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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Artigo sobre o livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi: Que bobagem, pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério - Marcos Rolim

 

OPINIÃO

Ciência e escândalo

Por Marcos Rolim / 

Revista Extra Classe, Publicado em 14 de setembro de 2023
 
 
 
 
Ciência e escândalo

“Há os que acreditam em QAnon, a fantástica conspiração do ‘Estado profundo’; quem suspeite que uma vacina produzida na China possa introduzir um chip nas pessoas e ainda quem procure o apoio de discos voadores para seus objetivos golpistas” ciência

Imagem: Brookings.edu/Reprodução

Entre as muitas limitações presentes na formação cultural média do Brasil, destaca-se o baixo nível de informação sobre ciência.

Os dados são estarrecedores, e estudos internacionais já situaram o Brasil entre os países em que a percepção da realidade é mais distorcida.

Pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), de 2021, mostrou que, para 54% dos jovens brasileiros (15 a 24 anos), os cientistas podem estar exagerando quanto aos efeitos das mudanças climáticas; outros 40% não concordam que os humanos evoluíram e descendem de outras espécies, e 25% entendem que vacinar crianças pode ser perigoso.

Essa situação piorou muito nos últimos anos por conta do avanço do fundamentalismo religioso no Brasil e pelo negacionismo promovido pela extrema direita que ataca a ciência, desconstruindo o conhecimento histórico, amparando movimentos antivacina e sustentando que o aquecimento global é uma farsa.

A ignorância sobre a ciência está presente não apenas entre os menos letrados.

Grande parte da elite nacional – políticos, operadores do direito, empresários, militares, lideranças sindicais, profissionais liberais, etc. – desconhece o método científico e não faz ideia de como se produz o conhecimento que tornou possível a vida moderna.

O período pandêmico, aliás, mostrou as graves limitações na formação científica de muitos médicos brasileiros, que estimularam o uso de medicamentos ineficazes para o tratamento da Covid, mesmo depois que estudos clínicos randomizados controlados já haviam evidenciado sua inutilidade e seus riscos.

Nesse quadro, há espaço para todo o tipo de crendice e superstição, um terreno fértil e muito lucrativo para a picaretagem.

O problema, claro, não é apenas do Brasil

Foto: Divulgação
Em todo o mundo, há quem esteja disposto a acreditar em “memória da água”, em “cura pelas mãos”, em “abdução por alienígenas”, em parentes mortos que surgem em “campos quânticos de informação”, em “deuses astronautas” ou mesmo que a “Terra é plana”.

Há os que acreditam em QAnon, a fantástica conspiração do “Estado profundo”; quem suspeite que uma vacina produzida na China possa introduzir um chip nas pessoas e ainda quem procure o apoio de discos voadores para seus objetivos golpistas.

A irracionalidade contemporânea não é o mesmo que a loucura, mas será cada vez mais difícil separar os dois fenômenos sem a denúncia da bobagem que se pretende passar por informação ou conhecimento.

Natalia Pasternak e Carlos Orsi lançaram, recentemente, Que bobagem, pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (Contexto, 336 p.), um livro que poderia promover ótimos debates, mas que tem produzido mais xingamentos do que argumentos.

O trabalho analisa a base teórica e as evidências científicas a respeito de Astrologia, Homeopatia, Acupuntura, Medicina Tradicional Chinesa, Curas naturais, Curas energéticas, Reiki, Constelações familiares, Paranormalidade, Pensamento positivo, entre outros temas, sustentando que os alegados saberes dessas práticas ou perspectivas são insustentáveis diante da ciência, além de potencialmente danosos.

Cada uma das críticas feitas pelos autores pode e deve ser contestada, e a forma de fazê-lo em debates científicos é oferecer evidências mais fortes.

Foi o que fez, por exemplo, o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira em debate com Carlos Orsi, promovido pela Unicamp.

Ao contestar as críticas feitas no livro à Psicanálise, Pereira mostrou algumas evidências divulgadas em artigos publicados em revistas científicas de alta qualidade, como Nature e Science, que amparam determinados pressupostos freudianos.

Seus argumentos não encerraram o debate, mas surpreenderam Carlos Orsi que desconhecia os artigos, o que deu ao psicanalista uma constrangedora vantagem.

A ciência depende desse tipo de debate, porque ela produz o conhecimento que, por definição, se sabe limitado.

Morin talvez tenha produzido a melhor síntese a respeito dessa característica ao dizer que “a verdade científica é aquela que existe na temperatura de sua própria destruição”, porque ela será superada por novas e mais fortes evidências ou por outros paradigmas.

O debate científico, entretanto, é uma raridade no Brasil

E é mais comum que livros que contestam crendices produzam apenas escândalos e ranger de dentes.

Mesmo nas nossas universidades, os espaços para o debate científico costumam ser constrangidos por estratégias de poder, o que talvez seja um problema mais sério nas ciências sociais, sendo comum a exclusão do pensamento divergente e a reprodução de pressupostos ideológicos sustentados frequentemente em nome do “pensamento crítico”.

Há, inclusive, em determinados círculos acadêmicos, uma resistência à noção de “evidência”, um conceito não raro desprezado, como se fosse expressão “do positivismo”.

Nesse cenário, o livro de Pasternak e Orsi é muito bem-vindo e merece ser lido, independentemente das críticas que ele possa merecer.

O que, é claro, não será a postura dos ideólogos e dos vendedores de ilusões que não leram e não gostaram.

