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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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terça-feira, 20 de junho de 2023

O significado da independência intelectual - Paulo Roberto de Almeida

O significada da independência intelectual

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota comentando um boato: de vez em quando se é levado a perder tempo com bobagens

 

Uma ideia completamente maluca, vinda de alguns acadêmicos engajados: eu seria uma espécie de “Escudé” brasileiro, provavelmente gente que não conhece a obra e o papel do argentino e as minhas próprias. Minhas considerações:

Nunca ouvi isso, e acho completamente ridículo: não sou conselheiro de ninguém e não trabalho como analista para nenhuma instituição. Sou sozinho, me alone, and myself. Respondo unicamente por mim, não acato quaisquer instruções ou sugestões, venham de onde vierem. Basta isso?

Existem pessoas que não admitem pensamento crítico independente, e não podem suportar ver um acadêmico, ou ex-servidor do Estado, tecer reparos à esquerda, à direita, aos militantes de qualquer corrente engajada em ganhos políticos. São os intolerantes habituais. 

Sou indiferente a tais especulações, uma vez que não afetam minimamente o que sempre fiz: ler todas as informações e análises disponíveis, de quaisquer tendências ou de quaisquer correntes políticas ou vínculos acadêmicos, refletir sobre o seu significado do ponto de vista dos interesses do Brasil, no plano interno ou externo, e ponderar minhas notas críticas pelos meios que me são disponíveis, alguns próprios, outros de veículos de midia aceitáveis, geralmente não partidários.

Meu único compromisso: com a verdade, em total responsabilidade analítica e com o máximo de honestidade intelectual.

Encerro o assunto de natureza pessoal, por ser totalmente irrelevante para o meu trabalho habitual: ler, refletir, escrever, eventualmente publicar. Honestidade intelectual, independência de pensamento, são os dois únicos critérios que sigo.

Finalizo agora a questão objetiva por uma simples observação de natureza sociológica (que corresponde à minha formação acadêmica): as políticas externas de grandes e médias potências, e até de pequenos países, refletem os interesses objetivos das elites econômicas e políticas que comandam essas nações, combinadas a orientações políticas e às ideologias daqueles que ocupam temporariamente os comandos de Estado.

Vale!


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4422, 20 junho 2023, 1 p.


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Três decisões conscientes, em três momentos de meu itinerário acadêmico-profissional - Paulo Roberto de Almeida

 Três decisões conscientes, em três momentos de meu itinerário acadêmico-profissional

Paulo Roberto de Almeida


Nos anos de chumbo da ditadura militar, a decisão de resistir ao arbítrio até onde foi possível, sob risco de prisão e tortura: sair num autoexílio para a Europa, sem dinheiro e sem destino certo; quase um ano vagando até encontrar condições de trabalhar e de retomar os estudos de graduação, interrompidos no meio do segundo ano de Ciências Sociais da USP, curso que tivera seus principais professores aposentados compulsoriamente pelo AI-5.

No momento do entusiasmo e adesão oportunista ao início do reinado lulopetista, a decisão de continuar expressando minha avaliação sincera, de caráter objetivamente acadêmico, sobre os equívocos da “nova política externa”, autocongratulatória, em torno dos duvidosos postulados da chamada “diplomacia Sul-Sul” e do apoio efetivo às mais execráveis ditaduras (desde que fossem de “esquerda”), o que resultou em veto formal para dirigir o mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco, seguido de um ostracismo de longos anos para qualquer cargo na Secretaria de Estado das Relações Exteriores durante todo o reinado dos companheiros.

Ao final do governo de transição, depois do impeachment de 2016, e na vitória dos novos bárbaros, a decisão de continuar expressando minha opinião sobre os desvios na postura diplomática, que recém se anunciavam, os mais bizarros e de fato esquizofrênicos, numa Era dos Absurdos jamais vista no Itamaraty, o que resultou na exoneração do único cargo obtido depois de 13,5 anos de travessia do deserto, o de Diretor do IPRI da Funag, mas também no assédio moral e financeiro, acarretando grandes perdas funcionais e materiais, que se estenderam desde o início do reinado dos novos bárbaros e indefinidamente.

Três decisões, em três momentos completamente diferentes da vida do país, mas que tiveram uma mesma resposta, reafirmada e conscientemente adotada: a resistência contra o arbítrio da ditadura, contra o sectarismo dos companheiros e contra a estupidez dos novos bárbaros, da qual nunca me arrependi, e à qual retornaria sem hesitação, caso as situações fossem as mesmas (o que, no terceiro momento, ainda é o caso).

Resistência é o conceito genérico, mas o que sempre esteve na origem da postura foi basicamente uma questão de caráter: a honestidade intelectual, a que me leva a necessidade de colocar a defesa do livre arbítrio contra o arbítrio dos poderosos.

Nunca se tratou apenas de adesão a um contrarianismo sem princípios, mas de recusa do adesismo oportunista, de escolha do ceticismo sadio contra conveniências de um momento, de uma postura de independência de pensamento e da liberdade de expressão, de uma postura de preferência por remar contra a corrente da manada, ainda que com custos a pagar pela atitude anarquista ao estilo “ni Dieu, ni Maître”.

