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domingo, 9 de maio de 2021

Peter Brown: historiador da Antiguidade, historiador universal - Maria Antonia Sanchez Vallejo (El País)

 HISTÓRIA

Peter Brown: “Pior que esquecer a história é distorcê-la para avivar o ressentimento”

Com 36 anos, demonstrou em ‘O Mundo da Antiguidade Tardia’ que a tese da decadência de Roma era falsa. Para muitos, é o maior historiador vivo em língua inglesa. Falamos com ele em sua casa em Princeton sobre sua trajetória, o abandono das ciências humanas e a tendência política de manipular o passado para incutir o medo

O historiador irlandês Peter Brown em sua residência em Princeton, New Jersey (EUA), em 29 de abril.
O historiador irlandês Peter Brown em sua residência em Princeton, New Jersey (EUA), em 29 de abril.JOANA TORO
MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO

O gosto pela astronomia que Peter Brown (Dublin, 85 anos) desenvolveu quando criança foi um presságio da tarefa que o consagraria como historiador: o afã de esquadrinhar na escuridão os pontos de luz que definem a Antiguidade tardia(200-700 depois de Cristo), esse período durante o qual ocorreu o colapso de Roma, ganharam forma as religiões do livro e o cristianismo foi se estabelecendo na Europa. Um período que ganhou status acadêmico graças, precisamente, aos seus estudos.

A reedição em espanhol de O Mundo da Antiguidade Tardia, uma de suas obras magnas, é uma oportunidade de redescobrir não só essa época erroneamente considerada sombria e seus tentadores paralelos com a atualidade, como também de rever a carreira do professor emérito de Princeton que antes lecionou em Oxford, sua alma mater, até 1975, do titã capaz de se rebelar contra Edward Gibbon, cuja tese da ruptura —a bem-sucedida, mas pouco justificada ideia de decadência e queda do Império Romano— teve uma releitura radical no conceito de transformação do Brown.

Venerado por gerações de historiadores, a jornalista o encontra em sua residência de Princeton suscita uma ansiedade pertinente. Assim como tentar descobrir que presente deseja alguém que tem tudo, o que se deve perguntar a um erudito, a um sábio de fama internacional? Tanta riqueza de conhecimento impõe respeito. Mas a cortesia do professor, que aguarda a chegada do táxi para me acompanhar até o interior de sua casa —luminosa e plácida, com torres de livros, porcelanas, miniaturas e cortinas de cretone—, desfaz qualquer acanhamento.

Na soleira, uma mesinha auxiliar coberta de azulejos que reproduzem os motivos florais de Iznik, a cerâmica do período otomano, faz o visitante valorizar sua beleza enquanto pronuncia o topônimo. “Iznik!” e, abracadabra, predispõe ao diálogo. A primeira referência, graças à cerâmica, é a Turquia, um país que Brown e sua esposa, Betsy, conhecem muito bem, como parada obrigatória para quem estudou Bizâncio em todas as suas formas. A Turquia voltará reiteradamente à conversa. “Qual sua opinião sobre Erdogan? Como vê a situação do país?”, pergunta logo o professor, em um exercício de maiêutica. Betsy lembra que Peter estudou turco, “esse idioma tão bonito, com um som lindo”, comenta ele com satisfação. Sobre seu vasto dom de línguas ele falará, entre divertido e modesto, mais tarde. “Agora estou aprendendo etíope”, conta, sem dar importância a isso. “Mas não o moderno, o antigo.”

Para um historiador total como Brown, herdeiro em fôlego de Fernand Braudel e discípulo de Arnaldo Momigliano, que atualidade tem um livro escrito há décadas? “Este livro é de 1971. Obviamente, minhas inquietações mudaram. A razão para me dedicar ao que agora chamamos de Antiguidade tardia era o desejo de estudar uma sociedade que tinha conservado suas raízes no mundo antigo, com o latim e o grego como línguas dominantes, mas ao mesmo tempo tinha começado a mudar. Era o estudo da mudança em uma sociedade inusualmente resistente. Costumávamos descartar esse período por ser um período de ruptura total. Não gostávamos de nada que víamos dele”, lembra Brown sobre a época que ele reabilitou epistemologicamente

“Essa foi minha principal motivação: entender a natureza exata de certas crises, como as mudanças no Governo do Império Romano nos séculos III e IV. Queria descobrir se tinham sido desastrosas ou, na verdade, mudanças de ajuste da evolução; um equilíbrio entre a continuidade e a descontinuidade, a fragilidade e a resistência. Um exemplo: o surgimento de novos estilos de vida aristocrática nas províncias do Império Romano. Devo muito à arqueologia espanhola, aos grandes mosaicos de lugares como Carranque, que conheci naquela época. Achados que nos diziam: ei, as coisas não desmoronaram, mudaram, o foco já não está nas urbes”, a quintessência do mapa-múndi romano junto com sua malha viária espalhada como uma teia de aranha entre metrópoles.

“Acredito que uma das principais preocupações no campo da Antiguidade tardia era minar a noção fácil das invasões bárbaras”, acrescenta. A tentação de ver uma transcrição desse fenômeno para o da imigração irregular é fácil, tanto para um discurso tão raso como o dos populistas a granel como para esse outro, mais rebuscado, que propõe a perversa teoria da substituição. “Se você estiver olhando constantemente para uma imagem falsa do passado, procurando o reflexo de sua própria imagem, isso só o levará pelo caminho do racismo, do obscurantismo. Da xenofobia. Um bom exemplo são as invasões bárbaras. Todo mundo está ciente de que há problemas na Europa por causa da imigração em massa, mas é um terrível abuso histórico tratar um como uma repetição do outro”, explica Brown. Além disso, acrescenta, “o islã jihadista tragicamente protagonista hoje não tem nada a ver com o do profeta Maomé, com o islã de 300 anos atrás, são totalmente diferentes”.

Seu primeiro livro foi, no entanto, uma biografia de santo Agostinho, o norte-africano que o erudito destronou da santidade intitulando sua obra simplesmente como Augustine of Hippo: A Biography (lançada em português como Santo Agostinho: Uma Biografia). “Uma figura muito latina, um homem que representava um cristianismo imensamente opressivo. Lembro-me das críticas em espanhol ao meu ensaio; de como os europeus, principalmente os de origem católica, ainda consideravam Agostinho como parte de seu próprio mundo.”

