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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

2015: ativo no Estadao - Paulo Roberto de Almeida

Em 2015, eu ainda me encontrava fora do Brasil, lamentando a continuidade do governo da organização mafiosa, que comandava aos destinos do país desde 2003, mas que duraria apenas um ano mais, até cair de podre, em meados de 2016.
    Naquele ano, fui especialmente ativo para demonstrar minha contrariedade com os rumos que as coisas estavam tomando no Brasil, publicando alguns artigos no Estadão.
   Relembro alguns, agora...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29 de agosto de 2018

1185. “A persistirem os sintomas, procure um médico...”, O Estado de S. Paulo, em 5/08/2015  (http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-persistirem-os-sintomas--procure-um-medico,1738236); reproduzido no blog Diplomatizzando (2/08/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/brasil-doenca-do-lulo-petismo-uma.html); disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/982274388502678e em 5/08/2015; link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/984096304987153). Relação de Originais n. 2850.

1184. “O Estado fascista do Brasil”, jornal O Estado de S. Paulo (28/07/2015, p. 2; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-estado-fascista--do-brasil,1733071); Site do Instituto Millenium (14/07/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/estado-fascista-brasil/); Colunas Dom Total (17/07/2015; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=5232); reproduzido no blog Diplomatizzando (27/07/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/07/o-estado-fascista-do-brasil-paulo.html). Relação de Originais n. 2842.

1208. “2015: o ano em que o Brasil despencou”, O Estado de S. Paulo (seção Espaço Aberto, 28/12/2015, link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,2015--o-ano-em-que-o--brasil-despencou,10000005802). Relação de Originais n. 2904.

1160. “Miséria do Capital no Século 21”, Boletim Mundorama (n. 19, janeiro de 2015; ISSN: 2175-2052; links:http://wp.me/p79nz-3ZG ou http://mundorama.net/2015/01/31/miseria-do-capital-no-seculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-roberto-de-almeida/); no site do Instituto Millenium (3/02/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/misria-capital-sculo-21/) e em Dom Total (5/02/2015, link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4823); publicado em versão resumida no jornal O Estado de S. Paulo(10/02/2015; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-no-seculo-21-imp-,1632135). Relação de Originais n. 2726.

Reproduzo alguns desses artigos:

1185. “A persistirem os sintomas, procure um médico...”, O Estado de S. Paulo, em 5/08/2015  (http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-persistirem-os-sintomas--procure-um-medico,1738236); reproduzido no blog Diplomatizzando(2/08/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/brasil-doenca-do-lulo-petismo-uma.html); disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/982274388502678e em 5/08/2015; link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/984096304987153). Relação de Originais n. 2850.

Brasil: a doenca do lulo-petismo, uma coceira tremenda (mas se pode eliminar) - Paulo Roberto de Almeida

A persistirem os sintomas do lulo-petismo, procure um médico...
Paulo Roberto de Almeida
A sociedade brasileira está emergindo de um longo pesadelo: o lulo-petismo. Essa variante tupiniquim de um persistente mal latino-americano, a crença ingênua nas virtudes sociais supostamente benéficas do populismo demagógico e do salvacionismo redentor – ambos irracionais, mas possuindo poderosos efeitos eleitorais –, tinha sido quase elevado à categoria de doutrina política, quando não de projeto nacional, por um desses gramscianos de academia conquistados à causa dos companheiros. Entretanto, ele revelou-se, ao fim e ao cabo, uma enfermidade passageira no cenário político, uma espécie de doença da pele, que coça bastante durante certo tempo, mas que acaba sendo eficazmente combatida desde que aplicada a pomada correta: a consciência cidadã.
O lulo-petismo foi a nossa doença de pele, que persistiu enquanto as reais desigualdades da sociedade brasileira estiveram falsamente identificadas a supostas “falhas de mercado”, ou a maldades do “neoliberalismo”, duas “deformações do capitalismo” que poderiam ser superadas com “distribuição de renda” e políticas sociais “inclusivas”. Foi assim que mergulhamos na década e meia de medidas ativas em prol da desconcentração de renda e da correção das tais “falhas de mercado”, pelas mãos (e pés) de um Estado comprometido com a “justiça social”. Os verdadeiros efeitos – que eu chamo de crimes econômicos – só se tornaram explícitos depois da aplicação dos exercícios de engenharia econômica da tropa no poder, a tal de “nova matriz econômica”, com o seu séquito de consequências devastadoras sobre a economia.
Os historiadores econômicos podem até chamar estes anos negros do lulo-petismo de “A Grande Recessão”, que se reflete no recuo geral de todos os indicadores econômicos e sociais – estagnação ou crescimento negativo, alta da inflação, do desemprego, déficits ampliados, dívida acrescida, perda da competitividade externa e interna, forte desvalorização cambial, desinvestimentos –, mas o fato é que o declínio econômico está apenas começando. Teremos pela frente anos de penoso reajuste para, finalmente, voltar a uma situação parecida com a que estávamos, digamos, na segunda metade dos anos 1990, ou no início dos anos 1980. Esses são os efeitos catastróficos dos anos persistentemente equivocados do lulo-petismo econômico. Estaríamos mesmo no início de uma grande recessão?
Não descarto o prolongamento de uma fase realmente dura na área econômica, uma experiência poucas vezes registrada nos anais da vida nacional, que conheceu taxas de crescimento relativamente satisfatórias, a despeito dos anos de crise e de aceleração inflacionária, das trocas de moedas e dos “voos de galinha”, depois de tentativas mal conduzidas de estabilização. Que ocorra agora uma Grande Recessão, essa é uma marca histórica que ficará para sempre identificada com a esquizofrenia econômica do lulo-petismo, um resultado exemplar do ponto de vista daqueles que pretendiam corrigir as tais falhas de mercado por meio de unguentos e poções mágicas que só revelam a extraordinária ingenuidade econômica (ou seria estupidez?) dos seus aprendizes de feiticeiros, esses que eu chamo de “keynesianos de botequim”. 
O que ocorreu, na verdade, desde os primeiros anos, ditos gloriosos, do lulo-petismo, foi uma Grande Destruição, em todos os setores, um desmantelamento geral das instituições, da organização política e da ética pública. Ela começou cedo, pelo aparelhamento das agências públicas, dos ministérios (com a possível exceção do Itamaraty), dos demais órgãos de Estado, pelos “servidores” do partido neobolchevique, não exatamente os gramscianos de academia (eles não são muito confiáveis), mas os militantes de chinelo de dedo; estes são os membros obedientes e disciplinados do partido leninista, que repetem de forma canina os ditames do comitê central – vale dizer, do chefe da tropa e da pequena clique de super-apparatchiks – e que pagam o dízimo mensal costumeiro, assim como uma boa parcela (30%?) dos subsídios associados aos cargos ganhos na máquina do Estado. 
A Grande Destruição seguiu pelo ativismo exacerbado das “políticas públicas”, estendendo-se em todas as direções e dimensões da vida nacional, criando uma clientela de beneficiários planejados – o curral eleitoral do Bolsa Família – e uma outra de ricos beneficiários mais planejados ainda. Quem são, finamente, os financiadores do partido hegemônico? Eles são industriais e banqueiros, pagadores compulsórios de “doações legais ao partido”, com parte das rendas asseguradas pela mesma máquina do Estado: empréstimos generosos por parte do BNDES, proteção tarifária, linhas de crédito consignado, juros da dívida pública e várias outras prebendas setoriais. 
Tudo isso se refletiu no crescimento dos gastos do Estado além e acima do crescimento do PIB e da produtividade, excedendo a capacidade contributiva do setor produtivo da economia – daí o esforço sempre crescente de extração fiscal por parte desse órgão fascista por excelência que é a Receita Federal –, tudo em detrimento dos investimentos produtivos. Não há dúvida quanto a isso: a Grande Recessão, que está recém começando, foi precedida pela grande devastação efetuada pelo lulo-petismo econômico. E não se enganem: o pior ainda está por vir.
É por isso que eu chamo o período lulo-petista de “A Grande Destruição”, um mal de pele que se incrustou em todos os poros da sociedade brasileira. Esta se deu conta, finalmente, das fontes do mal, e se prepara para expulsar pelas vias legais os sabotadores da economia e os fraudadores da moralidade. As causas do mal de pele já foram identificadas; as prescrições estão a caminho, e esperamos que rapidamente.
Mas, a persistirem os sintomas do mal, recorra-se aos cuidados de um médico. Os bons médicos, nas democracias, costumam receitar a cura constitucional: na hipótese de mal crônico, a prescrição é sempre a via eleitoral. Em caso de ataques agudos, ou de câncer ameaçando metástase – como um procurador já alertou –, a solução tem de ser mais drástica, para se extirpar o mal em toda a sua extensão. Nesses casos, o Congresso e os tribunais superiores são chamados a operar o paciente. Depois, no pós-operatório, economistas sensatos costumam ser bons enfermeiros, desde que eles não tenham sido contaminados pelo keynesianismo de botequim que sempre caracterizou os economistas aloprados do lulo-petismo. Adiante, minha gente: mais um pouco e acabamos com a coceira...
Paulo Roberto de Almeida
[Filadélfia, de agosto de 2015, 3 p.]

