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sábado, 23 de março de 2024

O moderno Príncipe e os principados da atualidade: Maquiavel aplicado à política contemporânea - Paulo Roberto de Almeida


 2275. “O moderno Príncipe e os principados da atualidade: Maquiavel aplicado à política contemporânea”, Brasília, 25 maio 2011, 9 p. Adaptação dos capítulos 1, 3 e 4 do livro O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Brasília: Senado Federal, 2010). Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 121, junho 2011, p. 67-73; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13530/7062). Relação de Publicados n. 1035.

O moderno Príncipe e os principados da atualidade:

Maquiavel aplicado à política contemporânea

 

Paulo Roberto de Almeida *

 

Resumo: Releitura da obra clássica de Maquiavel, adaptando seus argumentos sobre os tipos de regimes e sobre a natureza da dominação política às características dos Estados modernos, divididos em democracias e simulacros de democracia. A despeito da aparente similaridade entre as modernas democracias de mercado, cada um dos Estados capitalistas contemporâneos apresentam peculiaridades próprias, assim como são distintos os regimes existentes na América Latina.

Palavras-chave: Tipos de dominação. Maquiavel. Estados modernos. América Latina.

 

Dos regimes políticos: os democráticos e os outros

Maquiavel pretendia, em um curto capítulo inicial ao seu De Principatibus, que todos os estados e todos os governos que tinham exercido ou que ainda exerciam certo poder sobre a vida dos homens fossem apenas de dois tipos: ou eram repúblicas ou principados. Estes últimos seriam do tipo hereditário, ou seja, descendente de antigas linhagens, ou novos, isto é, adquiridos pela via das armas, fossem estas armas alheias ou as do próprio príncipe, devendo este a sua posse à sua boa sorte (fortuna) ou ao seu próprio mérito (virtù).

Modernamente, pode-se dizer que todos os estados ou governos existentes, que têm ou pretendem ter autoridade sobre os homens, são, única e exclusivamente, de dois tipos: ou são democracias ou são simulacros de democracia; estes últimos se distinguem entre, de um lado, os despotismos abertos, reconhecidos como tais, e, de outro lado, modalidades variadas de ditadura, algumas disfarçadas de “repúblicas populares”, outras consistindo simplesmente de ditaduras “constitucionais”. 

As verdadeiras democracias são ainda em número restrito, mas sua presença e sua importância no mundo atual vêm aumentando, ainda que progressivamente. Em tempos recuados, existiram “democracias políticas”, mas elas conviviam com regimes de servidão humana e a exclusão das mulheres, como na Grécia antiga, ou se tratava de uma democracia unicamente para os patrícios, como na Roma republicana. Nos tempos modernos, as democracias assumiram a forma representativa parlamentar, incorporando progressivamente todos os estratos da sociedade, como no exemplo britânico, a mais longeva democracia conhecida na era moderna.

Houve um tempo, até meados do século 20, em que as democracias conformavam um arquipélago muito reduzido de países, quase todos no hemisfério norte, praticamente submergido num mar de autoritarismos (quando não de totalitarismos abertos). Impulsos autoritários, em países vivendo crises econômicas ou políticas, podiam transmutar-se em golpes ou em assaltos revolucionários ao poder – como no famoso caso da revolução francesa –, transformando sociedades por si estruturalmente antiliberais – geralmente devido à fragilidade da sociedade civil – em ditaduras abertas ou em estados totalitários. 

A prática das ditaduras contemporâneas começou com Lênin, que liderou, não uma revolução, mas um simples golpe militar. A tomada do Palácio de Inverno, em 1917, foi um putsch e não um “assalto ao Céu” feito pelo proletariado russo. Mussolini aprendeu com Lênin, e realizou, em 1922, uma marcha sobre Roma que levou depois ao stato totale. Hitler tentou seguir seu exemplo em 1923, mas falhou miseravelmente e passou algum tempo na cadeia, quando concebeu um sistema de propaganda viciosa e de milícias armadas que facilitou sua ascensão ao poder dez anos depois. Enquanto isso, Portugal salazarista inaugurava o gênero na península ibérica, seguido alguns anos depois pela Espanha franquista, ao mesmo tempo em que Getúlio Vargas também instalava o seu “Estado Novo” no Brasil.

