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segunda-feira, 19 de junho de 2023

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida

 Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo  

Prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida:

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Brasília: Diplomatizzando, 2022, 189 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7

Disponível na Amazon.com

  

Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”. 

A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946. 

Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.

Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.

Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.

Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014. 

Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.

De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas. 

Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

 

 

Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política. A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.

O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil. 

Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais. 

Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo. Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de maio de 2022

 

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo    9

1. O papel dos Brics na economia mundial        15

O Bric e os Brics         15

A Rússia, um “animal menos igual que os outros”  16

A China e a Índia         17

E o Brasil nesse processo?     20

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos    24

Esse obscuro objeto de curiosidade    24

O Brasil, como fica no retrato?      25

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial    26

O fascínio é justificado?      29

O que os Brics podem oferecer ao mundo?    31

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil   33

Introdução: a caminho da Briclândia  33

Radiografia dos Brics     34

Ficha corrida dos personagens     35

De onde vieram, para onde vão?      37

New kids in the block       40

Políticas domésticas    43

Políticas econômicas externas    45

Impacto dos Brics na economia mundial        47

Impacto da economia mundial sobre os Brics      48

Consequências geoestratégicas     50

O Brasil e os Brics   53

Alguma conclusão preventiva?    57

 

4. A democracia nos Brics    59

A democracia é um critério universal?      59

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático?   60

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics?   62

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics    63

Sobre um funeral anunciado    63

Qualificando o debate       64

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20      64

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20?   67

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias     70

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?     70

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo?      71

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?   73

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos    81

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História  86

Conclusão: um acrônimo talvez invertido     95

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009      98

Existe um papel para os Brics na crise econômica?     98

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia?    100

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?   103

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics     106

Das distinções necessárias     106

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7?   108

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial?   109

O futuro econômico do Brics (se existe um...)       111

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics?       114

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição     116

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar                   116

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional              122

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil                 127

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics    131

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?   136

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil   143

Uma sigla inventada por um economista de finanças     143

Um novo animal no cenário diplomático mundial      144

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder?    151

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo      156

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria   164

Introdução: o que é um relatório de minoria?  164

O que é estratégico numa parceria?       165

Quando o estratégico vira simplesmente tático  167

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais  168

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante       171

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida      177

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia   181

Indicações bibliográficas    187

Nota sobre o autor     189

 

 

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segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior: capa, sumário e apresentação - Paulo Roberto de Almeida

Paulo Roberto de Almeida:

Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior

São Paulo: LVM Editora, 2022


Índice

Prefácio   Arnaldo Godoy 

Apresentação

Nos ombros dos verdadeiros estadistas, Paulo Roberto de Almeida 

 

Introdução

Da construção do Estado à construção da Democracia 

 

Primeira parte: a construção do Estado

     O Estado antes da Ordem e da própria Nação 

1.  As vantagens comparativas de José da Silva Lisboa (Cairu)

2.  Por uma monarquia constitucional liberal: Hipólito da Costa  

3.  Civilizar os índios, eliminar o tráfico: José Bonifácio de Andrada e Silva

4.  Um Memorial para reformar a nação: Francisco Adolfo de Varnhagen

 

Segunda parte: a construção da Ordem

     Uma Ordem patrimonialista e oligárquica 

5.  Os liberais conservadores: Bernardo, Paulino e Paranhos

6.  Um aristocrata radical: Joaquim Nabuco 

7.  Bases conceituais da diplomacia: o paradigma Rio Branco

8.  O defensor do Estado de Direito: Rui Barbosa 

 

Terceira parte: a construção do Progresso

     O Progresso pelo Estado, com o Estado, para o Estado 

9.  Um empreendedor liberal numa terra de estatistas: Mauá

10. Um inglês imaginário e o nacionalista do petróleo: Monteiro Lobato

11. O revolucionário modernizador: Oswaldo Aranha

12. Duas almas pouco gêmeas: Roberto Simonsen e Eugenio Gudin 

 

Quarta parte: a construção da Democracia

     A Democracia carente de união nacional 

13. Em busca de uma esquerda democrática: San Tiago Dantas

14. O militante do parlamentarismo: Afonso Arinos de Melo Franco

15. As oportunidades perdidas do Brasil: Roberto Campos 

16. O liberalismo social de José Guilherme Merquior

 

A construção da Nação: um itinerário de 200 anos de história

 

Posfácio

O que a intelligentsia brasileira construiu em dois séculos de ideias e ações? 