Que bobagem… é obra de divulgação científica que oferece, em linguagem acessível ao amplo público, explicações úteis a respeito do método científico e muitas informações valiosas que, de fato, desmontam algumas pretensões de verdade, as quais só sobrevivem no caldo esotérico de alucinações holísticas que elas próprias criaram.


domingo, 30 de abril de 2023

Política externa e diplomacia brasileira: entrevista com Marcos Rolim, do Tribunal de Contas do RS - Paulo Roberto de Almeida

 Percorrendo ao acaso meus registros de trabalhos sobre determinados temas, deparei-me com uma ficha sobre uma entrevista concedida quase quatro anos atrás, sobre os desastres da diplomacia bolsolavista, e acabei assistindo novamente à emissão, concedida a um funcionário do TCE-RS sobre diferentes temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira. Há um texto preparado com base num roteiro de questões previamente submetidas, e há a emissão propriamente dita, neste link: https://www.youtube.com/watch?v=ArHDFztC7Ng


3756. “Política externa e diplomacia brasileira: notas para uma entrevista”, Brasília, 17 setembro 2020, 7 p. Respostas a questões colocadas por Marcos Rolim, professor e funcionário do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, com gravação em 18/09/2020 por via de ferramenta de comunicação. Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44111524/3756_Politica_externa_e_diplomacia_brasileira_notas_para_uma_entrevista_2020_) e no blog Diplomatizzando (18/09/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/politica-externa-e-diplomacia.html). Transmitido no programa Atitude TCE Entrevista da TV Assembleia do RS (21/09/2020; (link: https://www.youtube.com/watch?v=ArHDFztC7Ng&feature=youtu.be e link: https://www.youtube.com/watch?v=ArHDFztC7Ng&t=2s). Relação de Publicados n. 1467. 

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Eleições 2022: contribuição para uma campanha antifascista - Marcos Rolim (Sul 21)

 

Sul 21

Opinião
|
5 de outubro de 2022
|
20:54

Contribuição para uma campanha antifascista (por Marcos Rolim) 

Marcos Rolim (*)

Após os resultados eleitorais do 1º turno, as pessoas com um mínimo de noção perceberam que havia algo muito assustador ali. Não porque a possível vitória de Lula no 1º turno não veio, mas porque os votos alcançados pela extrema-direita sinalizaram que teremos uma disputa acirradíssima pela frente e que os riscos são enormes. Diante dessa realidade, houve rapidamente a produção de conteúdos com a tese do “copo cheio”. Passou-se a repetir que, sim, a extrema-direita demonstrou força, mas a votação de Lula foi extraordinária, há uma vantagem de 6 milhões de votos e a esquerda cresceu no Parlamento, elegendo também bancadas mais diversas etc. O sentido da percepção do “copo cheio” é inequívoco: apesar dos pesares, estamos no caminho certo e a vitória virá, com certeza, algo que situa o 2º turno como uma “prorrogação”, para usar a expressão de Lula, o que é o mantra para não mudar os rumos da campanha. No mesmo sentido, muitas das lideranças da esquerda passaram a repetir discursos na base do “vamo-que-vamo”, parecendo mais torcedores do que dirigentes. Essa condução tende a se manter na medida em que as pesquisas indiquem vantagem para Lula, mas penso que esse caminho é o que agrega os maiores riscos e que, pelo contrário, a frente democrática precisa fazer uma campanha muito diferente no 2º turno, porque estamos diante de uma ofensiva bolsonarista que poderá, inclusive, virar votos dados a Lula pela ativação do antipetismo. 

Uma mudança a ser assegurada é a necessidade de politizar a disputa com propostas de reformas, que tenham o efeito de demarcação e que permitam que Lula passe à ofensiva. Um dos problemas até agora é que a campanha de Lula não foi centrada em propostas. Tudo se passa como se ele, Lula, fosse a proposta. Cada um pode lembrar de um compromisso ou outro mencionado, mas não há propostas centrais para repetir todo o tempo e para que todos saibam do que se trata. Isso não foi construído, porque Lula deu atenção prioritária aos acordos políticos e à busca de alianças, de uma forma tal que a campanha foi sendo construída “por cima”, por dentro das instituições tradicionais, sem uma estratégia de mobilização por reformas. 

Enquanto isso, Bolsonaro trabalha “por baixo” amalgamando sua militância em torno de uma pauta simples e manipulatória, via redes sociais e aplicativos, mas muito eficiente. A síntese é a tríade criada pelo Integralismo brasileiro “Deus, Pátria e Família” que se dissemina em um magma de significados onde a esquerda é acusada de “não ser cristã”, “não ser patriota” e querer “o fim da família”. Não há qualquer efeito em assinalar que o lema é fascista e desprezar ou xingar eleitores de Bolsonaro só cristaliza suas posições.

O fato é que, com a estrutura imagética criada, o fascismo foi ampliando seus espaços e ganhando o apoio de eleitores que não são, em sua ampla maioria, fascistas, mas que compartilham valores conservadores e autoritários e que foram radicalizados por um discurso de ódio que tem anos de acúmulo e que tem se valido dos recursos mais avançados da tecnologia de informação manipulada pela far-right mundial. Bolsonaro é tosco, mas o bolsonarismo é uma estratégia sofisticadíssima de guerra cultural. 

Em síntese, o bolsonarismo conquistou uma hegemonia, no sentido gramsciano, sobre a direita, o que levou ao quase desaparecimento do centro democrático no Brasil. É preciso compreender que esse resultado foi facilitado pela ausência de uma plataforma de valores contraposta pela esquerda e por ambiguidades e silêncios persistentes em torno dos seus próprios erros.

