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quarta-feira, 13 de março de 2024

Fundação Astrojildo Pereira lança segundo volume sobre a história do PCB - Eumano Silva

 quarta-feira, 13 de março de 2024

Fundação Astrojildo Pereira lança segundo volume sobre a história do PCB 



Livro reconstitui a trajetória do Partidão na luta contra a ditadura e na formação da frente democrática que redemocratizou o Brasil

Um evento imperdível para quem milita, simpatiza, e quer saber mais sobre a história do nosso Cidadania: na próxima quinta, dia 14, na Taberna da Glória, os queridos companheiros Roberto Percinoto e Eumano Silva fazem um lançamento compartilhado com sessão de autógrafos de dois livros que são verdadeiros documentos. 

Percinoto, secretário-geral do Cidadania RJ, conta sua trajetória de lutas, que se mistura com a do partido, em “Uma vida bem vivida do campo para a cidade”. Já o jornalista Eumano, escreveu o segundo volume de “Longa jornada até a democracia”, que faz parte do projeto de reconstituição da história do PCB. 


O livro-reportagem “Longa jornada até a democracia – Volume II” conta a história do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no enfrentamento à ditadura e na redemocratização do país. Lastreada em documentos oficiais inéditos, entrevistas, reportagens e farto material bibliográfico, a obra editada pela Fundação Astrojildo Pereira recompõe a trajetória do Partidão – apelido do PCB – de 1967 até 1992.

Escrito pelo jornalista Eumano Silva, o livro reproduz o clima sombrio da Guerra Fria, com relatos minuciosos sobre a vida clandestina de dirigentes e militantes, fugas, prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de comunistas. O roteiro de histórias entrelaça personagens que parecem saídos dos romances policiais, como espiões e informantes infiltrados pela repressão nas organizações de esquerda. Mostra também o trabalho silencioso, e essencial para o partido, de caseiros, motoristas e distribuidores de jornais.

A CIA e da KGB aparecem em vários episódios do mundo real retratado pelo autor. O caso mais conhecido envolveu o “Agente Carlos”, apelido de um assessor do então secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, que passou para o lado da repressão e trabalhou para a CIA.

O texto jornalístico percorre o submundo da ditadura e repassa, em ordem cronológica, os fatos e os personagens mais destacados na longa jornada dos brasileiros rumo à democracia, como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e José Sarney. A reportagem reconstitui as agruras da clandestinidade e a participação do PCB, desde o final da década de 1960, na ocupação de espaços na sociedade e na formação da frente democrática de oposição ao regime militar.

O Volume II de “Longa jornada até a democracia” trata de fatos transcorridos entre dezembro de 1967, data do VI Congresso, e janeiro de 1992, quando o PCB realizou o X Congresso, encontro que decidiu pela mudança de nome para Partido Popular Socialista (PPS).

O primeiro volume, lançado em 2022, escrito pelo jornalista Carlos Marchi, aborda o período compreendido entre 1922, ano da fundação do PCB, e 1967, marco da mudança na estratégia da organização comunista. No VI Congresso, a definição por mudança na linha política tornou o PCB a única organização comunista a tomar o caminho pacífico no enfrentamento ao governo instalado no Brasil com o golpe de 1964. As demais forças originadas no partido fundado em 1922 optaram pela luta armada.

Apesar da opção pelo caminho pacífico, o Partidão se tornou alvo da repressão na mesma medida que as demais organizações de esquerda. Uma dezena de dirigentes do Comitê Central do PCB foi assassinada pelo governo militar.

Mesmo clandestino, e com perdas irreparáveis, o partido teve expressiva influência na política institucional ao atuar dentro do MDB, legenda legal de oposição. Os comunistas foram responsáveis, por exemplo, pela incorporação, pelos emedebistas, das bandeiras da anistia, da Assembleia Nacional Constituinte e da eleição direta para presidente.

Arquivos militares obtidos pelo autor documentam a montagem da máquina repressiva pelo governo fardado. Os papeis registram o passo a passo da estruturação dos Departamentos de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codis). Descrevem também as disputas entre o Exército e a Marinha pelo controle do aparato criado pelas Forças Armadas para perseguir adversários.

Os anexos do livro contêm fotos inéditas de dirigentes do Partidão procurados pela repressão e imagens de presos nas dependências militares. Apresentam ainda fac-símiles de páginas de exemplares raros do jornal Voz Operária.

Entre os episódios mais impressionantes narrados pelo livro, está a cinematográfica operação montada no exterior para retirar do Brasil o dirigente Giocondo Dias. A transferência do arquivo de Astrojildo Pereira, fundador do PCB, para a Europa também teve lances espetaculares. Outra façanha dos comunistas foi manter durante dez anos, longe das garras da repressão, uma gráfica no Rio de Janeiro, no subsolo de uma casa, onde era produzido o material impresso do partido. Os documentos oficiais também identificam um sargento da Polícia Militar de São Paulo infiltrado pelo PCB no DOI-Codi do estado. Quando tomava conhecimento de prisões de militantes, o policial avisava o partido e ou as famílias.

As artimanhas dos comunistas para enganar os órgãos de segurança incluíam disfarces, documentos falsos. Camaradas instalados nas fronteiras ajudavam nas travessias de militantes e dirigentes nas fronteiras com os países vizinhos – muitas vezes com malas de dólares.

“Longa Jornada até a democracia” resgata a experiência no exílio e os abalos sofridos pelo partido em decorrência da ação de dirigentes do partido cooptados pelos órgãos de segurança. O livro também desenredou mistérios que, durante décadas, suscitaram especulações. As apurações elucidaram, por exemplo, o segredo do “ouro de Moscou”, expressão usada pelos adversários dos comunistas para designar os recursos enviados ao PCB pelo bloco comunista. Com base em depoimentos dos responsáveis pelo transporte do dinheiro, o autor calculou valores anuais repassados ao Partidão.

O colapso da União Soviética, acelerado no final dos Anos 1980, teve contribuição determinante para as mudanças de rumo que levaram à mudança de nome em 1992. O desempenho eleitoral insatisfatório, e dissidências internas, como a saída do grupo de Prestes, abalaram e enfraqueceram o Partidão. O surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT) no final da ditadura também reduziu o espaço de atuação dos comunistas e ajuda a explicar a perda de relevância do PCB depois da redemocratização.


SOBRE O AUTOR

Formado em jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB) em 1987, Eumano Silva trabalhou em alguns dos principais veículos da imprensa brasileira. Nascido em 1964 em Iturama (MG), especializado em política, o autor foi repórter da revista Veja e dos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Começou a carreira na cobertura da Assembleia Nacional Constituinte, dirigiu as sucursais de Brasília das revistas Época e Istoé, ocupou as funções de editor de política do jornal Correio Braziliense e editor-executivo do site Congresso em Foco e da revista Veja Brasília. Há mais de três décadas, realiza pesquisas sobre a ditadura militar. Concentrou-se, sobretudo, na busca e análise dos arquivos secretos das Forças Armadas.

O jornalista foi ainda observador independente nas buscas de desaparecidos na região da Guerrilha do Araguaia e participou dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. É também autor dos livros “A morte do diplomata” e “Nas asas da mamata”. Como analista político, fez trabalhos para Rádio CBN, Portal Metrópoles, TV Democracia, programa Sua excelência, o fato, e Broadcast Político.

Eumano ganhou os seguintes prêmios: Jabuti de melhor livro-reportagem com o livro “Operação Araguaia – Os arquivos secretos da guerrilha”; Esso, com uma série de reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia. Excelência Jornalística, na categoria meio ambiente, da Sociedade Interamericana de Imprensa, com a reportagem digital “O Levante dos ribeirinhos”, posteriormente editada como livro impresso.

Atualmente, Eumano exerce a função de especialista em inteligência política da Oficina Consultoria.