Por intercessão intelectual do santo, Brown superou o etnocentrismo —ou seja, o eurocentrismo tradicional, que considera a civilização clássica como única fonte do Ocidente— e soube olhar em volta, outra de suas grandes conquistas como historiador. “Teria sido muito fácil continuar estudando só o cristianismo, mas me deparei com as descobertas da arqueologia, aprendi siríaco e hebraico e abri uma área cuja cultura chegava então até as cidades gregas da costa do Egeu, como Éfeso. Continuavam sendo cidades impressionantes, mas foram sendo criadas outras grandes obras, como Santa Sofia em Istambul.”

Portanto, prossegue ele sem abandonar o uso do plural de modéstia e com um levíssimo gaguejo ocasional, imperceptível, “vimos que havia um mundo lá fora e que não era possível escrever sobre ele como se tivéssemos de fechar as cortinas do Império Romano; era uma vida nova para o Império Romano, inclusive o profeta Maomé e o islã surgiram dessa cultura, não vieram do espaço exterior. Parte das raízes da Europa não está apenas na Europa. Também está no Oriente Médio e no sul do Mediterrâneo. Parte da riqueza da cultura europeia é, precisamente, sua abertura ao mundo. Em Santa Sofia, nos escritos dos Padres do Deserto...”.

domingo, 2 de maio de 2021

O mundo, no limiar do holocausto nuclear em 1983: Stanislav Petrov, o homem que salvou o mundo - Martin Caparrós (El País)

Stanislav Petrov, o homem que salvou o mundo

Por 15 minutos, Stanislav Petrov teve o destino da humanidade em suas mãos. Foi o tempo que durou o alarme falso de um ataque nuclear

Fotografia do tenente coronel soviético Stanislav Petrov tirada en 1999.
Fotografia do tenente coronel soviético Stanislav Petrov tirada en 1999.NIKOLAI IGNATIEV / ALAMY IMAGES

Dizem que o mundo nunca esteve tão perto de desaparecer como naquele dia. Naquele dia, o presidente Reagan discursava contra os comunistas na ONU, a França continuava vetando a entrada da Espanha na Europa, os ditadores argentinos concediam anistia a si mesmos e a dupla Simon & Garfunkel se despedia do cenário musical para sempre. Naquele dia, ocorreria a inauguração de um centro comercial em La Vaguada [em Madri] e temiam-se ataques terroristas; a nova lei socialista de ensino, que reduzia a presença da religião nas escolas, era atacada por bispos e conservadores.

MAIS INFORMAÇÕES

Naquele dia, 26 de setembro de 1983, Stanislav Petrov estava com 44 anos de idade e era um tenente-coronel do exército soviético responsável pelo Centro de Detecção de Ataques Nucleares da URSS. A partir desse bunker, ele gerenciava a imensa rede de radares, satélites, técnicos e analistas que procuravam proteger seu território contra os mísseis atômicos norte-americanos. No meio da noite, o centro foi sacudido por um alarme: os computadores tinham detectado um míssil que estaria voando em direção à Rússia a 24.000 quilômetros por hora. Petrov pediu que se confirmasse a informação; os computadores a mantiveram, embora os satélites de observação não conseguissem ver o tal míssil. Petrov achou — eram outros tempos — que as máquinas e seus algoritmos podiam se enganar. Decidiu aguardar; nos cinco minutos seguintes, mais quatro alarmes foram disparados. Um único desses mísseis tinha — tem — o dobro do poder explosivo de todas as bombas da Segunda Guerra Mundialreunidas.

Deve ser muito esquisito pensar que se tem nas mãos o destino do mundo. Se Petrov tivesse seguido o protocolo e alertado seus superiores, em poucos minutos várias centenas de mísseis nucleares teriam sido disparados em direção ao território norte-americano. Em apenas uma hora, a guerra nuclearteria acabado com a vida de milhões e milhões de pessoas. Mas Petrov decidiu esperar. Os computadores reconfirmavam a informação, mas não havia nenhuma confirmação visual dela. Deve ser muito estranho saber que, se você tomar uma decisão equivocada, a humanidade inteira pagará por isso.

Stanislav Petrov nasceu em Vladivostok, em 1939; não gostava de ser militar, mas vinha lidando com a função com facilidade. Menos agora, pois ali não havia nenhuma margem para dúvidas. Decidiu, então, que o alarme devia resultar de algum erro. Não fazia sentido que os EUA estivessem mandando apenas cinco mísseis em vez de centenas, como se poderia prever. Alguns minutos depois, o radar confirmou que não havia ataque nenhum.

Petrov acabara de salvar o mundo, mas o mundo não ficou sabendo disso, e tudo continuou como se nada tivesse acontecido. Os militares russos silenciaram sobre o caso. Seu sistema de defesa tinha falhado demais para que divulgassem o acontecido, de modo que só ficamos sabendo do episódio 20 anos depois. E, por alguma razão, o fato de nos inteirarmos disso não nos leva a perguntar quantas outras coisas nós também ignoramos hoje, coisas que estariam acontecendo neste momento e que só saberemos, talvez, em algum dia do futuro.

Stanislav Petrov não permaneceu por muito mais tempo no exército. Sua esposa morreu e ele pediu para ser reformado. Hoje, é um senhor de idade raivoso, fumante, irritadiço, trancafiado em um apartamentinho da periferia de Moscou, meio cansado de ser procurado apenas para falar sobre aqueles 15 minutos, que não parece ter outras coisas a dizer além daquilo que se passou naqueles 15 minutos, quando o seu grande acerto foi não fazer nada: a decisão de que a inação era a melhor ação possível. O fato de ele estar no comando ali, naquela hora, foi um acaso; talvez um outro militar tivesse seguido ao pé da letra o protocolo, talvez o mundo não existisse mais. Sua vida são esses 15 minutos, mas esses 15 minutos salvaram o mundo: poucas vidas — tão plenas, tão vazias — pesaram tanto para o destino como a sua.

As bombas continuam por aí: Estados Unidos, Rússia, China, França, InglaterraÍndiaPaquistão e Coreia do Norte possuem milhares delas, capazes de fazer tudo voar pelos ares. Mas, por alguma razão, isso já não parece nos preocupar. Mesmo estando, como sempre, ao sabor de um acaso desconhecido. Ou de um bastante conhecido, um tal de Donald Trump, que ameaça com “fogo e fúria como o mundo nunca viu”, e que pode fazê-lo.