Uma parte expressiva da votação de Lula no 1º turno sequer se deu em torno de expectativas programáticas sobre seu governo, sendo expressão do compreensível e legítimo pavor diante da hipótese da reeleição de Bolsonaro, o que se traduz também por um baixo engajamento militante e por uma “paixão fria”. Não é por acaso, aliás, que Bolsonaro tenha realizado mobilizações muito mais amplas que a esquerda nos últimos anos e tampouco se pode explicar o fenômeno pela presença de incentivos como o financiamento de grandes empresários. Há um engajamento político-ideológico nas mobilizações de rua do bolsonarismo que traduz uma adesão mais profunda. 

Nesse quadro, adesões de personalidades e apoios de entidades e grupos a Lula têm o seu papel, mas não produzirão o ambiente necessário para a derrota do fascismo. Aqui, o tema mais complicado é como enfrentar as acusações de corrupção e as peças de campanha da extrema-direita que com fakes news, montagens e outros artifícios, tentam identificar Lula com o crime.  Primeiro, é preciso romper a ambiguidade sobre o tema e ressaltar que todos os governos, nos diversos países, mesmo os mais evoluídos, apresentam casos de corrupção, mas, no Brasil, há uma corrupção endêmica e estrutural e uma forte noção de impunidade disseminada socialmente. Essa bandeira segue nas mãos da extrema-direita, o que é também resultado da opção equivocada de não tratar o tema ou mesmo considerá-lo um “falso problema”, expressão de manipulação midiática. Em verdade, a corrupção é uma praga e enfrentá-la é um dos maiores desafios civilizatórios no Brasil. 

Ato contínuo, Lula deveria apresentar propostas claras anticorrupção, promovendo um fato de alto poder simbólico que poderia ser, por exemplo, o anúncio de alguém com a estatura de Joaquim Barbosa como futuro ministro da Justiça. Barbosa foi duro nos processos do mensalão que condenaram lideranças do PT. Sua indicação para um posto destacado no governo Lula caracterizaria a proposta de um governo de salvação nacional – porque é disso que se trata, expressão de uma frente democrática e não de um “governo do PT”. 

Esse movimento permitiria que a campanha abordasse com mais propriedade temas como a indicação para a Procuradoria Geral da República (PGR). Quando perguntado a respeito, na entrevista ao Jornal Nacional, Lula preferiu não se comprometer sequer com a escolha via lista tríplice. Deveria anunciar que seu governo elaborará uma PEC para que a indicação à PGR seja, necessariamente, feita a partir de lista tríplice, critério respeitado por ele e por Dilma e ignorado por Bolsonaro. Lula deveria se comprometer com a ideia de que decisões pelo arquivamento de denúncias feitas pela PGR fossem examinadas por instância revisora, a exemplo das Procuradorias de Justiça nos Estados. Poderia anunciar que enviará projeto de lei ao Congresso proibindo a compra de bens acima de um determinado valor com dinheiro em espécie e anunciar a constituição de um “Conselho Nacional de Promoção da Integridade” formado por figuras sem filiação partidária, reconhecida idoneidade moral e notável conhecimento, encarregado de formular uma política para a promoção de condutas éticas no serviço público. Sem propostas contra a corrupção – esse é o ponto, Lula seguirá na defensiva, explicando que é inocente e relatando o que seus governos fizeram, o que não exigirá deslocamento no discurso de Bolsonaro.  

Ao mesmo tempo, a campanha deve definir como sua maior prioridade a qualificação do Ensino fundamental no Brasil ao invés de se referir apenas às universidades. Nesse tema, o Governo Federal pode atuar em auxílio aos gestores estaduais e municipais, fixando parâmetros de avaliação, viabilizando uma revolução tecnológica nas escolas e enfrentando o déficit educacional agravado por dois anos de pandemia que compromete o futuro de uma geração. 

É preciso também propostas para se comunicar com públicos específicos. Por exemplo, as polícias brasileiras, onde a adesão a Bolsonaro é muito ampla. O que, de fato, Bolsonaro está assegurando aos policiais? A resposta é: nada desde uma perspectiva material, mas muito em termos simbólicos. Ele é quem, afinal, aparece como um “defensor dos policiais” diante de uma tradição da esquerda de estranhamento diante das polícias e de denúncias das arbitrariedades e abusos cometidos por elas. Bem, o que Lula poderia assegurar aos policiais em uma perspectiva republicana? Muitas coisas, a começar pelo compromisso em favor da mudança no modelo de polícia, sustentando, entre outros pontos, a introdução da carreira única em cada instituição. Ou seja, fazer com que valha no Brasil a regra de todas as polícias do mundo: uma só porta de entrada em cada polícia (e não duas, como temos hoje, uma para os que devem mandar, outra para os que devem obedecer), o que asseguraria aos policiais uma carreira de verdade em que todos os chefes de polícia e comandantes gerais um dia tenham sido agentes ou patrulheiros. As cúpulas policiais não apoiam essa proposta, mas a base das polícias apoia e teria nela uma reforma capaz de mudar suas vidas. Um detalhe, Bolsonaro não tem a menor condição de propor algo do tipo. Com essa proposta, se teria algo muito concreto para fazer campanha nas corporações onde cada voto conquistado vale dois. O mesmo raciocínio vale para muitas outras áreas onde se necessita, urgentemente, de um discurso propositivo.   

A radicalização da disputa integra a estratégia de ruptura com a democracia desejada por Bolsonaro. Sem uma plataforma de reformas pelas quais se deva lutar, a disputa eleitoral tende a ser mais agressiva e pessoalizada e os espaços de racionalidade se tornarão cada vez mais rarefeitos. A saída diante do fascismo exige, em síntese, criação política para a mobilização nacional. 