Para mais informações, envie mensagem para o WhatsApp oficial da Fundação Astrojildo Pereira (FAP): 61 983305338


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Entrevista Rubens Ricupero: ‘Bolsonaro é o sintoma mais alarmante da deterioração do sistema político‘ - revista Política Democrática (Fundação Astrojildo Pereira)

Entrevista com o embaixador Rubens Ricupero (4 de fevereiro de 2022), promovida pela revista Política Democrática, da Fundação Astrojildo Pereira, da qual participei por gentil convite do embaixador André Amado, ex-diretor do Instituto Rio Branco. Equipe da RPD e participação especial do Embaixador Paulo Roberto de Almeida

Revista Política Democrática n. 40, online, 16/02/2022

https://www.fundacaoastrojildo.org.br/bolsonaro-e-o-sintoma-mais-alarmante-da-deterioracao-do-sistema-politico/# 


Revista Política Democrática Online (RPD): São múltiplos os temas que se podem explorar com o Embaixador Rubens Ricupero no amplo universo da celebração do bicentenário da independência do Brasil, sobretudo agora que também assume a cátedra José Bonifácio, da Universidade de São Paulo. Vamos centrar-nos, no entanto, em torno de três balizas fundamentais. A primeira seria um balanço do que o Brasil fez até agora, isto é, um stock taking de 200 anos de Estado Nação e 130 anos de República, sublinhando o que se deixou de fazer e o que cumpre fazer. A segunda: como conciliar uma visão apologética do que o governo tentou fazer em 200 anos e uma abordagem crítica do Brasil nesse bicentenário em setembro próximo. E a terceira: como edificar uma sociedade melhor do que a que herdamos. Embaixador, vale a pena comemorar o bicentenário da independência? 

Rubens Ricupero (RR): Eu me alegro muito que essa conversa prometa conduzir a uma abordagem mais ampla do tema, porque há muito tempo me preocupa essa questão do bicentenário. Em palestra na Academia Brasileira de Letras, em 2019, no ciclo “O que falta ao Brasil”, indiquei que faltava a esperança, a esperança no sentido laico de que o amanhã será melhor do que o ontem, e que o futuro, melhor do que o passado e melhor do que o presente. Dei à minha palestra o título “Brasil, um futuro pior que o passado?”, com ponto de interrogação porque, de uns anos para cá, estávamos em fase aguda de auto questionamento. Muito intenso, o processo não começara com o governo Bolsonaro, mas bem antes, a partir de 2013/2014, resultando no impeachment e no que veio depoisForam crises sucessivas de natureza política, econômica-social, moral, que, a exemplo do que vivem os argentinos há mais de 80 anos, não desembocam em nenhum verdadeiro começo novo, mas apenas falsos começos, que chegam acompanhados de sinais inquietantes como a incapacidade, desde os anos 80, de crescer economicamente. Passamos décadas praticamente estagnados, com recessões cada vez mais graves, interrompidas por espasmos curtos de recuperação, logo seguidos por quedas muito fortes. 

Tomados em conjunto, tais sinais configuram uma crise de sistema, não só econômico, mas político e social. Sinto apreensão cada vez maior com o sistema político brasileiro – sistema como sinônimo de regime, isto é, de uma determinada configuração histórica que começa em certo momento, que tem uma estrutura de poder definida, uma Constituição formal, certas características de regime eleitoral, partidário, relações entre os poderes de Estado e que, cedo ou tarde, deixa de ser funcional, passa por crises sucessivas e finalmente se esgota e dá lugar a novo sistema. Desde a independência, a história do Brasil pode ser vista como uma sucessão de regimes. 

O primeiro, que não chega a ser um regime pela fugacidade, foi o do início da independência, com duração de menos de dez anos, que termina com a abdicação de Dom Pedro I. Foi consequência do que Otávio Tarquínio de Souza chamava do equívoco de se ter feito a independência do Brasil com um príncipe português. Foi uma falsa independência, ou uma independência parcial. Tanto assim que muitos autores do século 19 achavam que a verdadeira independência principiava no sete de abril de 1831, quando o imperador abdica. Nesse momento, ele reassume sua tendência natural que era a de se preocupar com os assuntos da sua dinastia em Portugal. Era esse o interesse existencial de Dom Pedro I, não os destinos do Brasil. 

O segundo regime, passada a fase tumultuada da regência, começa com a maioridade de Dom Pedro II, não no sentido cronológico de 1840, data em que tinha 15 anos incompletos, mas 1848, quando começa efetivamente a governar. Vai durar uns 40 anos, de 1848 a 1889, o regime do Segundo Império, de uma estabilidade que é sinônimo de estagnação, crescimento econômico anêmico, timidez em enfrentar o problema da escravidão e outros desafios. 

Esse regime morre em 1889 porque não foi capaz de se auto reformar, de se modernizar, de se tornar mais efetivo, demorou demais em enfrentar a necessidade de grandes reformas, a maior das quais a abolição, e morre por causa disso. Começa então a Primeira República que também não data propriamente de 1889 porque esses primeiros anos de turbulência, intervenções militares, guerra civil na época de Floriano, representam as dores do parto de um novo regime. Ele começa, de fato, com Prudente de Moraes, Campos Salles e vai durar até 1930. Mas, já a partir de 1910 com Hermes da Fonseca se inicia o declínio, fases prolongadas de crises entrecortadas por momentos de aparente recuperação. Mais uma vez se configura o problema que já tínhamos identificado antes, isto é, o regime não é capaz de autorreforma, não é capaz mesmo quando começa o movimento tenentista, as denúncias sobre o sistema eleitoral, sobre a oligarquia, a escolha dos presidentes por um pequeno grupo e acaba derrubado pela revolução de 1930. Portanto, a duração real, de 1894, começo do governo de Prudente de Moraes, até outubro de 1930, não chega a 40 anos. 

A seguir, temos esse período dos 15 anos que é o nascimento do Brasil moderno, da indústria, da modernização da administração, que coincide com evolução institucional agitada – Revolução de 30, Revolução de 1932, Constituição de 1934 – passa pela fase repressiva, sombria, do Estado Novo, chegando ao fim em 45. A partir de 46, temos outro regime – o da Constituição de 1946 – um dos mais curtos, durará menos de 20 anos, encerrando-se com o golpe militar de 1964. Após os 20 anos do regime militar, com atos institucionais, constituições passageiras, violações frequentes da própria institucionalidade imposta pelos militares, inaugura-se o período atual. 

O sistema corrente tem início em 1985 com a saída dos militares do poder e com a estruturação institucional da Constituição de 1988, com nova organização partidária, eleitoral, papel ativo do Ministério Público, do Supremo Tribunal, tudo que conhecemos. Esse sistema tem um início tumultuado: a morte de Tancredo, a posse de Sarney, o enfrentamento da dupla herança maldita dos militares: a da crise da dívida externa e da tendência à hiperinflação (os militares deixaram o poder em parte porque fracassaram em enfrentar essas duas questões). 

O começo da incapacidade brasileira de crescer já se inicia, portanto, no regime militar, é alguma coisa que antecede a Nova República, que finalmente se consolida depois do impeachment de Collor, com Itamar, o Plano Real e vai ter seu período de fastígio. Assim como a República Velha teve sua idade dourada, o período dos governos de Rodrigues Alves, Afonso Pena, um pouco mais, uns nove anos de estabilidade e prosperidade, o da Nova República serão os 16 anos dos mandatos duplos de Fernando Henrique e de Lula. 

Depois disso, percebe-se o início de uma decadência ininterrupta, que temo ser difícil de reverter, uma espécie de caminho de autodestruição do sistema político, devido às razões conhecidas: legislação permissiva favorecendo a proliferação de partidos, na verdade mais sindicatos de interesse para ter acesso aos recursos do fundo partidário, dificuldade de maioria em parlamento fragmentado, com poderes quase de regime parlamentarista que exacerba ao máximo o patrimonialismo, a utilização dos mandatos para controlar recursos públicos para fins ilícitos ou irracionais, culminando na situação atual na qual o Congresso controla a parte mais importante do orçamento, sem nenhuma responsabilidade em relação aos efeitos negativos para a economia, perpetuando a estagnação e o desemprego. 

 

RPD: Há tempo para se corrigirem as distorções? Por exemplo, as eleições de outubro próximo poderão contribuir para um novo Brasil? 