 

Referências Bibliográficas para os Construtores da Nação 

Nota sobre o autor  

 

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Apresentação


Nos ombros dos verdadeiros estadistas

 

Paulo Roberto de Almeida 

 

Este livro trata, como indicado em seu título, de alguns dos construtores da nação brasileira. Ao abrigo desse conceito pretendi apresentar, ainda que de maneira breve, a vida, um esboço do pensamento e uma parte da obra daqueles que muito contribuíram, nem sempre com efeitos práticos ou resultados plenos, para a propositura de programas de governo, bem como de projetos para reformas estruturais nas instituições de Estado e nos mecanismos de governança do país, ao longo de quase duzentos anos de nosso itinerário como nação independente. Contudo, entre esses “construtores” não figuram aqueles indicados nos livros de história como tendo sido “dirigentes do Brasil” ou ocupado cargos de chefia de Estado: por exemplo, não foram aqui contemplados nem um, nem outro dos dois imperadores, que se exerceram, cada qual ao seu estilo, durante os 67 de regime monárquico, nem qualquer um dos regentes no período intermediário entre um e outro; tampouco receberam alguma menção especial qualquer um dos presidentes – e foram várias dezenas – ao longo dos mais de 130 anos de regime republicano. 

Mas aqui estão vários que poderiam ter sido mandatários do Estado, assim como alguns outros poucos que, de fato, exerceram funções de “primeiros-ministros”, como o “patriarca da Independência”, José Bonifácio de Andrada e Silva, assim como José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, na função de presidente de um dos gabinetes imperiais. Outros quase chegaram lá, como Rui Barbosa – candidato duas vezes à presidência –, ou San Tiago Dantas, recusado como primeiro-ministro de um dos gabinetes durante a breve experiência parlamentarista republicana. Oswaldo Aranha poderia ter sido um grande presidente, numa das várias oportunidades da chamada “era Vargas”, mas foi sabotado pelo próprio caudilho. Alguns outros, que aqui figuram, exerceram funções ministeriais, como Paulino, o Visconde do Uruguai, o próprio Rui Barbosa, ministro “inaugural” da Fazenda sob a República, Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco, e Oswaldo Aranha, como chanceleres de grande envergadura na primeira metade do século XX, ou ainda o próprio Afonso Arinos de Melo Franco e também San Tiago Dantas, ambos por breves períodos, nas conturbadas presidências de Jânio Quadros e João Goulart. Eugênio Gudin e Roberto Campos se exerceram na área econômica partilhando das mesmas ideias liberais, embora eles o fizeram numa conjuntura de enorme preeminência e ascensão do Estado empreendedor. Alguns tiveram projeção na academia, ou na vida privada, ou ainda no próprio Estado, com impactos diferenciados sobre as políticas públicas, mas com influência decisiva sobre as ideias em cada época, ou talvez ainda hoje, pois que permanecem na história nacional como grandes pensadores que foram ou promotores de reformas que poderiam ter arrancado o Brasil de sua letargia para projetá-lo entre as nações avançadas do século XX. 