(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

A “toca de coelho” das teorias conspiratórias - Marcos Rolim (Extraclasse)

 Marcos Rolim se pergunta, estarrecido: como foi possível, a tanta gente, nos EUA e no Brasil, chegar a esse estado de alienação completa, de total desvinculação da realidade? Trump, lá, Bolsovirus aqui, foram os grandes arautos das teorias conspiratórias, e com isso congregaram os doidos que antes estavam dispersos pela sociedade…

Paulo Roberto de Almeida 

OPINIÃO

A toca do coelho 

Alimentados por narrativas cada vez mais descompromissadas com a realidade, há centenas de milhares de bolsonaristas radicais para quem o mundo é uma grande armadilha
Por Marcos Rolim / Extraclasse, 12 de agosto de 2021 
 
 
 
 

“QAnon é o nome de uma teoria da conspiração da extrema-direita dos EUA,
que mobiliza milhões de pessoas em todo o mundo”

Foto: Elvert Barnes/ Visualhunt.com

Alice entrou na toca atrás dele, sem ao menos pensar em como é que sairia dali depois. A toca do coelho, no começo, alongava-se como um túnel, mas, de repente, abria-se como um poço, tão de repente que Alice não teve um segundo sequer para pensar em parar, antes de se ver caindo no que parecia ser um buraco muito fundo

O maior massacre em escolas nos Estados Unidos ocorreu em 2018 na Marjory Stonemam Douglas High School, na cidade de Parkland, na Flórida. O atirador, um ex-aluno de 19 anos que havia sido expulso da escola, usou um fuzil Smith & Weston M&P15, arma com a qual disparou durante seis minutos matando 17 pessoas e ferindo com gravidade outras 15. Nas redes sociais, o jovem manifestava sua adoração por armas, se relacionava com grupos neonazistas e supremacistas brancos e defendia o assassinato de mexicanos, negros e homossexuais.

O massacre produziu a campanha Never Again MSD por uma política de controle de armas de fogo nos EUA, organizada pelos sobreviventes. A campanha chegou ao seu ápice com uma grande marcha (March for our lives), que reuniu entre 1,2 milhão a 2 milhões de pessoas, um dos maiores protestos da história do país.

Um dos meninos sobreviventes da tragédia revelou, recentemente, que uma das piores coisas que ocorreu com ele foi, depois de tudo pelo que passou, ouvir de seu pai a “avaliação” de que a história do massacre não passava de uma farsa. “O fato de meu pai achar que o inferno absoluto pelo qual passamos, onde nove das vítimas estavam em nossa classe, foi um embuste piorou muito a situação. (…) Eu sequer contei isso aos demais, porque essa é uma dor que não quero que eles sintam”, explicou.  “Acho que meu pai ficou louco. Ele sempre foi muito conservador, mas agora QAnon consumiu sua vida a ponto de despedaçar nossa família”, disse. QAnon é o nome de uma teoria da conspiração da extrema-direita dos EUA, que mobiliza milhões de pessoas em todo o mundo.

A questão é: o que pode fazer com que alguém se desvincule de forma tão radical da realidade a ponto de acusar o próprio filho, sobrevivente de um massacre, de participar de um embuste?

Muitos dos integrantes da turba que invadiu o Capitólio em janeiro deste ano para tentar impedir a proclamação dos resultados das eleições presidenciais nos EUA usavam camisetas com a marca “Q”, sinalizando sua confiança em uma das narrativas mais alucinadas já criadas. Segundo QAnon, há uma cabala secreta formada por adoradores de satanás, pedófilos e canibais, que governam o mundo. Eles matariam bebês para injetar seu sangue e rejuvenescer. Donald Trump estaria empenhado em acabar com essa turma, razão pela qual enfrentou tanta oposição do “sistema” ou daquilo que QAnon chama de Deep State  (Estado profundo). A cabala seria liderada pelos comunistas, pela ONU e pelos democratas americanos, claro. Segundo QAnon, os massacres em escolas americanas seriam fake news inventadas pela cabala com o objetivo de acabar com o direito à posse e ao porte de armas de fogo. Quem tiver interesse nessa loucura pode conferir uma série documental na HBO, chamada “Q: Into The Storm”.

As pessoas que mergulharam na narrativa QAnon se perderam. Muitas, talvez, para sempre. Para todos os efeitos, é como se elas tivessem entrado na toca do coelho criada por Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas. Com a diferença de que Alice nunca abdicou de pensar e que, por isso, procurou o caminho de volta ao mundo, cansada das irracionalidades do “País das Maravilhas”.

No Brasil, estamos presenciando um fenômeno semelhante. Alimentados por narrativas cada vez mais descompromissadas com a realidade, há centenas de milhares de bolsonaristas radicais para quem o mundo é uma grande armadilha, em que poderosos interesses econômicos, alinhados com a “imprensa comunista”, com os políticos e o STF, impedem que o presidente governe. Para eles, a pandemia é um exagero, o coronavírus é uma estratégia da China para dominar o mundo, o aquecimento global é uma invenção da esquerda, as eleições em urna eletrônica – as mesmas que registram as eleições de Bolsonaro e de seus filhos há décadas – são fraudulentas; a ditadura militar não existiu, nem houve tortura, estupro de presas políticas, desaparecimento de cadáveres nos “anos de chumbo”. Para esses radicais, vacinas são um perigo e armas de fogo salvam vidas; a Amazônia não está em risco, racismo é “mimimi” e bandido bom é bandido do Centrão.