Faria igual, se as mesmas circunstâncias se apresentassem novamente, o que nunca deixei de fazer, como explicitamente afirmado e reafirmado desde meu quilombo de resistência intelectual, o blog Diplomatizzando (nos dois episódios do período mais recente), assim como por meio de muitos escritos com “nom de plume” durante a ditadura militar, que serão resgatados oportunamente, mas também por vários outros escritos anônimos e “terceirizados” em tempos não convencionais. 

Como diriam alguns, a luta continua, sem cessar, pois não há dignidade em trair a sua própria consciência. Liberdade de consciência e de expressão não são apenas cláusulas de declarações eventualmente relembradas no papel, mas decisões de moto próprio, a serem implementadas concretamente. Desde que as ações sigam as palavras, obviamente…

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 11/10/2021


segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Oliveiros da Silva Ferreira: um intelectual completo - Marco Aurelio Nogueira

 Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), um intelectual completo
Marco Aurélio Nogueira
O Estado de S. Paulo, 21 Outubro 2017 | 19h40

Quando, por volta de 1974-75, comecei a me perguntar sobre o caminho a seguir na pós-graduação, eu vivia uma espécie de impasse. Não eram grandes as exigências universitárias em termos de titulação posterior ao bacharelado. Eu já havia dado aulas na PUC, no Instituto Fláquer de Santo André, sem qualquer titulo adicional. E estava seduzido pelo jornalismo. Escrevia regularmente para o semanário Opinião, fazia traduções e chegara mesmo a redigir um pequeno livro para a Editora Três sobre Yasser Arafat, líder da OLP, a Organização para a Libertação da Palestina. Não sabia bem que estrada seguir.
Mas eu intuía que precisava me tornar pós-graduado. Colegas da universidade e amigos reforçavam isso e me incentivavam. E a USP era o principal objetivo. Quando ingressei na UNESP, em 1976, isso se consolidou, ainda que eu tenha permanecido como Auxiliar de Ensino (um Bacharel) durante longos 8 anos.
Como muitos daquele período, eu me inquietava com o pensamento militar que havia impregnado o Estado brasileiro. Vivia me perguntando a respeito das bases teóricas, ideológicas e doutrinárias que haviam dado sustentação ao papel político desempenhado pelas Forças Armadas ao longo do tempo, e que a meu ver se mostravam claramente na retórica política dos militares que governavam o país.
Oliveiros Ferreira era professor de Ciência Política da USP e um grande especialista em assuntos militares e Forças Armadas. Fiz um pequeno projeto voltado para pesquisar a influência do positivismo no pensamento político do Exército, inscrevi-me no processo seletivo da FFLCH da USP e fui entrevistado por Oliveiros, que acabou concordando em me orientar.