1184. “O Estado fascista do Brasil”, jornal O Estado de S. Paulo(28/07/2015, p. 2; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-estado-fascista--do-brasil,1733071); Site do Instituto Millenium (14/07/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/estado-fascista-brasil/); Colunas Dom Total (17/07/2015; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=5232); reproduzido no blog Diplomatizzando(27/07/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/07/o-estado-fascista-do-brasil-paulo.html). Relação de Originais n. 2842.

O Estado Fascista do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

O Estado Fascista do Brasil

 Colunas Dom Total, 16/07/2015

O fascismo, reduzido à sua expressão mais simples, é quando o Estado manda em você, e você sequer tem consciência disso, uma vez que tal interação passa quase despercebida, já foi embutida pela sociedade. O contrário do fascismo é, obviamente, uma sociedade libertária, onde cada um usa de seu livre arbítrio para guiar-se na vida e nas atividades cotidianas. Tomados nesse entendimento ideal-típico mais simples possível, é claro que ambos os conceitos não expressam nenhuma sociedade concreta, nossa contemporânea, mas eles podem ajudar a situar os casos nacionais num ou noutro extremo desse espectro que leva do fascismo explícito ao libertarianismo utópico. Em outros termos, uma sociedade será tanto mais fascista, ou tendencialmente libertária, quando os comportamentos típicos dos indivíduos se aproximarem do inferno dirigista a cargo do Estado, ou da mais plena liberdade pessoal, sem interferência estatal.

Sem adentrar na consideração de abstrações sociológicas, pode-se tentar extrair exemplos de como as sociedades se situam em torno de um ou outro modelo de organização social. Tomemos os casos típicos dos Estados Unidos e do Brasil, e mesmo, numa configuração mais ampla, o das sociedades anglo-saxãs, de um lado, e o das sociedades latino-americanas, de outro, estas uma extensão do molde ibérico original. Qualquer pessoa sensata reconheceria que os EUA se aproximam bem mais do modelo libertário do que modelo fascista, e que, inversamente, o Brasil é um típico caso de corporatismo, ou seja, um clássico modelo tendencialmente fascista.

Exemplos abundam, num e noutro sentido. Vou tentar ficar em casos práticos, da vida diária, e que portanto influenciam o modo de vida, para melhor ou para pior, de milhões de pessoas. Sabe-se, por exemplo, que normas industriais são padrões adotados pelas indústrias para facilitar o uso e a disseminação de bens de consumo durável que possam gozar de ampla aceitação entre os consumidores, como uma tomada elétrica de parede, utilizável indistintamente para os mais diferentes aparelhos. As normas são adotadas progressivamente e voluntariamente pelas indústrias, e passam a ser, a partir de certa extensão de aceitação e uso, um componente da vida diária ao qual sequer se presta atenção. Já as regulações são típicos decretos estatais que impõem, por via de um instrumento legislativo, o uso exclusivo e obrigatório de um determinado padrão, estabelecido burocraticamente, e não por livre disposição das indústrias.

No caso das já citadas tomadas elétricas, é sabido, também, que o Brasil, depois de conviver durante décadas com a mais simples tomada, a de dois furos redondos (de acordo com normas industriais de corrente elétrica estabelecidas naturalmente ao longo de toda a história da indústria elétrica), passou a adotar a famosa tomada de três pinos, nas quais o terceiro se referia ao pino de segurança (ou de aterramento), e que os dois redondos originais foram complementados por fissuras verticais chatas, aproximando-se do padrão típico em uso universal nos EUA.

Pois bem, essa norma adaptada ao Brasil pelo seu caráter praticamente universal, foi alterada anos atrás pela imposição de um novo padrão, uma regulação absolutamente exótica determinada pelo Inmetro como de uso compulsório pelas indústrias consistindo de três pinos redondos em linha, mas com o central em superposição, formando um pequeno arco. Os leitores já pararam para pensar nos custos imensos, impossíveis de serem mensurados, mas se situando na casa das centenas de bilhões de reais (traduzidos nos orçamentos familiares e empresarias de 200 milhões de brasileiros e de centenas de milhares de empresas), que resultaram dessa imposição absolutamente fascista do Estado brasileiro? A totalidade da população sofreu com a medida, que, por outro lado, deu benefícios e lucros fantásticos, até hoje, às poucas dezenas de milhares de empresas que se dedicam à fabricação de tomadas de aparelhos e de parede (e de adaptadores, claro).

Eu poderia multiplicar os exemplos do mesmo tipo, como o fato de, por determinação da Anvisa, as farmácias terem sido proibidas de comercializar produtos típicos de padaria, como chicletes e refrigerantes. Qual grave atentado à saúde dos consumidores adviria da liberdade concedida às farmácias de comercializarem quaisquer produtos que são normalmente encontrados nas padarias? Penso, penso, e não encontro nenhum motivo sensato para justificar a medida, a não ser o comportamento tipicamente fascista dos burocratas da Anvisa. Que tal o comportamento dos burocratas da Ancine, impondo cotas obrigatórias de exibição de filmes nacionais, se substituindo autoritariamente às preferências dos frequentadores das salas de cinema? Para mim, isso é típico do fascismo ambiente no Brasil.

A diferença básica entre as sociedades anglo-saxãs e as ibéricas é que, nas primeiras tudo o que não estiver formalmente proibido na legislação está ipso facto liberado para a iniciativa privada dos indivíduos, ao passo que nas segundas tudo o que não estiver devidamente autorizado pelo poder público está automaticamente proibido aos particulares. Esta é a diferença entre a liberdade e o fascismo. Pense nisso, caro leitor, na próxima vez que for à farmácia, usar algum aparelho elétrico ou sair para ir ao cinema. Veja o que está acontecendo com a plataforma Uber, uma simples atualização tecnológica das relações contratuais entre motoristas e passageiros. Lamente viver em um Estado fascista.

1208. “2015: o ano em que o Brasil despencou”, O Estado de S. Paulo(seção Espaço Aberto, 28/12/2015, link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,2015--o-ano-em-que-o--brasil-despencou,10000005802). Relação de Originais n. 2904.

2015, o ano em que o Brasil despencou

O ano de 2015 não vai deixar saudades, muitos economistas dirão nestes últimos dias do ano. Ao que os astrólogos políticos acrescentarão: “Se vocês gostaram de 2015, esperem para ver como vai ser 2016...”. Os mais afoitos dos adivinhos farão previsões ainda mais sombrias para o ano que pronto se inicia, enquanto os economistas tentarão ser mais circunspectos, mas eles sempre erram em 10 de suas 12 previsões de crises, não é mesmo? Não pretendendo ser astrólogo político nem adivinho econômico, limito-me, do meu lado, a resumir o que me pareceu serem as principais características deste 2015, o ano horribilis em que o Brasil despencou espetacularmente.

