Marcos Rolim (*)
Após os resultados eleitorais do 1º turno, as pessoas com um mínimo de noção perceberam que havia algo muito assustador ali. Não porque a possível vitória de Lula no 1º turno não veio, mas porque os votos alcançados pela extrema-direita sinalizaram que teremos uma disputa acirradíssima pela frente e que os riscos são enormes. Diante dessa realidade, houve rapidamente a produção de conteúdos com a tese do “copo cheio”. Passou-se a repetir que, sim, a extrema-direita demonstrou força, mas a votação de Lula foi extraordinária, há uma vantagem de 6 milhões de votos e a esquerda cresceu no Parlamento, elegendo também bancadas mais diversas etc. O sentido da percepção do “copo cheio” é inequívoco: apesar dos pesares, estamos no caminho certo e a vitória virá, com certeza, algo que situa o 2º turno como uma “prorrogação”, para usar a expressão de Lula, o que é o mantra para não mudar os rumos da campanha. No mesmo sentido, muitas das lideranças da esquerda passaram a repetir discursos na base do “vamo-que-vamo”, parecendo mais torcedores do que dirigentes. Essa condução tende a se manter na medida em que as pesquisas indiquem vantagem para Lula, mas penso que esse caminho é o que agrega os maiores riscos e que, pelo contrário, a frente democrática precisa fazer uma campanha muito diferente no 2º turno, porque estamos diante de uma ofensiva bolsonarista que poderá, inclusive, virar votos dados a Lula pela ativação do antipetismo.
Uma mudança a ser assegurada é a necessidade de politizar a disputa com propostas de reformas, que tenham o efeito de demarcação e que permitam que Lula passe à ofensiva. Um dos problemas até agora é que a campanha de Lula não foi centrada em propostas. Tudo se passa como se ele, Lula, fosse a proposta. Cada um pode lembrar de um compromisso ou outro mencionado, mas não há propostas centrais para repetir todo o tempo e para que todos saibam do que se trata. Isso não foi construído, porque Lula deu atenção prioritária aos acordos políticos e à busca de alianças, de uma forma tal que a campanha foi sendo construída “por cima”, por dentro das instituições tradicionais, sem uma estratégia de mobilização por reformas.
Enquanto isso, Bolsonaro trabalha “por baixo” amalgamando sua militância em torno de uma pauta simples e manipulatória, via redes sociais e aplicativos, mas muito eficiente. A síntese é a tríade criada pelo Integralismo brasileiro “Deus, Pátria e Família” que se dissemina em um magma de significados onde a esquerda é acusada de “não ser cristã”, “não ser patriota” e querer “o fim da família”. Não há qualquer efeito em assinalar que o lema é fascista e desprezar ou xingar eleitores de Bolsonaro só cristaliza suas posições.
O fato é que, com a estrutura imagética criada, o fascismo foi ampliando seus espaços e ganhando o apoio de eleitores que não são, em sua ampla maioria, fascistas, mas que compartilham valores conservadores e autoritários e que foram radicalizados por um discurso de ódio que tem anos de acúmulo e que tem se valido dos recursos mais avançados da tecnologia de informação manipulada pela far-right mundial. Bolsonaro é tosco, mas o bolsonarismo é uma estratégia sofisticadíssima de guerra cultural.
Em síntese, o bolsonarismo conquistou uma hegemonia, no sentido gramsciano, sobre a direita, o que levou ao quase desaparecimento do centro democrático no Brasil. É preciso compreender que esse resultado foi facilitado pela ausência de uma plataforma de valores contraposta pela esquerda e por ambiguidades e silêncios persistentes em torno dos seus próprios erros.
Uma parte expressiva da votação de Lula no 1º turno sequer se deu em torno de expectativas programáticas sobre seu governo, sendo expressão do compreensível e legítimo pavor diante da hipótese da reeleição de Bolsonaro, o que se traduz também por um baixo engajamento militante e por uma “paixão fria”. Não é por acaso, aliás, que Bolsonaro tenha realizado mobilizações muito mais amplas que a esquerda nos últimos anos e tampouco se pode explicar o fenômeno pela presença de incentivos como o financiamento de grandes empresários. Há um engajamento político-ideológico nas mobilizações de rua do bolsonarismo que traduz uma adesão mais profunda.