A alegria por ter sido aceito combinou-se com a insegurança e o medo. Afinal, Oliveiros já era um dos grandes, dono de um pensamento marcante, conhecido por seu rigor e malvisto por parcela das esquerdas, que o consideravam conservador demais, amigo dos militares e, portanto, suspeito. Além do mais, estava vinculado ao Estadão, jornal em que faria carreira e no qual permaneceria até 1999, quando se aposentou.
Acontece que, ao mesmo tempo em que era visto com desconfiança pela esquerda, Oliveiros não era persona grata para o regime militar. Viam-no como “trotskista”, “comunista” e “luxemburguista”, o que jamais foi. Em sua trajetória biográfica consta certa militância e alguma simpatia intelectual pela Vanguarda Socialista — jornal não partidário fundado por Mário Pedrosa em 1945, reunindo dissidentes do Partido Comunista e intelectuais socialistas opositores do stalinismo — e, depois, pela Esquerda Democrática, que mais tarde convergiu para o Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em suma, quando o conheci Oliveiros já era um peso-pesado como intelectual. Continuou assim até o fim.
Foi professor da USP desde 1953. Em anos mais recentes, passou a dar aulas também na PUC-SP e no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/PUC/Unicamp). Trabalhou em O Estado de S. Paulo por quase meio século, como editorialista, redator-chefe e diretor. Reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas, compondo uma figura rara de intelectual público.
Em 1976, já como aluno da pós-graduação, frequentei seu curso “O conceito de hegemonia em Teoria Política”, que segui com grande interesse, sem perder uma aula sequer. Oliveiros era um professor cativante, que sabia ensinar e provocar, um “heterodoxo” que mexia com as convicções mais rígidas dos estudantes. Ainda hoje me valho de sua “teoria das posses” (das almas, dos corpos, do poder, do território, da propriedade), na qual Oliveiros baseava sua teoria política e sua concepção de Estado. Nela havia influências aparentemente díspares para mim (que me via como um “ortodoxo”), vindas de Durkheim, Weber, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci. Foi impactante, e me ajudou tanto a organizar os cursos que passei a ministrar como a me aproximar de Oliveiros.
Não foi difícil me simpatizar com ele. Oliveiros era uma pessoa que seduzia. Pelo porte, pelo gestual, pela voz e pelas provocações. Dava aulas em pé, caminhando de uma ponta a outra da sala e usando intensamente o quadro negro. Não perdia uma piada, ria de si próprio e demolia as ideias com que não concordava, sem contudo entrar em atrito com os interlocutores. Fazia intervalos a cada 60 minutos, para água e café. O curso era espetacular.
Com o passar dos anos, minha pesquisa não avançava. Conversava com Oliveiros a esse respeito e em algum momento do caminho chegamos à conclusão de que meu tema de pesquisa era complexo demais para as circunstâncias políticas brasileiras. De certo modo, eu iria mexer num vespeiro, teria dificuldades para acessar algumas fontes básicas e mais dificuldades ainda para entrevistas pessoas. Concluímos que seria melhor alterar o tema, e acabei migrando para a investigação da trajetória política de Joaquim Nabuco, com o intuito de compreender a transição da Monarquia para a República e o papel que nela teve o liberalismo. Oliveiros aceitou com entusiasmo.
O problema é que o prazo para a defesa da dissertação de Mestrado, que era de 4 anos, estava chegando ao fim, e eu mal havia assentado os alicerces da pesquisa. Oliveiros sugeriu que eu passasse direto para o Doutorado, o que me daria mais 4 anos de prazo. Era preciso encaminhar uma solicitação ao Departamento e me submeter a um exame perante uma junta de professores. Fui aprovado e respirei. Em 1983 defendi a tese “As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a República”, que foi aprovada por uma banca presidida por Oliveiros e composta por Raymundo Faoro, Oracy Nogueira, Francisco Weffort e José Augusto Guilhon de Albuquerque.
Devo muito a Oliveiros pelo sucesso que obtive em meu doutorado. Especialmente na fase de redação, ele foi um verdadeiro orientador. Recebia-me regularmente em sua casa no Ibirapuera e algumas poucas vezes no Estadão. Foi intransigente na questão do prazo: a cada 15 dias eu era obrigado a entregar um capítulo da Tese, que ele lia e comentava. Foi um contrato de trabalho, que funcionou e sem o qual eu não teria concluído o texto. Faltava-me uma dose adicional de foco, pois eu continuava dividido, agora entre a universidade e a militância política no PCB, sobre a qual discuti várias vezes com Oliveiros, que sempre a respeitou. Meses antes do prazo final para a entrega da Tese, fui preso e tive de responder a um processo. Oliveiros acompanhou tudo, dando apoio e ponderando.
Jamais impôs suas preferências ou opiniões, deixou-me livre, corrigindo o que havia de imperfeição no texto e me sugerindo importantes modificações. Dos contatos e conversas que mantivemos durante os anos de orientação, um alerta de Oliveiros calou forte: “Nenhum problema em você se valer do marxismo em sua pesquisa. Mas isso desde que você seja um bom marxista, não um mero repetidor”. Carrego isso comigo até hoje, como uma medalha.
Depois da Tese, fui para a Itália em um programa de pós-doc. Na volta, em 1976, o processo militar ainda estava aberto e tive de comparecer ao Tribunal, levando comigo algumas testemunhas. Oliveiros foi uma delas e foi emocionante, para mim, vê-lo, do alto de sua importância como professor e jornalista, argumentar para os cinco juízes militares que ele sempre me conhecera como marxista, não como comunista, lembrando que na Universidade o marxismo era admitido com tranquilidade.
Mais tarde, participei de seminários sobre as concepções de Oliveiros, escrevi sobre elas e pude compreendê-las melhor. Nunca cheguei a aceitar por inteiro as posições teóricas e políticas de Oliveiros. Isso, aliás, jamais foi cogitado. O “meu” Gramsci era diferente do Gramsci de Oliveiros, por exemplo, mas tanto eu quanto ele valorizávamos o modo gramsciano de pensar a política e o Estado. Os 40 Cavaleiros Húngaros, título que Oliveiros deu à sua tese de Livre-docência, é um texto que revela um leitor cuidadoso e rigoroso dos Cadernos do Cárcere, ainda que fora dos cânones predominantes entre os gramscianos.