Começamos por uma primeira ironia fraudulenta: o ministro da “nova matriz econômica”, que havia sido demitido mais de três meses antes, pela chefe da mesma matriz, e por meio da imprensa, continuou fazendo previsões impossíveis até o primeiro dia do ano, quando finalmente entregou o cargo ao seu sucessor, suposto representante dos Chicago-boys, mas que se revelou um corajoso partidário de aumento de impostos e de tímidos cortes seletivos nas despesas públicas, sem jamais tocar no gigantesco corpo balofo, obeso e disfuncional do Estado companheiro. O principal personagem do ano foi justamente este, o Estado companheiro, administrado por um governo idem, composto obviamente por companheiros engajados em sua manutenção dispendiosa (obviamente que apenas para a sociedade, não para eles).
Como diriam os americanos, o ano começou por um bing e terminou por um bang. O bing foi a composição esquizofrênica do governo, metade comprometida com gastos continuados e uma pequena, modesta parte tentando consertar os equívocos cometidos durante anos de gestão amadora, na verdade irracional, na política econômica (em várias outras políticas setoriais também). O bang é, obviamente, representado pelo pedido constitucional de impedimento da presidente, por crimes continuados na gestão fiscal – gestão talvez não seja o termo adequado, consagrando-se, ao longo do período, o mais vistoso conceito de “pedaladas” (em outros setores também).
Até o início do ano, todas as previsões do governo relativas aos principais indicadores econômicos pecavam por otimismo excessivo. Mas também os economistas independentes pecaram por escasso realismo em suas previsões. Todos eles foram duramente desmentidos pela mais cruel deterioração desses mesmos indicadores nunca antes vista desde crises longínquas. As agências de classificação de risco também se mostraram surpreendentemente lenientes em face do claro itinerário do Brasil em direção ao que desde já pode ser chamado de A Grande Destruição lulopetista.
Registre-se que essa destruição não foi o resultado de um mandato apenas. Parafraseando Nelson Rodrigues, podemos dizer que desastres não se improvisam: eles são o resultado de anos de acúmulo de erros, equívocos, trapalhadas, bobagens mais ou menos intencionais, enfim, daquilo que eu classifico como sendo os crimes econômicos do lulopetismo. Atenção: os crimes econômicos companheiros não o são exatamente no sentido do Código Penal, embora muitas vezes com eles se confundam; foi tal o empenho em cometê-los que se pode perguntar se muitos desses equívocos não foram deliberadamente planejados, o resultado de ações cientificamente calculadas, como diria o Chapolim Colorado.
A “compra” da refinaria de Pasadena, por exemplo, vista em retrospecto, quem poderia dizer, hoje, que se tratou apenas de um “erro de gestão”, ou seja, de um “cálculo mal feito”? Minha interpretação é a de que o “negócio” foi um sucesso, conduzido para produzir exatamente aqueles resultados, que são os que se conhecem atualmente em termos de movimentações bancárias entre vários paraísos fiscais no exterior. Enfim, um “sucesso” companheiro, até que um anônimo funcionário da Petrobrás – a ser homenageado na galeria dos “heróis desconhecidos” – chamou a atenção de membros do Ministério Público Federal e da Polícia Federal para certas “peculiaridades” do grande negócio.
As consequências foram aquelas que se viram: a Petrobrás, que chegou a valer mais de US$ 300 bilhões e figurar entre as sete primeiras companhias do setor, afundou-se numa crise que deveria ser terminal, se não fosse estatal (a preferida dos companheiros, que a transformaram numa “vaca petrolífera” continuamente ordenhada à exaustão). As contas públicas produziram um outro mergulho, de quase dez pontos do PIB, para um abismo cujo fundo ainda não se conhece exatamente, pois uma das especialidades companheiras foi justamente a maquiagem contábil, que eles já vinham praticando desde muitos anos entre o Tesouro e os bancos estatais, entre eles o BNDES, uma caixa-preta ainda não aberta pelos órgãos de controle. O ano foi tão horrível que aposto como a maioria dos leitores já se esqueceu desta coisa bizarra chamada Fundo Soberano do Brasil, uma invenção satânica dos mesmos autores da “nova matriz econômica” – na verdade, ele a precede de alguns anos – e que desapareceu de forma inglória, depois de deixar um buraco provavelmente superior a R$ 18 bilhões.
Uma contabilidade exata dos montantes envolvidos nos crimes econômicos do lulopetismo é singularmente difícil, pois, além dos custos estritamente monetários, isto é, recursos orçamentários dilapidados em projetos mal concebidos e mal implementados – talvez de propósito –, precisaríamos computar também o que os economistas chamam de custo-oportunidade, tudo o que se perdeu ao não se fazerem investimentos corretos, ou simplesmente sensatos. Quando é que economistas curiosos, procuradores atentos ou jornalistas investigativos avaliarão as imensas perdas causadas pelos crimes econômicos do lulopetismo? Já não é sem tempo...
É diplomata e professor universitário.
Site: www.pralmeida.org / Blog: diplomatizzando.blogspot.com 


1160. “Miséria do Capital no Século 21”, Boletim Mundorama (n. 19, janeiro de 2015; ISSN: 2175-2052; links:http://wp.me/p79nz-3ZGouhttp://mundorama.net/2015/01/31/miseria-do-capital-no-seculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-roberto-de-almeida/); no site do Instituto Millenium (3/02/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/misria-capital-sculo-21/) e em Dom Total (5/02/2015, link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4823); publicado em versão resumida no jornal O Estado de S. Paulo(10/02/2015; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-no-seculo-21-imp-,1632135). Relação de Originais n. 2726.

Miséria do capital no século 21

O capital viaja bastante pelo mundo, mas não existe uma autoridade global ou uma única fonte de regulação dos fluxos e estoques de capital. Os Estados nacionais mantêm jurisdições próprias, com regras diferentes para o tratamento desses fluxos e estoques, o que dificulta a concepção de um instrumento uniforme e universalmente aplicável de taxação de renda e riqueza. A esse respeito se sobrepõem diferentes concepções acerca de como devem ser tratadas (ou taxadas) as diferentes formas de renda e riqueza.