Nesse quadro, adesões de personalidades e apoios de entidades e grupos a Lula têm o seu papel, mas não produzirão o ambiente necessário para a derrota do fascismo. Aqui, o tema mais complicado é como enfrentar as acusações de corrupção e as peças de campanha da extrema-direita que com fakes news, montagens e outros artifícios, tentam identificar Lula com o crime. Primeiro, é preciso romper a ambiguidade sobre o tema e ressaltar que todos os governos, nos diversos países, mesmo os mais evoluídos, apresentam casos de corrupção, mas, no Brasil, há uma corrupção endêmica e estrutural e uma forte noção de impunidade disseminada socialmente. Essa bandeira segue nas mãos da extrema-direita, o que é também resultado da opção equivocada de não tratar o tema ou mesmo considerá-lo um “falso problema”, expressão de manipulação midiática. Em verdade, a corrupção é uma praga e enfrentá-la é um dos maiores desafios civilizatórios no Brasil.
Ato contínuo, Lula deveria apresentar propostas claras anticorrupção, promovendo um fato de alto poder simbólico que poderia ser, por exemplo, o anúncio de alguém com a estatura de Joaquim Barbosa como futuro ministro da Justiça. Barbosa foi duro nos processos do mensalão que condenaram lideranças do PT. Sua indicação para um posto destacado no governo Lula caracterizaria a proposta de um governo de salvação nacional – porque é disso que se trata, expressão de uma frente democrática e não de um “governo do PT”.
Esse movimento permitiria que a campanha abordasse com mais propriedade temas como a indicação para a Procuradoria Geral da República (PGR). Quando perguntado a respeito, na entrevista ao Jornal Nacional, Lula preferiu não se comprometer sequer com a escolha via lista tríplice. Deveria anunciar que seu governo elaborará uma PEC para que a indicação à PGR seja, necessariamente, feita a partir de lista tríplice, critério respeitado por ele e por Dilma e ignorado por Bolsonaro. Lula deveria se comprometer com a ideia de que decisões pelo arquivamento de denúncias feitas pela PGR fossem examinadas por instância revisora, a exemplo das Procuradorias de Justiça nos Estados. Poderia anunciar que enviará projeto de lei ao Congresso proibindo a compra de bens acima de um determinado valor com dinheiro em espécie e anunciar a constituição de um “Conselho Nacional de Promoção da Integridade” formado por figuras sem filiação partidária, reconhecida idoneidade moral e notável conhecimento, encarregado de formular uma política para a promoção de condutas éticas no serviço público. Sem propostas contra a corrupção – esse é o ponto, Lula seguirá na defensiva, explicando que é inocente e relatando o que seus governos fizeram, o que não exigirá deslocamento no discurso de Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, a campanha deve definir como sua maior prioridade a qualificação do Ensino fundamental no Brasil ao invés de se referir apenas às universidades. Nesse tema, o Governo Federal pode atuar em auxílio aos gestores estaduais e municipais, fixando parâmetros de avaliação, viabilizando uma revolução tecnológica nas escolas e enfrentando o déficit educacional agravado por dois anos de pandemia que compromete o futuro de uma geração.
É preciso também propostas para se comunicar com públicos específicos. Por exemplo, as polícias brasileiras, onde a adesão a Bolsonaro é muito ampla. O que, de fato, Bolsonaro está assegurando aos policiais? A resposta é: nada desde uma perspectiva material, mas muito em termos simbólicos. Ele é quem, afinal, aparece como um “defensor dos policiais” diante de uma tradição da esquerda de estranhamento diante das polícias e de denúncias das arbitrariedades e abusos cometidos por elas. Bem, o que Lula poderia assegurar aos policiais em uma perspectiva republicana? Muitas coisas, a começar pelo compromisso em favor da mudança no modelo de polícia, sustentando, entre outros pontos, a introdução da carreira única em cada instituição. Ou seja, fazer com que valha no Brasil a regra de todas as polícias do mundo: uma só porta de entrada em cada polícia (e não duas, como temos hoje, uma para os que devem mandar, outra para os que devem obedecer), o que asseguraria aos policiais uma carreira de verdade em que todos os chefes de polícia e comandantes gerais um dia tenham sido agentes ou patrulheiros. As cúpulas policiais não apoiam essa proposta, mas a base das polícias apoia e teria nela uma reforma capaz de mudar suas vidas. Um detalhe, Bolsonaro não tem a menor condição de propor algo do tipo. Com essa proposta, se teria algo muito concreto para fazer campanha nas corporações onde cada voto conquistado vale dois. O mesmo raciocínio vale para muitas outras áreas onde se necessita, urgentemente, de um discurso propositivo.
A radicalização da disputa integra a estratégia de ruptura com a democracia desejada por Bolsonaro. Sem uma plataforma de reformas pelas quais se deva lutar, a disputa eleitoral tende a ser mais agressiva e pessoalizada e os espaços de racionalidade se tornarão cada vez mais rarefeitos. A saída diante do fascismo exige, em síntese, criação política para a mobilização nacional.
(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).
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