Os políticos, e mesmo os cidadãos comuns, dos poucos sistemas liberais então existentes, consideravam que a democracia não era um regime adequado para beduínos ou camponeses ignorantes, mas ainda assim procuraram, em alguns casos, inculcar alguns rudimentos de democracia nos sistemas por eles dominados. Foi assim que a Índia colonial aprendeu o rule of law e algumas regras de representação política que depois seriam seguidas pelo país tornado independente. A Inglaterra imperial fez provavelmente mais pelo progresso ulterior da Índia do que Ghandi com todos os seus ensinamentos pacifistas, que finalmente serviram muito pouco na construção da Índia moderna: a despeito de enormes problemas de pobreza e de divisão étnica da sociedade, a Índia permanece uma grande democracia. A maior parte dos demais países da África e da Ásia, no entanto, não teve tanta sorte assim, e a inexistência de estruturas políticas representativas, ao serem liberados do “jugo colonial”, mergulhou-os numa sucessão de lutas intertribais e raciais que conduziram à falência dos novos estados.

Na América Latina, a evolução foi diferente, mas nem por isso mais feliz: a maior parte dos países, independentes a partir do início do século 19, degenerou para o caudilhismo anárquico, passando a conhecer a instabilidade como regra; alguns novos estados tentaram o sistema das monarquias “ilustradas”, mas nem por isso eram menos oligárquicos ou plutocráticos. Já no século 20, a fragilidade ou mesmo a raridade de um verdadeiro sistema representativo na experiência política brasileira levou um famoso brasilianista – Thomas Skidmore – a intitular o seu primeiro livro sobre o Brasil moderno de Politics in Brazil, 1930-1964: an experiment in democracy, ou seja, uma tentativa de democracia, pois lhe pareceu que tínhamos tido apenas alguns breves interregnos liberais num continuum autoritário.

Em que pese dispor hoje de um regime democrático aparentemente estável, o Brasil ostentou simulacros de democracia durante muito tempo, seja ao tempo da monarquia ilustrada – que fazia de conta que reproduzia o parlamentarismo inglês, mas sustentava o mais tenebroso escravismo –, seja nas cinco ou seis repúblicas que se seguiram, várias tuteladas pelos militares, cingidas na representação política e excludentes do ponto de vista social. Pela fortuna ou pela virtude, o Brasil alcançou uma democracia que pode ser chamada de plena, tendo atravessado uma transição política exemplar nas eleições de 2002, tendo assistido à passagem do poder político de um sistema de “cabresto” das elites “ilustradas” para as mãos de um representante dos extratos populares.

 

Da variedade de estados capitalistas

É nos principados novos que residem as principais dificuldades políticas para a boa administração da coisa pública, como já reconhecia Maquiavel. Dentre os novos principados, nos interessamos, especialmente, por aqueles que forneceram material empírico a vários teóricos das ditaduras e dos modelos de transição para as democracias, pois são os protótipos de regimes mistos (isto é, compostos) que devemos discutir.

Comparados às velhas monarquias europeias, dotadas em sua maior parte de parlamentos que têm raízes nos tempos medievais, os países do continente americano ganharam sua autonomia política há cerca de dois séculos apenas, em média, e neles são ainda mais recentes, com exceção da grande república do norte do hemisfério, os arranjos governativos baseados na liberdade partidária e em uma representação parlamentar verdadeiramente popular. Em face da secular monarquia inglesa, cujos princípios constitucionais foram forjados ainda antes dos invasores bretões, esses principados das Américas apresentam uma experiência constitucional relativamente confusa, engendrada pela superposição ou eliminação de várias cartas magnas, quase sempre o fruto de tempos turbulentos e de aventuras militares.

Alguns conselheiros dos príncipes modernos podem pensar que países instáveis como os principados latino-americanos são mistos, isto é, heterogêneos, entendendo eles que, por um lado, essas formações ainda são pouco desenvolvidas, econômica e politicamente, e que, por outro lado, apenas as democracias capitalistas avançadas seriam homogêneas e uniformes em seus regimes políticos e formas de governar. Quão errados estão esses ideólogos, porque se há um traço que caracteriza os estados do capitalismo avançado, isto é, os regimes de mercado e as democracias burguesas, é precisamente sua diversidade política nas formas de regime e nos sistemas constitucionais. O fato de se pensar a modernização capitalista em termos de tendências convergentes de organização e de evolução da economia, da sociedade e do estado em todos os principados modernos implica a aceitação de um modelo considerado “ideal” de desenvolvimento histórico e sua elevação ulterior à categoria de “paradigma” para a abordagem analítica dos casos particulares.