RR: O que temos visto até agora é a incapacidade de autorreforma pela velha razão de os principais beneficiários do sistema serem os que teriam de fazer as reformas, cortando na própria carne. Nesse sentido, Bolsonaro representa o sintoma mais alarmante da deterioração mórbida do sistema, um indício de que sua disfuncionalidade atingiu um nível em que ele começa a se autodestruir. Não acredito que a eleição vá representar em si mesma uma saída para a crise do sistema. Se a eleição levar ao poder não só um presidente, mas também um Congresso mais consciente da gravidade da crise, menos patrimonialista, poderá surgir a oportunidade de uma ampla negociação para enfrentar esses problemas que vêm da legislação partidária, da eleitoral, do orçamento “secreto”, das emendas de relator, tudo o que tem de ser modificado para que o sistema recupere um mínimo de funcionalidade. Se não conseguir fazer isso, o novo presidente não conseguirá governar, a crise se agrava e em algum momento, o regime que já dura há 37 anos (1985-2022) acabará como acabaram seus antecessores por meio da ruptura institucional. 

 

RPD: Até onde chegamos nesses 200 anos? 

RR: Chegamos aos 200 anos de vida independente em um momento negativamente crítico de nossa história. Há certos centenários ou bicentenários mais propícios. Por exemplo, os argentinos se orgulham de que o primeiro centenário deles coincidiu com momento de apogeu do país (1910). Essa é uma visão nostálgica, de certa forma aristocrática, dos que se identificavam com o regime liberal das grandes famílias, que deliberadamente ignoram que os festejos do centenário argentino ocorreram sob estado de sítio, diante de ameaças anarquistas, do medo causado pela “Semana Roja” das greves proletárias. Um analista político argentino, Rosendo Fraga, chegou a afirmar: "No segundo século, os argentinos se empenharam em destruir tudo que haviam construído no primeiro". Embora exagerada, essa visão serve para mostrar que, no caso da Argentina, havia ao menos circunstâncias objetivas que justificavam a gabolice. Era um país que parecia ter dado certo, admirado no exterior, recebia importantes visitantes estrangeiros, ocupava posição de destaque entre as economias do mundo e os maiores exportadores. 

O Brasil nunca viveu situação semelhante. O primeiro centenário brasileiro não foi um momento de euforia. Em 1922, o Brasil fizera um balanço de seu passado, sobretudo dos 35 anos da república, e tinha encontrado um déficit monumental. Houve até um esforço da geração nascida com a República, que não conhecera a monarquia, a levar avante o que, na época, chamavam de inquérito, uma consulta a intelectuais. Vicente Licínio Cardoso, organizador do inquérito, publicou o livro À margem da história da República, que continha artigos de Oliveira Viana, Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, de alguns dos principais intelectuais de então. Foi um livro de consciência crítica sobre a república, revelando realizações muito aquém do esperado. 

Os acontecimentos que marcaram o primeiro centenário nem sempre estavam explicitamente ligados ao centenário, mas exprimiam o desejo de uma reconstrução de alguma forma inspirada pelo centenário. A Semana de Arte Moderna teve essa intenção de modernizar a cultura e a percepção do Brasil, de redescobrir a vida e a cultura do povo. Tratava-se, pois, de uma inspiração ligada em sentido amplo ao centenário. Na mesma linha, situou-se a fundação em Niterói do Partido Comunista do Brasil e, quase ao mesmo tempo, a do Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo, renovação do pensamento católico. O movimento tenentista de cinco de julho também visa justamente a mudança do sistema político-eleitoral. O ano do centenário no caso brasileiro vale não tanto pela grande exposição que foi feita no aterro, depois da demolição do Morro do Castelo – note-se, deixando sem moradia milhares pessoas pobres. Vale não pelos acontecimentos festivos e sim por esses esforços de refundação. 

 

RPD: Podemos supor que a celebração agora poderá voltar-se mais para estudos históricos de nossos primeiros 200 anos independentes? 

RR: Espero que sim, embora já se tenha feito muito a respeito. Na elaboração do meu artigo sobre o bicentenário, me inspirei na obra monumental de Pierre Nora “Os Lugares da Memória”. Num trecho do livro, o autor afirma que vivemos hoje uma situação curiosa, uma espécie de tensão dialética. De um lado, uma multiplicação dos aniversários a comemorar, uma espécie de mania de comemorações. A França chegou até a criar uma repartição pública para a coordenação das comemorações nacionais. E, do outro lado, uma contestação cada vez mais dura às comemorações, cuja expressão mais recente é a destruição de monumentos e estátuas. No caso brasileiro, tenho a impressão de que a prioridade não seja tanto de promover grandes estudos históricos. É claro que sempre há espaço para dizer coisas novas, mas, se tivermos de escolher, eu escolheria me concentrar em uma visão de futuro. Já tivemos na USP trabalhos admiráveis sobre o período da formação do Estado. O professor István Jancsó, que morreu em 2010, coordenou um projeto temático que se chamava “Brasil, a formação do Estado e da Nação”, uma obra enorme com 20 e poucos pesquisadores de mais de dez universidades. Como já existem também vários trabalhos recentes sobre José Bonifácio, concluí que não deveríamos nos propor a refazer esses trabalhos, como ocorreu no centenário, por exemplo, com a publicação dos Anais da Independência, de toda a documentação sobre o reconhecimento, tudo isso é louvável, mas na minha situação, quase com 85 anos, com pouco tempo disponível, prefiro olhar para a frente. 

 

RPD: Qual deveria ser o balanço dessa produção com olhos no futuro? 

RR: Como o balanço de qualquer país, o nosso também se divide em luzes e sombras. Gosto de usar a imagem da construção, que aliás não tem nada de original, a ideia de construção ou formação é uma ideia presente, como mostrou Antônio Candido, na obra de quase todos os intérpretes do Brasil, a ideia de formação, da sociedade patriarcal, da economia, do Brasil contemporâneo, até no livro do próprio Antônio Cândido sobre a formação da literatura brasileira. É uma ideia antiga que vem dos anos 20, dos anos 30. 

Parece óbvio que toda nação seja uma construção permanente, que não termina nunca, a não ser quando é demolida e vira ruínas como em Roma até aparecer nova construção em cima. Mas a história é isso, é uma construção permanente com altos e baixos. Estamos vivendo no Brasil um momento de demolição. O presidente Bolsonaro mesmo declarou em várias ocasiões que tinha vindo não para construir alguma coisa e sim para demolir. 

Temos 200 anos de história com muita coisa admirável realizada, que não se deve ignorar, dando ênfase apenas ao que falta. Em contraste com o orgulho dos argentinos sobre o seu primeiro centenário, o que vemos se olharmos para 1922? Um país que não tinha nenhuma universidade, a não ser a criada no papel em 1921. Mesmo em 1950, ano da eleição de Vargas, havia somente 45 mil ou 46 mil pessoas inscritas em cursos superiores. No ano passado, chegou-se a oito milhões e 600 mil. Não se pode dizer, então, que o Brasil ficou parado. Entramos no século 20, em 1900, com 17 e meio milhões de habitantes, dos quais 86% de analfabetos totais, muitos remanescentes da escravidão, recém terminada. Havia enorme população marginal, com subemprego. A expectativa de vida mal chegava a 30 anos. No Rio de Janeiro, até Oswaldo Cruz se tornar o diretor da saúde pública, em todos os anos, desde a época de Dom João VI até 1906 ou 1907, os óbitos eram mais numerosos do que os nascimentos, a cidade só crescendo por migração. Maria Luiza Marcilio, fundadora da história estatística no Brasil, escreveu um belo estudo a esse respeito, baseado em pesquisas primárias em arquivos de paróquias. Não se pode dizer, portanto, que o Brasil não caminhou nada nesses 200 anos, por isso é preciso assinalar o que se fez e o que se deixou de fazer.

 

RPD: A celebração do bicentenário tem data marcada para terminar? 

RR: O bicentenário brasileiro está em curso e não terminará no marco cronológico, que é sete de setembro. Vai terminar apenas na data das eleições porque uma coisa é a cronologia, outra coisa é a realidade, é a história, é o espírito de uma época. É como se costuma dizer que o século 20 não começou em 1901, começou de verdade em 1914, quer dizer, o espírito do século começa em 1914 com a Grande Guerra. No nosso caso, o terceiro centenário só começa depois que terminar essa fase penosa a que estamos assistindo, que esperamos seja superada pelo processo eleitoral. A partir de então, começará nosso terceiro centenário, oxalá sob o signo da esperança. 

