquela visão fascista de que “bandido bom é bandido morto”); que desprezava qualquer compromisso com políticas de sustentabilidade (um conceito para ele não só inexistente, como sobretudo impertinente); que pretendia retomar a exploração de áreas protegidas; que pretendia abolir determinadas medidas protetivas no campo da fiscalização dessas áreas; que estimulava abertamente o armamentismo, os infratores de normas legais (tráfico, caça e pesca etc.) e várias outras coisas mais, num catálogo bastante amplo de “inovações” conceituais e práticas(ALMEIDA, 2021, p. 143 e 144)

Já no terreno da Política Externa, 

(...) também se sabia que o presidente e seu chanceler designado pretendiam dar combate direto à “esquerdalha” latino-americana, escorraçar o Foro de São Paulo do continente – sob recomendação do seu guru sempre elogiado, o sofista expatriado na Virgínia – e pretendiam fazer aliança com outros líderes de direita da região e fora dela. A violação dos processos decisórios típicos do Itamaraty teve início ainda antes da assunção do governo, quando um grupo de neófitos e amadores, acompanhados por não mais do que três diplomatas engajados na nova equipe, conduziu à mais radical reforma da estrutura e dos procedimentos no Itamaraty, sem qualquer consulta à Casa, a qual “desabou” sobre a instituição nos primeiros dias do bizarro governo: para sinalizar “mudança radical”, todos os nomes de todas as unidades do organograma do Itamaraty foram alterados (em alguns casos com substitutivos absolutamente ridículos, abusando do conceito de soberania, por exemplo), o que poderia representar, talvez, uma mera mudança cosmética, mas que na prática significou a alteração de vínculos de subordinação e uma pequena revolução na estrutura do processo decisório, justamente. Divisões foram extintas, outras criadas, ao sabor das alucinações da pequena patota que trabalhou clandestinamente, ou pelo menos em segredo, no âmbito da equipe de transição: todos os relatórios sobre o “estado da arte” da agenda diplomática em curso foram prestados pelo governo Temer e pelo Itamaraty do ministro Aloysio Nunes, mas supõe-se que pouco foi utilizado naquelas poucas semanas febris (ALMEIDA, 2021, p. 144).

 

De algum modo, Jair Messias Bolsonaro pode ser encaixado no conceito de “diplomacia presidencial”, que éo mote central do quarto capítulo, “A política da Política Externa: as várias diplomacias presidenciais”. O que lhe diferencia do protagonismo de outros presidentes na história da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel, José Sarney, Fernando H. Cardoso e Lula), é a completa inversão da tendência de autonomização e busca do universalismo nos acordos geopolíticos. Enquanto os governos anteriores investiram sua personalidade na defesa de um projeto demodernização econômica e ampliação da rede de negócios internacionais, o radicalismo de Bolsonaro tendia a fazer do país uma extensão da política exterior dos Estados Unidos. Em resumo, o personalismo autoritário bolsonarista erigiu uma Política Externa publicista, ideologista, conspiratória, reducionista, subserviente e amadora. Nas palavras de Paulo Roberto de Almeida (2021, p. 195), “se existe alguma liderança presidencial, é no sentido da destruição, da demolição das políticas e das instituições existentes, com arremedos de ações disparatadas em seu lugar”.

Balanço 

A “antidiplomacia” a que o autor faz alusão se justifica pelo isolacionismo a que o Brasil foi submetido no que concerne aos principais debates internacionais sobre educação, meio ambiente, aquecimento global, direitos humanos e políticas sociais voltadas para às minorias (negros, indígenas, mulheres etc.). A postura negacionista com relação a essas pautas, somando-se a constante atmosfera de animosidade e de ruptura com os governos progressistas sul-americanos, trouxe enormes prejuízos à imagem do Brasil. A curto prazo, os surtos ideológicos do Presidente inviabilizaram acordos vantajosos entre Mercosul e União Europeia, reduziram a potencial de comercialização de gêneros alimentícios com a China, entre outros parceiros dito “comunistas”, além de ter impulsionado a crise de uma economia já duramente atingida pela pandemia.

Os “anos Bolsonaro” talvez sejam aqueles que melhor representam “O outro lado da glória: o reverso da diplomacia brasileira”, que é justamente o objeto de análise do quinto capítulo. Em duzentos anos de História Diplomática, é certo que o Brasil conheceu uma série de reveses: os tratados comerciais com a Inglaterra no início do século XIX, as etapas de alinhamento americanista no Império e na Primeira República, o endividamento externo do nacional-desenvolvimentismo (de JK aos militares), e, sem dúvida, os avanços e recuos ideológicos das várias diplomacias presidenciais. Todavia, seguindo a trilha do autor de Apogeu e demolição..., nenhum dos fracassos demarcados anteriormente se compara a total deformação das Relações Internacionais do tempo presente. Sua frente capital, a aversão ao “globalismo” (numa leitura superficial sobre ideologia de gênero, multilateralismo, ambientalismo, “marxismo cultural” etc.), visto como um dos pilares de destruição do ocidentalismo, significara uma derrapagem nos julgamentos racionais que nortearam a tradicional diplomacia brasileira. Desse modo, somente um “planejamento estratégico” poderia restaurar as funções de representação, comunicação e negociação do Itamaraty, no sentido de acentuar a inserção internacional do país. A superação desses anos de espetáculo obscurantista teria que vir pela adesão ao Direito Internacional, a construção de parcerias heterogêneas (regionais, continentais e intercontinentais), a previsão de entrada em blocos estratégicos, uma abertura econômica gradual e, por fim, um compromisso com os valores que regem as constituições democráticas. 

Segundo Paulo Roberto de Almeida, a diplomacia não pode alcançatais objetivos isoladamente. Ela é uma das ferramentas subsidiárias que pode influir (ou não) em programas políticos e/ou escolhas vantajosas aos níveismicro e macro. Sua contribuição na elaboração de umprojeto de desenvolvimento social e econômico depende das articulações entre governantes, instituições, sociedade civil e elites locais, observando-se, então, as condiçõesobjetivas de inserção da nação num sistema capitalistaglobal e em contínua transformação. 

 

 

Ruben Maciel Franklin

Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), Ceará, Brasil

Bolseiro de estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra, CEIS20, FLUC

rubenmaciel@unilab.edu.br

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