Não obstante os traços comuns e, portanto, uniformes, esses principados capitalistas resultam em tipos distintos, isto é, mistos, de organização política e social. Suas tendências de organização são extremamente diversificadas e únicas em cada um dos principados, tomados individualmente. As estruturas e relações de classes — senhores, burgueses livres, membros do clero, arraia miúda, etc. — assim que os sistemas de poder e os tipos de autoridade dos príncipes diferem enormemente nesses principados e não são assimiláveis entre si senão em relação a um mesmo quadro de referência global tomado em sua mais ampla generalidade: economia de mercado (isto é, capitalismo avançado) e democracia formal (isto é, burguesa). 

De fato, qualquer conselheiro do príncipe trabalhando em perspectiva comparada sobre os sistemas econômicos, sociais e políticos desses principados modernos saberia ultrapassar a aparente uniformidade das estruturas e das tendências de desenvolvimento para identificar os traços distintivos na evolução de cada um deles: tradição liberal, consenso social, tendências latentes ao self-government e papel restrito do estado central nas experiências britânica e americana; polarizações sociais e políticas, capitalismo “difícil” e estado centralizado no caso francês; tradição elitista e burocrática, capitalismo concentrado, estado dominador na versão alemã; sociedade hierarquizada, capitalismo altamente organizado e estado “instrumental” na experiência japonesa.

O fato de que esses principados modernos apareçam hoje como ‘uniformemente’ democráticos, não afasta o elemento estrutural de que eles são, na verdade, mistos, no passado e atualmente, tendo percorrido um longo itinerário histórico de revoluções políticas e sociais para consolidar, não um modelo único, mas regimes diversos de governança política que permanecem o que eles sempre foram: principados mistos. 

O que representa, de certo modo, a mais poderosa democracia imperial de nossa época senão um regime de poder caracterizado pelo presidencialismo congressual, levando em conta os enormes poderes que detêm ambos, o príncipe eleito e o congresso do povo naquela grande democracia setentrional? O que constitui, por outro lado, o regime misto do modelo francês, que tem um presidente responsável pela política externa e pela defesa, mas que escolhe um primeiro ministro que depende, por sua vez, da confiança do parlamento? E o sistema imperial japonês e o monárquico espanhol, que têm presidentes de conselho apontados pelo príncipe, mas de fato dependentes do voto popular e de uma maioria parlamentar bastante clara? Regimes unitários se alternam a sistemas federais, com eleições diretas ou indiretas dos chefes de estado ou de governo sem que fique abalada a característica básica desses principados: sua natureza democrática e sua base econômica capitalista. 

Os principados mistos da América Latina também parecem prontos a empreender a aventura da tolerância e estabilidade. Talvez os cidadãos devam ainda eleger príncipes virtuosos que os façam mais facilmente atravessar o purgatório da acumulação primitiva do capitalismo, a anarquia dos mercados e a selva selvaggia dos especuladores e usurários, que nada mais são senão aventureiros dotados da sede desenfreada do lucro, o que por si só é garantia de circulação de riqueza e de crescimento da renda (na medida em que eles atiçam o espírito inovador dos agentes privados).

O mais provável é que eles não tenham vivido tempo suficiente em liberdade para começar a praticar eles mesmos aqueles modelos de self-government que distinguem os principados de linhagem anglo-saxã dos demais. E o principal costume de liberdade que eles devem ainda conhecer mais de perto parece ser o da liberdade econômica. Porque o que qualquer conselheiro do príncipe mais avisado e atento terá deduzido por si mesmo é que o que mais que tudo separa os principados daquela linhagem dos de tradição ibérica — isto é, centralizadora — é esta regra simples da vida econômica: tudo o que não estiver expressamente proibido nas leis saxãs está ipso facto permitido; o súdito ou cidadão pode empreender por sua própria conta e risco tal atividade econômica; inversamente, tudo o que não estiver amparado num alvará régio ou num decreto do príncipe ibérico está ipso facto proibido e depende, por conseguinte, de um decreto do parlamento para poder ser transferido, ao cabo de ingentes esforços e outras tantas acrobacias burocráticas (e pagamento de propinas), ao domínio da iniciativa privada.