Por Martín Caparrós

Martín Caparrós é jornalista e escritor, nascido em Buenos Aires em 1957. Deixou o seu país de origem em meados dos anos 70 e se exilou na Europa. Cursou História na Sorbonne, em Paris, e depois mudou para Madri, onde viveu até 1984, quando, com a democratização da Argentina, voltou para o seu país natal. Desde então, sua vida tem sido marcada por constantes idas e vindas entre um lado e outro do Atlântico. Em seu livro Lacrónica, de 2015, ele trata de seus 30 anos no mundo do jornalismo.


quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Brasil ameaçado: Bolsonaro tem roteiro definido para uma ruptura institucional - Marcos Rolim, Monika Dowbor, Ana Severo (El País)

 O Brasil ameaçado

Bolsonaro tem roteiro definido para uma ruptura institucional. É preciso saber se as instituições e a sociedade civil irão se mobilizar e mostrar seu desacordo com as políticas do Governo Federal.

Marcos Rolim|Monika Dowbor|Ana Severo

Há períodos na história onde pedaços inteiros de futuro desaparecem. Cada pessoa é ela e suas possibilidades, assim como cada nação, povo e instituição. Em situações extremas, como as guerras por exemplo, a morte precoce de milhares ou mesmo de milhões de pessoas é um resultado possível, assim como a destruição de nações, instituições e povos. Esses resultados eliminam possibilidades históricas, abatem do futuro infinitas trajetórias humanas, assentando a dor e o desespero nos vazios que se multiplicam.
Por conta do sofrimento pressuposto, as guerras são um mal a ser evitado. Em nossa época, desde o fim da II GuerraMundial, os confrontos militares foram substancialmente reduzidos, inaugurando-se o período cunhado por John Lewis Gaddis como “a Grande Paz”. Isso se fez, basicamente, pela construção e pelo fortalecimento das democracias liberais e pelo processo de globalização que afirmou um mercado mundial e meios internacionais de regulação e dissuasão de conflitos. Ditaduras foram, historicamente, muito mais inclinadas à guerra porque elas se fundam em um discurso proponente da violência. Toda ditadura, de direita ou de esquerda, precisa de um inimigo para mobilizar sua base e legitimar as barbaridades que irá cometer. Por isso, a gramática dos ditadores e daqueles vocacionados à ditadura sempre exalta a violência.
As estimativas históricas compiladas por Steven Pinker mostram que as guerras mataram um número de combatentes no século XX que equivale a 0,7% da população mundial. Se acrescentarmos às baixas militares todos os demais mortos pela fome e pelas doenças causadas pelas guerras, mais as vítimas do Genocídio Armênio, do Holocausto, do massacre de Ruanda, chegaremos a 3% do total das mortes ao longo do século XX. Esses números servem para destacar a gravidade da pandemia em curso, vez que a taxa de mortalidade entre os casos confirmados de covid-19 no Brasil é de 2,6%, uma das mais altas no mundo. A referência a uma realidade de guerra para descrever a atual crise sanitária no Brasil não é, então, apenas uma figura de linguagem. A morte carrega também as marcas das desigualdades históricas no Brasil. Pesquisas mostram que os negros morrem mais que os brancos: são 250 óbitos pela doença a cada 100.000 habitantes. Entre os brancos, são 157 mortes a cada 100.000.
A covid-19 no Brasil, como a guerra, também fragiliza a sociedade nos bastidores, ao agravar as condições sociais, econômicas e psíquicas decorrentes da ausência de políticas públicas adequadas para a contenção da doença. Entre elas estão as mulheres, sobrecarregadas pelas tarefas de cuidado que se multiplicam nos tempos da pandemia, mas não cuidadas pelo Poder Público. As mulheres pobres, negras e moradoras de periferias são ainda mais fortemente afetadas pela pandemia, o que reforça as desigualdades pré-existentes.
Estamos nos aproximando rapidamente da marca de 400.000 mortos sem que o país disponha de uma política unificada de enfrentamento à pandemia. Ao invés de um discurso, uma orientação e uma só agenda de saúde pública, temos uma estratégia de necropolítica no nível federal e, nas demais esferas de governo, uma miríade de iniciativas desencontradas. A ausência de uma coordenação nacional ampliou os espaços para narrativas que divergem em aspectos centrais sobre praticamente todos os temas, desde a prevenção, o uso de máscaras, o distanciamento social, a importância da proteção social, as abordagens terapêuticas e a vacinação. O que sempre foi domínio da Ciência, temas que em qualquer democracia no mundo foram abordados com o criterioso amparo de evidências de estudos clínicos e revisões sistemáticas passaram a ser tratadas por conspiradores com milhares de seguidores no YouTube e por relatos anônimos de testemunhas e sábios de botequim. O processo, como se sabe, não teve geração espontânea. Ele se formou com a sistemática produção de conteúdos manipulatórios dirigidos aos potencialmente influenciáveis por mensagens preconceituosas que estimulam o ódio a adversários políticos e a instituições.
Há vários elementos totalmente novos nesse processo, mas destacamos dois deles: a) o enfraquecimento radical da esfera pública, como ambiente solar onde todos os argumentos podem ser expostos e contraditados sob a vista dos interessados; o que se deu pelo deslocamento do discurso político ao mundo sublunar dos espaços privados, onde os aficionados compartilham mensagens produzidas com incrível eficácia e b) a possibilidade de customização de mensagens para os indivíduos a partir da descoberta daquilo que Shoshana Zuboff chamou de “superávit comportamental”, vale dizer a infinidade de dados a respeito dos hábitos, ações, preferências, convicções de cada um de nós, entre outras informações privadas hoje de domínio das grandes corporações do mundo digital, que tornaram possível, a partir dos recursos de big data, o estabelecimento de um mercado de comportamentos futuros e, também, por óbvio, a fabricação de opções político-eleitorais.
No Brasil, a disseminação de conteúdos falsos e beligerantes, técnica amplamente empregadas nas eleições de 2018, se vinculou, desde o início, à proposição do golpe militar, apresentado com o mantra da intervenção militar como se a figura tivesse guarida na ordem constitucional. Na pandemia, o fenômeno caracterizado pela Organização Mundial de Saúde(OMS) como infodemia, tem revelado um potencial ainda mais destrutivo com a disseminação de fake news negacionistas, de sentido antivacina e a favor de medicações contra a covid-19 sem amparo em evidências (Lópes-Medina; Lópes; Hurtado et al, 2021; World Health Organization, 2021; The Recovery Collaborative Group, 2021; Mainoli, Machado & Duarte, 2021). Tal situação, assinale-se, é ainda mais grave pelos possíveis efeitos iatrogênicos já observados e pela evidente redução de cuidados preventivos que costuma se associar à crença em remédios milagrosos.
As palavras costumam indicar movimentos mais profundos e não há violência política que se efetive sem ser anunciada com antecedência. O discurso violento é, por isso, sempre uma promessa e, em muitos casos, aquilo que Robert K. Merton chamou de “profecia que se auto cumpre” (self-fulfilling prophecy). O Holocausto não seria possível sem a ampliação do antissemitismo por um discurso que associava os judeus a insetos; o Gulag não seria realidade sem a ideia, proferida milhares de vezes, de que os dissidentes eram “inimigos do povo” ou “gusanos” (vermes) como prefere a ditadura cubana; tampouco o massacre de Ruanda ocorreria sem que os Tutsi fossem chamados de “baratas” pelos Hutus durante décadas.
Nunca em nossa história, um presidente foi capaz de produzir um discurso com tamanha intolerância e ódio quanto o tem feito Jair Bolsonaro. Esse fato, por si só, já seria temerário, mas há uma situação muito mais preocupante sintetizada, recentemente, pelo ministro Edson Fachin nos termos de sete ameaças à democracia: 1) a remilitarização do governo civil, 2) as intimidações e proposições de fechamento dos demais Poderes; 3) declarações acintosas de depreciação do voto; 4) atentados à liberdade de imprensa; 5) incentivo ao armamento geral; 6) recusa antecipada do resultado eleitoral e 7) naturalização da corrupção dos agentes administrativos.
O ponto central a discutir é que essas ameaças não decorrem da saúde, mas de um projeto político que não guarda com a democracia qualquer laço de pertinência, ainda que surja por dentro dela. Parece que estamos diante do fenômeno da erosão incremental da democracia conforme assinala Adam Przeworski analisando países como Turquia, Polônia, Hungria e Venezuela aos quais o Brasil sob Bolsonaro é frequentemente comparado. No caso brasileiro, as ameaças atingem a democracia e já significam o retrocesso em diversos direitos que o país ampliou como a inserção de mulheres no mercado de trabalho, proteção ambiental e educação entre outros. Perdem-se décadas de avanços que buscavam corrigir as injustiças e desigualdades históricas e uma noite ou mais noites de obscurantismo e violência voltam a assombrar nosso futuro próximo.