A partir desse lugar mágico em que confortam suas certezas, o núcleo mais duro do bolsonarismo se radicaliza crescentemente, inspirado por discursos fascistas disseminados pelas redes sociais, por aplicativos e nos “chans” (fóruns anônimos) na deep web, que estimulam a disseminação do ódio.

Uma das questões a resolver é: como desradicalizar pessoas? Temos algumas experiências internacionais, como o programa Exit Deutschland, liderado por Ingo Hasselbach, na Alemanha, inspirado em um programa sueco semelhante de desnazificação, além de metodologias que auxiliam pessoas envolvidas com violência política a deixarem suas organizações, como aquela proposta pela pesquisadora portuguesa Raquel da Silva, da Universidade de Birmingham (UK). O tema merece o estudo e, pela quantidade de pessoas que caíram “na toca do coelho”, teremos muito trabalho no Brasil.

PS – Agradeço à Sofia Rolim, minha filha, que me chamou atenção para a importância desse tema e me indicou a entrevista com o sobrevivente de Parkland.


quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Brasil ameaçado: Bolsonaro tem roteiro definido para uma ruptura institucional - Marcos Rolim, Monika Dowbor, Ana Severo (El País)

 O Brasil ameaçado

Bolsonaro tem roteiro definido para uma ruptura institucional. É preciso saber se as instituições e a sociedade civil irão se mobilizar e mostrar seu desacordo com as políticas do Governo Federal.

Marcos Rolim|Monika Dowbor|Ana Severo

Há períodos na história onde pedaços inteiros de futuro desaparecem. Cada pessoa é ela e suas possibilidades, assim como cada nação, povo e instituição. Em situações extremas, como as guerras por exemplo, a morte precoce de milhares ou mesmo de milhões de pessoas é um resultado possível, assim como a destruição de nações, instituições e povos. Esses resultados eliminam possibilidades históricas, abatem do futuro infinitas trajetórias humanas, assentando a dor e o desespero nos vazios que se multiplicam.
Por conta do sofrimento pressuposto, as guerras são um mal a ser evitado. Em nossa época, desde o fim da II GuerraMundial, os confrontos militares foram substancialmente reduzidos, inaugurando-se o período cunhado por John Lewis Gaddis como “a Grande Paz”. Isso se fez, basicamente, pela construção e pelo fortalecimento das democracias liberais e pelo processo de globalização que afirmou um mercado mundial e meios internacionais de regulação e dissuasão de conflitos. Ditaduras foram, historicamente, muito mais inclinadas à guerra porque elas se fundam em um discurso proponente da violência. Toda ditadura, de direita ou de esquerda, precisa de um inimigo para mobilizar sua base e legitimar as barbaridades que irá cometer. Por isso, a gramática dos ditadores e daqueles vocacionados à ditadura sempre exalta a violência.
As estimativas históricas compiladas por Steven Pinker mostram que as guerras mataram um número de combatentes no século XX que equivale a 0,7% da população mundial. Se acrescentarmos às baixas militares todos os demais mortos pela fome e pelas doenças causadas pelas guerras, mais as vítimas do Genocídio Armênio, do Holocausto, do massacre de Ruanda, chegaremos a 3% do total das mortes ao longo do século XX. Esses números servem para destacar a gravidade da pandemia em curso, vez que a taxa de mortalidade entre os casos confirmados de covid-19 no Brasil é de 2,6%, uma das mais altas no mundo. A referência a uma realidade de guerra para descrever a atual crise sanitária no Brasil não é, então, apenas uma figura de linguagem. A morte carrega também as marcas das desigualdades históricas no Brasil. Pesquisas mostram que os negros morrem mais que os brancos: são 250 óbitos pela doença a cada 100.000 habitantes. Entre os brancos, são 157 mortes a cada 100.000.
A covid-19 no Brasil, como a guerra, também fragiliza a sociedade nos bastidores, ao agravar as condições sociais, econômicas e psíquicas decorrentes da ausência de políticas públicas adequadas para a contenção da doença. Entre elas estão as mulheres, sobrecarregadas pelas tarefas de cuidado que se multiplicam nos tempos da pandemia, mas não cuidadas pelo Poder Público. As mulheres pobres, negras e moradoras de periferias são ainda mais fortemente afetadas pela pandemia, o que reforça as desigualdades pré-existentes.
Estamos nos aproximando rapidamente da marca de 400.000 mortos sem que o país disponha de uma política unificada de enfrentamento à pandemia. Ao invés de um discurso, uma orientação e uma só agenda de saúde pública, temos uma estratégia de necropolítica no nível federal e, nas demais esferas de governo, uma miríade de iniciativas desencontradas. A ausência de uma coordenação nacional ampliou os espaços para narrativas que divergem em aspectos centrais sobre praticamente todos os temas, desde a prevenção, o uso de máscaras, o distanciamento social, a importância da proteção social, as abordagens terapêuticas e a vacinação. O que sempre foi domínio da Ciência, temas que em qualquer democracia no mundo foram abordados com o criterioso amparo de evidências de estudos clínicos e revisões sistemáticas passaram a ser tratadas por conspiradores com milhares de seguidores no YouTube e por relatos anônimos de testemunhas e sábios de botequim. O processo, como se sabe, não teve geração espontânea. Ele se formou com a sistemática produção de conteúdos manipulatórios dirigidos aos potencialmente influenciáveis por mensagens preconceituosas que estimulam o ódio a adversários políticos e a instituições.
Há vários elementos totalmente novos nesse processo, mas destacamos dois deles: a) o enfraquecimento radical da esfera pública, como ambiente solar onde todos os argumentos podem ser expostos e contraditados sob a vista dos interessados; o que se deu pelo deslocamento do discurso político ao mundo sublunar dos espaços privados, onde os aficionados compartilham mensagens produzidas com incrível eficácia e b) a possibilidade de customização de mensagens para os indivíduos a partir da descoberta daquilo que Shoshana Zuboff chamou de “superávit comportamental”, vale dizer a infinidade de dados a respeito dos hábitos, ações, preferências, convicções de cada um de nós, entre outras informações privadas hoje de domínio das grandes corporações do mundo digital, que tornaram possível, a partir dos recursos de big data, o estabelecimento de um mercado de comportamentos futuros e, também, por óbvio, a fabricação de opções político-eleitorais.
No Brasil, a disseminação de conteúdos falsos e beligerantes, técnica amplamente empregadas nas eleições de 2018, se vinculou, desde o início, à proposição do golpe militar, apresentado com o mantra da intervenção militar como se a figura tivesse guarida na ordem constitucional. Na pandemia, o fenômeno caracterizado pela Organização Mundial de Saúde(OMS) como infodemia, tem revelado um potencial ainda mais destrutivo com a disseminação de fake news negacionistas, de sentido antivacina e a favor de medicações contra a covid-19 sem amparo em evidências (Lópes-Medina; Lópes; Hurtado et al, 2021; World Health Organization, 2021; The Recovery Collaborative Group, 2021; Mainoli, Machado & Duarte, 2021). Tal situação, assinale-se, é ainda mais grave pelos possíveis efeitos iatrogênicos já observados e pela evidente redução de cuidados preventivos que costuma se associar à crença em remédios milagrosos.
As palavras costumam indicar movimentos mais profundos e não há violência política que se efetive sem ser anunciada com antecedência. O discurso violento é, por isso, sempre uma promessa e, em muitos casos, aquilo que Robert K. Merton chamou de “profecia que se auto cumpre” (self-fulfilling prophecy). O Holocausto não seria possível sem a ampliação do antissemitismo por um discurso que associava os judeus a insetos; o Gulag não seria realidade sem a ideia, proferida milhares de vezes, de que os dissidentes eram “inimigos do povo” ou “gusanos” (vermes) como prefere a ditadura cubana; tampouco o massacre de Ruanda ocorreria sem que os Tutsi fossem chamados de “baratas” pelos Hutus durante décadas.
Nunca em nossa história, um presidente foi capaz de produzir um discurso com tamanha intolerância e ódio quanto o tem feito Jair Bolsonaro. Esse fato, por si só, já seria temerário, mas há uma situação muito mais preocupante sintetizada, recentemente, pelo ministro Edson Fachin nos termos de sete ameaças à democracia: 1) a remilitarização do governo civil, 2) as intimidações e proposições de fechamento dos demais Poderes; 3) declarações acintosas de depreciação do voto; 4) atentados à liberdade de imprensa; 5) incentivo ao armamento geral; 6) recusa antecipada do resultado eleitoral e 7) naturalização da corrupção dos agentes administrativos.
O ponto central a discutir é que essas ameaças não decorrem da saúde, mas de um projeto político que não guarda com a democracia qualquer laço de pertinência, ainda que surja por dentro dela. Parece que estamos diante do fenômeno da erosão incremental da democracia conforme assinala Adam Przeworski analisando países como Turquia, Polônia, Hungria e Venezuela aos quais o Brasil sob Bolsonaro é frequentemente comparado. No caso brasileiro, as ameaças atingem a democracia e já significam o retrocesso em diversos direitos que o país ampliou como a inserção de mulheres no mercado de trabalho, proteção ambiental e educação entre outros. Perdem-se décadas de avanços que buscavam corrigir as injustiças e desigualdades históricas e uma noite ou mais noites de obscurantismo e violência voltam a assombrar nosso futuro próximo.