Em qualquer hipótese, nem tudo está perdido quando a fortuna e a virtude se combinam para criar circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento político e econômico de um principado novo. Se os príncipes que governam esses imensos territórios forem avisados para não mudar muito as leis e não se aumentarem os impostos, o território conquistado pode ser a base de um principado ativo e feliz. 

E um dos maiores e mais eficientes remédios seria aquele do príncipe conhecer os hábitos dos seus governados e corresponder aos seus desejos de liberdade econômica e de autonomia política. Os súditos ficam satisfeitos porque o recurso ao príncipe se torna mais fácil, donde têm mais razões para amá-lo, querendo ser bons, e para temê-lo, caso queiram ou pretendam desrespeitar as leis do principado. Os súditos ou cidadãos de tal principado não precisam, desse modo, temer a ofensa do príncipe, pois que ele já não precisa expedir tantos alvarás como antigamente, posto que a liberdade econômica é a regra e não a exceção. 

Disso se extrai um princípio geral que nunca ou raramente falha: a verdadeira causa do poderio e do progresso de algum principado é liberdade econômica que, combinada à liberdade política, assegura longa vida ao príncipe e sucesso nos seus empreendimentos.

 

Do governo pelos homens e do governo pelas leis

Os principados que se conservam na memória, e que entraram na História, seja como sucesso ou como fracasso, têm sido governados de duas formas. A primeira, por algum príncipe despótico e por seus barões e auxiliares. A segunda, por um príncipe que estabelece a lei nos territórios conquistados e faz dos antigos servos, vassalos e outros súditos homens livres; estes, então, passam a decidir sobre os seus negócios com base nos seus próprios contratos e nos códigos do príncipe, que regulam a designação e o trabalho dos ministros, por graça e concessão dele, mas também inspirados no costume e na lei; com isso, esses homens livres ajudam a governar o estado. 

Ainda podem ser encontrados exemplos dessas duas formas de governo, nos dias que correm. Os homens dos principados baseados nos códigos e nos contratos têm sido mais felizes e ditosos, pois que não precisam amar ou temer a seus senhores, e sim apenas respeitar as leis que eles mesmos fizeram e votaram ou que lhes foram outorgadas por seus pais e avós. Ainda que possam dedicar natural afeição aos seus senhores, eles assim se conduzem também por interesse próprio, não porque a isso tenham sido obrigados pelo arbítrio do príncipe ou de seus barões. Eles entregam de bom grado uma parte de suas colheitas aos coletores do príncipe, pois sabem que uma parte dela será empregada na construção de pontes e diques, ou no pagamento de soldados que não virão roubar suas filhas e levar suas galinhas e cabras.

Mas naqueles principados onde a autoridade emana unicamente do príncipe, a incerteza é a regra e o temor a condição normal, ao passo que nas províncias distantes do centro sempre pode surgir um concorrente do soberano, que a ele poderá se opor pela força das armas ou pela traição pura, com a ajuda de cortesãos pouco escrupulosos. Nessas terras, os homens levam vida atribulada, pois não sabem a que senhor devem servir, se ao príncipe da capital ou aos barões das províncias ou em quem confiar nas conversas dos albergues ou das feiras. Ali pode estar um espião a serviço do príncipe ou do senhor local, sem que o trabalhador honesto tenha qualquer segurança quanto à posse dos seus bens ou sobre quando será a próxima derrama. Mercenários trabalhando para uma ou outra parte e, nas horas vagas, para si mesmos, trazem insegurança constante nas aldeias, sem que os pais de família e os donos de oficinas tenham a quem apelar em caso de abusos. 

Aqui pode ser retomado o argumento inicial, o de que os estados modernos, que têm ou pretendem ter autoridade sobre os homens, são democracias ou simulacros de democracia. A mesma situação pode ser encontrada nas províncias ou nos reinos menores e dependentes de algum príncipe distante, sendo que algumas dessas províncias possuem baronatos antigos ou modernos que muito diferem no modo de governar os cidadãos ou súditos, segundo o caso, podendo ser verdadeiros estados ou, então, os simulacros já referidos. Os anais e crônicas desses baronatos registram casos escabrosos, de barões que se mantiveram a despeito da sucessão de príncipes que foram sendo alijados do poder, ora se aliando com uma causa, ora com a causa oposta. 

