Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), um intelectual completo
Marco Aurélio Nogueira
O Estado de S. Paulo, 21
Outubro 2017 | 19h40
Quando, por volta de 1974-75, comecei a me perguntar sobre o caminho a
seguir na pós-graduação, eu vivia uma espécie de impasse. Não eram
grandes as exigências universitárias em termos de titulação posterior ao
bacharelado. Eu já havia dado aulas na PUC, no Instituto Fláquer de
Santo André, sem qualquer titulo adicional. E estava seduzido pelo
jornalismo. Escrevia regularmente para o semanário
Opinião,
fazia traduções e chegara mesmo a redigir um pequeno livro para a
Editora Três sobre Yasser Arafat, líder da OLP, a Organização para a
Libertação da Palestina. Não sabia bem que estrada seguir.
Mas eu intuía que precisava me tornar pós-graduado. Colegas da
universidade e amigos reforçavam isso e me incentivavam. E a USP era o
principal objetivo. Quando ingressei na UNESP, em 1976, isso se
consolidou, ainda que eu tenha permanecido como Auxiliar de Ensino (um
Bacharel) durante longos 8 anos.
Como muitos daquele período, eu me inquietava com o pensamento
militar que havia impregnado o Estado brasileiro. Vivia me perguntando a
respeito das bases teóricas, ideológicas e doutrinárias que haviam dado
sustentação ao papel político desempenhado pelas Forças Armadas ao
longo do tempo, e que a meu ver se mostravam claramente na retórica
política dos militares que governavam o país.
Oliveiros Ferreira era
professor de Ciência Política da USP e um grande especialista em
assuntos militares e Forças Armadas. Fiz um pequeno projeto voltado para
pesquisar a influência do positivismo no pensamento político do
Exército, inscrevi-me no processo seletivo da FFLCH da USP e fui
entrevistado por Oliveiros, que acabou concordando em me orientar.
A alegria por ter sido aceito combinou-se com a insegurança e o
medo. Afinal, Oliveiros já era um dos grandes, dono de um pensamento
marcante, conhecido por seu rigor e malvisto por parcela das esquerdas,
que o consideravam conservador demais, amigo dos militares e, portanto,
suspeito. Além do mais, estava vinculado ao
Estadão, jornal em que faria carreira e no qual permaneceria até 1999, quando se aposentou.
Acontece que, ao mesmo tempo em que era visto com desconfiança pela esquerda, Oliveiros não era
persona grata
para o regime militar. Viam-no como “trotskista”, “comunista” e
“luxemburguista”, o que jamais foi. Em sua trajetória biográfica consta
certa militância e alguma simpatia intelectual pela
Vanguarda Socialista
— jornal não partidário fundado por Mário Pedrosa em 1945, reunindo
dissidentes do Partido Comunista e intelectuais socialistas opositores
do stalinismo — e, depois, pela Esquerda Democrática, que mais tarde
convergiu para o Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em suma, quando o conheci Oliveiros já era um peso-pesado como intelectual. Continuou assim até o fim.
Foi professor da USP desde 1953. Em anos mais recentes, passou a dar
aulas também na PUC-SP e no Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/PUC/Unicamp). Trabalhou em
O Estado de S. Paulo
por quase meio século, como editorialista, redator-chefe e diretor.
Reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros
interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela
valorização unilateral das estruturas, compondo uma figura rara de
intelectual público.
Em 1976, já como aluno da pós-graduação, frequentei seu curso “O
conceito de hegemonia em Teoria Política”, que segui com grande
interesse, sem perder uma aula sequer. Oliveiros era um professor
cativante, que sabia ensinar e provocar, um “heterodoxo” que mexia com
as convicções mais rígidas dos estudantes. Ainda hoje me valho de sua
“teoria das posses” (das almas, dos corpos, do poder, do território, da
propriedade), na qual Oliveiros baseava sua teoria política e sua
concepção de Estado. Nela havia influências aparentemente díspares para
mim (que me via como um “ortodoxo”), vindas de Durkheim, Weber, Ortega y
Gasset, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci. Foi impactante, e me ajudou
tanto a organizar os cursos que passei a ministrar como a me aproximar
de Oliveiros.
Não foi difícil me simpatizar com ele. Oliveiros era uma pessoa que
seduzia. Pelo porte, pelo gestual, pela voz e pelas provocações. Dava
aulas em pé, caminhando de uma ponta a outra da sala e usando
intensamente o quadro negro. Não perdia uma piada, ria de si próprio e
demolia as ideias com que não concordava, sem contudo entrar em atrito
com os interlocutores. Fazia intervalos a cada 60 minutos, para água e
café. O curso era espetacular.