Um pensamento vigoroso

O pensamento de Oliveiros ramificou-se pela teoria social, pelas relações internacionais, pela história e pela política externa do Brasil – ramos estes que se mantiveram sempre em permanente articulação, como que para salientar que não pode haver teoria política sem uma poderosa sociologia na base, que o “nacional” é sempre parte intrínseca do “global” e que os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se dão”, à luz da “densidade e do volume dos grupos sociais em presença” e das relações de dominação e subordinação que tais grupos mantém entre si.
Em sua concepção, cruzaram-se influências de autores tão díspares quanto Durkheim e Gramsci, Weber e Trotsky, Ortega y Gasset, Unamuno e Marx. Era uma combinação de heterodoxia com ecletismo bem compreendido: dever-se-ia aceitar aquilo que favoreça a argumentação e impulsione a compreensão dos nexos que dão sentido à ação dos homens. O resultado desse esforço, em Oliveiros, foi um texto denso, repleto de referências e metáforas eloquentes, hábil em surpreender o leitor com esclarecimentos inusitados, provocativos.
Oliveiros Ferreira não foi autor de “achados” ou preso a modas e consensos fáceis. Sua vigorosa interpretação do Brasil apoiou-se na reiteração coerente de algumas cláusulas pétreas: o Estado, a necessidade da ordem, o poder como posse de almas, mentes e recursos materiais, a dimensão psicossocial dos fatos políticos, o valor da ação organizada, o projeto nacional. Foi acima de tudo um “estatista”, um intelectual preocupado em encontrar no Estado um articulador efetivo da sociedade, um defensor de seu território e de seu patrimônio histórico, cultural. Pensou a política a partir desse registro.
Sua teorização dedicou-se a compreender as relações entre subordinados e dirigentes, os motivos que levam o “grande número” a aceitar a prevalência do “pequeno número”. Para ele, a dominação é a essência mesma do processo social. Os aparelhos coativos revestem-se de importância decisiva para a compreensão da lógica do poder, que se afirma sobre um território e sobre pessoas. Por isso, a dominação só pode se manter pela organização e depende categoricamente de uma ação com vistas à hegemonia, ou seja, à afirmação de uma concepção do mundo, de uma cultura, como Oliveiros sustentou em Os 45 cavaleiros húngaros. Uma leitura dos Cadernos de Gramsci, publicado em livro no ano de 1986.
Para ele, na história brasileira, por não terem podido se organizar com autonomia e coerência, as classes sociais não uniram o País. Transferiram ao Estado as tarefas típicas que lhes deveriam caber – a organização dos consensos, a construção da hegemonia, a modelagem da administração pública, o planejamento do desenvolvimento, a defesa da soberania, em suma, tudo o que poderia configurar um projeto nacional. Pagou-se alto preço pelas “servidões da infraestrutura”, que dificultaram a comunicação entre os grupos sociais. Abriu-se um vazio político e ideológico, causa de um pesadelo permanente: o da ditadura, das guinadas autoritárias, da democracia imperfeita, da hipertrofia dos vértices em detrimento das bases. Com isso, uma parte da estrutura estatal – os “Militares”, mais bem organizados – terminou por agir com maior desenvoltura política.
Esta a principal razão que levou Oliveiros a se dedicar sistematicamente ao estudo das intervenções militares no Brasil, de que o melhor exemplo é seu livro Os elos partidos (2007).
Com a democratização dos anos 1980, os militares voltaram à caserna, a Federação perdeu importância, graças ao avanço da crise fiscal que também corroeu a União. Houve a globalização, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e aprofundou a falta de coordenação. O País enveredou por trilhas inquietantes. Na conclusão de seu livro de 2007, Oliveiros escreverá: “não havendo estruturas que impulsionem o processo social, a Política feneceu. O Mercado, novo deus fenício a cobrar sacrifícios, impôs-se como senhor de baraço e cutelo”. Na medida em que desapareceu a “Grande Política, as Ideias”, passou-se a discutir as pessoas, as personalidades.
É onde nos encontramos. Três décadas depois da redemocratização, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional, o da organização autônoma da sociedade e da articulação entre Estado e mundo da vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro” e sem projetos nacionais. Poderemos vir a tê-los no capitalismo globalizado, na modernidade líquida e radicalizada em que nos encontramos? É uma questão em aberto.
Oliveiros S. Ferreira cumpriu sua função como intelectual. Ajudou-nos a melhorar nossa capacidade de explicar o mundo em que vivemos. Foi um grande personagem, uma referência para os cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais de modo abrangente, sem especialismos e esquemas atrofiadores.
Fará uma falta enorme nos tempos complicados que teremos pela frente.

sábado, 7 de junho de 2014

Por que escrevo? (2) - Paulo Roberto de Almeida


Paulo Roberto de Almeida

Retomo a discussão suscitada pela questão do título, confessadamente inspirada em ensaio de título análogo (mas sem o sinal de interrogação) de George Orwell, em um texto elaborado em 1946, quando ele já tinha se tornado um escritor profissional, mas ainda enfrentando condições de vida bastante modestas, pois Animal Farm não havia conseguido encontrar, até aquele momento, algum editor disposto a desafiar o Big Brother soviético, e o próprio escritor ainda ruminava a possibilidade de escrever sobre o verdadeiro grande irmão, no romance que lhe trouxe fama universal: 1984. Em “Why I write”, Orwell dizia que existem quatro grandes motivos para escrever e estipulava que eles diferem em graus variados de escritor a escritor, sendo que, em cada um deles, os motivos assumem proporções variáveis ao longo do tempo, segundo a atmosfera na qual os escritores vivem. Vejamos quais são eles, e meus comentários sobre cada um.

(1) Egoísmo puro. O escritor, segundo Orwell, quer parecer inteligente, ser reconhecido como tal, objeto de comentários dos contemporâneos e ser relembrado após a morte. “Seria desonestidade não reconhecer que esse é um forte motivo”, disse ele, terminando esse tópico por um comentário vinculado às duas condições: “Escritores sérios... são, no conjunto, mais vãos e autocentrados do que os jornalistas, ainda que menos interessados em dinheiro” (p. 312, de A Collection of Essays, edição Harbrace, impressa nos EUA, em 1953). Não tenho certeza de que escritores estejam menos interessados em dinheiro do que os jornalistas; provavelmente o contrário, pois estes, supostamente, trabalham geralmente para algum veículo de comunicações, e dispõem de um rendimento regular, enquanto assalariados, ao passo que os primeiros são talvez um pouco como os artistas: só ganham dinheiro quando obtêm sucesso de mercado e quando conseguem vender suas obras em grande número, ou a preços altos.
De minha parte, ainda que os motivos de orgulho e de reconhecimento pessoais possam ter contado em algumas fases de minha atividade de escrevinhador – jamais de escritor – não foi isso que essencialmente me levou a me dedicar à palavra escrita, tanto porque quase nunca pensei em publicar o que escrevo, até quando já não dependia em nada desses parcos rendimentos de uma atividade irregular. Obviamente, fama e glória só existem quando se é publicado – contra ganhos ou não, e no meu caso raramente a primeira hipótese esteve em jogo – e, do total de meus escritos, apenas uma ínfima parte encontrou o caminho da divulgação pública. A proporção cresceu, está claro, na era digital, quando o custo associado à divulgação eletrônica se tornou ínfimo, comparado às edições comerciais para o mercado de massa, mas ainda assim não posso dizer que escrevo com o objetivo de ser lido para obter reconhecimento público, ou em nome do egoísmo (ou vaidade) de que falava George Orwell.