Até bem pouco, eram muito mais numerosos os principados da segunda categoria do que da primeira, porque sendo os homens mais facilmente corruptíveis e subornáveis nos regimes instáveis, algum senhor mais esperto podia assaltar o poder e, a partir daí, exercer o seu comando brutal sobre os homens assim assustados. Sendo esperto o novo senhor, ele pronto adquiria prestígio, e mais poder, à custa de presentes aos cortesãos e promessas aos demais. O contrário ocorre geralmente nos principados mais esclarecidos, com cidadãos educados e, portanto, providos de estabilidade de administração e com oficiais menos corruptos, onde em consequência o regime é dotado de maior longevidade. 

Não há uma razão única de porque isso ocorre antes em alguns principados do que em outros, mas, por vezes, isso tem a ver com a qualidade dos príncipes. Mais frequentemente isso se deve à qualidade das instituições, ou da própria civilização, onde foi forjado e educado o príncipe (e também seus barões aliados). De onde se conclui que muito depende da educação do povo, de onde podem sair, e se sobressair, conselheiros do príncipe, ministros, chefes de província e capitães de guerra, que todos concorrem para a felicidade geral da nação, e não para sua infelicidade, como algumas vezes ocorre em territórios de outra forma bem dotados de meios e recursos em que lhes pode ter sido pródiga a natureza. 

Mas não é o bastante para o sucesso de um reino, que o príncipe seja probo ou bem intencionado, pois é preciso, também, que as leis naturais e aquelas fabricadas pelos homens estejam em conformidade com os desejos da maioria. Do contrário, aquele reino poderia viver em revoluções constantes e outros motins. E não convém, tampouco, que as poucas ou muitas riquezas do reino – não importa muito destacar aqui sua quantidade, que é sempre relativa – sejam desigualmente repartidas entre os homens, pois pode acontecer que, por cobiça ou desestímulo, o príncipe passe a ser mal servido pelos seus súditos e cidadãos, que em silêncio começam a subtrair a parte do fisco, por mais justos que sejam os motivos alegados para a coleta oficial. 

Consideradas, pois, todas estas coisas, ninguém se maravilhará de que as únicas garantias seguras para um principado estável e longevo sejam a boa qualidade dos homens públicos e, antes de tudo, a condição de homens livres dos governados, bem como sua maior ou menor capacidade de estabelecer eles mesmos as leis que os irão governar. Isto não resulta da muita ou pouca virtude dos príncipes, mas da forma como príncipes, barões e comuns assumem as instituições legadas pelos ancestrais ou criadas pela História.



* O presente artigo constitui uma adaptação dos capítulos 1, 3 e 4 de meu livro O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado). Brasília: Senado Federal, 2010.




sábado, 9 de março de 2024

Treze ideias fora do lugar nas relações internacionais do Brasil: argumentos contrarianistas sobre a política externa e a diplomacia - livro de Paulo Roberto de Almeida


4561. Treze ideias fora do lugar nas relações internacionais do Brasil: argumentos contrarianistas sobre a política externa e a diplomacia. Brasília: Diplomatizzando, 2024. 91 p.; ISBN: 978-65-00-91081-0; ASIN: B0CS5PTJRLKindle). Apresentação no blog Diplomatizzando (13/01/2024; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/01/treze-ideias-fora-do-lugar-nas-relacoes.html). Relação de Publicados n. 1542.


4546. “Desigualdade e injustiças mundiais: progresso e poder”, Brasília, 9 janeiro 2024, 5 p. Texto preparado para servir de primeiro capítulo ao livro “Treze Ideias fora do lugar”. Disponível neste link da plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/115985853/Livro_Treze_ideias_fora_do_lugar_nas_rela%C3%A7%C3%B5es_internacionais_do_Brasil_argumentos_contrarianistas_sobre_a_pol%C3%ADtica_externa_e_a_diplomacia_Paulo_Roberto_de_Almeida_Kindle_



Treze ideias fora do lugar nas relações internacionais do Brasil: argumentos contrarianistas sobre a política externa e a diplomacia

Brasília: Diplomatizzando, 2024. 126 p.; ISBN: 978-65-00-91081-0; ASIN: B0CS5PTJRLKindle). Relação de Originais n. 4561; Relação de Publicados n. 1542.

 

Índice

 

Prefácio: Como ser contrarianista com algum senso de humor

 

1. Desigualdade e injustiças mundiais: progresso e poder

O mundo é injusto e desigual, está baseado nas relações de força e na prepotência dos poderosos. 