O historiador argentino Luis Alberto Romero, que escreveu ensaios interessantes sobre o bicentenário argentino, diz algo que é evidente, mas vale a pena lembrar. Diz ele: os grandes aniversários, como os centenários de uma nação, impõem duas perguntas obrigatórias, ou melhor, uma pergunta e um desafio, a primeira pergunta é: o que nós fizemos? E o desafio é: o que nos falta fazer, o que nós temos que fazer? 

 

RPD: Aproveitando esse gancho, pergunto o que podemos fazer para recuperar a imagem do Brasil no exterior e infundir nos jovens a honra do serviço à pátria também no exterior? 

RR: Não me vejo em condições de dizer o que o Brasil deve fazer. Posso dizer o que eu gostaria que o Brasil fizesse. É um processo, não propriamente reservado a intelectuais porque a questão da comemoração do bicentenário é um dever de cidadania, que todos devem cumprir, isto é, a ideia de comemorar, de lembrar juntos significa que temos de indagar se existe uma memória coletiva unificada, indiferenciada ou se essa memória coletiva é formada de fragmentos de memória, e, nesse caso, até que ponto os fragmentos de memória convergem como peças de mosaico para formar algum desenho com sentido. 

É possível dizer que exista uma memória unificada brasileira sem levar em conta a memória nos negros, a memória dos povos originários, a memória das mulheres, a memória de todos aqueles que nunca tiveram uma posição de direção do processo histórico e, ao contrário, foram oprimidos e marginalizados? Acredito que não. O que existe na realidade é uma memória fragmentada. A única maneira de tentar juntar os fragmentos de memória é dando voz às pessoas, em uma primeira etapa, para exprimirem suas queixas e, em uma segunda etapa, para manifestarem o que desejariam construir. 

A cátedra José Bonifácio é algo de limitado à USP. Por isso, preciso da ajuda de vocês, para a melhor disseminação de ideias que espero possam ser compartilhadas pelo maior número possível de pessoas da população. Reconheço para isso meus limites: não conheço as pessoas representativas da comunidade negra, do movimento dos povos originários e outros similares. 

Sobre como redespertar nos jovens a esperança, gostaria de contar experiência que tive, anos atrás, antes do ano 2000, quando estava ainda na UNCTAD. Na ocasião, sugeri a Michel Camdessus, ex-diretor do FMI e meu amigo pessoal desde os tempos em que éramos ambos frequentadores da missa da igreja dos jesuítas de Georgetown, em Washington, ideia inspirada na Revolução Francesa. Como se sabe, a Revolução teve sua origem na eleição para a Assembleia Nacional, do Terceiro Estado, da nobreza e do clero, sobretudo a eleição para o terceiro Estado que se fez por paróquias. Em cada paróquia, as pessoas redigiam um cahier de doléances, um caderno de dores, de queixas, de reclamações. Milhares desses cadernos sobreviveram, e é isso que permite um retrato fantástico de qual era o estado da França no fim do Antigo Regime e na véspera da Revolução. Todo ano, Camdessus reunia no verão, em sua casa de Bayonne, um grupo de amigos para debater ideias. Naquele ano, o tema era o que esperar do século 21 e o novo milênio. Sugeri então: por que, em vez de cahiers de doléances, não escrevemos cahiers d’espérance? Isto é, quais são as razões credíveis, não fantasias, que nos levam a crer que o terceiro milênio será melhor que o segundo ou o primeiro? 

A primeira resposta foi a de Michel Camdessus, que me pareceu notável: “A razão de acreditar que o terceiro milênio vai ser melhor é a emancipação da mulher. A mulher até agora praticamente não tinha voz, ocupava na maioria das culturas posição subalterna, dominada. Vivemos milênios, na maior parte da história, como se a humanidade utilizasse apenas metade do cérebro, agora passamos a utilizar a outra metade”.

Esse exemplo pode ser adaptado ao nosso propósito. Temos de indagar: “quais são as razões para crer que o terceiro século do Brasil será melhor que os dois anteriores? Em outros termos, o que temos de fazer para que a realidade futura seja melhor que a presente e a passada? 

Refiro-me não a motivos de political fiction, sim a motivos credíveis, razoáveis, quais são as condições para que o futuro do Brasil seja melhor que seu passado? É claro que cada um, cada setor tem de partir de sua própria realidade para responder. Não me cabe, por exemplo, falar em nome dos negros, dos indígenas, dos marginalizados. Imagino que haverá muita queixa, muita expressão legítima de mágoa contra a história brasileira, que foi madrasta para muitos setores do povo. 

Esses setores não têm razão nenhuma para fazer uma celebração festiva ou apologética do bicentenário. O índio no Brasil viu sua condição piorada, passou a viver sob ameaça de extinção desde o começo da colonização dos portugueses. No ano 2000, na comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses, o governo se esqueceu dos índios, o que causou naturalmente uma reação da parte deles de contestação à comemoração do que para os povos originários não passara do começo do extermínio, da escravização. 

O negro então tem razões especiais para ser contra o bicentenário. Logo no começo da independência, pressionado pelos ingleses, o governo brasileiro assinou o tratado para pôr fim ao tráfico a partir de 1830. Em novembro de 1831, a lei votada na época da Regência Trina, quando o ministro da Justiça era o padre Feijó, proibia a importação de africanos e determinava que qualquer africano introduzido no Brasil, a partir daquela data, fosse imediatamente libertado. Não aconteceu nem uma coisa nem a outra. Mais de um milhão de africanos foram importados ilegalmente, com a conivência, a cumplicidade ativa das autoridades. O Brasil se tornou, assim, o único caso de país que teve uma escravidão contra sua própria lei, ao menos no caso dos escravizados chegados depois de 1831 e de seus descendentes. Estou convencido de que, em termos puramente jurídicos, os negros brasileiros teriam direito líquido e certo a uma indenização porque o Estado brasileiro violou sua própria lei. A escravidão era legal, mas o tráfico não era. 

Como mencionado antes, o processo de construir o futuro tem de ter duas etapas, o cahier de doléances e o cahier d’espérances, e tem de dar voz a quem não tem voz. Não é a minha voz. Ontem (3/02), por exemplo, conversei por zoom com a Marta Suplicy sobre a exposição alusiva à Consciência Negra da prefeitura de São Paulo, que teve uma primeira edição no ano passado e agora se prepara a segunda. Ela talvez tenha como tema o bicentenário. Quem deve planejar não seremos nós, a ideia é chamar negros representativos para que se organizem e digam o que esperar do terceiro centenário no Brasil. São os membros da comunidade negra que têm de dizer o que, do ponto de vista deles, desejariam que fosse o terceiro século do Brasil. 

 

RPD: Qual seria a melhor maneira de seu ponto de vista de celebrar o bicentenário/ 

RR: Minha visão de brasileiro, de 84 anos, descendente de imigrantes italianos, embora muito pobres, branco, de olho azul, não é a mesma de outros brasileiros. Tenho de comparar minha visão com a dos outros. O maior desafio da escolha do objeto de reflexão no bicentenário é que não podemos abarcar tudo, como uma espécie de “museu de tudo”, desde agricultura, indústrias, minas, instituições políticas, eleitorais, cultura, seria uma enciclopédia do Brasil, isso não vamos poder fazer. 

Diante de desafio semelhante na Argentina, Luis Alberto Romero declarou: "No meu artigo, vou deixar de fora a sociedade e a economia, porque não tenho condições de falar sobre isso. Vou me concentrar só em três elementos: a Nação, a República e o Estado". Ora, já isso é gigantesco, um programa para uma vida toda, não é? Se, ao lado disso, tivermos de analisar a economia, a sociedade, a universidade, então é um mundo... 