O agravamento da pandemia no Brasil é marcado pela posição negacionista do presidente e por sua determinação em permitir que o vírus circulasse amplamente para, assim, se alcançar a imunidade de rebanho. Essa estratégia infame foi demonstrada pelo estudo do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas que analisou mais de 3.000 atos normativos do Governo Federal durante a pandemia. Nesse trágico caminho, chegamos ao ponto do risco de não retorno em termos de possibilidades futuras.

Além de tudo o que já perdemos pela negligência, despreparo, irresponsabilidade e estratégia do gestor federal e de muitos outros governantes e políticos que se comportam zelando tão somente por suas perspectivas eleitorais, corremos agora o risco de tornarmos a covid-19 endêmica, com mais de 90 cepas do coronavírus já identificadas no país; o que, somado à destruição do sistema de proteção ambiental, consolidará a imagem do Brasil como uma ameaça ao planeta. Os impactos desse processo na economia aumentam os riscos de produção do caos social e de ações violentas, o que poderá ser utilizado para a justificativa de medidas de exceção e para inviabilizar as próximas eleições presidenciais.

Esse parece ser um roteiro definido para uma ruptura institucional. É preciso saber se as instituições democráticas serão capazes de barrá-la; se a sociedade civil irá se mobilizar de modo a sublinhar seu desacordo com as políticas do Governo Federal e defender os direitos fundamentais; se os partidos políticos comprometidos com valores democráticos conseguirão, diante da gravidade das ameaças, relevar suas diferenças e se portar responsavelmente e se saberemos construir uma saída para a crise sanitária e econômica com base na Ciência.

Marcos Rolim é doutor em Sociologia (UFRGS) e professor do programa de pós graduação em Direitos Humanos da UniRitter (RS). Monika Dowbor é doutora em Ciência Política (USP), coordenadora do programa de pós graduação em Ciências Sociais da Unisinos (RS). Ana Severo é economista, consultora em gestão de políticas públicas.


sábado, 10 de abril de 2021

Itamaraty muda tom com apoio a acordo por vacinas na OMC e sinaliza busca por “sobrevivência” do Governo - Afonso Benitez (El País)

Governo Bolsonaro

Itamaraty muda tom com apoio a acordo por vacinas na OMC e sinaliza busca por “sobrevivência” do Governo

Novo chanceler, Carlos França, assumiu tratando a pandemia como prioridade. Saída iminente de assessor olavista, Felipe Martins, seria outra mudança a caminho. Diplomata avalia que Bolsonaro busca sobreviver, acossado por CPI da Pandemia e frágil aliança com Centrão

O ministro Carlos Franco França e o presidente Jair Bolsonaro em 5 de abril, no Palácio do Planalto.
O ministro Carlos Franco França e o presidente Jair Bolsonaro em 5 de abril, no Palácio do Planalto.Marcos Corrêa/PR

Jornalista Afonso Benites
Brasília -

Nos últimos dias o Governo Bolsonaro começou a emitir sinais de que a política externa brasileira faz uma mudança de tom depois dos últimos dois anos desastrados do agora ex-ministro Ernesto Araújo. Nesta sexta-feira, circulou a informação em Brasília que o presidente Jair Bolsonaro decidiu demitir seu assessor especial para assuntos internacionais, Filipe Martins, o seguidor do escritor Olavo de Carvalho, que tinha sua cabeça pedida pelo Congresso Nacional por ter feitos gestos racistas em uma audiência pública na semana retrasada. A confirmação não veio por fontes oficiais, mas a sua saída é considerada iminente por falta de apoio político.