Correto, mas menos do que antes e menos do que se pensa.

 

2. Periferia histórica e dependência estrutural: mitos diplomáticos

O Brasil está situado na periferia, por razões históricas e estruturais e, portanto, forçado a uma situação de dependência em relação às poderosas nações centrais.

Certo relativamente, mas errado absolutamente; válido num passado distante, não muito válido depois de 200 anos de independência e cem anos de ideologia do desenvolvimento.

 

3. Empresas multinacionais e dependência tecnológica

A dominação econômica de empresas multinacionais atua como obstáculo para nossa independência tecnológica e se reflete em relações desiguais na balança tecnológica.

Totalmente errado. Os efeitos são exatamente no sentido contrário, mas o trabalho principal tem de ser feito em casa.

 

4. Protecionismo dos ricos: responder na mesma moeda?

O Brasil não consegue exportar devido ao protecionismo dos países ricos que protegem seus setores estratégicos ou sensíveis. O Brasil deveria fazer o mesmo.

Muito relativo: o protecionismo talvez tenha uma incidência marginal nos fluxos globais e não seria ele um obstáculo absoluto ao dinamismo das exportações brasileiras, que dependem de outros fatores vinculados à produtividade geral e competitividade da economia nacional. Imitar práticas protecionistas não é necessariamente receita para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

 

5. Multilateralismo e política de blocos

O multilateralismo e os blocos regionais representam nossa melhor defesa no plano mundial, por isso precisamos atuar mediante grupos de países.

Correto no plano multilateral, mas eventualmente duvidoso no plano regional; em todo caso, vantagens relativas. A coordenação a partir de posições de “mínimo denominador comum” podem ser fatores enfraquecedores, não reforçadores, de nossas posições.

 

6. Alianças preferenciais no Sul Global

Devemos reforçar os laços com grandes países (China, Rússia), com outros países em desenvolvimento (Índia, África do Sul) e, com os da América do Sul, com os quais dispomos de vantagens comparativas. 

Talvez, mas vejamos os custos e benefícios desse tipo de política de aliança com o chamado Sul Global.

 

7. Abertura econômica só com plena reciprocidade

Só podemos abrir nossa economia e liberalizar o comércio na base da estrita barganha recíproca e com o oferecimento de concessões equivalentes e substantivas. 

Trata-se de um dos maiores absurdos econômicos já ouvidos, só justificável politicamente pelo dito “não se dá nada de graça, sem algo em troca”.

 

8. Capitais voláteis e desafios nas contas externas

Os capitais voláteis são responsáveis pela desestabilização de nossas contas externas e devem ser estritamente controlados.

Pura bobagem, que não resiste à menor análise empírica. A volatilidade está implícita nas políticas econômicas dos países emergentes e medidas de controle teriam como resultado fuga de capitais e ágio cambial.

 

9. Tratados internacionais devem ser sempre recíprocos

Os tratados devem ser sempre recíprocos e respeitadores de nossa soberania e autonomia nacional.

Retórica vazia: soberania se defende com desenvolvimento, não com boas intenções e tratados bonitos.

 

10. Globalização desigual e suas ameaças

A globalização acentua as desigualdades dentro e entre as nações. Por isso o Brasil deve evitar uma abertura excessiva à economia mundial.

Errado. O contrário é verdadeiro, mas a inserção internacional não exime a capacitação endógena.

 

11. Assimetrias estruturais devem ser corrigidas prioritariamente

Processos de liberalização entre parceiros muito desiguais beneficiam principalmente os mais poderosos, por isso devemos primeiro corrigir assimetrias estruturais.

Não necessariamente, uma vez que todos os processos de interdependência – a fortiori de integração – sempre se dão entre parceiros relativa ou absolutamente desiguais e os mais exitosos são justamente aqueles que mobilizam países em estágios diversos de desenvolvimento.

 

12. Uma diplomacia voltada prioritariamente para o desenvolvimento

A ação diplomática brasileira deve servir ao processo de desenvolvimento nacional.

Sem dúvida, mas não se deve fazê-la cumprir objetivos que não são os seus.

 

13. Uma diplomacia reconhecida como de alta qualidade

Nossa diplomacia é altamente capacitada e profissional, reconhecida pelos seus dotes de excelência.