No conjunto de seus ensaios de caráter historiográfico, este livro se esforça por examinar diferentes projetos para a construção da nação brasileira desde a Independência, nas esferas da organização do Estado, da garantia da Ordem, da busca do Progresso e no estabelecimento da Democracia, que são as quatro partes nas quais estão distribuídas curtas biografias intelectuais dos construtores da nação por mim selecionados. Faltam muitos outros, é verdade, que poderão ser contemplados numa continuidade desta primeira coleção de pequenos “retratos” de alguns grandes estadistas da nação. Minha metodologia consistiu num exame individualizado, mas contextualizado, da vida, da obra, do pensamento e das contribuições respectivas de vinte personalidades atuantes na História do Brasil, em diferentes dimensões – governo, economia, relações internacionais, educação e cultura – nos últimos duzentos anos. Cada uma dessas personalidades – José da Silva Lisboa, Hipólito José da Costa, José Bonifácio de Andrada e Silva, Francisco Adolfo de Varnhagen, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Paulino José Soares de Sousa, José Maria da Silva Paranhos, Joaquim Nabuco, José Maria da Silva Paranhos Jr., Rui Barbosa, Irineu Evangelista de Sousa, José Bento Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha, Roberto Simonsen, Eugênio Gudin, Fernando de Azevedo, San Tiago Dantas, Afonso Arinos de Melo Franco, Roberto Campos e José Guilherme Merquior – recebe um curto perfil biográfico, seguido de breve descrição de suas atividades e obras ou ações conduzidas ao longo da vida, com um exame interpretativo de suas contribuições à construção da nação, naquelas dimensões, e uma avaliação do impacto de suas propostas. As referências bibliográficas ao final são individualizadas para cada um dos personagens, para melhor aferir a produção própria, assim como os trabalhos analíticos e biográficos em torno deles, complementadas por uma lista de obras gerais podendo servir a diferentes personalidades ou processos históricos cobrindo temáticas ou períodos mais amplos. 

Ao início e ao final do ensaio, assim como antecedendo cada uma das quatro partes, cobrindo os quatro conceitos que formam os elementos da construção da nação, figuram textos relativamente sintéticos contextualizando os períodos, as grandes questões em jogo, assim como o ambiente no qual atuavam cada uma das duas dezenas de personagens históricas. Ao longo de uma vida de estudos e pesquisas, ou de breves “convivências” com alguns deles, li muitos dos escritos que eles nos deixaram, percorri seus escritos em arquivos ou até dialoguei com um ou outro, mais indiretamente do que pessoalmente. Monteiro Lobato, por exemplo, “percorreu” toda a minha infância e primeira adolescência, e com ele, ou através dele, obtive minha primeira formação em história, mitologia, fantasia, para mais adiante tomar conhecimento dos grandes problemas do Brasil, do petróleo, do ferro, dos transportes. Hipólito e Bonifácio me ofereceram os primeiros “projetos de nação”, que infelizmente se perderam na mesquinhez do tráfico e na desgraça da escravatura. Mauá foi o empreendedor liberal de um Brasil que não conseguiu se desvencilhar das amarras da grande propriedade para se lançar num processo de industrialização dinâmico, também tentado pelo mesmo Monteiro Lobato, por Roberto Simonsen e também por Roberto Campos, inclusive na perspectiva de sua inserção na economia global, o que ainda não se realizou. Outros foram mestres na doutrina democrática e na diplomacia, como Rui Barbosa, os dois Rio Branco, Oswaldo Aranha, Afonso Arinos e San Tiago. Um último, finalmente, poderia ter sido um chanceler como nenhum outro tivemos, um intelectual de estatura mundial, como foi José Guilherme Merquior. 

Com todos eles aprendi muitas coisas, praticamente tudo o que sei sobre o Brasil e seus problemas, e também aprendi que nem todos os grandes projetos de construção da nação podem ser exitosos no próprio momento de sua concepção e proposição. Este ensaio constitui uma singela homenagem a esses gigantes do pensamento brasileiro, estadistas do saber, que, independentemente do maior ou menor sucesso na realização de suas ideias e propostas, realmente contribuíram para a construção da nação, em duzentos anos de história. 

 

No prelo, publicação prevista para setembro.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, n. 11/2021 - Capa e Sumário, conteúdo completo

 A primeira revista da qual fui editor no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Ainda não está no formato e no conteúdo ideal, que devem ser aperfeiçoados nos próximos números.