Temos de escolher alguns temas que sirvam como eixos principais, talvez quatro ou cinco: desigualdade, democracia, meio ambiente, desenvolvimento, cultura. O primeiro seria a desigualdade. Se fizermos um inquérito com os brasileiros, veremos que a maioria, quando interrogado sobre: “Qual a pior herança dos 200 anos, o que faltou fazer?", não hesitaria em responder: "É a herança da desigualdade". Não somos o único país desigual, todos os países são desiguais em algum grau, mas sabemos que, no nosso caso, a situação é excepcional, terrível, assustadora. Não se pode sair à rua sem que o problema nos entre pelos olhos. Vejo isso aqui, em São Paulo, minha cidade, uma das mais avançadas do país. Outro dia fui à Praça da Sé, o centro antigo da cidade. Vi a praça inteira ocupada por um acampamento imenso de tendas de pessoas que não têm onde morar. A periferia, aquilo que ficava a quilômetros e que em São Paulo não se via por causa da topografia da cidade, a periferia virou o centro. Aquilo que se dizia no Rio de Janeiro nos anos 50, que o morro um dia vai descer, já aconteceu. Não dá mais para ignorar o problema da desigualdade. 

Não tenho receita de como resolver isso, temos de ouvir os cientistas sociais que vêm aperfeiçoando ideias efetivas sobre como lidar com a desigualdade no Brasil. Não me refiro apenas à desigualdade de renda e de fortuna, mas à desigualdade de cor, o problema do racismo, o problema dos negros, dos índios, dos refugiados e imigrantes, o problema da igualdade de gênero, da mulher, tudo isso na rubrica desigualdade. 

Um segundo tema seria a democracia, que abarcaria o sistema político, o sistema eleitoral, o sistema partidário, o parlamento, o acesso de todos à justiça, a polícia, em suma, os Direitos Humanos na sua totalidade, só aí já é outro universo. Uma terceira rubrica é o meio ambiente. Se não acertarmos com a solução adequada para evitar o agravamento do aquecimento global, a destruição da Amazônia, das florestas, das nascentes de água, nem precisaremos nos preocupar com os demais problemas porque a sociedade tal como a conhecemos deixará de existir. Um quarto grande tema será o desenvolvimento, a economia, a vida material, pois sem base econômica, não temos como fazer funcionar o restante. Como podemos voltar a crescer? 

Esses grandes temas não esgotam a agenda: por exemplo, educação e saúde podem ser incluídos tanto em desigualdade como em democracia. Mas aquelas quatro rubricas pelo menos permitiriam organizar a reflexão e a discussão. Faltaria ainda falar sobre a necessidade de renovação da cultura, das ideias, das artes.

Resumindo, diria que a visão de futuro deve começar pelas queixas, não tanto ou somente do passado, mas, sobretudo, do presente, cahier de doléances. Um exemplo concreto: os negros e índios vão querer conservar as cotas, ampliar as ações afirmativas. Cada setor terá um determinado programa. 

 

RPD: Apesar de tudo, embaixador, o senhor é otimista? 

RR: Essa questão demanda qualificações. Impressiona-me que a ascensão da extrema direita no Brasil tenha começado no terreno intelectual. Há entre nós a atitude de não levar a sério pseudo filósofos como Olavo Carvalho e discípulos, porque de fato são charlatães, mas charlatães que tiveram impacto. Olavo de Carvalho atingiu milhares de pessoas e desencadeou um movimento de ideias e de ação, utilizando ideias vindas de filósofos e intelectuais italianos, franceses, fascistas, pós-fascistas, tradicionalistas reacionários e transformou isso tudo em ideias pasteurizadas de fácil consumo por pessoas sem formação universitária. Foi um movimento que começou no domínio das ideias mediante a criação de editoras, lançamento de cursos de Filosofia online. Tudo isso ocorreu fora da universidade e da academia, que os desprezavam pelo primitivismo intelectual, pela irracionalidade, pela linguagem, os palavrões escatológicos de Olavo de Carvalho, sem que a academia percebesse que Olavo atraia militares, policiais militares, financiadores, gente de todo tipo, fazendo a cabeça de toda essa gente. 

É uma ilusão pensar que essas coisas vão desaparecer por milagre se Bolsonaro for derrotado nas urnas. Se Lula for eleito, vai voltar ao poder 12 anos depois que o deixou. Nesse intervalo de tempo considerável, o Brasil e o mundo mudaram, não são mais os mesmos. O Brasil de hoje não é o Brasil de 2010, quando Lula terminou seu segundo mandato, em 2010 não havia, por exemplo, uma extrema direita organizada e coordenada no país. Será que Lula está consciente disso? 

Toda essa mudança começou no domínio da cultura, da vida intelectual, das ideias. Mesmo que as desprezemos por considerá-las ridículas, muitas vezes lunáticas, são ideias que produziram graves efeitos. Vejam os Estados Unidos, um país cujo futuro me preocupa mais que o do Brasil porque lá a divisão é mais profunda, a extrema direita é incomparavelmente mais forte do que aqui, com grande chance de voltar ao poder. E lá também tudo começou no domínio das ideias que circulam à margem das academias. 

Temos de reagir, entre outras maneiras, por uma revolução da cultura, porque nossa cultura não está respondendo à altura. Nossa cultura tradicional, da academia, ficou demasiado presa a essas bobagens do tipo currículo Lattes, de revistas de peer review que contam pontos na carreira universitária, coisas em si necessárias, mas que, em excesso, transformam a vida do espírito em burocracia universitária, em torre de marfim, mandarinato. Perdeu o contato com o mundo real das pessoas de carne e osso, não há nem de longe uma figura comparável a Mário de Andrade. Por mais que hoje tenha se tornado moda criticar o movimento de 22, a verdade é que ele foi uma autêntica revolução cultural, uma profunda mudança na maneira pela qual os brasileiros se viam a si mesmos, ao povo simples, a arte popular, a herança do passado. Mário de Andrade fez a cabeça das pessoas, sou velho o suficiente para ter ouvido Tristão de Ataíde no centro Dom Vital dizer em uma conferência: "Toda minha geração antes do Modernismo sentia vergonha do passado colonial, do estilo barroco, de Minas Gerais, nós, quando se começou a demolir as antigas casas do velho Rio, achávamos ótimo porque tínhamos vergonha de que um francês viesse ao Brasil e visse aquilo; quem nos abriu os olhos foi o Mário, foi ele que nos tomou pelas mãos, nos levou a Ouro Preto, nos levou a todos os lugares em que se precisava valorizar essa raiz brasileira". 

Hoje, não temos gente assim. É preciso começar a reconstrução por meio da cultura brasileira, das ideias, do pensamento. 

Vocês me perguntam se sou otimista. Penso nisso como Gramsci que, em certa ocasião, escreveu ao irmão Carlo para censurá-lo por haver contado à mãe sobre o estado lastimável em que o tinha encontrado na prisão. Aliás, o próprio Gramsci ao ser transferido de prisão e rever, depois de anos preso, seu rosto no espelho do banheiro do trem, teve um choque fortíssimo de não reconhecimento. Na carta ao irmão, Gramsci reformulou o programa de vida traçado por Romain Rolland “pessimista na inteligência, otimista na vontade”. Assim descrevia seu ideal, que me permito fazer meu: 

 “o homem deveria alcançar um grau máximo de serenidade estoica, e adquirir a convicção profunda de que possui em si mesmo a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, [...] – a ponto de jamais desesperar e não cair nunca mais naqueles estados de espírito – vulgares e banais – a que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas um otimista com a vontade”.

No fundo, o que Gramsci e outros fizeram foi dar expressão a uma verdade que todos temos presente na consciência, a de que o futuro não está traçado, não está pré-determinado, ele não está escrito nas estrelas, o futuro vai depender do que a gente fizer ou deixar de fazer, tanto o futuro do Brasil como o de qualquer outro país. Até pouco tempo atrás, a gente tinha aquela ilusão de que os Estados Unidos, por exemplo, seriam um país de democracia irreversível, que só poderia se aperfeiçoar com o tempo. Com a eleição de Trump e tudo que aconteceu, vimos que não era assim. Já tínhamos aprendido isso com o nazismo na Alemanha, antes disso com o fascismo na Itália, isto é, nenhuma comunidade humana, nenhuma formação social, nenhuma nação, pode afirmar: “Cheguei ao ponto mais alto de realização, a partir de agora, vou me deitar na rede e usufruir porque não terei mais problemas”. Na realidade, nada está garantido, tudo pode piorar, caminhar para trás, uma linha tênue separa a civilização da barbárie, a história tem um componente muito grande de tragédia. 