No Itamaraty, na terça-feira, foi empossado Carlos Franco França, em substituição a Ernesto Araújo, o ministro que seguia teorias conspiratórias e era submisso aos Estados Unidos. O novo chanceler é um embaixador que busca valorizar o corpo diplomático brasileiro, fazer com que ele finalmente seja ouvido pelo presidente Bolsonaro e tem como meta reforçar as parcerias com organismos multilaterais. 

O primeiro ato que leva a assinatura de França é o apoio a uma iniciativa articulada no âmbito da Organização Mundial do Comércio que pretende ampliar a produção e distribuição de vacinas contra a covid-19. Araújo sempre foi criticado por seguir em um outro caminho, o de desprezar o multilateralismo e confrontar países produtores de imunizantes ou insumos, como a China, além de não se esforçar para a aquisição massiva do produto. Não agiu sozinho, já que sempre teve o suporte de Filipe Martins e do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), com a palavra final do presidente. Nesta sexta, o novo chanceler conversou com o ministro chinês de Negócios Estrangeiros, Wang Yi, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Para o embaixador Paulo Roberto de Almeida, diplomata há 44 anos e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Jair Bolsonaro se viu forçado a fazer essas alterações, assim como a reforma ministerial que promoveu há dez dias. Ele estava perdendo o apoio político no Congresso e, agora, está diante da CPI da Pandemia que deverá fazer o seu governo sangrar cada vez mais, por causa da omissão no combate ao coronavírus. “Estamos no terceiro Governo Bolsonaro. O primeiro, foi o da ofensiva, quando ele até ameaçou golpe diante do Comando do Exército. O segundo foi o recuo, quando se entregou ao Centrão no Congresso. O termo de agora é sobrevivência, sem fazer mudanças, ele fica enfraquecido ou cai”, avaliou.

Nesse sentido, o que se tem no momento na política externa é um meio termo na diplomacia da vacina. Não é radical e negacionista quanto a política de Araújo. O antigo chanceler votou nos organismos internacionais contra a quebra de patente dos imunizantes e minimizou a iniciativa Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde (OMS). A atual proposta visa fazer com que as farmacêuticas celebrem acordos de licenciamento para a transferência de tecnologia, expertise e know-how de medicamentos e vacinas contra o coronavírus.

Além disso, a medida na OMC pretende chegar a um consenso sobre barreiras comerciais e propriedade intelectual. Desde que Bolsonaro tomou posse, em 2019, essa é uma das primeiras vezes em que ele entra em algum acordo sem que receba o direcionamento direto dos Estados Unidos. O patrocínio à proposta também teve o apoio de Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Noruega, Nova Zelândia e Turquia.

Um dos fatores que pesaram na mudança, ainda que temporária e superficial, nas rotas da chancelaria foi o elevado número de mortos por covid-19. A segunda onda da doença tem ultrapassado os 4.000 óbitos diários. O descontrole fez com que o Brasil se tornasse a ser uma ameaça global, em que os cientistas temem que o país se transforme em uma incubadora de novas cepas e variantes do vírus.

Logo em seus primeiros discursos, França alertou que sua gestão terá três urgências para tentar ajudar a solucionar: no campo da saúde, na economia e no desenvolvimento sustentável. “A primeira urgência é o combate à pandemia da covid-19. Sabemos todos que essa é tarefa que extrapola uma visão unicamente de governo”, afirmou o chanceler. Ele ainda destacou que todos os diplomatas brasileiros estarão “cada vez mais engajados numa verdadeira diplomacia da saúde”.

Segue em direção oposta ao posicionamento de Ernesto Araújo, que, no primeiro semestre de 2020, foi contra o Brasil assinar a iniciativa Covax Facility por entender que ela fortaleceria a Organização Mundial da Saúde, naquele momento atacada pelo então presidente Donald Trump e pela militância bolsonarista. Em novembro do ano passado, a ideologia de Araújo ficou clara em outro momento, quando em reunião para tratar de cooperação no setor farmacêutico com o Governo da Índia, ele criticou o “globalismo” e não tratou em nenhum momento da aquisição de vacinas que eram produzidas naquele país. “As falas do novo ministro são absolutamente dentro dos conceitos, princípios, valores e fundamentos que guiaram a política externa brasileira nos últimos cem anos. O diferente era o Ernesto Araújo, não é o França”, disse o embaixador Almeida.

Antes de completar uma semana no cargo, França já promoveu uma série de reuniões com os diplomatas brasileiros e se encontrou virtualmente, nesta sexta-feira com representantes de cinco embaixadas: União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos, Noruega e Alemanha. Para os próximos dias, também estão previstas reuniões com diplomatas da China e de outros países asiáticos. “Meu compromisso, enfim, é engajar o Brasil em intenso esforço de cooperação internacional, sem exclusões. E abrir novos caminhos de atuação diplomática, sem preferências desta ou daquela natureza”, afirmou França na posse.

O que não está claro, por enquanto, é como vai ficar a influência no bolsonarismo na gestão da política exterior com as saídas de Martins e de Araújo. Bolsonaro já mostrou que não tem o menor interesse em abandonar suas posições radicais a favor do tratamento precoce, por exemplo, e contra um lockdown nacional. Nesta sexta, o escritório da Organização das Nações Unidas no Brasil cobrou urgência num plano nacional de resposta à crise, alertando que “as vacinas são essenciais, mas elas não resolverão o problema imediato do país, que apresenta atualmente o maior número de óbitos diários por covid-19 do mundo”, diz em nota.

O ex-chanceler agora ocupa um cargo na Secretaria Geral de Administração. Em princípio, ele tentou nomear seu antigo chefe de gabinete, Pedro Wolney para a secretaria-geral do Ministério, que é uma espécie de vice-ministro, mas não conseguiu. A interferência de Eduardo Bolsonaro também ainda é incerta. Por ora, esse grupo articula um novo posto para Araújo, possivelmente no Consulado do Brasil em Paris, cargo para o qual não precisa da aprovação do Senado. Embaixadores precisam ser aprovados pelos senadores e dificilmente o ex-chanceler teria esse aval.