A revista inteira está desde já disponível neste link: https://www.academia.edu/61551096/Revista_do_IHGDF_n11_2021_






sábado, 8 de maio de 2021

O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021 – Capa, Sumário e Prefácio - Paulo Roberto de Almeida

O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021

Paulo Roberto de Almeida 



 Este livro é dedicado aos meus colegas do corpo da diplomacia profissional do Serviço Exterior brasileiro, que tiveram de suportar, durante dois anos e alguns meses, a mais esquizofrênica das diplomacias imagináveis, seja na já longa trajetória da política externa brasileira, desde a Independência, seja no plano da diplomacia mundial, absolutamente sem precedentes em nossa história (e, espera-se, sem sucedâneas), ou na comparação com qualquer outra diplomacia nacional, no contexto regional ou em âmbito mundial. A todos os colegas, de todas as classes, condições e opiniões que possam ter sobre a substância do que deveria ser a política externa brasileira, meus cumprimentos pela resiliência, pela persistência e pela resistência, ainda que de maneira silenciosa e discreta. Creio ter interpretado o sentimento da maioria, mesmo quando alguns discordaram de minha postura e de meu posicionamento em face da miséria diplomática e da destruição da inteligência que vivemos desde o final de 2018 até o início de 2021. 

 

Índice  

Prefácio

 

1. Ascensão e queda do bolsolavismo diplomático, 2018-2021

1.1. O assalto dos novos bárbaros ao Itamaraty

1.2. Novamente no limbo, analisando o bolsolavismo diplomático

1.3. A patética carta de demissão do chanceler acidental

 

2. Degradação democrática e demolição diplomática

2.1. O destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira?

2.2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

2.3. O que fazer na ausência de um estadista circunstancial?

2.4. Uma inédita ruptura nos padrões tradicionais da política externa 

2.5. O alinhamento automático ao presidente Trump: um escândalo temporário

2.6. A hostilidade em relação à China como critério da identidade comum

2.7. O isolamento na esfera internacional e no contexto regional

2.8. O caso da tecnologia 5G: prejuízos reais em qualquer hipótese

2.9. O caso da Amazônia: uma extraordinária vocação para o erro

2.10. A postura no caso da pandemia da COVID: negacionismo em toda a linha

2.11. Uma nova Idade das Trevas?

 

3. Submissão ao Império e relações com os vizinhos regionais

3.1. A importância da descontinuidade, em circunstâncias inéditas

3.2. A importância histórica das relações regionais e hemisféricas

3.3. Da aliança não escrita aos impasses políticos e econômicos

3.4. Bolsonaro e uma inédita relação de alinhamento sem barganha

3.5. A desintegração regional e o desalinhamento com os vizinhos 

3.6. Qual o futuro da integração, do Mercosul, da política externa brasileira?

 

4. Um novo animal na paisagem: o globalismo e os seus descontentes

4.1. O espectro do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial

4.2. Dos antiglobalizadores aos antiglobalistas?

4.3. À la recherche du globalisme perdu

4.4. Os nacionalismos canhestros: genitores do antiglobalismo irracional

 

5. Um “balanço” desequilibrado: a despedida do chanceler acidental

5.1. Ascensão e queda de um capacho exemplar

5.2. O “balanço” e o seu oposto: mentiras, falácias e falcatruas 

5.3. A justificativa prolixa e a declaração de política objetiva

 

6. Quo vadis, Brasil? 

6.1. Estaríamos enfrentando uma fase tendencial de declínio?

6.2. O que é verdadeiramente estratégico na vida da nação? 

6.3. Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer?

6.4. Um “exército de ocupação” interno? 

6.5. Sobre os descaminhos do Brasil atual

 

Apêndices

Sumários dos livros do ciclo do bolsolavismo diplomático

(1) Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty

(2) O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira

(3) Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira

(4) O Itamaraty sob ataque, 2018-2021: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo

(5) Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira


Livros publicados pelo autor

Nota sobre o autor 

 

Prefácio ao livro O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021 

  

Paulo Roberto de Almeida 

 

Pretendo que este seja o meu “último” livro, não absolutamente, mas relativamente, e isto a dois títulos: ele pretende circunscrever um período determinado da trajetória do Itamaraty contemporâneo, tal como evidenciado nos anos extremos de seu subtítulo, e tem, sobretudo, o objetivo de concluir a série dos livros de debate, ou de “combate”, do ciclo que chamei de “diplomacia bolsolavista”, iniciada de maneira improvisada e que assim continuou por mais quatro exemplares da série, agora aparentemente vindo a termo. Espero não ter de voltar mais ao período que se encerrou em março de 2021 – salvo algum novo “acidente de percurso” – e voltar a dedicar-me a trabalhos de pesquisa menos marcados por aspectos conjunturais como os que aqui são enfocados, em especial aposentando definitivamente esse adjetivo pouco recomendável que marcou a diplomacia “bolsolavista” do Brasil nesses anos.