As filosofias sobre isso podem ser divididas, grosso modo, entre o liberalismo, que entende que a criação de renda e riqueza deve ficar sob a competência dos indivíduos, com um mínimo de interferência dos Estados, e o "marxismo" (ou variantes do socialismo), que acha que os Estados devem regular as rendas do capital em benefício de todos, transferindo fluxos e estoques de renda segundo critérios fixados por políticos e burocratas. Existem êmulos de Marx para todos os gostos e para todas as finalidades, alguns deles - pode ser o caso do francês Thomas Piketty e do seu livro O Capital no Século 21 -, até mais espertos do que os demais, aproveitando-se da adesão de muitos à teoria do valor-trabalho para aumentar o seu próprio capital à custa dos crentes que acham que o capital só pode aumentar à custa do trabalho.
Os êmulos de Marx acham que os Estados devem taxar mais as rendas do capital para distribuir entre os que só possuem rendas do trabalho, o que supostamente tornaria o mundo mais igualitário, ou menos desigual. Mas essa recomendação marxista não deriva de nenhuma análise econômica sobre a criação de renda e riqueza, sendo apenas e tão somente uma recomendação política, baseada numa filosofia do igualitarismo. Essa filosofia orienta os Estados a avançarem sobre o capital, ou seja, sobre o estoque de riqueza das poucas pessoas muito ricas (que por definição são sempre em menor número), para distribuí-la entre os que dispõem apenas dos fluxos de pagamentos derivados do seu trabalho. Ela tem tido algum sucesso ao redor do mundo, uma vez que as pessoas dependendo do seu trabalho são sempre em maior número, formando a vasta maioria dos votantes nas modernas democracias de mercado.
Tal tipo de política aproximaria a sociedade do modelo recomendado pelos marxistas, que é aquele em que não existiria renda do capital, nem riqueza acumulada alguma, na qual todas as rendas do trabalho seriam igualitária e equitativamente divididas pelo Estado. Não são necessárias grandes digressões, com base em equações econômicas ou em séries estatísticas históricas de renda e de riqueza, para constatar que esse tipo de sociedade não funcionou e que os únicos exemplos reais na História - o socialismo de tipo soviético e seus êmulos ao redor do mundo - foram notórios fracassos econômicos na criação de renda e riqueza, só conseguindo manter-se à custa de enorme repressão política, que produziu grande infelicidade humana (total falta de liberdade e até mesmo algumas dezenas de milhões de mortos).
Um igualitarismo mais ameno é o socialismo em vigor nas democracias de mercado da Europa, com contrafações no restante do mundo. Sabe-se que o crescimento foi maior nos países onde foi menor a apropriação de fluxos e estoques de renda e riqueza pelos Estados. Não se trata aqui de opinião ou filosofia política, mas de uma constatação simples, a partir de uma correlação entre níveis de carga fiscal dos países e as taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB) per capita, independentemente da distribuição social dessas formas de riqueza. Maior taxação, menor crescimento, ponto.
Piketty, juntando todas as formas de capital no mesmo saco, acaba de "provar" que a desigualdade vem aumentando. Ele também acha que governos devem taxar mais o patrimônio e as rendas dos muito ricos. O problema, para ele, é a existência de poucas pessoas muito ricas - e que tendem a enriquecer cada vez mais -, não a existência de um imenso contingente de pobres. Independentemente dos problemas de agregação de dados e de processamento da informação estatística, inevitáveis dado o amplo espectro de valores e a grande dispersão cronológica com os quais Piketty trabalhou, o que mais parece contestável em sua tese é o argumento de que a riqueza tende a caminhar mais rapidamente do que o crescimento econômico das economias de mercado.
Tal tese - que, em sua formulação sintética, tende a assumir ares de grande síntese genial, um pouco ao estilo da famosa equação einsteiniana E=mc2 - parece contradizer a lógica formal dos processos econômicos e a própria evolução das sociedades humanas, cada vez mais sofisticadas intelectualmente, com amplo acesso à educação superior de amplas camadas de indivíduos. Pode ser que patrimônio e a riqueza, de forma geral, passem por processos temporários e parciais de acumulação preferencial e de concentração em certos grupos e indivíduos, em geral vinculados a atividades financeiras e comerciais; mas daí a transformar essa constatação numa nova "lei geral da acumulação capitalista no século 21", como pretende Piketty, vai uma grande distância. Assim como ocorreu com as teses de Marx, essa também vai ser desmentida pela evolução do capitalismo.
Piketty prefere empobrecer os ricos a enriquecer os pobres. Pela experiência visual que já tivemos no século 20, esse tipo de empreendimento pode ser mais um desastre econômico e social à espreita do que propriamente uma forma de criar o verdadeiro capital do século 21, baseado no conhecimento. Distribuir o dinheiro dos ricos entre os pobres vai tornar as sociedades mais ricas? Duvidoso que ocorra, a menos de dirigir todos os recursos para aumentar e melhorar o capital social: conhecimento.
*Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor universitário (www.pralmeida.org e diplomatizzando.blogspot.com) 


terça-feira, 17 de julho de 2018

Forum Estadao: A Reconstrucao do Brasil - Jose Fucs, SP 25/07

No próximo dia 25/7, quarta-feira, o Grupo Estado realizará a quinta rodada do Fórum Estadão A Reconstrução do Brasil, cujo objetivo é debater os grandes desafios do País neste ano eleitoral decisivo para o nosso futuro.

Serão dois painéis – “O combate à corrupção” e “Alternativas à segurança pública” -- com a participação do juiz Sergio Moro, do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, do advogado Antonio Claudio Mariz de Oliveira e de outras personalidades envolvidas com os temas em debate (confira a programação abaixo).


Forte abraço,
Fucs

Quer Saber? Estadão

José Fucs
Repórter Especial O Estado de S. Paulo 
Av. Eng. Caetano Álvares, 55
6º andar - São Paulo - SP - 02598-900 

jose.fucs@estadao.com +55 (11) 3856-2652 | 9-9991-3271 (cel.)


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Politica externa, sua relevancia - Celso Lafer (OESP, 18/02/2018)

Política externa, sua relevância

É preciso saber caminhar na complexidade atual para o País não perder o controle de seu destino

Celso Lafer
O Estado de S. Paulo, 18/02/2018

A política externa é uma política pública. Pode ser retratada como um processo de tradução qualitativa e quantitativa de necessidades internas em possibilidades externas. Esse processo tem suas dificuldades e seus desafios analíticos, pois é preciso identificar quais são, em determinada conjuntura de um país, as suas necessidades prioritárias e quais são as possibilidades externas de torná-las efetivas. A experiência diplomática também aconselha avaliar qual é o impacto externo da afirmação de necessidades internas. É o que cabe lembrar a propósito do America First de Trump e da política nuclear da Coreia do Norte. 
Na análise das necessidades internas, vale a pena destacar que a área das relações internacionais não é como um campo de futebol, onde o claro objetivo dos dois times em confronto é, dentro de regras estabelecidas, ganhar o jogo num tempo e num espaço definido. Não é também, num grau muito maior de dificuldade, como a área da economia, no âmbito da qual o tema central é a escassez e a discussão transita pelos meios de superá-la. Os objetivos das relações internacionais, definidores das necessidades internas, não são unívocos. São plurívocos e frequentemente esquivos, podendo resultar da maior ou menor atribuição de peso à segurança, ao desenvolvimento, ao prestígio, à propagação de ideias, à cooperação internacional, à agenda normativa da ordem internacional, aos desafios da sustentabilidade do meio ambiente. 
A segurança é sempre um objetivo relevante de política externa, pois está voltada para, no limite, assegurar a manutenção de um Estado como um ator independente num sistema internacional que vive à sombra da guerra. Esta, como se sabe, é um camaleão que assume sempre novas formas. É compreensível que a Coreia do Sul e o Japão, diante do aumento dos riscos de um conflito nuclear na região, atribuam à segurança a dimensão de uma imperativa necessidade interna muito superior, por exemplo, à relevância do tema para a política externa da Suíça. As circunstâncias da inserção internacional de um país são, por isso mesmo, um dos dados dos distintos pesos atribuídos aos objetivos da política externa. 
A avaliação de como traduzir necessidades internas em possibilidades externas passa por uma adequada compreensão das características de funcionamento do sistema internacional e de suas mudanças, e nesse contexto, para recorrer a uma formulação de Hélio Jaguaribe, da latitude de suas condições de permissibilidade, vale dizer, do juízo diplomático do que está ou não está, em distintas conjunturas, ao alcance dos alvos da política externa de um ator internacional. Mudar a geografia econômica do mundo, por exemplo, foi uma das aspirações da política externa do presidente Lula, que não estava ao alcance do Brasil. Era um objetivo inconsequente a serviço da sôfrega busca de prestígio internacional do lulopetismo. 
O desenvolvimento do espaço nacional tem sido o objetivo recorrente da política externa brasileira desde o deslinde, no início do século 20, da delimitação das fronteiras nacionais por Rio Branco. Ilustro com dois distintos protótipos. 
A política externa de JK, voltada no plano interno para alcançar os “50 anos em 5”, corporifica nas condições dos anos 1950 e das brechas na bipolaridade Leste-Oeste uma ação que, conjugando diplomacia presidencial, uma renovada diplomacia econômica e prestígio, logrou traduzir a necessidade interna do desenvolvimento em possibilidades externas. 
O presidente FHC, levando em conta as transformações do sistema internacional e o processo de globalização, buscou a autonomia pela participação como caminho para o desenvolvimento. Elevou o patamar de presença do Brasil no mundo, conferindo locus standi ao País, associando coerentemente o externo com o interno das práticas democráticas, da estabilidade da moeda, da responsabilidade fiscal, da maior abertura da economia ao exterior, do respeito aos direitos humanos, da preocupação com o meio ambiente. 
Faço estas considerações para observar que o Brasil é um país de escala continental, inserido na América do Sul, mais distante, por isso mesmo, na sua História, dos grandes focos de tensão da vida internacional. Por isso, menos atento ao mundo, como se vê no debate público, mas que, no entanto, necessita do mundo para desenvolver-se. Como diria Hannah Arendt, somos do mundo e não estamos apenas no mundo, o que exige, para o juízo diplomático de traduzir necessidades internas em possibilidades externas, saber orientar-se no mundo. 
Esse saber não é fácil, nem pode valer-se de fórmulas feitas, dadas as características do sistema internacional contemporâneo. Este tem entre as suas notas, inter alia, uma multipolaridade que desborda das instituições multilaterais; uma balcanização que leva à fragmentação do espaço mundial, que se dissolve e se reestrutura em torno de grandes polos regionais, ao mesmo tempo interdependentes e rivais; disrupções graves de que é um grande exemplo a massa dos refugiados; uma proliferação da violência que a onipresença do terrorismo patenteia; o inédito impacto do ciberespaço e das novas tecnologias na vida das pessoas; a sublevação dos particularismos, dos fundamentalismos e a geografia centrífuga das paixões que acarretam; a diversidade crescente da população mundial. 
É nesse contexto que se torna mais intrincado o desafio diplomático de identificar interesses comuns e compartilháveis e lidar com a Torre de Babel da heterogeneidade contemporânea. É por essa razão que, para levar a bom termo a interação necessidades internas-possibilidades externas, é preciso saber caminhar na complexidade contemporânea para o País não perder o controle de seu destino.
É assunto que merece e precisa estar presente no debate político da eleição presidencial deste ano. 

* PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002).

sábado, 15 de abril de 2017

Roberto Campos, cem anos: meu artigo no Estadao - Paulo Roberto de Almeida

Antecipando sobre o lançamento do livro, cuja informação segue abaixo, transcrevo meu artigo de opinião sendo publicado neste sábado no Estadão.




Roberto Campos, 100 anos: sempre atual

Paulo Roberto de Almeida
 O Estado de S. Paulo, 15 de abril de 2017

Em 17 de abril, Roberto Campos estaria completando cem anos. Sua vida pública estende-se do início de 1939, quando toma posse como diplomata, na primeira turma em concurso organizado pelo DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público – até o final do século, quando ele se despede da Câmara dos Deputados, ao final de dois mandatos como representante de Mato Grosso e do Rio de Janeiro, e de um mandato inicial como senador pelo Mato Grosso, a partir de 1983. Campos foi um tecnocrata esclarecido, o mais iluminista de nossos intelectuais, um estadista exemplar, embora frustrado em suas inúmeras tentativas de reformar o Brasil, de retirá-lo de uma pobreza evitável para colocá-lo numa situação de prosperidade possível, como argumentou diversas vezes ao longo de meio século.
Minha interação com o grande brasileiro ocorreu apenas duas vezes, de forma direta, e intensamente, de forma indireta, ao longo de quase 50 anos, quando passei de um suposto opositor ideológico do então “serviçal da ditadura militar” – enquanto ministro do Planejamento do governo Castello Branco, ao defender ele o Programa de Ação Econômica do Governo, em uma faculdade de São Paulo – a um admirador de sua lógica impecável, na defesa de políticas econômicas racionais, quando o visitei na Câmara dos Deputados, em meados dos anos 1990, cinco anos antes de sua morte, em 2001. Nessa época, eu já tinha lido a maior parte de sua produção jornalística, os artigos semanais que ele publicou ao longo de mais de 50 anos nos grandes jornais do Rio e de São Paulo. Nos últimos meses, dediquei-me a ler seus ensaios mais eruditos, artigos de corte acadêmico e de análise econômica empiricamente embasada, a começar por sua tese de mestrado de 1947 – praticamente uma tese de doutorado, na opinião do grande economista austríaco Joseph Schumpeter – sobre flutuações e ciclos econômicos, defendida na George Washington University, quando ele servia na embaixada em Washington, em sua primeira remoção ao exterior pelo Itamaraty.
Como resultado dessa revisão completa de toda a sua obra escrita – e de diversas entrevistas gravadas nos meios de comunicação – pude compor metade de um livro organizado por mim, O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris), que reúne ainda contribuições de dez outros colaboradores que se dedicaram a discorrer sobre as diversas facetas de um intelectual completo, provavelmente o maior do Brasil na segunda metade do século XX. Nele, o professor de história da UnB e assessor legislativo Antonio José Barbosa dedica-se por exemplo a examinar seu perfil parlamentar, a última etapa de uma vida inteiramente dedicada a tentar fazer do Brasil um país menos injusto, uma economia mais desenvolvida, uma nação mais integrada na grande interdependência global. O jovem historiador Rogério de Souza Farias examina a participação de Roberto Campos na comissão de reforma institucional do Itamaraty, na primeira metade dos anos 1950, quando ele tenta aplicar alguns dos procedimentos seguidos pelo diplomata americano George Kennan, então responsável pela área de planejamento político no Departamento de Estado. Ricardo Vélez-Rodríguez, outro colaborador, focaliza o patrimonialismo na visão de Roberto Campos, um dos cinco “ismos” negativos, junto com o protecionismo, o nacionalismo, o corporatismo e o estatismo, a comprometer o desenvolvimento sustentado do Brasil.
Em todas as demais contribuições a essa obra – de Antonio Paim, de Ives Gandra Martins, de Reginaldo Teixeira Perez, de Carlos Henrique Cardim, de Roberto Castello Branco, Rubem Freitas Novaes e Paulo Kramer, que traça um paralelo entre Campos e Raymond Aron – transparece a profunda adequação dos diagnósticos e das prescrições do economista e diplomata à atualidade dos problemas brasileiros, de uma maneira até angustiante, ao constatarmos que tudo o que ele dizia, desde meados dos anos 1950 até seus últimos anos, aplica-se quase que de maneira perfeita aos desafios que enfrentam os dirigentes do governo Temer, depois da Grande Destruição produzida pelas irresponsáveis administrações lulopetistas. Campos, que teve sobre Raymond Aron a sorte de ver suas previsões sobre a inviabilidade do socialismo enquanto regime econômico e político confirmadas pelo veredito da história, teve a duvidosa “felicidade” de não assistir ao desmantelamento da frágil estabilidade criada pelo Plano Real sob os golpes combinados da inépcia e da corrupção dos governos lulopetistas.
No dia do centenário de Roberto Campos, um outro livro, Lanterna na Proa, organizado por Paulo Rabello de Castro e Ives Gandra Martins (Editora Resistência Cultural), também será lançado, trazendo as contribuições de mais de sessenta autores sobre igual número de aspectos da vida e da obra do diplomata que assistiu à criação da ordem econômica contemporânea, em Bretton Woods, em 1944 (objeto de um dos meus textos), que participou do exercício pioneiro de planejamento econômico no âmbito da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que dirigiu e presidiu ao BNDE (outro dos meus capítulos no mesmo livro) e que exerceu, com Octávio Gouvêa de Bulhões, a liderança do maior esforço de reforma e de modernização da economia brasileira, em meados dos anos 1960. Os dois livros, diferentes em estilo mas animados do mesmo espírito de recuperação dos argumentos pertinentes de Campos em prol da superação das diversas crises econômicas a que assistiu desde a Segunda Guerra, trazem detalhes de como ele formulou suas recomendações de políticas públicas sem qualquer vezo ideológico, ou obsessão com a austeridade, apenas animado por sua postura eclética e abertura aos dados da realidade.
Aos cem anos, Roberto Campos ainda vive. Vale relê-lo...