(2) Entusiasmo estético, ou seja, percepção da beleza das palavras, de seu impacto no mundo circundante, ou desejo de expressar e partilhar uma experiência que é considerada relevante para si próprio e eventualmente para os demais. “O motivo estético”, reconhece Orwell, “é bastante fraco em muitos escritores, mas mesmo um panfletário, ou um autor de livros-texto, terá palavras ou frases que lhe são preferidas por razões não utilitárias; (...) Além do nível de um guia de trens, nenhum livro está desprovido verdadeiramente de considerações estéticas” (idem, p. 312)
Acho que, sob esse critério, eu devo ser um desastre, pois meu estilo é pesado, prolixo, no mais das vezes descuidado na forma e desengonçado na composição das palavras, com uma redação tortuosa e torturada, que apenas reflete minha rebeldia inicial e constante em me dedicar às boas regras da gramática e à redação bem cuidada. Sou tão atento às palavras, pelo seu significado e conteúdo substantivo, quanto sou desatento à forma pela qual elas devem ser ordenadas no texto, sua correção formal: as frases se sucedem, longuíssimas. Trata-se de um defeito grave, eu sei, mas é um pecado original do qual nunca soube me desfazer quando realmente comecei a me dedicar de modo mais sistemático à palavra escrita, um refúgio ao qual recorremos quando estamos longe do ambiente natural em que nos movimentamos desde as primeiras letras.
Essa fase correspondeu ao meu autoexílio voluntário, a partir dos 21 anos (e durante mais de sete anos), quando passei a ler, a estudar e a escrever em outras línguas, numa notável confusão de regras e de estilos. Minha língua de trabalho passou a ser preferencialmente o francês – que não difere muito, no estilo ou na gramática, do português, mas é altamente mais exigente no plano formal – mas também me exerci bastante em espanhol, com intensas leituras paralelas em inglês e em italiano, e breves incursões pelo alemão. Por outro lado, não creio que textos de natureza política, sejam especialmente favoráveis a um domínio erudito da palavra escrita, perdendo de longe, por exemplo, para a boa literatura, da qual estive infelizmente afastado, justamente em função de uma dedicação doentia às questões políticas. Tenho plena consciência de que minha estética das palavras é horrível, e não cultivo nenhum entusiasmo por isso.