Na verdade, este livro estava destinado a ser apenas a “segunda parte” de uma obra bem mais alentada, voltada para uma exposição e análise de um período mais amplo da política externa e da diplomacia do Brasil, mas que terminou dividida em dois volumes, por razões de ordem prática e também por decisões de natureza conceitual: por um lado, a obra projetada, e em larga medida elaborada nos últimos anos, revelou-se de dimensões maiores do que o normalmente imaginado para um volume impresso, como era a intenção original, dada essa minha incômoda peculiaridade de “escrevinhador”, bem mais do que simplesmente escritor; por outro lado, ela comportava, justamente, ensaios de natureza mais historiográfica e “estrutural”, além de uma série de artigos e comentários de características conjunturais, vinculados estreitamente ao período recente, e excepcional, do itinerário do Brasil nas relações internacionais contemporâneas. Daí a decisão de fracioná-la entre um volume impresso a ser ainda publicado e este destinado a sair mais rapidamente como e-book.

Muito do que figura em um e outro volume já se encontrava preparado ao final do mês de novembro de 2020, logo após as eleições americanas, que levaram à derrota do candidato preferido pelos bolsonaristas brasileiros, seu líder e modelo Donald Trump, saindo vitorioso em seu lugar o democrata Joe Biden, mesmo se o processo de verificação tenha se arrastado irritantemente até o mês de janeiro seguinte, inclusive com cenas explícitas de contestação ilegal dos resultados obtidos nas urnas (o que foi inclusive apoiado pelo presidente brasileiro, assim como pelo seu chanceler depois afastado). Ao final do ano decidi retirar a parte conjuntural para torná-la esta obra independente, deixando para o livro a ser publicado em formato impresso os ensaios de natureza mais conceitual, ou estrutural.

O caráter “terminal” deste livro, agora publicado em formato digital, também segue a tendência adotada pelas demais obras deste ciclo “que não deveria existir”, cujos sumários figuram no apêndice. Explico rapidamente o que já está exposto no primeiro capítulo desta obra, que retraça a própria trajetória do bolsolavismo diplomático, um experimento alucinante e alucinado de bizarrices no âmbito da política externa, e que durou do início do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, até o mês de março de 2021, quando o chanceler acidental é levado a se demitir, por absoluta falta de condições políticas para continuar no cargo, mesmo dispondo de todo o apoio do presidente (e contra a sua vontade): o que ocorreu, de fato, foi um veto praticamente unânime dos senadores à sua continuidade na função, sob ameaça de paralisia dos trâmites legislativos interessando ao Itamaraty. 

Na verdade, esse período pode se estendido para trás e para frente, no seguinte sentido: os preparativos para “revolucionar” a diplomacia e a política externa do Brasil começaram bem antes, em articulações no seio de um grupo restrito de amadores (de fato, ineptos completos) em temas de política externa, de relações exteriores do Brasil e de política internacional, em geral, que tinham a real intenção de alterar as bases fundamentais de atuação das relações externas do Brasil com base em concepções simplórias, em teorias conspiratórias, em ideologias de extrema-direita, ou mais propriamente reacionárias, que se vinculavam à visão do mundo de ultra conservadores dos Estados Unidos e, mais especialmente, ao anticomunismo primário e exacerbado do polemista que passa por guru presidencial, Olavo de Carvalho. 

Esse pretenso intelectual cercou-se de um pequeno grupo de fiéis devotos, alguns até fanáticos de seu anticomunismo fundamentalista, passando eles a preparar o que eu chamei de “assalto ao Itamaraty” desde 2016. Pouco depois eles ganharam a adesão de um solitário diplomata profissional, com articulações mais efetivas estabelecidas no decorrer de 2018, quando esse adesista oportunista passou a trabalhar intensamente, ainda que de modo clandestino, em prol do candidato que se apresentou nas eleições daquele ano. Imediatamente após a vitória do candidato de extrema-direita, o chanceler designado passou a atacar de forma vergonhosa o Itamaraty e os diplomatas profissionais, como se todos eles tivessem sido coniventes com o “marxismo cultural”, com o lulopetismo e outros desvios esquerdistas, ou até progressistas, na visão dos alucinados engajados em sua errática campanha. 