Com o passar dos anos, minha pesquisa não avançava. Conversava com
Oliveiros a esse respeito e em algum momento do caminho chegamos à
conclusão de que meu tema de pesquisa era complexo demais para as
circunstâncias políticas brasileiras. De certo modo, eu iria mexer num
vespeiro, teria dificuldades para acessar algumas fontes básicas e mais
dificuldades ainda para entrevistas pessoas. Concluímos que seria melhor
alterar o tema, e acabei migrando para a investigação da trajetória
política de Joaquim Nabuco, com o intuito de compreender a transição da
Monarquia para a República e o papel que nela teve o liberalismo.
Oliveiros aceitou com entusiasmo.
O problema é que o prazo para a defesa da dissertação de Mestrado,
que era de 4 anos, estava chegando ao fim, e eu mal havia assentado os
alicerces da pesquisa. Oliveiros sugeriu que eu passasse direto para o
Doutorado, o que me daria mais 4 anos de prazo. Era preciso encaminhar
uma solicitação ao Departamento e me submeter a um exame perante uma
junta de professores. Fui aprovado e respirei. Em 1983 defendi a tese
“As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a
República”, que foi aprovada por uma banca presidida por Oliveiros e
composta por Raymundo Faoro, Oracy Nogueira, Francisco Weffort e José
Augusto Guilhon de Albuquerque.
Devo muito a Oliveiros pelo sucesso que obtive em meu doutorado.
Especialmente na fase de redação, ele foi um verdadeiro orientador.
Recebia-me regularmente em sua casa no Ibirapuera e algumas poucas vezes
no
Estadão. Foi intransigente na questão do prazo: a cada 15
dias eu era obrigado a entregar um capítulo da Tese, que ele lia e
comentava. Foi um contrato de trabalho, que funcionou e sem o qual eu
não teria concluído o texto. Faltava-me uma dose adicional de foco, pois
eu continuava dividido, agora entre a universidade e a militância
política no PCB, sobre a qual discuti várias vezes com Oliveiros, que
sempre a respeitou. Meses antes do prazo final para a entrega da Tese,
fui preso e tive de responder a um processo. Oliveiros acompanhou tudo,
dando apoio e ponderando.
Jamais impôs suas preferências ou opiniões, deixou-me livre,
corrigindo o que havia de imperfeição no texto e me sugerindo
importantes modificações. Dos contatos e conversas que mantivemos
durante os anos de orientação, um alerta de Oliveiros calou forte:
“Nenhum problema em você se valer do marxismo em sua pesquisa. Mas isso
desde que você seja um bom marxista, não um mero repetidor”. Carrego
isso comigo até hoje, como uma medalha.
Depois da Tese, fui para a Itália em um programa de pós-doc. Na
volta, em 1976, o processo militar ainda estava aberto e tive de
comparecer ao Tribunal, levando comigo algumas testemunhas. Oliveiros
foi uma delas e foi emocionante, para mim, vê-lo, do alto de sua
importância como professor e jornalista, argumentar para os cinco juízes
militares que ele sempre me conhecera como marxista, não como
comunista, lembrando que na Universidade o marxismo era admitido com
tranquilidade.
Mais tarde, participei de seminários sobre as concepções de
Oliveiros, escrevi sobre elas e pude compreendê-las melhor. Nunca
cheguei a aceitar por inteiro as posições teóricas e políticas de
Oliveiros. Isso, aliás, jamais foi cogitado. O “meu” Gramsci era
diferente do Gramsci de Oliveiros, por exemplo, mas tanto eu quanto ele
valorizávamos o modo gramsciano de pensar a política e o Estado.
Os 40 Cavaleiros Húngaros, título que Oliveiros deu à sua tese de Livre-docência, é um texto que revela um leitor cuidadoso e rigoroso dos
Cadernos do Cárcere, ainda que fora dos cânones predominantes entre os gramscianos.
Um pensamento vigoroso
O pensamento de Oliveiros ramificou-se pela teoria social, pelas
relações internacionais, pela história e pela política externa do Brasil
– ramos estes que se mantiveram sempre em permanente articulação, como
que para salientar que não pode haver teoria política sem uma poderosa
sociologia na base, que o “nacional” é sempre parte intrínseca do
“global” e que os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do
Espaço e do Tempo em que se dão”, à luz da “densidade e do volume dos
grupos sociais em presença” e das relações de dominação e subordinação
que tais grupos mantém entre si.