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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Benjamin Teitelbaum: livro "Guerra pela eternidade" - entrevista Letícia Duarte (El País)

 BENJAMIN TEITELBAUM, AUTOR DE 'GUERRA PELA ETERNIDADE' E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO COLORADO

“Destruição é a agenda do Tradicionalismo”, a ideologia por trás de Bolsonaro e Trump

Benjamin Teitelbaum passou 15 meses entrevistando os principais ideólogos conservadores atuais para escrever ‘Guerra pela eternidade’, que mostra a relação entre os gurus Olavo de Carvalho e Steve Bannon com esta ideologia antimodernista e de fundamentos religiosos

LETÍCIA DUARTE
Nova York - El País, 12 DEC 2020 - 21:00 BRST

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a escalada populista com flerte autoritário dos Governos de Jair Bolsonaro Donald Trump suscita comparações com o fascismo. Mas para o pesquisador da extrema direita e etnógrafo norte-americano Benjamin Teitelbaum, autor do livro Guerra pela eternidade (Editora da Unicamp, War for eternity: inside Bannon’s far-right circle ―no título original, em inglês), a cruzada em curso contra valores modernos e democráticos nos dois países pode ser melhor compreendida a partir de uma outra doutrina menos conhecida, o Tradicionalismo (com ‘T’ maiúsculo, para diferenciá-lo do conservadorismo tradicional). Não que a alternativa seja melhor, o autor se apressa em esclarecer.

Baseado em mais de 15 meses de pesquisa e entrevistas com ideólogos conservadores como o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon, o guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, e o conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, Aleksandr Dugin, Teitelbaum descreve em seu livro como essa teoria obscura seguida por eles têm influenciando os governos dos Estados Unidos, do Brasil e da Rússia.

Nesta entrevista concedida por vídeochamada ao EL PAÍS, o professor de Assuntos Internacionais e Etnomusicologia da Universidade do Colorado (EUA) explica por que ele considera esta ideologia mais radical em suas concepções antimodernistas do que o próprio fascismo. “Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo”, alerta. Mesmo após a derrota de Trump e a prisão de Bannon (sob acusação de desvio de recursos para a construção do muro entre os EUA e o México), o autor avalia que as forças que eles representam continuarão vivas —e testando as instituições democráticas. Também examina como o Tradicionalismo legitima desde o racismo até a propagação de teorias conspiratórias em relação à pandemia do coronavírus.

Pergunta. Seu livro descreve como o Tradicionalismo, que até pouco tempo era considerada uma doutrina marginal dentro da própria extrema direita, alcançou influência global. Para quem ainda não leu o livro, como o senhor sintetizaria essa doutrina?

Resposta. O Tradicionalismo é originalmente uma escola espiritual filosófica que se tornou política em certo nicho. Os seguidores basicamente acreditam que a humanidade está ao fim de um longo ciclo de declínio e que vai ser concluído com destruição e renascimento. O que foi perdido neste ciclo de declínio foi o conhecimento verdadeiro da religião e também a ordem nas nossas sociedades —incluindo a diferença entre homens e mulheres, posições sociais e espirituais. No lugar disso, teríamos um mundo massificado e secularizado, neste processo de modernização. O Tradicionalismo acredita que é preciso haver um cataclismo para restaurar o que acreditam ser a verdade. Um dos elementos desse Tradicionalismo politizado de direita é acreditar que é preciso restaurar uma hierarquia onde homens arianos e líderes espirituais estão no topo, em oposição a materialistas, não-arianos e mulheres.

P. Quais as principais consequências do Tradicionalismo, e o que mais lhe surpreendeu durante a pesquisa para o livro?

R. Vou começar pelo fim. A grande consequência é que o Tradicionalismo acrescenta uma motivação espiritual para o que poderia ser simplesmente uma agenda política do populismo de direita, antiglobalista, antiprogressista. As pessoas podem aderir a isso por diferentes razões, como ressentimento econômico, racismo, antifeminismo… Mas o Tradicionalismo oferece uma motivação religiosa. E esse é um elemento importante. No caso de Olavo de Carvalho, por exemplo, ele não expressa apenas um ódio às elites, desprezo à ciência, à mídia, às universidades. Existe também a visão, um certo mandato espiritual, com o desejo de destruir grandes organizações, como a União Europeia, as Nações Unidas. A seus olhos, a destruição é uma coisa boa. Isso é assustador e preocupante. Os tradicionalistas acham que essas grandes organizações querem unificar e homogeneizar o mundo com o comunismo, ou com dominação chinesa. Então Olavo quer ver o establishment no Brasil ser quebrado em peças e fraturado: sejam os militares, a universidade, a mídia. Destruição é a agenda.

O que me surpreendeu é que não sei por que isso aconteceu agora. Olavo, Bannon e Dugin são bem diferentes. Não conseguem trabalhar juntos, não é um círculo funcional. Mas o estranho é que essas ideias extremas acabaram vindo à tona basicamente no mesmo momento, e não pelas mãos de Bolsonaro, Trump, e Putin, mas pelas mãos das figuras atrás deles, como uma espécie de Rasputin... os conselheiros místicos, influentes.

P. Desde a publicação do livro nos Estados Unidos, no início deste ano, o cenário político mudou. Bannon foi para a prisão e Trump perdeu as eleições. Como você interpreta essas mudanças?

R. Eu sinto quase como se isso pudesse liberar a verdadeira mensagem do livro, porque o real sujeito do livro não são as ações de Bannon, Olavo e Dugin. É a história mais ampla por trás disso, para entender por que em lugares diferentes, com trajetórias independentes, vimos essa ideologia aparecer. A história não é sobre a ação de indivíduos. É sobre o que está por trás disso tudo, porque nos encontramos em um momento em que as pessoas estão buscando ideologias que parecem destoar tanto do padrão. E essa ideologia não é o comunismo, não é liberalismo, não é fascismo. O Tradicionalismo é tão fora do mapa que nenhum cientista político, nenhuma think tank em Washington, ninguém no Congresso e nenhum candidato à presidência jamais ouviu falar dele. E esse movimento ainda assim se sustenta. Há tanto desencanto, tanta frustração com o status quo, que nós vemos atores buscando alternativas radicais.

P. Vários pesquisadores vêm definindo essa guinada populista de direita que estamos vivendo em países como Brasil e Estados Unidos como uma retomada do fascismo. Você discorda, então?