Mas o período também pode ser estendido para a frente, ou seja, sem esse corte definitivo na demissão do chanceler acidental, em 29 de março de 2021, na medida em que os responsáveis pelo “furacão” iniciado em 2018 continuam de certo modo no comando da política externa, detendo talvez algumas alavancas de atuação no próprio Itamaraty, o que assegura a sobrevivência, pelo menos parcial, de algumas das concepções olavistas ou “bolsonaristas” (as aspas se justificam pelo fato de que o próprio presidente tem demonstrado uma incapacidade notória para compreender o mundo exterior e de situar o Brasil nesse contexto). Trata-se de um quadro ainda preocupante, ainda que as “alucinações exteriores” do chanceler acidental não mais disponham da base operacional que lhe foi atribuída desde novembro de 2018. O personagem em questão pretende ainda continuar influenciado, senão a política externa, pelo menos um número indeterminado de seguidores, com o objetivo de manter o Brasil vinculado à visão do mundo ultra conservadora de líderes estrangeiros.

Confirmo que este livro e todos os demais do ciclo impropriamente chamado de “bolsolavismo diplomático” não deveriam existir pelo fato de que eles nunca integraram meus projetos definidos de trabalho; eles estão, de alguma forma, afastados de minhas concepções relativamente bem organizadas de produção intelectual: pesquisa cuidados, leitura atenta e extensa da documentação e da literatura secundária, planejamento e inserção num campo definido de elaboração especializada, redação sistemática de acordo a um esquema ou plano previamente estabelecido, culminando numa eventual publicação, se por acaso o resultado final encontra alguma editora complacente (embora muitos deles tenham adotado a via mais fácil e acessível do e-book). Em todo caso, os produtos deste ciclo não planejado surgiram sempre como reação momentânea à obra de destruição que estava sendo perpetrada não só no Itamaraty, mas contra o próprio Brasil, representada pela deformação completa de nossas tradições diplomáticas, assim como da própria política externa, com efeitos prejudiciais aos interesses nacionais, pois que respondendo unicamente às concepções equivocadas sobre o mundo e o Brasil, sob a influência de ideologias esquizofrênicas. 

Foi assim que surgiu o primeiro do ciclo, Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty, em meados de 2019, praticamente de improviso, feito com base em notas e comentários que passei a fazer ao contemplar – já “liberado” de qualquer função na Secretaria de Estado desde o início daquele ano – as várias loucuras que vinham sendo perpetradas na (e contra uma) instituição das mais respeitadas na burocracia federal e até admirada por vizinhos e outros parceiros externos, dada a qualidade de seu capital humano. Para ser mais preciso, o que mais me angustiava não era tanto os muitos ataques ao Itamaraty – um verdadeiro sequestro da instituição, como adotado no título deste quarto livro do ciclo –, uma vez que considero a diplomacia profissional perfeitamente capaz de recuperar sua alta qualidade no desempenho das funções corriqueiras, uma vez libertada dos “novos bárbaros” que a dominaram temporariamente. O mais preocupante foi constatar o prejuízo real, ou potencial, aos interesses nacionais, em decorrência das ações, omissões e deformações que estavam sendo infringidas às políticas setoriais vinculadas à interface externa da ação do Estado (em comércio, em meio ambiente, em direitos humanos, em integração, enfim, um pouco em todas as vertentes da ação internacional do país). 