 Receio que o futuro brasileiro, nos próximos 100 anos, terá momentos muito difíceis. Vejo com dificuldade como esse sistema político que temos dará lugar a um sistema menos disfuncional, pode ser que isso venha acompanhado de violência. Todos os regimes ou sistemas políticos que tivemos terminaram por ruptura institucional, isto é, por rompimento das regras constitucionais. 

A ruptura da base institucional é violenta por abandonar as regras anteriormente aceitas, porque a mudança não ocorre em obediência, mas em violação às normas estabelecidas. Nem sempre vem acompanhada de violência física, de guerra civil, de destruições, apesar da frequência dos câmbios violentos. A frase de Marx em O Capital de que “A violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova” tem muito de verdade. 

Basta pensar nas convulsões da França na Revolução de 1789, nas de 1830, 1848, na Comuna de 1871; no final wagneriano do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itália. Até os Estados Unidos não escaparam à prova da violência no nascimento da sociedade pós-escravagista com a espantosa e mortífera violência da Guerra Civil. 

Já no caso do Brasil, felizmente fomos em geral poupados de extremos de violência física nas rupturas da proclamação da República, da própria Revolução de 30, não tanto no golpe de 1964, no seu melancólico fim. Quem sabe o que reserva a história para o carcomido regime brasileiro? 

 

RPD: O senhor nos deixa com certo sentimento antecipado de inveja por não podermos desfrutar dos diálogos que promoverá na Cátedra José Bonifácio. 

RR: Não se preocupe, serão todos transmitidos por canais virtuais. É de meu interesse também que as discussões se multipliquem, para compensar esse debate paupérrimo que nos assola, sobretudo em ano de eleições. É claro que não vamos conseguir afetar diretamente a campanha eleitoral, mas a gente deveria fazer um esforço para que o resultado das reflexões sobre o bicentenário influencie de alguma maneira o debate público. 

 

SAIBA MAIS SOBRE O ENTREVISTADO


 *Rubens Ricupero é diplomata aposentado e historiador. Embaixador junto à ONU e ao GATT em Genebra, nos Estados Unidos e na Itália. Assessor de Tancredo Neves e José Sarney. Ministro do Meio Ambiente e da Amazônia. Ministro da Fazenda. Secretário-Geral da UNCTAD (Genebra). Professor do Instituto Rio Branco e da UnB. Atualmente é titular da Cátedra José Bonifácio da USP. Autor de vários livros, sua última obra é A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016 (Editora Versal, 2017)”.

** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Frente Ampla (para a democracia) - Rubens Ricupero (Fundação Astrojildo Pereira)

 Frente ampla

Ao Brasil falta muito, quase tudo, para ser o sonho intenso de que fala o nosso hino. Uma lista exaustiva das carências nos aproximaria do infinito. O problema maior, no entanto, não é a ausência de muitas coisas desejáveis. O pior é que nos privamos da única condição indispensável para um dia conquistar o que nos falta. Perdemos a esperança, isto é, a confiança de que o futuro nos trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente costumava superar problemas do passado. Vivemos um déficit agudo de esperança. E sem esperança, não existe possibilidade de construir o futuro.

O sentimento tem precedentes, geralmente em momentos de profunda desestabilização das instituições e das pessoas, como na súbita derrubada da monarquia. Joaquim Nabuco temia até o desmembramento do país ou a perda da noção de liberdade. O visconde de Taunay chegava a sentir “intensa vergonha de não ter morrido!” Silveira Martins comparava o Brasil ao que Diderot escrevera da civilização russa: “um fruto que apodrecera antes de amadurecer”.

O regime de Pedro II que esses brasileiros confundiam com o melhor Brasil possível possuía aspectos respeitáveis. Era, contudo, um país de pouco mais de 14 milhões de habitantes, a maioria analfabeta, com expectativa de vida inferior a 30 anos, muitos recém-saídos da escravidão e abandonados à própria sorte.

Houve depois outras fases de abatimento, mas a versão mais grave data de poucos anos atrás, de 2015/16, o instante em que começou a desfazer-se a ilusão de que o país tinha dado certo. Guardadas as proporções, o naufrágio da hegemonia do PT cumpre na história brasileira função análoga ao do colapso do comunismo no mundo. Para melhor explicar a afirmação, peço licença para transcrever na íntegra uma observação de Emmanuel Levinas sobre o sentido do fim do comunismo.

O jornal La Stampa lhe havia perguntado, pouco antes de sua morte em 1995, se pensava que esse acontecimento havia sido uma grande vitória para a democracia e o filósofo respondeu:

“Não, penso que as democracias perderam e muito. Apesar de todos seus horrores, seus excessos, o comunismo havia sempre representado a esperança […]de uma ordem social mais equitativa. Não é que os comunistas tivessem uma solução ou estivessem preparando uma, ao contrário. Existia, no entanto, a ideia de que a História possuía um sentido, uma direção e que viver não era insensato, absurdo. […]. Não creio que haver perdido essa ideia para sempre seja uma grande conquista espiritual.[…]. Acreditávamos saber para onde ia a História e que valor dar ao tempo. Agora caminhamos sem rumo, perguntando-nos a cada instante: ‘que horas são?’ De maneira fatalista, um pouco como se faz o tempo todo na Rússia: ‘que horas são?’ Ninguém sabe a resposta.”
Se trocarmos a palavra “comunismo” por “petismo”, impressiona como o trecho parece retratar o que sucedeu no Brasil. Excessos à parte, o PT também expressava a esperança de uma sociedade mais justa. Obviamente, além do PT, muitos brasileiros partilhavam a mesma aspiração. Foi o PT, porém, que teve a oportunidade de tentar em mais de 13 anos de governo aplicar inúmeras políticas públicas para reduzir a desigualdade, outra semelhança com o comunismo “real” e seus mais de 70 anos no poder.

Lula dava a sensação de encarnar uma notável transformação da sociedade. As medidas de transferência de renda, as quotas raciais, o acesso dos pobres ao ensino superior, prometiam um futuro de superação da desigualdade extrema herdada do passado. Sem base financeira adequada, as fórmulas petistas se tornaram insustentáveis. Algumas concorreram poderosamente para desencadear, primeiro a crise fiscal, em seguida o gravíssimo colapso que prostrou a economia até este momento.

A associação que se estabeleceu entre a ruína das contas públicas e o combate às injustiças sociais abalou as fundações da crença de que somos capazes de superar a desigualdade. Após os sucessos do Plano Real, do crescimento do governo Lula, da conquista do grau de investimento, a debacle da economia trouxe de volta aos brasileiros o efeito psicológico desmoralizante do fracasso.

A isso se somou o trauma do impeachment de Dilma, da condenação e prisão de Lula, de seu alijamento da campanha eleitoral de 2018, gerando contestações sobre a legitimidade democrática do poder. O pouco que sobrava do prestígio das instituições políticas se viu, ao longo de três intermináveis anos, estremecido pelas revelações quase diárias de escândalos pela Lava Jato, ela mesmo ora em vias de desmoralização devido a excessos e erros próprios, assim como à reação defensiva de setores políticos.

O Brasil jamais tinha passado por retrocesso tão destrutivo na vida das pessoas por meio do desemprego, do aumento da pobreza, do desalento. Nem experimentara nada equiparável ao profundo impacto depressivo dos escândalos de corrupção que destruíram a autoestima de todo um povo. Em conjunto, essas desgraças simultâneas produziram efeito equivalente ao da guerra sobre uma sociedade até então poupada de catástrofes históricas como derrotas e ocupações estrangeiras.

Tenho usado os verbos no passado a fim de situar no tempo o momento em que ocorreram as causas da situação que vivemos. Esse nosso passado próximo, contudo, não acabou de passar, é ainda o nosso presente. Neste mesmo instante, ele continua a nos fazer sofrer na persistência da estagnação econômica, do desemprego, do retrocesso social, da barbárie das prisões, da corrupção, da destruição da Amazônia, da degradação dos homens que nos desgovernam. A mais angustiante crise de nossa História se prolonga como obra de demolição em pleno andamento, como um work in progress. Agravada pelo advento de um governo retrógrado cujo único programa reside na demolição sistemática do passado.