O agravamento da pandemia no Brasil é marcado pela posição negacionista do presidente e por sua determinação em permitir que o vírus circulasse amplamente para, assim, se alcançar a imunidade de rebanho. Essa estratégia infame foi demonstrada pelo estudo do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas que analisou mais de 3.000 atos normativos do Governo Federal durante a pandemia. Nesse trágico caminho, chegamos ao ponto do risco de não retorno em termos de possibilidades futuras.

Além de tudo o que já perdemos pela negligência, despreparo, irresponsabilidade e estratégia do gestor federal e de muitos outros governantes e políticos que se comportam zelando tão somente por suas perspectivas eleitorais, corremos agora o risco de tornarmos a covid-19 endêmica, com mais de 90 cepas do coronavírus já identificadas no país; o que, somado à destruição do sistema de proteção ambiental, consolidará a imagem do Brasil como uma ameaça ao planeta. Os impactos desse processo na economia aumentam os riscos de produção do caos social e de ações violentas, o que poderá ser utilizado para a justificativa de medidas de exceção e para inviabilizar as próximas eleições presidenciais.

Esse parece ser um roteiro definido para uma ruptura institucional. É preciso saber se as instituições democráticas serão capazes de barrá-la; se a sociedade civil irá se mobilizar de modo a sublinhar seu desacordo com as políticas do Governo Federal e defender os direitos fundamentais; se os partidos políticos comprometidos com valores democráticos conseguirão, diante da gravidade das ameaças, relevar suas diferenças e se portar responsavelmente e se saberemos construir uma saída para a crise sanitária e econômica com base na Ciência.