(3) Impulso histórico, que é o mais curto dos motivos elencados por Orwell. Ele escreve apenas isto: “Desejo de ver as coisas como elas são, de descobrir os fatos verdadeiros e de guardá-los para uso da posteridade” (p. 312). Parece, dito assim, a mais desprendida das motivações, uma escrita voltada unicamente para a preservação dos eventos, vistos, ouvidos ou lidos, algo como uma vocação à la Ranke: contar os fatos como eles efetivamente aconteceram (wie es eigentlich Gewesen). Ainda que eu tenha sempre cultivado a história como a mais saborosa das literaturas, e a considere como a “mãe de todas as ciências”, como reza o famoso dístico – não sei se desde Heródoto ou Tucídides – não me dedico especialmente à escrita da história, tanto porque não possuo a necessária preparação metodológica para fazê-lo. Mas todos os meus trabalhos possuem forte inclinação histórica, no sentido em que procuro contextualizar os fatos ou eventos analisados em suas causas originais, em seu ambiente de formação e ulterior desenvolvimento, pois tudo se torna mais compreensível quando recolocamos quaisquer fatos ou processos históricos no ambiente que os viu nascer, levando em conta os vetores que os moldaram e as forças que continuaram influenciando seu itinerário.
Espíritos simplórios, e burocracias sem memória, tendem a considerar tais fatos ou processos apenas como eventos ad hoc, como se eles surgissem de repente, e fossem originais ou inéditos. Não se poupam, assim, de cometer os mesmos erros ou equívocos a que estão condenados, segundo Santayanna (ou algum outro filósofo antes dele), todos aqueles que ignoram a história. É certo que a história nunca se repete, mas os espíritos despreparados tendem a cometer os mesmos erros que já ocorreram anos, décadas ou séculos antes, ainda que em circunstâncias diferentes. Não existe nenhuma novidade nas bolhas financeiras, nas valorizações exageradas das bolsas, na especulação com metais ou imóveis, mas aparentemente as gerações sucessivas acabam incorrendo nos mesmos desvios de comportamento que vitimaram os holandeses das tulipas, os franceses de John Law ou, modernamente, os deslumbrados das “ponto.com”.
Mas eu também me desvio do principal nesta questão: escrever com finalidades ou propósitos históricos ou simplesmente pelo prazer da escrita. Creio ter esse impulso da escrita, e também o espírito histórico, o que torna essa escrita mais empiricamente fundamentada, mesmo sem pretender ser um fiel cronista dos eventos correntes. Deixo a história para os profissionais, mas não hesito em penetrar em seu território e roubar algumas de suas técnicas de investigação, questionando documentos de arquivos e consultando relatos de contemporâneos, tanto quanto lendo os historiadores que vieram depois, e que podem iluminar novos aspectos de eventos e processos passados.
Minha escrita é histórica: não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, e tal característica só se aprofunda com o tempo. Uma das vantagens de envelhecer – se é que se trata de uma “vantagem” – é a de poder escrever sobre fatos que nos foram contemporâneos, por assim dizer, eventos que depois se tornaram “históricos” e aos quais assistimos com os nossos olhos, ou que estiveram nas páginas de jornais que líamos todos os dias, hoje bem mais a televisão e a internet do que o papel impresso. Atualmente, posso falar com total domínio sobre o último meio século, e talvez até um pouco mais, dado que os livros “contemporâneos” do último meio século falam com grande domínio sobre o meio século precedente.
Assim, o “breve” impulso histórico de Orwell pode ser lido de várias maneiras, ele que foi um homem profundamente marcado pelas tragédias dos anos 1930 e pela Segunda Guerra Mundial. Um de seus textos começa exatamente assim: “Enquanto eu escrevo, seres humanos altamente civilizados estão voando sobre minha cabeça, tentando matar-me” (p. 252 de A Collection of Essays). Se tratava do ensaio “England Your England”, escrito em 1941, quando o pico dos ataques aéreos nazistas contra a Inglaterra já tinha passado, mas a Luftwaffe ainda continuava a fazer incursões ocasionais sobre Londres, tentando quebrar a moral dos ingleses (bem antes que os americanos fossem obrigados a finalmente se envolver na guerra).
O que mais marcou Orwell, entretanto, foi o totalitarismo dos regimes soviético e nazista, o que está muito evidente tanto em Animal Farm quanto em 1984. No mesmo ensaio que serviu de inspiração a este aqui, ele escreveu: “Cada linha de trabalho sério que eu escrevi desde 1936 [quando ele esteve na Espanha da guerra civil, do lado republicano, experiência relatada em Hommage to Catalonia] foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como eu o entendo” (p. 314, ênfases no original). É bastante provável que, se não tivesse morrido precocemente, Orwell continuasse um socialista democrático, na Grã-Bretanha dos anos 1950 e 1960, mas é altamente improvável que ele assistisse indiferente à decadência britânica que esse mesmo socialismo ajudou a aprofundar logo em seguida, até culminar nos imensos retrocessos sociais e industrial da fase imediatamente anterior à eleição de Margaret Thatcher. Mesmo continuando um socialista, e inimigo dos conservadores, Orwell provavelmente não discordaria das orientações libertárias dos novos tories, já que, entre sindicalistas estatizantes e defensores das liberdades individuais, ele sempre ficaria com estes últimos, contra o controle das vontades pelos novos totalitários. A história sempre tem algo a ensinar aos espíritos abertos como ele (eu também).

