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domingo, 9 de maio de 2021

Peter Brown: historiador da Antiguidade, historiador universal - Maria Antonia Sanchez Vallejo (El País)

 HISTÓRIA

Peter Brown: “Pior que esquecer a história é distorcê-la para avivar o ressentimento”

Com 36 anos, demonstrou em ‘O Mundo da Antiguidade Tardia’ que a tese da decadência de Roma era falsa. Para muitos, é o maior historiador vivo em língua inglesa. Falamos com ele em sua casa em Princeton sobre sua trajetória, o abandono das ciências humanas e a tendência política de manipular o passado para incutir o medo

O historiador irlandês Peter Brown em sua residência em Princeton, New Jersey (EUA), em 29 de abril.
O historiador irlandês Peter Brown em sua residência em Princeton, New Jersey (EUA), em 29 de abril.JOANA TORO
MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO

O gosto pela astronomia que Peter Brown (Dublin, 85 anos) desenvolveu quando criança foi um presságio da tarefa que o consagraria como historiador: o afã de esquadrinhar na escuridão os pontos de luz que definem a Antiguidade tardia(200-700 depois de Cristo), esse período durante o qual ocorreu o colapso de Roma, ganharam forma as religiões do livro e o cristianismo foi se estabelecendo na Europa. Um período que ganhou status acadêmico graças, precisamente, aos seus estudos.

A reedição em espanhol de O Mundo da Antiguidade Tardia, uma de suas obras magnas, é uma oportunidade de redescobrir não só essa época erroneamente considerada sombria e seus tentadores paralelos com a atualidade, como também de rever a carreira do professor emérito de Princeton que antes lecionou em Oxford, sua alma mater, até 1975, do titã capaz de se rebelar contra Edward Gibbon, cuja tese da ruptura —a bem-sucedida, mas pouco justificada ideia de decadência e queda do Império Romano— teve uma releitura radical no conceito de transformação do Brown.

Venerado por gerações de historiadores, a jornalista o encontra em sua residência de Princeton suscita uma ansiedade pertinente. Assim como tentar descobrir que presente deseja alguém que tem tudo, o que se deve perguntar a um erudito, a um sábio de fama internacional? Tanta riqueza de conhecimento impõe respeito. Mas a cortesia do professor, que aguarda a chegada do táxi para me acompanhar até o interior de sua casa —luminosa e plácida, com torres de livros, porcelanas, miniaturas e cortinas de cretone—, desfaz qualquer acanhamento.

Na soleira, uma mesinha auxiliar coberta de azulejos que reproduzem os motivos florais de Iznik, a cerâmica do período otomano, faz o visitante valorizar sua beleza enquanto pronuncia o topônimo. “Iznik!” e, abracadabra, predispõe ao diálogo. A primeira referência, graças à cerâmica, é a Turquia, um país que Brown e sua esposa, Betsy, conhecem muito bem, como parada obrigatória para quem estudou Bizâncio em todas as suas formas. A Turquia voltará reiteradamente à conversa. “Qual sua opinião sobre Erdogan? Como vê a situação do país?”, pergunta logo o professor, em um exercício de maiêutica. Betsy lembra que Peter estudou turco, “esse idioma tão bonito, com um som lindo”, comenta ele com satisfação. Sobre seu vasto dom de línguas ele falará, entre divertido e modesto, mais tarde. “Agora estou aprendendo etíope”, conta, sem dar importância a isso. “Mas não o moderno, o antigo.”

Para um historiador total como Brown, herdeiro em fôlego de Fernand Braudel e discípulo de Arnaldo Momigliano, que atualidade tem um livro escrito há décadas? “Este livro é de 1971. Obviamente, minhas inquietações mudaram. A razão para me dedicar ao que agora chamamos de Antiguidade tardia era o desejo de estudar uma sociedade que tinha conservado suas raízes no mundo antigo, com o latim e o grego como línguas dominantes, mas ao mesmo tempo tinha começado a mudar. Era o estudo da mudança em uma sociedade inusualmente resistente. Costumávamos descartar esse período por ser um período de ruptura total. Não gostávamos de nada que víamos dele”, lembra Brown sobre a época que ele reabilitou epistemologicamente

“Essa foi minha principal motivação: entender a natureza exata de certas crises, como as mudanças no Governo do Império Romano nos séculos III e IV. Queria descobrir se tinham sido desastrosas ou, na verdade, mudanças de ajuste da evolução; um equilíbrio entre a continuidade e a descontinuidade, a fragilidade e a resistência. Um exemplo: o surgimento de novos estilos de vida aristocrática nas províncias do Império Romano. Devo muito à arqueologia espanhola, aos grandes mosaicos de lugares como Carranque, que conheci naquela época. Achados que nos diziam: ei, as coisas não desmoronaram, mudaram, o foco já não está nas urbes”, a quintessência do mapa-múndi romano junto com sua malha viária espalhada como uma teia de aranha entre metrópoles.

“Acredito que uma das principais preocupações no campo da Antiguidade tardia era minar a noção fácil das invasões bárbaras”, acrescenta. A tentação de ver uma transcrição desse fenômeno para o da imigração irregular é fácil, tanto para um discurso tão raso como o dos populistas a granel como para esse outro, mais rebuscado, que propõe a perversa teoria da substituição. “Se você estiver olhando constantemente para uma imagem falsa do passado, procurando o reflexo de sua própria imagem, isso só o levará pelo caminho do racismo, do obscurantismo. Da xenofobia. Um bom exemplo são as invasões bárbaras. Todo mundo está ciente de que há problemas na Europa por causa da imigração em massa, mas é um terrível abuso histórico tratar um como uma repetição do outro”, explica Brown. Além disso, acrescenta, “o islã jihadista tragicamente protagonista hoje não tem nada a ver com o do profeta Maomé, com o islã de 300 anos atrás, são totalmente diferentes”.

Seu primeiro livro foi, no entanto, uma biografia de santo Agostinho, o norte-africano que o erudito destronou da santidade intitulando sua obra simplesmente como Augustine of Hippo: A Biography (lançada em português como Santo Agostinho: Uma Biografia). “Uma figura muito latina, um homem que representava um cristianismo imensamente opressivo. Lembro-me das críticas em espanhol ao meu ensaio; de como os europeus, principalmente os de origem católica, ainda consideravam Agostinho como parte de seu próprio mundo.”

Por intercessão intelectual do santo, Brown superou o etnocentrismo —ou seja, o eurocentrismo tradicional, que considera a civilização clássica como única fonte do Ocidente— e soube olhar em volta, outra de suas grandes conquistas como historiador. “Teria sido muito fácil continuar estudando só o cristianismo, mas me deparei com as descobertas da arqueologia, aprendi siríaco e hebraico e abri uma área cuja cultura chegava então até as cidades gregas da costa do Egeu, como Éfeso. Continuavam sendo cidades impressionantes, mas foram sendo criadas outras grandes obras, como Santa Sofia em Istambul.”

Portanto, prossegue ele sem abandonar o uso do plural de modéstia e com um levíssimo gaguejo ocasional, imperceptível, “vimos que havia um mundo lá fora e que não era possível escrever sobre ele como se tivéssemos de fechar as cortinas do Império Romano; era uma vida nova para o Império Romano, inclusive o profeta Maomé e o islã surgiram dessa cultura, não vieram do espaço exterior. Parte das raízes da Europa não está apenas na Europa. Também está no Oriente Médio e no sul do Mediterrâneo. Parte da riqueza da cultura europeia é, precisamente, sua abertura ao mundo. Em Santa Sofia, nos escritos dos Padres do Deserto...”.