[Brasília, 9 de abril de 2017]

domingo, 11 de setembro de 2016

Caderno especial do Estado sobre as reformas - José Fucs


160911EstadoReformasCadEspecial

Hora de mudar
A partir de hoje, o Estado publica uma série de reportagens sobre os grandes desafios do País depois do impeachment
José Fucs *especial para O Estado de S.Paulo, 11 de setembro de 2016


ilustração: Farrell

Com o impeachment de Dilma Rousseff e a posse de Michel Temer na Presidência da República, uma nova perspectiva abriu-se para o País. Apesar dos questionamentos na Justiça e dos protestos dos aliados de Dilma contra a decisão do Senado Federal, o impeachment renovou as esperanças de uma parcela considerável da população - incluindo os milhões de cidadãos que foram às ruas pedir a sua saída - de que o Brasil poderá, enfim, mudar de rumo. "O impeachment é o início de uma nova era", diz o cientista político Luíz Felipe d'Avila, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), uma organização voltada para a formação de líderes e a melhoria de gestão na área governamental. "Daqui para a frente, a discussão política deverá ser bem mais racional, em torno de dados e fatos objetivos, em vez de teses e ideologias.
Depois de quase 14 anos do PT no poder, marcados pelo voluntarismo ideológico, pelo estatismo na economia, pelo "aparelhamento" da administração pública e por um sistema "industrial" de corrupção, o País ganhou uma súbita oportunidade para lidar seriamente com as causas de suas mazelas. Não apenas para que possa deixar a UTI, mas para repensar o seu destino e lançar as bases de um novo ciclo de desenvolvimento sustentável, estabilidade política e bem-estar social. "O Brasil está numa encruzilhada. As escolhas que fizermos agora serão decisivas para o nosso futuro", afirma d'Avila. "É um momento histórico muito importante. Dependendo das decisões que a gente tomar, o Brasil poderá virar uma Venezuela ou se tornar um país de Primeiro Mundo", diz o financista Nathan Blanche, sócio da Tendências, uma empresa de consultoria econômica.
Na essência, o que está em jogo é a escolha entre dois Brasis. Um, que ganhou uma força descomunal nos últimos anos e agora está na berlinda, é o Brasil da ilha de fantasia de Brasília, do Estado obeso e perdulário, que drena a produção e o trabalho dos brasileiros para sustentar o seu apetite insaciável. É o Brasil dos pequenos e grandes privilégios obtidos com o dinheiro dos pagadores de impostos; dos burocratas, que criam dificuldades para vender facilidades; e dos funcionários públicos que não precisam se preocupar com a crise, porque têm estabilidade no emprego. O outro Brasil, massacrado pelo peso da carruagem que tem de puxar, é o Brasil real, o Brasil dos mortais, que paga impostos de Primeiro Mundo e recebe serviços públicos de Terceiro Mundo. É o Brasil dos brasileiros que têm de trabalhar duro para pagar suas contas em dia e garantir um mínimo de qualidade de vida para si mesmos e para suas famílias; dos que sofrem com a recessão prolongada e com o desemprego. É o Brasil que valoriza a meritocracia, o esforço individual e o sucesso alcançado sem pixulecos, nem favores oficiais.

O grande conflito é entre quem puxa a carruagem e quem está aboletado num Estado que cresceu demais
Flavio RochaPresidente das Lojas Riachuelo

“O grande conflito não é de patrão contra empregado, rico contra pobre, Nordeste contra Sudeste, negro contra branco. É entre quem puxa a carruagem e quem está aboletado num Estado que cresceu demais”, afirma o empresário Flavio Rocha, presidente das Lojas Riachuelo. “O Brasil tem uma classe que se aproveita de todo o setor privado. É o estamento estatal, que tomou conta do governo”, diz o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “É preciso dizer para a população que o Brasil é, sim, um país muito desigual, mas boa parte dessa desigualdade é criada pelo corporativismo que se apropriou do poder.”

O Brasil tem uma classe que se aproveita do setor privado. É o estamento estatal, que tomou conta do governo
Delfim NettoEx-Ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura

Para dar a sua contribuição ao debate sobre os grandes desafios do Brasil e as soluções para a crise, o Estado publicará, a partir de hoje, uma série de reportagens especiais. Da realização da reforma política à adoção de um novo pacto federativo; do equilíbrio das contas públicas e das reformas tributária e trabalhista à melhoria do ambiente de negócios, a série deverá dar um mergulho profundo nas principais questões que travam o desenvolvimento. Também fazem parte da lista o combate à corrupção, as regalias do funcionalismo e a abertura da economia. Nesta edição, além da apresentação do cenário geral, você poderá conferir a primeira reportagem da série, que trata da Constituição de 1988 e das mudanças necessárias para modernizá-la e adaptá-la às transformações ocorridas no Brasil e no mundo nos últimos trinta anos. Mais do que mostrar como o Brasil chegou ao atual quadro de desalento, a ideia é apontar saídas para a crise e discutir as propostas que podem nos levar a um caminho mais promissor.
Nesta edição, além da apresentação do cenário geral, você poderá conferir a primeira reportagem da série, que trata da Constituição de 1988, promulgada antes da queda do Muro de Berlim, e das mudanças necessárias para modernizá-la e adaptá-la às transformações ocorridas no Brasil e no mundo nos últimos 30 anos. Mais do que mostrar como o Brasil chegou ao atual quadro de desalento, a ideia é apontar saídas efetivas para a crise e discutir as propostas que podem nos levar a um caminho mais promissor no futuro. "É preciso fazer uma cirurgia radical no Estado, para que ele volte ao seu propósito original, que é servir à sociedade", afirma Flavio Rocha.
Embora tenha pela frente apenas um mandato-tampão, de 28 meses, Temer terá de se mostrar à altura dos acontecimentos e tomar as medidas necessárias para superar a crise, se quiser ouvir o povo dizer, ao final de seu governo, como declarou recentemente, que ele "deu um jeito no País". Com a economia em frangalhos, escândalos em série de corrupção, a representatividade política em xeque e a polarização da sociedade, Temer terá pouca margem para errar (veja os gráficos abaixo). Apesar de sua baixa popularidade, de seu nome ter sido citado em denúncias da Lava Jato e de ele ser alvo, ao lado de Dilma, de um processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder econômico e utilização de recursos do petrolão na campanha de 2014, Temer irá impor um ônus excessivo aos brasileiros se não exercer plenamente o papel que a história lhe reservou e deixar para seu sucessor, a ser eleito em 2018, a tarefa de colocar o País de volta nos trilhos. "O maior trunfo do governo Temer é haver um certo reconhecimento de que o custo de ele fracassar é muito grande, tanto do ponto de vista político quanto econômico", diz Christopher Garman, diretor de estratégia para mercados emergentes da Eurasia, uma consultoria americana especializada em riscos políticos globais.
Há dúvidas, porém, de que Temer possa levar adiante mesmo um programa mínimo de reformas - e não apenas por uma possível resistência do Congresso em aprovar as mudanças. Segundo o economista Paulo Guedes, um dos fundadores do banco Pactual (hoje BTG Pactual) e presidente do conselho de administração da Bozano Investimentos, Temer tem duas possibilidades. Uma é se deixar abater pela "síndrome de ilegitimidade" que atingiu o ex-presidente José Sarney. Ex-dirigente da Arena, a base de apoio ao regime militar, Sarney tornou-se vice de Tancredo Neves e acabou assumindo a Presidência da República de forma inesperada, com a doença e morte do presidente eleito, em 1985. "A síndrome da ilegitimidade levou o Sarney a buscar uma ilusória popularidade e produziu uma tragédia histórica, que foi a hiperinflação", afirma Guedes. A outra possibilidade, de acordo com Guedes, é Temer dizer que chegou ao fim uma forma de fazer política com base no toma lá, dá cá e de tocar o governo com a expansão indefinida dos gastos. "Se o Temer continuar no ritmo do presidente interino, de pequenas acomodações aqui e ali, para não gerar conflitos, ele seguirá o caminho do Sarney e o próximo presidente da República poderá ser um forasteiro, que represente uma ruptura com o sistema atual, como aconteceu com o Fernando Collor (ex-presidente da República, que sofreu impeachment em 1992)", diz Guedes. "Agora, se Temer mostrar suas fichas e não se deixar abater pela 'sindrome da ilegitimidade', como fez ao propor um teto para o gasto público, que é uma medida excepcional; se ele disser que não haverá reajuste do funcionalismo, porque o País quebrou por causa do excesso de gastos e porque há 12 milhões de brasileiros vivendo o drama do desemprego, estaremos no caminho certo."