Se a analogia com o contexto externo for correta, deve-se esperar, também por aqui, uma transição dolorosamente longa até que desponte período histórico diferente. No mundo, o sonho de uma sociedade mais justa acabou antes que no Brasil. Uma de suas primeiras expressões foi o ensaio do pensador e jornalista norte-americano William Pfaff por volta de 1995/1996, que partia da pergunta: “E se não houvesse nenhuma razão de pensar que o futuro será melhor que o presente, ou, pior ainda, melhor que o passado?”

Desde o Iluminismo, acreditava-se que a História se encaminhava a um futuro que, retrospectivamente, daria sentido ao passado. Essa bela confiança tinha se evaporado.

Profético, o ensaio de Pfaff antecedeu as calamidades que se sucederiam nos anos seguintes. A lista é interminável: o genocídio de Ruanda, os massacres da Bósnia, os atentados do Onze de Setembro, a eterna guerra do Afeganistão, a invasão do Iraque, a proliferação do terrorismo, a guerra civil da Síria, a anarquia na Líbia, as massas desesperadas de refugiados, a devastadora crise financeira de 2008, o aumento da desigualdade, a conquista do poder nos EUA pelo mais reacionário dos populismos.

A passagem para um novo milênio se cumpriu sob o signo da tragédia que voltou a pautar a História. Ubíqua, a crise da democracia liberal se manifesta por todo lado. Cobrem já boa parte da população mundial os regimes antiliberais, anticientíficos, negadores da mudança climática, hostis às elites intelectuais, à tolerância da diversidade, ao respeito do outro em matéria sexual ou cultural.

Dos quatro centros do poder mundial, três – os EUA de Trump, a China do presidente vitalício Xi, a Rússia do czar Putin – colocam o egoísmo nacional acima de uma ordem internacional baseada em leis, movida pela busca do consenso. O quarto, a União Europeia, último reduto da democracia liberal, do bem-estar social, da defesa do ambiente, sofre da desunião, do Brexit, do populismo de direita na Itália, Hungria, Polônia.

Os regimes atuais, quer o capitalismo ocidental, quer a versão estatizante chinesa, são incapazes de resolver os três maiores problemas humanos: o aquecimento global, o aumento da desigualdade, o desemprego estrutural agravado pelos robôs e a inteligência artificial. A possibilidade de que a mudança climática se torne irreversível traz de volta a ansiedade pela sobrevivência individual que se sentia no final da Antiguidade.

Coroando tudo, os ocidentais perdem a confiança na própria cultura, atacada com prepotência pelos adversários do liberalismo e da democracia. Batidos pelos chineses na expansão rápida da economia, amanhã, quem sabe, na vanguarda das tecnologias de ponta, americanos, europeus, temem a emergência, pela primeira vez em quinhentos anos, de uma superpotência não-ocidental.

Como será o mundo do futuro? Que valores refletirá a partir da influência do poder chinês? Até que ponto a ordem mundial continuará a se inspirar no Iluminismo, na Declaração dos Direitos do Homem, na democracia? É possível confiar na evolução de um regime como o chinês que confina centenas de milhares de uigures em campos de lavagem cerebral, que não tolera a diversidade de Hong Kong?

É nesse nevoeiro espesso de incertezas que se esconde o horizonte do futuro. Não foi muito diferente, cem anos atrás, quando o Brasil se aproximava do primeiro centenário. O mundo saia da Grande Guerra destroçado nas estruturas e nas almas. Em 1919, negociava-se o Tratado de Versalhes, Paul Valéry escrevia “nós civilizações sabemos agora que somos mortais […] sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que uma vida”.

Os tempos não eram melhores que os de hoje. Basta lembrar que o ano do centenário da independência coincidiu com a marcha de Mussolini sobre Roma, a primeira conquista de um país pelo fascismo. A década de 1920 se encerraria com o colapso da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. A seguinte assistiria ao sinistro triunfo do nazismo, ao estalinismo, ao estalar da Segunda Guerra Mundial com o cortejo de horrores que se seguiu: o Holocausto, os campos de extermínio, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.

Nada disso impediu o Brasil de avançar. Ao completar cem anos de vida independente, a sociedade brasileira deu balanço no passado, espantando-se com o déficit. No sugestivo estudo que dedicou ao centenário, A nação faz cem anos, a Professora Marly Silva da Motta mencionava o severo juízo de Capistrano de Abreu, ao concluir em 1907 seus Capítulos de história colonial. O legado de três séculos de colônia teria sido a pobreza intelectual, moral e material, a inexistência de vida social, a incapacidade organizativa. A monarquia escravocrata não havia sido capaz de superar tal herança em 67 anos de crescimento modorrento.

O debate intelectual, jornalístico, antes e depois do centenário, produziria, em 1924, a coletânea À margem da história da República. Seu organizador, Vicente Licínio Cardoso, afirmava que o desafio de sua geração consistia em empreender “nova Obra de construção, ou seja, fixar […] o Pensamento e a Consciência da Nacionalidade Brasileira”, tudo com maiúsculas. Nas palavras de Marly Motta, “ser moderna, eis a aspiração da sociedade brasileira às vésperas do Centenário da Independência”, embora a autora advirta que os diferentes atores tinham concepções diferentes da modernidade.

A diversidade marca, de fato, as manifestações do centenário, que se inauguram, em fevereiro, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, seguindo-se a fundação do Partido Comunista do Brasil, a do Centro Dom Vital, núcleo do pensamento católico conservador, por Jackson de Figueiredo, o sacrifício heroico dos 18 do Forte de Copacabana, primeira manifestação pública do Tenentismo, a Exposição Internacional de setembro, e a instituição, no último dia do ano, do imposto de renda!

O carcomido sistema político da República Velha não soube captar os sinais de que a sociedade ansiava por mudanças profundas: a greve geral de 1917, a pulsação dos movimentos artísticos, a inconformidade das baixas patentes do Exército com as fraudes eleitorais. Mostrou-se assim incapaz de deter o processo de autodestruição que culminaria na Revolução de 30.

Nascido com a Primeira República em 1889, Vicente Licínio Cardoso manifestava a decepção dos contemporâneos com os 35 anos do regime em palavras que parecem expressar os nossos sentimentos em relação aos 34 anos da Nova República: “A grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas […]resolv(ido) de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a tragédia […] foi sentir quanto de falso havia nessas suposições”

Apesar do igual desapontamento, há uma evidente diferença entre a efervescência de 1922 e a desesperança de hoje. O contraste talvez se deva à crueldade do choque recente por haver sido precedido da ilusão de que o Brasil era “a maior história de sucesso da América Latina”, como afirmou a revista Economist na edição da fatídica capa do Cristo Redentor decolando, em novembro de 2009. Sem a mesma frustração de um tempo melhor, os brasileiros de 22 só viam, ao olhar para trás, um passado de atraso, ignorância, insucesso. A própria crise do sistema político vinha de longe, tornara-se crônica. O governo de Epitácio, que terminava em 22, até se comparava com vantagem aos anteriores, embora a situação não tardasse em se agravar com o advento de Artur Bernardes.

O confronto entre o primeiro e o segundo centenário põe em evidência o inédito da experiência corrente: a de que, em alguns aspectos importantes, nosso presente é pior que nosso passado. Não se trata do vulgar sentimento de que “a nuestro parescer, cualquier tiempo pasado fue mejor”, como dizia Jorge Manrique nas Coplas por la muerte de su padre.

Quem negaria, por exemplo, que os tempos atuais são piores que os da modernização do Estado e industrialização dos anos 1930 a 1950, aos “50 anos em 5” de JK, aos da Política Externa Independente de Jânio e San Tiago Dantas, aos 16 anos de estabilidade, crescimento, conquistas sociais de FHC e Lula? Se essa avaliação for julgada subjetiva, existe um critério mensurável indiscutível: o do crescimento econômico.

Segundo o professor Rogério Furquim Werneck, entre 1940 e 1980, a economia apresentou taxa média de crescimento de 7% ao ano, expansão rápida e estável, pois, em 40 anos, apenas em um, (1942), registrou-se queda do produto. O longo período de crescimento, comparável aos asiáticos, permitiu multiplicar o PIB real por quinze. Apesar da população haver triplicado no período, o produto por habitante cresceu mais de cinco vezes!