R. Eu discordo, e isso não é pra dizer que eu acho que é melhor. Essa definição é errada, e há um certo nível de falta de interesse e rigor que leva a essa caracterização como fascismo. Mas o único jeito de compreender essa ideologia é levá-la a sério e ouvir o que ela realmente diz, em vez de olhar apenas a fachada. O Tradicionalismo é anti-progressista num nível que raramente vemos. Muitas pessoas costumam chamar a si mesmas de conservadoras, mas quase todo mundo no campo conservador é basicamente progressista no mundo ocidental. Elas acreditam que, se você reduzir as regulações governamentais do capitalismo e aumentar a liberdade individual sobre a propriedade, você pode criar uma sociedade melhor. Eles não são nostálgicos. O Tradicionalismo vai na direção diametralmente oposta. Eles não acreditam que é possível mudar ou melhorar a história, acham que é preciso desfazer todo o mal feito para as nossas sociedades, e isso não significa voltar apenas décadas para trás, mas séculos.

P. Qual a principal diferença entre o fascismo e o Tradicionalismo?

R. O fascismo é futurista, modernista, a despeito de tudo. Hitler e Mussolini queriam transformar radicalmente suas sociedades, revolucioná-las. O Tradicionalismo vai na direção contrária: quer voltar para trás, num nível que ninguém leva muito a sério. E é nesse ponto que as ideologias se separam. Ambas se opõem ao feminismo, ao multiculturalismo, às políticas emancipatórias contemporâneas. Mas as diferenças são significativas. Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo.

P. Você descreve no livro que certos autores tradicionalistas, como o italiano Julius Evola, colaboraram com o fascismo e com o nazismo. Qual o marco dessa separação ideológica?

R. O fascismo historicamente era amistoso com a ideia de modernização e com o pensamento científico. Quando Evola rompeu com os nazistas, foi justamente quando ele achou que eles estavam sendo materialistas demais, científicos demais. O entendimento de raça dos nazistas era visto como muito modernista e biológico para ele. O grande contexto é que o Tradicionalismo é cético em relação à ciência. E não acho que seja coincidência que pessoas na administração Bolsonaro, como Ernesto Araújo, e o próprio Olavo e pessoas de seu círculo, que leem e celebram o trabalho de autores como Guénon [o francês René Guénon, patriarca do Tradicionalismo] e Julius Evola, sejam também os mais adeptos a teorias da conspiração em relação ao coronavírus. Isso não é muito facilmente explicável olhando para o fascismo. É muito mais fácil de entender pelas lentes do Tradicionalismo.

P. Um ingrediente comum das teorias da conspiração em relação ao coronavírus é culpar a China pela pandemia. Seu livro conta que Bannon recebeu um milhão de dólares para militar contra o Partido Comunista Chinês. Não parece ser coincidência que, antes de ser preso, Bannon também tenha sido um dos primeiros a articular essa narrativa conspiratória do “vírus chinês”. No Brasil, vemos o mesmo discurso contra a China. Por que esta questão é tão crucial?

R. No caso de Bolsonaro, isso parece se justificar por uma oposição ao comunismo. Mas, para Bannon e Ernesto Araújo, há uma questão mais específica: o fato de a China ser secular, antirreligião, e ao mesmo tempo massificante, globalizante, por estar eliminando fronteiras. Isso é um problema para os nacionalistas. Não por acaso, Araújo escreveu em seu blog meses atrás que o maior problema não era o fato de a China ser um país contra o capitalismo, mas por ser contra o espírito. Então, para os tradicionalistas, a China não é uma vilã apenas pela questão econômica, mas é um demônio metafísico.

P. Como você vê o papel do Olavo nesse contexto?

R. Comparando com os outros, Olavo é ao mesmo tempo o mais tradicionalista de todos e também o menos. É mais porque não há um partido tradicionalista oficial, um clube, então o único jeito de ser oficialmente afiliado é ser iniciado em um centro religioso afiliado às ideias de Guénon, por exemplo, que podem ser centros hare krishna ou tariqas muçulmanas sufistas. E Olavo foi iniciado numa dessas linhas muçulmanas. Essas são credenciais tradicionalistas muito antigas, que são passadas por uma longa rede de pessoas. Mas olhando para Olavo hoje, ele não segue o Tradicionalismo de forma ortodoxa. É como se o Tradicionalismo fosse um tempero em seu pensamento. E isso é comum entre os tradicionalistas, pessoas que são inspiradas por essas ideias, mas as misturam com outras. E esse parece ser o caso de Olavo.

Jair Bolsonaro ao lado do ideólogo de extrema direita Olavo de Carvalho e do chanceler Ernesto Araújo, em meados de 2019.
Jair Bolsonaro ao lado do ideólogo de extrema direita Olavo de Carvalho e do chanceler Ernesto Araújo, em meados de 2019.ALAN SANTOS / AFP

P. Depois da publicação, o Olavo atacou você, classificando-o como mentiroso.

R. Olavo disse que eu era um mentiroso, mas ele nunca respondeu quando eu enviei para ele um capítulo do livro antes da publicação. Os documentos que reuni mostram basicamente que Olavo se converteu ao islã, era chamado de Sidi Muhammad. E eu acredito que ele ainda seja, de acordo com algumas tradições religiosas.

P. Você disse que Olavo foi o “pior” dos seus entrevistados, o que reagiu de forma mais furiosa à publicação do livro. Por que você acha que Olavo teve a pior reação?

R. Eu acho que há duas coisas: primeiro, que ele ficou um pouco envergonhado de eu expor sua ligação com a tariqa do Schuon [Frithjof Schuon, herdeiro intelectual de Guénon], porque isso contradiz a imagem que ele projeta hoje, de um cristão zeloso. E ele fala e escreve melhor baseado em uma posição de vitimização. É mais fácil me chamar de mentiroso, em vez de ter revisado os materiais que eu havia mandado para ele com antecedência. E há uma questão de personalidade. Eu não quero fazer uma psicanálise, mas nenhum dos outros personagens pareceu tão desapontado.

P. Quando eu entrevistei Olavo, ele me disse que não tinha projeto para a sociedade, que ele só sabia o que ele era contra, não o que era a favor. Isso parece reforçar essa lógica tradicionalista de destruição.