Talvez, ou certamente, mas atitudes autocongratulatórias raramente são benéficas do ponto de vista da manutenção da qualidade do serviço.

 

Nota sobre o autor

Livros do autor

 

Disponível na Amazon.com.br, neste link.

 

Primeiro capítulo: 

1. Desigualdade e injustiças mundiais: progresso e poder

O mundo é injusto e desigual, está baseado nas relações de força e na prepotência dos poderosos. Correto, mas menos do que antes e menos do que se pensa.

O mundo sempre foi desigual e os países menos poderosos têm de fazer um esforço singular para garantir que seus interesses sejam pelo menos ouvidos, como já clamava Rui Barbosa na segunda conferência da Haia, em 1907. O mundo continua desigual, mas com o surgimento da ONU e a expansão do direito internacional em áreas cada vez mais amplas dos sistemas normativo e regulatório – anteriormente deixadas à competência exclusiva dos Estados nacionais – ele tende a se tornar administrado mais pela força do direito do que pelo direito da força, pelo menos tentativamente. 

O mundo deve continuar sendo desigual, até onde o horizonte histórico nos permite visualizar, mas a imposição da força bruta tende a ser relegada a casos extremos (e marginais) de litígios entre países ou dentro dos países (guerras civis). Mesmo o moderno sucedâneo dos poderosos impérios de outrora não pode atuar com base apenas na sua vontade unilateral e tem de fazer legitimar determinadas ações pelo corpo político por excelência (por certo imperfeito) da comunidade das nações, representado pela ONU (e seu Conselho de Segurança). Nem sempre isso é possível, daí o recurso a ações unilaterais, aparentemente reservadas a Estados mais poderosos (mas nem sempre: ditadores de países menos poderosos podem se aventurar contra vizinhos mais frágeis).

Nesse sentido, o mundo contemporâneo é menos injusto do que aquele conhecido até meados do século XX, mas ele continuará sendo desigual, estruturalmente falando, na medida em que o desempenho relativo dos países continua apresentando diferenciais enormes, tanto no plano das capacitações materiais, e militares, quanto no que respeita educação, direitos humanos, democracia, avanços tecnológicos, oportunidades de progresso social, etc. O mundo era por certo menos desigual quando a maioria das nações tinha sistemas econômicos baseados na agricultura de subsistência ou em processos manufatureiros simples. A divergência aumentou a partir da primeira e da segunda revoluções industriais – caldeiras a vapor, primeiro, química, eletricidade e motor a explosão, depois – e tornou-se propriamente abismal com o aprofundamento da terceira, baseada nos sistemas de informação, na eletrônica e nos equipamentos computadorizados. Ela continua se manifestando na quarta, talvez quinta, revolução industrial, fundada basicamente na economia do conhecimento. 

A distância atual não tem a ver, entretanto, com os velhos mecanismos imperiais ou coloniais do passado, uma vez que o desempenho nestas novas áreas não se baseia na extração de recursos primários, mas sim no acúmulo de conhecimento, algo que pode estar ao alcance de qualquer sociedade que se disponha a fazer da educação a alavanca principal de sua organização econômica e social. A “acumulação primitiva” requerida por esse tipo de prioridade social não pode ser obstada por nenhuma desigualdade estrutural baseada no poder da força bruta; ao contrário, os menos poderosos podem aprender muito com as potências mais avançadas e a maior parte do conhecimento humano encontra-se hoje livremente disponível nos sistemas de informação abertos. Tanto é assim que pequenos países, anteriormente colônias (como Cingapura), ou antigos reinos, até escravizados por vizinhos mais poderosos (como a Coreia, submetida pelo Japão durante toda a primeira metade do século XX), conseguiram se alçar no ranking da prosperidade material e da competitividade tecnológica.

O diferencial básico entre sociedades avançadas, normalmente mais poderosas, e as menos desenvolvidas situa-se, não tanto na dominação de umas sobre as outras, mas nos níveis de produtividade do capital humano, ou seja, o progresso trazido pelo potencial inovador e produtivo de determinadas populações. Esse é o fator básico do poder, não a exploração direta, que está na base de certas concepções do desenvolvimento humano e social. Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplo, na antropologia ou na história comparadas, de sociedades históricas que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessas sociedades uma determinada categoria de pessoas detêm a capacidade de comandar outras pessoas e delas extrair recursos excedentes em termos de produção econômica. O mesmo se passa, mutatis mutandi, no sistema internacional.