(4) Objetivo político: Orwell usa o termo político no seu sentido mais amplo, como ele mesmo explica, complementando ao início de sua longa explicação sobre a motivação especificamente política dos escritores: “nenhum livro é genuinamente destituído de algum viés político. A opinião de que a arte não deve ter nada com a política é, ela mesma, uma atitude política” (p. 313). Concordo inteiramente, mas a dificuldade, aqui, está justamente em aceitar que nossas opiniões políticas constituem o reflexo de nossas leituras e experiência de vida anteriores, que refletimos o estado do debate político na sociedade e que podemos, e devemos aprofundar esse debate, e assumir novas posturas, à medida que aprendemos com o tempo, com as leituras, com pessoas mais experientes, com a observação honesta e objetiva da realidade.
Por observação objetiva da realidade, como condição inseparável da honestidade intelectual, eu quero me referir à minha própria trajetória política, iniciada sob o domínio do marxismo teórico e do leninismo prático, continuada sob o signo do socialismo democrático nos anos 1970 e 1980 – como Orwell, ao contemplar as misérias do nazismo e do stalinismo nos anos 1930 e 1940 –, e chegando a uma espécie de contrarianismo libertário nos tempos presentes, certamente mais liberal no seu conteúdo econômico, do que nos tempos socialistas, e mais anarquista nos domínios cultural e político. A migração não foi instantânea, nem desprovida de racionalizações justificativas, mas a recusa do totalitarismo bolchevique foi, sim, imediata, uma vez feito o confronto com a realidade.
Ao sair do Brasil, nos tempos mais obscuros dos chamados anos de chumbo da repressão política (e violenta) do regime militar contra os grupos de luta armada, eu fui direto para o coração do socialismo real, na Tchecoslováquia pós-invasão soviética, quando o socialismo à face humana de Dubcek estava sendo definitivamente enterrado pelas forças brejnevistas do sovietismo esclerosado. Mais do que a miséria material, imediatamente perceptível pelas estantes e prateleiras vazias das lojas e armazéns, o que mais me chocou foi constatar a miséria humana, moral e espiritual do socialismo, que também era perceptível pelo ambiente de vigilância policial, de autocensura mental, de contenção nas palavras e nas atitudes. O totalitarismo não era uma invenção da CIA, da revista Seleções (Reader’s Digest), nem da ciência política ocidental; ele era uma realidade perceptível nos olhares e nos gestos, nas pequenas misérias cotidianas que iam muito além da falta de carne ou de frutas nos mercados, de jornais nos quiosques, e se manifestava diretamente no vocabulário, que Orwell chamou de novilingua em 1984.
Obviamente eu não dominava o tcheco para conversar com a população, mas podia conversar em francês com as senhoras idosas que frequentavam a biblioteca da Alliance Française, onde eu ia para ler o Le Monde – a única fonte de informação que eu tinha no socialismo real – e onde elas iam para se aquecer no inverno, já que o carvão custava caro e talvez fosse extremamente difícil subir tantos sacos em muitos lances de escada, em suas antigas casas patrícias transformadas em residências coletivas para seis ou sete famílias operárias. Aquelas senhoras vinham do capitalismo liberal e da Tchecoslováquia independente dos anos de entre-guerras, e ressentiam intensamente o descenso social que experimentaram a partir de 1948, mas sobretudo estavam profundamente deprimidas pelo clima de repressão policial e de controles do partido sobre a vida dos cidadãos, situação temporariamente flexibilizada durante os anos de Alexander Dubcek à frente do comité central do Partido Comunista. Foi apenas uma primavera, logo interrompida pelos tanques soviéticos e do Pacto de Varsóvia.
Essa foi a miséria do socialismo que me foi dada contemplar nos curtos três meses que passei do outro lado da “cortina de ferro”. Logo em seguida fui trabalhar e estudar no capitalismo explorador, e me senti inteiramente à vontade com livrarias, bibliotecas, olhares desprovidos de medo, bem mais do que com as estantes cheias e a abundância dos supermercados. A partir desse momento, eu reforcei minha vocação de escritor político, profundamente político, sem qualquer resquício do fundamentalismo ideológico que me tinha aprisionado no pensamento único dos neobolcheviques nos anos anteriores. Orwell tinha razão: nenhum escritor, nenhum livro é desprovido de um viés político determinado.
Como ele escreveu, mais para o final de “Why I Write”: “Animal Farm foi o primeiro livro no qual eu tentei, com plena consciência do que estava fazendo, fundir o objetivo político e o objetivo artístico em um único conjunto. (...) Todos os escritores são vãos, egoístas e preguiçosos e, bem no fundo de suas motivações, reside um mistério. (...) Eu não posso dizer com certeza quais das motivações são as mais fortes, mas eu sei quais delas merecem ser seguidas. E olhando retrospectivamente minha obra, eu vejo que foi invariavelmente quando eu não tinha uma motivação política que eu escrevi livros sem vida e fui traído por passagens obscuras, sentenças sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, desonestidade” (p. 316).
 Cabe aos que cultivam um mínimo de honestidade intelectual ter consciência desse tipo de viés, inevitável na literatura política, passando então a imprimir o máximo de objetividade observadora, de fidelidade à realidade que nos cerca, e tratar de traduzir uma clara percepção dessa realidade nos escritos que produzimos. É o que eu tento fazer cada vez e sempre que busco um livro na estante, que seleciono minhas leituras de pesquisa, de estudo ou de lazer, e que tomo da pluma, ou que me sento em face do computador, para escrever alguma coisa, qualquer coisa, como esta agora, por exemplo. Sempre...

Hartford, 7 de Junho de 2014

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Avaliacao sincera do governo Lula - Percival Puggina

Este blog não é nem contra, nem favor, muito pelo contrário, como reza um ditado irônico muito apropriado.
Ele é apenas pela verdade dos fatos, e pela honestidade intelectual, ou seja, trazer evidências para cada um dos argumentos apresentados pelas partes.
O governo já possui uma imensa máquina de propaganda -- paga com o nosso dinheiro -- e viveu durante oito ano na base do "nunca antes...".
Bem, eu sinceramente espero que nunca mais tenhamos de ouvir tamanha estupidez.
O artigo de opinião, abaixo, procura justamente separar os fatos das versões, e eu concordo com seu autor em que, ao lado das conquistas sociais dos últimos anos -- na verdade mais baseadas na distribuição dos estoques existentes, ou seja, a renda da classe média e o lucro das empresas, e no crescimento suscitado pela demanda externa, e o Brasil mais se deixou comprar do que vendeu, como provam as estatísticas de aumento de exportações, mais apoiadas em valor, de commodities, do que em volume de manufaturados --, ao lado dessas conquistas, portanto, menos conquistas do que benesses distribuídas, existem sérias preocupações quanto ao estado de saúde de nossas instituições políticas, que nunca antes neste país foram tão aviltadas quanto neste governo.
Existe, sim, uma deterioração sensível de certas instituições, sobretudo do Congresso, como qualquer um pode perceber.
Falar a verdade faz bem, e não ofende a inteligência como certos discursos grandiloquentes, e mentirosos, que se ouvem por aí.
Paulo Roberto de Almeida

Opinião
O legado de Lula
Percival Puggina
Opinião e Notícia, 3/01/2011

Não escrevo para desconsiderar o que andou bem no governo Lula, mas não posso deixar de expor o que vi de sórdido em seu modo de fazer política.