Compare-se agora com as quatro décadas seguintes, de acordo com os dados do estudo da Goldman Sachs (maio de 2019) intitulado: Brasil: duas décadas perdidas em 40 anos. Poderia o país perder meio século? Afirma o estudo que “nas quatro décadas entre 1981 e 2020, o crescimento real do PIB per capita quase certamente ficará em menos de 0,8% ao ano na média; nesse passo, levará 87 anos para dobrar a renda per capita […] em duas das últimas quatro décadas, o Brasil experimentou declínio de crescimento real do PIB per capita: a de 1980 e provavelmente a de 2010 […] a próxima década poderia também ser perdida, nesse caso, o Brasil teria perdido meio século”.

Esta última frase parece ecoar as palavras do barão de Cotegipe ao barão de Penedo sobre a guerra do Paraguai: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século!” Um fracasso de 50 anos é assustador! É preciso martelar esses dados a fim de combater a complacência e reconhecer que estamos diante do maior desastre de desempenho coletivo de nossa história recente!

Temos de admitir que o nosso presente é, sob esses aspectos, muito pior do que certas fases do nosso passado. Existem, claro, luzes que se contrapõem às sombras. Estes 40 anos de altos e baixos coincidem com a consolidação da democracia. Sem arbítrio nem poderes especiais, a democracia encontrou soluções a problemas criados ou agravados pelos militares: a crise da dívida externa, a inflação explosiva, a destruição dos direitos humanos, a ruina do Estado de direito.

Nesse período, em especial nos 20 anos entre 1995 e 2015, alcançou-se a maior redução relativa da pobreza e da indigência de nossa História. O plano Real criou uma moeda estável, institui-se o ministério da Defesa para subordinar os militares ao poder civil, atingiu-se a universalização do ensino fundamental, os estudantes das classes CDE no ensino superior saltaram de 87 mil a 2,1 milhões, lançaram-se as bases de um serviço de saúde universal.

Os progressos são reais, o problema é que, depois de gerar tais resultados, o sistema político-econômico mostra sinais de esgotamento, produzindo rendimentos decrescentes. Ora, se a estagnação se perpetuar, muitas conquistas se revelarão insustentáveis a longo prazo. Foi o que sucedeu na Argentina, onde os progressos educacionais e sociais vêm sendo gradualmente erodidos pela crise quase permanente. O bicentenário da independência argentina em 2016 encontrou a nação pior do que cem anos antes, no primeiro centenário, quando era a quinta maior economia do mundo. O decadentismo, o declínio secular, que nos habituamos a atribuir a nossos vizinhos do rio da Prata é, na verdade, doença contagiosa que já transpôs nossas fronteiras.

A exemplo de cem anos atrás, a aproximação do segundo centenário fornece estímulo para reagir à doença antes que se torne crônica. Em 22, esse papel pioneiro correspondeu, em primeiro lugar, à Semana de Arte Moderna. Um século depois, ultrapassado o debate de 22 sobre a modernidade e a questão da identidade nacional, o que nos cabe é identificar razões para confiar que o futuro será melhor que o presente e superior aos melhores momentos do passado. Precisamos de razões plausíveis para recuperar o que perdemos devido aos sucessivos fracassos: a confiança em nossa capacidade de influenciar o futuro, de dar-lhe um sentido humano.

O ponto de partida terá de ser a renovação da cultura, da filosofia, da literatura, das artes, como na Semana de Arte Moderna, na geração espanhola de 1898 e na experiência de outros povos. De 1922, o que ficou na memória coletiva foi a Semana de Arte Moderna. É por referência a Mário de Andrade, a Oswald, a Bandeira, a Drummond, a Villa Lobos, aos que vieram depois, que nos definimos na consciência de uma identidade bem diferente da que prevalecia anteriormente.

No campo das ideias, os sinais não são encorajadores. A novidade, se é que cabe tal palavra, é a versão brasileira requentada de fenômeno mundial, a seita de extrema-direita que mistura ideólogos pós-fascistas com iluminados, astrólogos, apocalípticos e lunáticos de todo o gênero. Em política, a polarização e radicalização da sociedade se aproximam dos níveis da véspera do golpe militar de 64. Consolida-se um quadro perverso que lembra o italiano no período em que o Partido Comunista se mantinha como primeira força de oposição, atingia um terço do eleitorado, mas não lograva romper esse teto. Dizia-se então que a Itália não era um país normal como os demais da Europa Ocidental pois não existia possibilidade de uma alternância democrática, que equivaleria à chegada do comunismo ao poder.

A eleição brasileira de 2018 ajusta-se a essa descrição. O padrão se reproduzirá por muito tempo se não se romper a polarização entre extrema direita e PT, com o medo empurrando os segmentos médios na direção da direita. Superar o medo requer algo parecido ao compromisso histórico que se frustrou na Itália, isto é, a aliança entre o centro socialmente progressista e a esquerda democraticamente renovada.

A eficácia econômica, a responsabilidade financeira, que tomaram o lugar da luta contra a miséria depois do colapso da era Dilma não bastarão se não forem acompanhadas de vida melhor para os marginalizados. A paixão capaz de galvanizar a sociedade brasileira só pode vir da busca da maior igualdade possível. Uma população dividida por profunda desigualdade de condições jamais se empolgará por ideais liberais de competição, eficácia, meritocracia, produtividade. Necessárias para tornar sustentável a economia, essas qualidades precisam ser conciliadas com forte redistribuição da propriedade e da renda.

Nos anos 20, o vácuo criado no debate público pelo fim do abolicionismo começava apenas a ser ocupado pela “questão social”, sob impacto das greves operárias, dos primeiros sindicatos, da agitação dos jornais e elementos anarco-sindicalistas. Dos 17,5 milhões de habitantes de 1900, rurais e analfabetos na sua maioria, a população atingiria cerca de 31 milhões no ano do centenário. A partir de então acelera-se a dupla explosão demográfica e urbana, hoje em grande parte concluída, até chegar aos atuais 209 milhões, 86% vivendo em cidades.

O crescimento concentrou-se maciçamente nos pobres. Deu nascimento às favelas, às gigantescas periferias que circundam as cidades, mesmo as pequenas do interior. Nelas se desenvolve um ator social novo, de cultura original até na religiosidade carismática e na expressão política. Esse ator novo exige um lugar ao sol na vida política, na economia, na cultura. A história dos últimos cem anos se confunde com o esforço de integração da periferia, das resistências aos avanços, dos políticos e partidos que tentaram canalizar a luta ou se beneficiar dela, Vargas, PTB, Lula, PT.

Ninguém se iluda, o aparecimento de um novo ator social e político tem sempre efeito desestabilizador. Assim sucedeu na Europa da Revolução Industrial, com as revoluções de 1830, 1848, da Comuna de 1871. Entre nós e no resto da América Latina não será diferente: não haverá paz, estabilidade, retomada do desenvolvimento sem a integração progressiva do novo ator como cidadão, produtor, consumidor, agente de cultura.

Urge por isso dobrar a página desta anomalia monstruosa produzida pelo medo na última eleição, reabrindo o caminho para devolver a esperança a todos os brasileiros, em especial aos que mais carecem dela. Depois desta hora do poder das trevas, impõe-se dar sentido à História, recuperar o sentimento de que a vida humana no Brasil não é absurda e insensata.

Nesse esforço cabem à renovação da cultura e aos intelectuais um papel insubstituível. Trata-se, com efeito, como escrevia Marcuse em O Homem Unidimensional, de fazer com que os extremos se encontrem, isto é, que a consciência humana mais evoluída se ponha a serviço da força humana mais explorada.

Não está escrito nas estrelas que o nosso futuro será melhor ou pior que o presente e o passado. Sem o consolo das certezas ilusórias, depende apenas de nós, de nossa ação consciente, que os próximos cem anos revertam o declínio, garantindo-nos um futuro melhor que o presente e superior ao passado. Devemos devolver ao Brasil não uma esperança qualquer, mas aquela de que afirmava Walter Benjamin: “É apenas por causa dos que não têm esperança que a esperança nos foi dada”.

*Rubens Ricupero é diplomata

Fonte: Fundação Astrojildo Pereira