Nas sociedades modernas e contemporâneas, o progresso assumiu principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro modo de produção inventivo, transformando o progresso em rationale da vida econômica e social. 

Embora o progresso nem sempre seja qualitativamente aferível, ele pode ser quantitativamente mensurável, o que significa uma maior disponibilidade de bens e serviços anteriormente raros ou escassos; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades humanas.

Ao disseminar mercadorias e transformar ecossistemas, o progresso econômico cria desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. O progresso de algumas sociedades particularmente inovadoras cria, igualmente, desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas também de marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais desenvolvidos.

Nesse sentido, as relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito puramente interclassista ou intra societal, mas prevalecem igualmente num nível inter societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre classes sociais.

A racionalização conceitual do progresso histórico e social, ao coincidir no tempo com a formação e o desenvolvimento dos Estados-nacionais (séculos XVI-XVIII), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado do progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State building

Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas para a ideia do progresso. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, em primeiro lugar, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos os conceitos de “mão invisível”, de “vantagens comparativas” ou de “laissez-faire” no plano econômico. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes de países eles mesmos submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) ou a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do progresso material das sociedades envolvidas. Mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial um grande fator de progresso histórico de sociedades mais atrasadas.

O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do Progresso nas formações dominantes. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao – e não efeitos do – exercício da vontade imperial. A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas dominadora. 

A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano nacional como no das relações inter societais, parece assim situar-se na capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.

A experiência histórica indica que o progresso, em suas diversas formas materiais, emana sempre dos diversos centros de poder econômico, e a eles retorna indefectivelmente após ter cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema interestatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional: as sociedades ou nações que não conseguirem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a se tornarem meros objetos da História e não em seus atores.

O discurso realista, em relação ao qual estas notas constituem mero exercício argumentativo, encontra sérias objeções morais a nível da praxis política – num contexto interno ou externo – razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer, porém, de que ele constitui o fundamento último e a razão secreta da atuação da maior parte dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas.

 

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segunda-feira, 19 de junho de 2023

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida

 Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo  

Prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida:

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Brasília: Diplomatizzando, 2022, 189 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7

Disponível na Amazon.com

  

Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”. 

A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946. 

Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.

Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.

Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.

Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014. 

Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.

De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas. 

Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

 

 

Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política. A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.

O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil. 

Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais. 

Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo. Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de maio de 2022

 

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo    9

1. O papel dos Brics na economia mundial        15

O Bric e os Brics         15

A Rússia, um “animal menos igual que os outros”  16

A China e a Índia         17

E o Brasil nesse processo?     20

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos    24

Esse obscuro objeto de curiosidade    24

O Brasil, como fica no retrato?      25

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial    26

O fascínio é justificado?      29

O que os Brics podem oferecer ao mundo?    31

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil   33

Introdução: a caminho da Briclândia  33

Radiografia dos Brics     34

Ficha corrida dos personagens     35

De onde vieram, para onde vão?      37

New kids in the block       40

Políticas domésticas    43

Políticas econômicas externas    45

Impacto dos Brics na economia mundial        47

Impacto da economia mundial sobre os Brics      48

Consequências geoestratégicas     50

O Brasil e os Brics   53

Alguma conclusão preventiva?    57

 

4. A democracia nos Brics    59

A democracia é um critério universal?      59

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático?   60

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics?   62

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics    63

Sobre um funeral anunciado    63

Qualificando o debate       64

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20      64

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20?   67

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias     70

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?     70

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo?      71

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?   73

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos    81

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História  86

Conclusão: um acrônimo talvez invertido     95

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009      98

Existe um papel para os Brics na crise econômica?     98

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia?    100

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?   103

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics     106

Das distinções necessárias     106

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7?   108

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial?   109

O futuro econômico do Brics (se existe um...)       111

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics?       114

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição     116

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar                   116

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional              122

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil                 127

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics    131

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?   136

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil   143

Uma sigla inventada por um economista de finanças     143

Um novo animal no cenário diplomático mundial      144

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder?    151

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo      156

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria   164

Introdução: o que é um relatório de minoria?  164

O que é estratégico numa parceria?       165

Quando o estratégico vira simplesmente tático  167

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais  168

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante       171

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida      177

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia   181

Indicações bibliográficas    187

Nota sobre o autor     189

 

 

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