Acabou! Não há bem que sempre dure (na perspectiva dos 87% que gostaram), nem mal que não acabe (segundo a ótica dos 13% descontentes). Faço parte do pequeno grupo que não se deixa seduzir por conversa fiada, publicidade enganosa e não sente atração pelos salões e cofres do poder.

Lula chega ao fim de seu mandato em meio a um paradoxo que cobra explicações: a política e os que a ela se dedicam despencaram na confiança popular para um índice de rejeição de 92%! Ora, como entender que os políticos valham tão pouco perante a opinião pública enquanto o grande senhor, o chefe, o mandante, o comandante da política, surfa nas ondas de uma popularidade messiânica? Ouço miados nessa tuba. Como pode? Quanto mais crescia a popularidade do presidente mais decrescia o prestígio da política! E ele nada tem a ver? Chefiou durante quase uma década o Estado, o governo, a administração, uma fornida maioria parlamentar, o numeroso bloco de partidos integrantes de sua base de apoio, nomeou 8 dos 11 ministros do STF, estendeu seu braço protetor sobre as piores figuras da cena nacional e é a virgem do lupanar?

Eu aprecio os governantes realistas. Sei que o realismo se inclui entre as características de todos os estadistas. Seja como homem do governo, seja como chefe de Estado, o estadista lida com os fatos. Ideais elevados e pés no chão. Causas e consequências, problemas e soluções. Realismo. Isso me agrada. Mas há um realismo cínico, desprovido de caráter, que desconhece limites éticos, que se abraça com o demônio se ele puder ser útil. A história está cheia de líderes assim e apenas os olfatos mais sensíveis parecem capazes de perceber o cheiro de enxofre que exalam.

Há uma relação de causa e efeito entre a degradação da política brasileira e a ação do presidente Lula. Ele a deteriorou e comprometeu a democracia através do aparelhamento de tudo, da cooptação, da compra de votos com favores, do fracionamento e da descaracterização dos partidos. Assim como atuam os desmanches de automóveis, assim operou a política presidencial com os pedaços dos partidos nacionais, comprados das fontes mais suspeitas e pelos piores meios.

Quer dizer, senhores e senhoras arrebatados pela retórica lulista, que a democracia perdeu importância e pode ser uma coisa qualquer, apoiada por qualquer arremedo de política? Não se exige mais, de quem governa, um padrão mínimo de dignidade? De coerência e respeito? Não! Pelo jeito, basta encher o bolso dos ricos e distribuir esmolas aos pobres para que surja um novo São Francisco em Garanhuns.

Ah, Puggina! Mas com ele a economia cresceu, o número de miseráveis diminuiu e se realizaram obras importantes. Vá que seja. Mas convenhamos: era preciso muita incompetência para que a economia ficasse travada em meio a um ciclo mundial extremamente favorável. Pergunto: não estavam diligentemente postas pelos antecessores as condições (privatizações, estabilidade monetária e jurídica, integração ao comércio mundial, credibilidade externa, responsabilidade fiscal e estímulo ao agronegócio)?

Estavam, sim. Faltava o que Lula teve a partir de 2005: dinheiro jorrando, comprador e investidor, no mercado internacional. E ainda assim, entre 2002 e 2009, o crescimento do PIB per capita do Brasil teve um desempenho medíocre comparado com outros emergentes e, mesmo, com a maior parte dos países da América Latina.

O Partido dos Trabalhadores se construiu mediante três estratégias convergentes. Primeiro, a rigorosa adoção da cartilha gramsciana, assenhoreando-se dos meios de formação da cultura nacional, sem esquecer-se de qualquer deles – igrejas, sindicatos, movimentos sociais, universidades, meios de comunicação, material didático, música popular.

Segundo, combatendo tudo, mas tudo mesmo, que os governos anteriores buscavam implementar como condição para que o país retomasse o crescimento: Plano Real, abertura da economia, privatizações, cumprimento de contratos, pagamento da dívida, responsabilidade fiscal, busca de superávits, agronegócio e Proer. Tudo era denunciado como maligno, perverso, antinacional, corrupto.

Terceiro, destruindo de modo sistemático a imagem de quem se interpusesse no seu caminho para o poder, até restar, do imaginário de muitos, como a grande reserva moral da pátria. Dois anos no poder bastaram para que os véus do templo se rasgassem de alto abaixo e os muitos petistas bem intencionados arrancassem os cabelos num maremoto de escândalos.

Somente alguém totalmente irresponsável ou com desmedida ganância pelo poder haveria de desejar para a nação um governo social e economicamente desastroso. Não é e nunca foi meu caso. Não escrevo estas linhas para desconsiderar o que andou bem no governo do presidente Lula. Mas não posso deixar de expor o que vi – e como vi! – de sórdido e prejudicial em seu modo de fazer política.

Para concluir, temperando os exageros de uma publicidade que custou ao país, na média dos últimos três anos, R$ 900 milhões por ano, considero sensata a observação a seguir. Quando Lula assumiu, em 2003, os principais problemas do Brasil situavam-se nas áreas de Educação, Saúde e Segurança Pública. Passados oito anos, haverá quem tenha coragem de afirmar que não persistem os problemas da Educação e que não se agravaram os da Saúde e da Segurança Pública? Haverá 87% de brasileiros dispostos a se declarar satisfeitos com a situação nacional nesses três pilares de uma vida social digna?