Em sua concepção, cruzaram-se influências de autores tão díspares
quanto Durkheim e Gramsci, Weber e Trotsky, Ortega y Gasset, Unamuno e
Marx. Era uma combinação de heterodoxia com ecletismo bem compreendido:
dever-se-ia aceitar aquilo que favoreça a argumentação e impulsione a
compreensão dos nexos que dão sentido à ação dos homens. O resultado
desse esforço, em Oliveiros, foi um texto denso, repleto de referências e
metáforas eloquentes, hábil em surpreender o leitor com esclarecimentos
inusitados, provocativos.
Oliveiros Ferreira não foi autor de “achados” ou preso a modas e
consensos fáceis. Sua vigorosa interpretação do Brasil apoiou-se na
reiteração coerente de algumas cláusulas pétreas: o Estado, a
necessidade da ordem, o poder como posse de almas, mentes e recursos
materiais, a dimensão psicossocial dos fatos políticos, o valor da ação
organizada, o projeto nacional. Foi acima de tudo um “estatista”, um
intelectual preocupado em encontrar no Estado um articulador efetivo da
sociedade, um defensor de seu território e de seu patrimônio histórico,
cultural. Pensou a política a partir desse registro.
Sua teorização dedicou-se a compreender as relações entre
subordinados e dirigentes, os motivos que levam o “grande número” a
aceitar a prevalência do “pequeno número”. Para ele, a dominação é a
essência mesma do processo social. Os aparelhos coativos revestem-se de
importância decisiva para a compreensão da lógica do poder, que se
afirma sobre um território e sobre pessoas. Por isso, a dominação só
pode se manter pela organização e depende categoricamente de uma ação
com vistas à hegemonia, ou seja, à afirmação de uma concepção do mundo,
de uma cultura, como Oliveiros sustentou em
Os 45 cavaleiros húngaros. Uma leitura dos Cadernos de Gramsci, publicado em livro no ano de 1986.
Para ele, na história brasileira, por não terem podido se organizar
com autonomia e coerência, as classes sociais não uniram o País.
Transferiram ao Estado as tarefas típicas que lhes deveriam caber – a
organização dos consensos, a construção da hegemonia, a modelagem da
administração pública, o planejamento do desenvolvimento, a defesa da
soberania, em suma, tudo o que poderia configurar um projeto nacional.
Pagou-se alto preço pelas “servidões da infraestrutura”, que
dificultaram a comunicação entre os grupos sociais. Abriu-se um vazio
político e ideológico, causa de um pesadelo permanente: o da ditadura,
das guinadas autoritárias, da democracia imperfeita, da hipertrofia dos
vértices em detrimento das bases. Com isso, uma parte da estrutura
estatal – os “Militares”, mais bem organizados – terminou por agir com
maior desenvoltura política.
Esta a principal razão que levou Oliveiros a se dedicar
sistematicamente ao estudo das intervenções militares no Brasil, de que o
melhor exemplo é seu livro
Os elos partidos (2007).
Com a democratização dos anos 1980, os militares voltaram à caserna, a
Federação perdeu importância, graças ao avanço da crise fiscal que
também corroeu a União. Houve a globalização, o capitalismo se
reorganizou, a sociedade se diferenciou e aprofundou a falta de
coordenação. O País enveredou por trilhas inquietantes. Na conclusão de
seu livro de 2007, Oliveiros escreverá: “não havendo estruturas que
impulsionem o processo social, a Política feneceu. O Mercado, novo deus
fenício a cobrar sacrifícios, impôs-se como senhor de baraço e cutelo”.
Na medida em que desapareceu a “Grande Política, as Ideias”, passou-se a
discutir as pessoas, as personalidades.
É onde nos encontramos. Três décadas depois da redemocratização,
ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional, o da
organização autônoma da sociedade e da articulação entre Estado e mundo
da vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas
dirigidas para o futuro” e sem projetos nacionais. Poderemos vir a
tê-los no capitalismo globalizado, na modernidade líquida e radicalizada
em que nos encontramos? É uma questão em aberto.
Oliveiros S. Ferreira cumpriu sua função como intelectual. Ajudou-nos
a melhorar nossa capacidade de explicar o mundo em que vivemos. Foi um
grande personagem, uma referência para os cientistas sociais, para os
que se dedicam à ciência política e às relações internacionais de modo
abrangente, sem especialismos e esquemas atrofiadores.
Fará uma falta enorme nos tempos complicados que teremos pela frente.