Se colocar o sarrafo muito alto, nem o Thiago Braz, medalha de ouro nas Olimpíadas, conseguirá superá-lo
Rubens RicuperoEx-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente

Temer começa o governo, segundo Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, com uma vantagem em relação a Itamar Franco, que assumiu a Presidência após o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Ricupero diz que Temer terminou a interinidade com uma equipe econômica “de primeira qualidade” já montada. Itamar demorou oito meses até escolher para a Fazenda o então senador Fernando Henrique Cardoso, que implementou o Plano Real e acabou com a hiperinflação, em 1994. “No fundo, o desafio de todo vice-presidente galgado à posição principal é como completar o mandato com um mínimo de qualidade e eficiência”, diz. “Se você colocar o sarrafo muito alto, nem o Thiago Braz, que ganhou a medalha de ouro na Olimpíada no salto com vara, conseguirá superá-lo.”

O Ajuste do Bem
A reforma mais urgente para viabilizar a modernização do País é a fiscal. Com um rombo recorde no orçamento e uma dívida galopante, o governo terá de concentrar suas forças no reequilíbrio das contas públicas, como já vem fazendo, ao propor o limite nos gastos e a desvinculação das receitas, para ganhar maior liberdade de gestão. De seu sucesso nessa missão, dependerá quase tudo – a retomada do crescimento, o corte dos juros, a volta da confiança do setor privado e dos investimentos na produção, a redução do desemprego e a recuperação da renda dos trabalhadores. “Chegamos ao limite fiscal”, afirma o economista Paulo Leme, presidente do Goldman Sachs, um dos maiores bancos americanos de investimento, no Brasil. “É o estágio final de um modelo econômico que usou políticas equivocadas, excessivamente dependentes da ação do Estado, em vez de buscar soluções nas forças de mercado.”
Se o governo for bem-sucedido, o ajuste nas finanças públicas deverá alavancar outras reformas modernizantes. A mais relevante, provavelmente, será a reforma da Previdência Social, responsável pela maior parte do déficit público. Entre outras medidas, estuda-se a elevação da idade mínima de aposentadoria para 65 anos, a desvinculação de benefícios do salário mínimo e fim dos regimes especiais dos funcionários públicos, que podem se aposentar com o salário integral da ativa. “Tudo o que está sendo proposto não são maldades, são benignidades, porque isso é insustentável. É uma questão de aritmética”, diz o ex-ministro Delfim Netto.
Além da reforma na Previdência, o governo fará um amplo programa de desestatização para fazer caixa. O programa, que deverá ser anunciado nesta terça-feira, se o cronograma oficial for cumprido, irá reverter a proliferação de estatais registrada nos governos petistas e terá regras mais flexíveis para os investidores, que não “demonizem” o lucro, como ocorreu nos últimos anos. Para decolar, a desestatização terá de contar com o apoio dos investidores externos. “A participação do capital estrangeiro não é nem uma questão de escolha. O País não tem a poupança necessária para fazer o investimento crescer de novo”, afirma Leme, do Goldman. “Em princípio, existe o interesse do investidor estrangeiro, mas tem de ver qual o programa, quais os ativos e quais as regras dos leilões.”
Também são fundamentais à modernização do País a reforma política, para garantir a governabilidade, a reforma trabalhista, para flexibilizar as negociações entre os empregadores e os trabalhadores, e a tributária, que deverá simplificar o sistema. Hoje, o pagamento de impostos e taxas consome 2.600 horas por ano, em média, das empresas, segundo o estudo Doing Business, do Banco Mundial. Mas, com o governo no vermelho, é difícil imaginar que seja possível agora propor a redução de tributos, apesar de a carga tributária brasileira estar perto de 35% do PIB, a mais alta entre os países emergentes, mesmo com a queda de receitas provocada pela recessão.
Segundo o cientista político Fernando Schüler, do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia, o Brasil terá de negociar um novo consenso em torno da modernização do Estado. “Temos de mudar o padrão de Estado no Brasil, de welfare State (Estado de bem-estar social) para agency State (Estado agência)”, afirma. No Estado agência, o governo repassa para a iniciativa privada a gestão dos serviços públicos, inclusive de educação e saúde, e estabelece metas de desempenho quantitativas e qualitativas para avaliar os resultados. “A gestão institucional do Estado precisa caminhar de forma agressiva para a contratualização com o setor privado.” Desde a democratização, de acordo com Schüler, o Brasil produziu três consensos que permitiram ao País avançar. O primeiro foi em torno da democracia. Depois, houve o consenso em relação à estabilidade econômica e à responsabilidade fiscal. O terceiro foi em torno do combate à pobreza. Mas, na sua visão, as pedaladas fiscais mostraram que o consenso em torno da responsabilidade fiscal era mais frágil do que se imaginava. “O que caracteriza uma democracia madura é a produção de consensos e uma democracia instável como a brasileira é a ausência de consensos.” /J.F.
Cenário Sombrio

* Previsão de mercado, segundo o Relatório Focus; ** Exclui os juros da dívida pública; *** Estimativa oficial
FONTES: BANCO CENTRAL, IBGE, MINISTÉRIO DA FAZENDA E IBPT

Constituição
A Reforma das Reformas
O Estado de bem-estar social, prometido pela Constituição Cidadã de 1988, mostrou-se uma miragem. Agora, é hora de definir o que virá em seu lugar.

Às vésperas da votação do texto final da nova Constituição, em julho de 1988, o então presidente da República, José Sarney, fez um pronunciamento em tom apocalíptico em cadeia nacional de rádio e TV. Preocupado com o efeito que a nova Carta teria nas contas públicas, Sarney queria pressionar os Constituintes a alterar o documento antes de votá-lo. “Os brasileiros receiam que a Constituição torne o País ingovernável”, disse. “Primeiro, há o receio de que alguns dos seus artigos desencorajem a produção, afastem capitais, sejam adversos à iniciativa privada e terminem por induzir ao ócio e à improdutividade. Segundo, (receia-se) que outros dispositivos possam transformar o Brasil, um país novo, que precisa de trabalho, em uma máquina emperrada e em retrocesso. E que o povo, em vez de enriquecer, venha a empobrecer e possa regredir, em vez de progredir.”
A fala de Sarney – alçado à Presidência de forma inesperada com a doença e a morte do presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, e sem apoio político na nova configuração de forças que se formou na época – teve o efeito contrário ao que ele esperava. Três dias depois, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, reagiu às acusações de Sarney e defendeu com veemência o Estado-tutor proposto na nova Carta. “A fome, a miséria, a ignorância, a doença desassistida são ingovernáveis. A governabilidade está no social”, afirmou Ulysses, resumindo o espírito que permeou a elaboração da nova Carta, chamada por ele de “Constituição Cidadã”. “O Dr. Ulysses era um sonhador e prometeu a felicidade geral da Nação por decreto”, afirma o financista Nathan Blanche, sócio da Tendências, uma empresa de consultoria econômica. “Ele achava que podia fabricar dinheiro, e fabricava – mas causava inflação.”