Marcos Rolim é doutor em Sociologia (UFRGS) e professor do programa de pós graduação em Direitos Humanos da UniRitter (RS). Monika Dowbor é doutora em Ciência Política (USP), coordenadora do programa de pós graduação em Ciências Sociais da Unisinos (RS). Ana Severo é economista, consultora em gestão de políticas públicas.


sábado, 17 de abril de 2021

Pandemia, verdade e justiça - Marcos Rolim

 Marcos Rolim escreveu TUDO o que é preciso saber para processar o capitão por “CRIMES CONTRA A HUMANIDADE” (mas creio que será difícil chegar ao TPI, na Haia), ou colocá-lo no foco de uma futura Comissão da Verdade e Justiça, no próprio Brasil.

Paulo Roberto de Almeida


Pandemia, verdade e justiça 

Bolsonaro se colocou ao lado dos interesses privados, procurando se desvincular politicamente dos efeitos da inevitável recessão econômica, com o único objetivo de preservar suas chances de reeleição
Por Marcos Rolim / Extra Classe, 16 de abril de 2021 
 
 
 
 


"Bolsonaro não apenas desprezou a doença. Ele ignorou a dor das famílias enlutadas e fez piadas homofóbicas com a covid. Em uma live, ele chegou a simular uma crise respiratória de alguém acometido pela doença, isso depois que muitas pessoas haviam morrido asfixiadas em Manaus graças à incúria de seu governo"

“Bolsonaro não apenas desprezou a doença. Ele ignorou a dor das famílias enlutadas e fez piadas homofóbicas com a covid. Em uma live, ele chegou a simular uma crise respiratória de alguém acometido pela doença, isso depois que muitas pessoas haviam morrido asfixiadas em Manaus graças à incúria de seu governo”

Ilustração: Detalhe de “Memória”, óleo sobre tela de Rene Magritte, Bélgica, 1948

A tragédia em curso no Brasil não tem, ainda, um nome preciso, mas penso que estamos diante de “Crime contra a humanidade”, a figura jurídica com a qual referimos o sacrifício em massa de um grupo determinado como consequência da atuação do Estado.

O artigo 7º do Tribunal Penal Internacional (TPI) elenca as condutas dessa natureza (tortura, escravidão, apartheid, privação arbitrária da liberdade, desaparecimento forçado, etc), inserindo, em seu rol de atrocidades, a seguinte formulação: “Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”. Assim, ataque generalizado ou sistemático à população civil com efeitos dessa gravidade, não necessariamente de origem militar, preenche as características do tipo penal.

Descrever um processo que poderá conduzir o Brasil a meio milhão de mortes, talvez mais, já seria algo muito difícil, mas quando analisamos suas circunstâncias, percebemos que esse massacre foi acompanhado por um discurso e por uma política específicos, ambos identificáveis e fartamente documentados.

Desde o início, temos a postura negacionista do presidente da República, que sempre desprezou a gravidade da pandemia, que duvidou dela, que a tratou como “gripezinha” e “fantasia da imprensa”. Na base dessa visão, estava uma estratégia definida à margem do debate público e das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS): permitir a mais ampla circulação do vírus de modo a estimular o contágio e a presumida consequência da imunização coletiva (a chamada “imunidade de rebanho”).

Estudo recente do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas, o qual analisou 3.049 normas editadas pelo governo federal ao longo da pandemia, identificou essa racionalidade de forma incontroversa.

Por conta da sua estratégia, o governo federal, que deveria centralizar as ações de enfrentamento à pandemia e aglutinar todos os agentes públicos em torno de um único desafio, conter a disseminação do vírus e salvar vidas, atuou em sentido contrário, abrindo guerra contra governadores e prefeitos que procuravam assegurar medidas de distanciamento social. Agindo dessa forma, Bolsonaro se colocou ao lado dos interesses privados, procurando se desvincular politicamente dos efeitos da inevitável recessão econômica, com o único objetivo de preservar suas chances de reeleição.

Bolsonaro não apenas desprezou a doença. Ele ignorou a dor das famílias enlutadas e fez piadas homofóbicas com a covid. Em uma live, ele chegou a simular uma crise respiratória de alguém acometido pela doença, isso depois que muitas pessoas haviam morrido asfixiadas em Manaus graças à incúria de seu governo. Ele se divertiu diante da notícia de um suicídio de alguém em isolamento; chamou de “maricas” os que procuraram se proteger e de “frescura e mimimi” a ideia de ficar em casa; ele criticou o uso de máscaras, vetou a obrigatoriedade delas e promoveu aglomerações consecutivas. Bolsonaro atacou várias vezes a Coronavac e estimulou a desconfiança pública nas vacinas, chegando ao cúmulo de cogitar que a vacina poderia provocar alterações genéticas e transformar as pessoas em um jacaré.

Gestão catastrófica da pandemia

Mais: Bolsonaro recusou, em agosto do ano passado, a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses, afirmando, em dezembro de 2020, que não havia qualquer necessidade de pressa para a vacina. Enquanto desprezava as vacinas, Bolsonaro passou a propagandear a terapia com Hidroxicloroquina e, logo depois, o chamado “tratamento precoce”, iniciativas sabidamente ineficazes no tratamento da covid, mas que produziram, além de efeitos iatrogênicos, como alterações cardíacas e hepatites medicamentosas, uma redução dos cuidados preventivos e nova subestimação da gravidade da doença. Nunca uma conduta geral de um governo restou tão claramente demonstrada.