R. Interessante você mencionar isso, porque uma das coisas mais perspicazes que o Olavo me disse durante sua entrevista foi uma frase sobre o tradicionalista René Guénon. Ele disse que Guénon estava certo em tudo o que ele rejeitava e errado sobre tudo o que ele apoiava. E, de certa forma, senti quase como se o Olavo estivesse falando de si mesmo quando estava falando isso. Ele pode criticar , mas não há meta alguma. Não há muito o que construir, é tudo sobre destruição. E se você pensar historicamente, a crítica é muito fácil. A construção de algo é que é difícil. Olhando para o pensamento conservador, a crítica que fazem ao marxismo é justamente o fato de Marx criticar tanto o capitalismo e não conseguir imaginar muito o que colocar no seu lugar.

P. Como o senhor imagina o futuro do Tradicionalismo?

R. Eu não sei quantas pessoas vão se identificar como tradicionalistas. O que eu sei é que muitos republicanos bem posicionados, trabalhando para organizações nacionais, estão mais sintonizados com o Tradicionalismo do que eu jamais imaginaria. O Tradicionalismo está circulando, e isso vem de leituras da alt right. Não é necessário que haja uma evangelização, não precisa. Steve Bannon nunca pensou em fazer isso. Essas são ideias circulando entre a direita intelectual dissidente, pessoas que querem tomar o lugar dos conservadores nos Estados Unidos. Então essas ideias são atraentes para pessoas que se consideram intelectuais e ideólogos. Mas eu acredito que isso é o sintoma de algo maior. Há uma frustração e uma insatisfação política que vai fazer com que essas pessoas continuem procurando ideólogos e pensadores que querem alternativas e mudanças radicais, que querem repensar nossa democracia. E isso pode acontecer via Tradicionalismo ou outra ideologia, mas eu acredito que continuaremos vendo essa tendência.

P. Como a derrota de Trump afeta essa tendência? O movimento se enfraquece?

R. Trump perdeu, mas ele continua sendo incrivelmente popular entre a direita. Não há nada parecido, nenhum republicano jamais recebeu tantos votos nos Estados Unidos. E além disso os republicanos ainda foram muito bem nas votações do Senado, no Congresso. Eles têm uma penetração crescente entre grupos minoritários e pessoas sem diploma. Tenho entrevistado muitos jovens republicanos e eles seguem a cartilha de Trump. Eles acreditam que Trump mostrou que, se conseguirem combinar políticas econômicas liberais com políticas sociais conservadoras, eles podem vencer os democratas. Isso deve manter a ideologia trumpista viva.

P. E como o senhor vê as perspectivas para Bolsonaro, um dos maiores aliados de Trump, após a vitória de Biden?

R. Bolsonaro tem um problema real, não vejo o mesmo potencial para ele. Me parece que ele se antecipou ao se aliar aos Estados Unidos e virar as costas para a China. Agora que os Estados Unidos subitamente se transformaram e não o querem mais como parceiro, quem serão os amigos de Bolsonaro? Acho que o que salva Bolsonaro é que nem todos os seus subordinados no setor público levam tão a sério suas ameaças à China e seguem fazendo seu trabalho para manter as relações. Se tudo o que ele diz fosse levado à risca, o Brasil estaria realmente em apuros.

Antes também tínhamos Bannon, que fazia uma boa interlocução com o governo Bolsonaro. Havia um círculo, formado por Araújo, Bannon, Olavo, o embaixador brasileiro, e Gerald Brant. Eles tinham jantares juntos, confraternizaram frequentemente, em todas as visitas, mesmo Bannon não tendo cargo oficial no Governo Trump. Agora que tudo isso implodiu, é difícil saber quem manterá o entusiasmo por Bolsonaro em Washington. Trump não se importa muito.

Steve Bannon, ex-estrategista, ao deixar a Corte Federal de Manhattan, em 20 de agosto, após ser acusado de fraude e conspiração.
Steve Bannon, ex-estrategista, ao deixar a Corte Federal de Manhattan, em 20 de agosto, após ser acusado de fraude e conspiração. ANDREW KELLY / REUTERS

P. O senhor tem formação em música. Como começou a pesquisar a extrema direita?

R. Eu era um etnomusicólogo e estava estudando a relação entre música e cultura. Estava na Suécia e ia escrever uma dissertação sobre um ritmo assimétrico na música folk sueca. Ninguém no mundo ia ler isso (risos), mas enquanto eu estava lá a extrema direita assumiu o poder no país, e eles disseram que iriam investir na música folk sueca. Achei isso interessante, e decidi entrevistá-los sobre isso. Percebi que isso significava uma grande mudança para eles. Historicamente, a extrema direita era associada à música metal skinhead white power, mas, assim que tomaram o poder, queriam transformar sua imagem. Então havia uma história ali, a história de como estavam tentando reconstruir sua imagem não pela política, mas pela música.

Esse foi o começo, há mais de uma década. O interessante é que quando eu dizia para as pessoas que era um pesquisador de música, as pessoas falavam comigo. Se eu dissesse que era jornalista, historiador, ou cientista político, certamente ficariam mais desconfiados. Quando você chega perguntando sobre sua agenda política, eles se assustam. Mas se você chega perguntando que tipo de música eles mais gostam, eles se abrem.

P. Uma pergunta que ouço com frequência é por que devemos estudar pessoas como Olavo de Carvalho, ou Bannon. Há quem diga que são malucos, radicais, e que ao escrever sobre eles estaríamos dando plataforma. Por que, na sua opinião, é importante estudá-los?

R. Eu sou um acadêmico. Sou um etnógrafo, um antropólogo. E antropólogos estudam pessoas. Acreditam que todos merecem ser estudados. Meu editor tem uma explicação diferente. Ele diz que essas pessoas geram consequências, e que por isso precisamos compreendê-las. Acho que há um outro aspecto importante: muita análise que se faz da extrema direita é realmente ruim, simplista. Existe tanto medo em contribuir para a criação de mitos que a resposta acaba sendo muito simplista, com rótulos como ‘eles são racistas’, ‘eles são nazistas’. Mas devemos prestar atenção para o fato de que esse discurso também é anti-intelectual. As pessoas ficam com medo dos detalhes, das nuances. E a consequência acaba sendo uma falta de entendimento, se perde o grande contexto. Quando você estuda um fenômeno social, as questões precisam ser bem mais amplas do que se isso é bom ou ruim.