Ao início, se tinha a esperança de que pressões de militares, de representantes do agronegócio, dos interesses econômicos em geral, assim como da própria classe política, seriam capazes de corrigir, coagir, restringir, fazer retroceder as alucinações exteriores mais estapafúrdias, mas não foi o que ocorreu; ao contrário, recalcitrantes ou divergentes do governo foram sendo eliminados ou afastados e o Brasil parecia navegar satisfeito numa aliança com um punhado diminuto de “aliados” da direita conservadora, em especial, numa submissão vergonhosa ao dirigente bizarro do principal parceiro hemisférico. Estabeleceu-se uma virtual unanimidade na opinião pública contra uma política externa esquizofrênica, o que me levou a prosseguir no meu combate solitário contra a diplomacia “bolsolavista”. Na verdade, esse conceito define muito mal o verdadeiro caos que passou a vigorar na política externa brasileira e na ação de uma diplomacia isolada do mundo, dos interesses nacionais do Brasil e do próprio corpo profissional do Itamaraty. 

Dei prosseguimento, portanto, ao segundo volume do ciclo, O Itamaraty num labirinto de sombras (2020), quando já estávamos numa espécie de “revolução cultural” dentro do Itamaraty, ao se confirmar a emergência da irracionalidade oficial, em grande medida identificada com o espectro do globalismo maléfico aos interesses nacionais, ao que respondi com o meu “manifesto globalista”. Como se acentuassem os comportamentos mais esquizofrênicos do chanceler acidental, manifestamente submisso a chefes notoriamente ineptos na condução das relações exteriores do país, empreendi pouco depois o terceiro volume do ciclo, Uma certa ideia do Itamaraty (2020), já focado num trabalho de reconstrução da política externa e de restauração da diplomacia profissional. 

Informo agora que, paralelamente a essa exposição pública – de certo modo inédita nos anais de nossa diplomacia sempre tão bem comportada –, tomei a iniciativa de empreender um exercício de consulta, que conduzi de modo bastante discreto junto a colegas de carreira, tendente a constituir as bases de um planejamento para uma diplomacia pós-bolsonarista. Não logrando, contudo, obter as reações esperadas, dei por encerrado esse exercício pouco tempo depois, com apenas algumas contribuições recebidas. É verdade que já estávamos em meio à pandemia da Covid-19, quando o ritmo normal de trabalho ficou bastante alterado, tanto na Secretaria de Estado, quanto nos postos no exterior e toda a Casa se movimentava para, no contexto de fechamento de voos e aeroportos, trazer de volta ao Brasil milhares de turistas brasileiros espalhados nos quatro cantos do mundo. 

Todos esses livros, assim como o quinto (em fase de preparação para publicação), têm seus sumários reproduzidos num dos apêndices da presente obra, e estão relativamente acessíveis aos interessados em plataformas de interação acadêmica ou no formato Kindle; a lista quase completa de meus livros figura num outro apêndice, assim como várias dezenas de ensaios, notas e artigos encontram-se livremente disponíveis em minhas ferramentas de comunicação social. Este é, portanto, o “último” livro de um ciclo que não deveria – salvo desastre maior – ter continuidade em meu planejamento normal de trabalhos, com diversos outros projetos parados em meu pipeline de contínua produção intelectual. Devo agora uma explicação para a mudança do título originalmente concebido – O Itamaraty sob ataque –, que já tinha sido anunciado nessas redes de comunicação social. Meu colega e amigo, Miguel Gustavo de Paiva Torres, de quem pude examinar sua tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco sobre o chanceler do Império Paulino José Soares de Souza quando ele era conselheiro candidato à promoção a ministro de segunda classe da carreira, foi quem fez a sugestão, ao ler o sumário previamente anunciado numa de minhas postagens. Ele escreveu-me o seguinte: 

Sobre o seu novo livro trago sugestão para sua avaliação: Itamaraty Sequestrado. Vejo a situação mais como a de um sequestro político da Casa do que propriamente um ataque.

 

Agradeci, portanto, ao Miguel Gustavo, passando a adotar a sua sugestão, o que lhe dá direito, senão ao copyright do título, pelo menos a moral rights em relação a um conceito que efetivamente identifica o estado de submissão a que foi submetido o Itamaraty nos dois anos e meio que precederam ao mês de abril de 2021. Com efeito, o que ocorreu no Brasil, e para a sua diplomacia profissional, entre o final de 2018 e o início de 2021, não encontra precedentes em nossa história bissecular, e espera-se que não deixe um legado ou alguma semente contaminada pelas distorções registradas nesse insólito período. Aproveito para informar que a tese de CAE de Miguel Gustavo, intitulada O Visconde do Uruguai e sua atuação diplomática para a consolidação da política externa do Império, foi publicada em 2011, com um belo prefácio do grande mestre Antonio Paim, pela Fundação Alexandre de Gusmão, encontrando-se disponível na biblioteca digital da Funag. 