É impossível saber quando poderemos superar a pandemia. O surgimento de novas cepas do vírus no Brasil poderá fazer com que a covid-19 se torne endêmica no país. Nessa hipótese, levaríamos muitos anos para superar a crise sanitária a um custo humano, econômico e social inimaginável. Independentemente desse desdobramento, a gestão da pandemia no Brasil tem sido de tal forma catastrófica que se tornará imperativo, em futuro próximo, que se forme uma Comissão de Justiça e Verdade a respeito do tema. Uma comissão não apenas para produzir um relato histórico dos crimes eventualmente cometidos, mas capaz também de indiciar os responsáveis por eles, um a um. É preciso, desde já, registrar o que for possível, colher depoimentos, guardar minuciosamente.

O dilaceramento, o desespero, a dor disseminada, o abandono dos mais pobres, as filas de espera em UTIs, a asfixia, a fome, as sequelas, o luto impossível, nada disso é fenômeno natural, desígnio divino ou misterioso destino. O espetáculo de horror que estamos vivendo sempre teve direção, roteiristas, sonoplastas e iluminadores, além de uma plateia adoecida disposta a aplaudir e a repetir slogans nazistas. A conduta de todos esses demônios há de ser lembrada e punida.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Resistindo ao Espírito do Tempo: a Confraria PAZ (no RS) - Marcos Rolim et ali (Zero Hora)

Um artigo, publicado no jornal gaúcho Zero Hora, da RBS (Rede Brasil Sul) de Comunicações, a propósito dos quatro anos de criação e operações da Confraria PAZ, à qual tive o prazer, junto com Carmen Lícia Palazzo, de estar associado desde que seu funcionamento passou a ser feito de maneira virtual, em virtude da pandemia, atendendo ao convite de nosso amigo comum, o historiador gaúcho Gunter Axt (com quem eu já havia colaborado anos atrás num livro co-organizado com Fernando Schuler sobre Os Construtores do Brasil, com um capítulo sobre Hipólito da Costa).

Paulo Roberto de Almeida

 Resistindo ao Espírito do Tempo 

Daniela Sallet, Cláudia Laitano, Gunter Axt, Juliano Corbellini e Marcos Rolim

Zero Hora   (Porto Alegre), 15/10/2020

 

Nesse dia 16, terão se passados quatro anos desde a morte de Plínio Alexandre Zalewski. Muito provavelmente, ele não suportou um tipo de ataque que passou a ser comum desde que a intolerância se converteu em paisagem. Plínio havia acumulado uma importante experiência na militância política e se construído como um quadro qualificado na gestão pública. Ao longo de sua vida, se envolveu intensamente com a ideia da renovação ética das práticas políticas, articulando projetos e iniciativas que valorizavam a democracia e a participação cidadã. Leitor apaixonado, era tranquilo, gentil e comprometido em superar as superfícies por onde o autoritarismo constrói a cultura do “cancelamento” e por onde começam todas as ameaças.  

Logo após o trágico evento, um grupo de amigos do Plínio, que prezavam especialmente a disposição pelo debate respeitoso, propuseram a formação de uma confraria, algo como uma associação de homens e mulheres livres. A expressão evoca o convívio fraterno, aquele que se realiza na medida em que reconhecemos no outro a humanidade que nos define. A ideia, tão simples, foi a de aproximar pessoas interessadas em temas relevantes - da política, da cultura, das ciências - independentemente de suas inclinações político-ideológicas, para encontros mensais de debate franco, quase sempre aberto por pessoa convidada, especialista no tema selecionado.  

E para que objetivo tais pessoas deveriam se reunir? Com que propósitos políticos? Nenhum propósito além do prazer em interagir, em transitar por uma zona não marcada por interdições, e deslocar-se pela força de argumentos sólidos. Nenhuma estratégia, salvo a firme determinação de resistir ao “espírito do tempo” (Zeitgeist) e à distopia que vai se tecendo a cada vez que a estupidez é normalizada.

Tomamos, então, as iniciais do nome de nosso amigo ausente, e chamamos nossos encontros de “Confraria Paz”.  A paz pressupõe a lei civil e se traduz, em sua forma mais avançada, na construção desse magnífico artifício que costumamos identificar pelo nome de democracia. Em um Estado Democrático de Direito, como se sabe, todos possuem garantias fundamentais que não podem, aliás, ser suprimidas por maiorias eventuais; compreensão corporificada no instituto das chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição Federal (art. 60, § 4º).

Por conta desses direitos, não há “ponta de praia” aos dissidentes, nem metralha para os hereges. Pelo contrário, nos interessa os olhares desviantes, as sensibilidades diversas e, sobretudo, as dúvidas pertinentes já que elas originam o pensamento.  

Com esses pressupostos, temos nos reunido há quatro anos, ouvindo pessoas das mais diversas formações e posicionamentos, todas, claro, dentro do campo civilizatório demarcado pela Constituição Federal de 1988. A experiência tem nos oferecido ensinamentos que emergem da diversidade e permitido, a cada um dos professores, pesquisadores, servidores públicos e profissionais liberais que integram a confraria, o convívio em uma pequena polis – desde o início da pandemia, virtual - onde a reflexão é sempre bem-vinda. 

É preciso reconstruir espaços públicos para que as palavras transitem por sobre os muros que resguardam o poder e a mentira. Nesses espaços, podemos nos reconhecer politicamente como iguais e legitimar a razão dissonante. A Confraria Paz é uma gota em um oceano turbulento cada vez mais avesso ao debate e à razão. Nada impede, entretanto, que experiências como ela se disseminem, semeando o respeito, ao invés do escárnio; as evidências, ao invés dos dogmas; a solidariedade ao invés do egoísmo e a compaixão ao invés da indiferença.  Plinio, por certo, apreciaria muito essa missão.