 

Assim, salvo “necessidades” de alguma outra oportunidade de “combate político”, pretendo doravante dedicar-me a trabalhos mais consistentes no plano conceitual, deixando de lado estes escritos que só emergiram em face de desafios inéditos em nossa trajetória diplomática. Este trabalho de resistência intelectual ao “sequestro” operado contra o Itamaraty, e ao próprio Brasil, não foi isento de custos pessoais e funcionais, como sabem todos aqueles que acompanham minha produção intelectual e o meu mais recente ativismo (involuntário) nas redes de comunicação social, sempre com o objetivo de reagir aos despautérios e loucuras dos “novos bárbaros”. Coloquei essa missão de combate aos aloprados da “bolsodiplomacia” acima de meus interesses pessoais, pois que ainda me encontro no serviço ativo, embora sem qualquer função útil na instituição que é a minha desde o período final do regime militar. 

Tal situação não é inédita, pois tenho certa experiência em ostracismos e estágios no limbo. Meu primeiro exílio, voluntário, ocorreu justamente durante a ditadura militar, quando completei minha formação acadêmica durante os anos de estudo intenso em universidades europeias. Depois, já na carreira, enfrentei algumas tribulações, pelo fato de nunca eximir de expressar meu pensamento, seja por escrito, seja diretamente em situações de processo decisório no desempenho de funções diplomáticas; mais impactante foi a longa “travessia no deserto” durante o período do lulopetismo diplomático, com o qual eu também mantinha minhas diferenças de visão diplomática e de prioridades na política externa. 

Aproveitei aquele período para escrever alguns livros, a partir do bom ambiente de estudos e pesquisas da biblioteca do Itamaraty, o que nada mais era do que a continuidade da prática de frequentar bibliotecas, livrarias e arquivos, que sempre mantive nos mais diferentes países e universidades. É o que eu estaria fazendo atualmente, não fosse a quarentena forçada da pandemia, o que aliás me levou a um acréscimo de produtividade no trabalho intelectual, tanto pelo maior tempo disponível para leituras e escritos, como em virtude da disseminação quase alucinantes das interações pelas vias das ferramentas de comunicação social, que multiplicaram extraordinariamente os apelos e incentivos a debates virtuais. Tais novas “metodologias” de comunicação vieram para ficar, mesmo depois de passada a pandemia.

Ao retornar a meus trabalhos de pesquisa histórica e de reflexão comparativa sobre o processo de desenvolvimento brasileira no contexto mundial, ressalto que estarei sempre atento às “surpresas” – de qualquer tipo – que surgirem na frente da diplomacia brasileira e de sua política externa, assim como totalmente disponível para missões temporárias ou designações formais para as quais possa ser indicado. Tendo passado quatro décadas de minha vida no acompanhamento ativo de nossas relações internacionais, tanto no plano do estudo como no terreno prático, tenho prevista a elaboração de mais algumas obras com certo sentido de permanência. Não é certamente o caso desta aqui, ou das demais deste ciclo, que responderam apenas a um desafio da conjuntura. A bem refletir, porém, uma reflexão ponderada sobre “sobressaltos” institucionais, terremotos políticos ou bizarrices eventuais, como os que enfrentamos na presente fase, sempre oferecerá matéria prima para mais alguma obra inserida em nossa trajetória histórica, ainda que o desejo de todos nós é o de que, assim como o experimento do bolsolavismo diplomático não encontra precedentes nesse itinerário, ele não tenha sucedâneos no futuro previsível.

Com isso, dou por temporariamente encerrado este ciclo de esgrima intelectual contra a malta dos “novos bárbaros”, prontificando-me a voltar sempre quando novos desafios surgirem no horizonte das possibilidades políticas de um país em franco processo de transição para novas configurações institucionais. Vale!

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9  de maio de 2021