O Sarney tinha razão. Na Constituinte, criaram-se enormes distorções sem fazer conta
Nelson JobimEx- Constituinte, ex-ministro da Justiça e da Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)

Decorridos quase 28 anos desde que a Constituição entrou em vigor, o aviso de Sarney ganhou, quem diria, ares de profecia. Se a Constituição não deixou o País ingovernável, chegou bem perto disso. Com o Tesouro exaurido, um rombo monumental no orçamento e uma dívida pública que cresce em ritmo frenético, o governo foi a nocaute, levando junto a economia do País. “O Sarney tinha razão”, diz o jurista Nelson Jobim, ex-Constituinte, ex-ministro da Justiça e da Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). “Na Constituinte, a maioria não tinha experiência no Executivo. Então, criaram-se enormes distorções sem fazer conta.”
É preciso colocar na conta que boa parte da responsabilidade pela dilapidação das finanças públicas se deve à inépcia administrativa da ex-presidente Dilma Rousseff e a Lula, que, em seu segundo mandato, iniciou a gastança sem lastro, com a distribuição de benesses a granel, acentuada depois por sua sucessora. Mas é na Constituição de 1988 que se encontra a raiz da crise fiscal. Desde a sua promulgação, a carga tributária do País quase dobrou, de 20% para cerca de 35% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) – e ainda assim o governo quase foi à bancarrota. A mesma penúria atinge hoje quase todos os Estados e milhares de municípios. “Foram concedidos muitos direitos, dos quais ninguém discorda, mas é difícil financiar tudo”, afirma o diplomata Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente.

Nem todos os direitos sociais garantidos pela Constituição são factíveis. A gente pode querer que sejam, mas sabe que não são
Célio BorjaEx-presidente da Câmara dos Deputados no governo Geisel e também ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça

Em que pese a Constituição ter incorporado avanços significativos nos direitos e garantias individuais, como a liberdade de expressão e o direito de propriedade; no equilíbrio dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; e na participação dos cidadãos no processo decisório, com o direito de voto aos analfabetos e maiores de 16 anos; no capítulo dos direitos sociais, que englobam saúde, educação, habitação e Previdência, ela se revelou uma miragem. O Estado de bem-estar social forjado na Constituição de 1988, ao final, não cabe no Brasil. A ideia de que o Estado deve oferecer tudo para todos, sem ter os recursos necessários para fazê-lo, pode levantar a arquibancada, mas não sobrevive no mundo real.
“Nem todos os direitos sociais garantidos pela Constituição são factíveis. A gente pode querer que sejam, mas sabe que não são”, diz o jurista Célio Borja, ex-presidente da Câmara dos Deputados no governo Geisel e também ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça. “A Constituição de 1988 foi idealista”, afirma o cientista político Luiz Felipe D’Avila, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), uma entidade dirigida ao desenvolvimento de novos líderes na área governamental. “Depois de 20 anos de repressão, todo mundo queria colocar suas aspirações na Constituição e ela transformou o Brasil num país fiscalmente insolúvel.”

A Constituição de 1988 foi idealista e transformou o Brasil num país fiscalmente insolúvel
Luiz Felipe d’AvilaPresidente do Centro de Lideranção Pública (CLP)

Embora a reforma política seja considerada pelo PT e outros partidos de esquerda como “a mãe de todas as reformas”, a ampla revisão da Constituição, por seu impacto na vida das empresas e dos cidadãos, deveria ser considerada prioritária. Com o Estado abalado em sua capacidade financeira, não faltam argumentos sólidos para justificar a realização das mudanças e conseguir apoio político no Congresso e no STF. Para o Brasil se tornar governável, porém, não adianta só colocar um band-aid na ferida. É preciso promover uma cirugia radical. Jobim defende uma “lipoaspiração” no texto constitucional, mas são tantos os exageros e os privilégios incluídos na Constituição pelo corporativismo e pelos grupos de pressão que, para derrubá-los, talvez só um bisturi não baste “O País foi partilhado entre as corporações”, diz Jobim. “Na Constituinte, eu entendi que o que o pessoal chamava de sociedade civil eram grupos organizados que queriam defender seus interesses ou congelar seus interesses na apreensão do Estado.”

A Constituição não é o que está escrito. É, sobretudo, o que o Supremo interpreta sobre a Constituição
Joaquim FalcãoDiretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro

Os maiores privilégios, que devem ser alvo de qualquer reforma constiticional, concentram-se no setor público, graças ao poder de mobilização do funcionalismo e à ação corporativista realizada na Constituinte. Segundo o professor Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro e ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há mais de trinta dispositivos sobre direitos dos funcionários públicos na Constituição. Ele diz que as Constituições que mais têm dispositivos do gênero, depois do Brasil, são a alemã, com nove, e a portuguesa, com cinco. Com isso, de acordo com Falcão, os funcionários públicos ganharam uma “via expressa” para o Supremo, encarregado de julgar as matérias constitucionais, em caso de pendências judiciais em suas atividades profissionais, enquanto a massa de trabalhadores da iniciativa privada, regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e julgada pela Justiça do Trabalho, tem menos chance de chegar ao STF. “É muito desigual”, diz Falcão.
Na Previdência, os privilégios do funcionalismo são uma afronta aos pagadores de impostos. Enquanto um trabalhador do setor privado se aposenta com um salário mínimo ou uma fração do que ganhava na ativa, os funcionários públicos recebem o salário integral. Uma série de carreiras do serviço público tem aposentadorias especiais com 25 anos de serviço: professores, policiais militares, bombeiros. Com apenas um milhão de aposentados, o setor público gera um déficit para a Previdência maior que o dos 25 milhões de aposentados da iniciativa privada. No Legislativo, é ainda pior: um deputado com dois mandatos e oito anos de contribuição já tem direito a aposentadoria.
No capítulo dos direitos sociais, fora da esfera do funcionalismo, há a questão das vinculações de receitas para a saúde e a educação, que engessam a gestão e geram acomodação no Executivo. “No regime autoritário tinha vinculação. O prefeito derrubara uma escola para construir outra simplesmente para gastar. Ou então construía uma fonte luminosa”, afirma o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “Por que a vinculação não funciona? Porque quem tem verba garantida se acomoda. O problema da saúde e educação no Brasil não é de recursos, mas de gestão.” Ele lembra uma conversa sobre o assunto que tinha com Mário Covas (1930-2001) na Constituinte: “Eu dizia, Covas, nós somos tão bons, nós dois, que, em 2016, só vai ter idiota no Congresso, porque nós temos de dizer para eles hoje o que eles têm de fazer. As prioridades mudam”.
A Constituição foi ainda mais generosa com a educação e a saúde, mas nem por isso garantiu a qualidade dos serviços. Na educação, a Constituição garante o ensino gratuito para todos os brasileiros, independentemente de renda, não apenas no ensino básico e fundamental, mas também nos cursos universitários, de pós-graduação e de doutorado. “Se você examinar a discussão toda sobre reforma educacional no Brasil, observa o seguinte: ao fim e ao cabo, depois de passar o véu dos adjetivos e advérbios de modo, você vai cair no aumento de salário de professor”, diz Jobim. Na saúde, além de prever o acesso gratuito à saúde para todos os brasileiros, a Constituição traz o princípio da integralidade, pelo qual se garante cobertura para todos os procedimentos.
Para limpar tudo isso, será preciso não apenas conseguir os dois terços necessários à aprovação das mudanças constitucionais no Congresso Nacional, mas também passar pelo STF. “A Constituição não é o que está escrito. Ela é, sobretudo, o que o Supremo interpreta sobre a Constituição. Então, o Supremo tem uma responsabilidade muito grande no que nos chegou de 1988 até hoje, para o bem e para mal”, afirma Joaquim Falcão.

Antecipando o duro embate que vem por aí, mais dia, menos dia, as corporações e os grupos de pressão já começam a se articular para defender a manutenção de seus privilégios. Para se proteger, vale tudo. Independentemente do que vai acontecer, eles dizem que o governo vai cortar o dinheiro para a saúde e a educação, que vai tungar a aposentadoria. “A Constituição não é eterna. Você não pode pretender que a geração que fez a Constituição em 1988 resolva definir o que deve ser o Brasil pelos próximos 200 anos”, diz Jobim. “Quem gosta de Constituição eterna são os professores de direito, porque eles escrevem um livro e depois não precisam revisar, e as editoras, que não têm o que fazer com os livros antigos quando a Constituição é alterada.” Como dizia Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

Entre a autonomia administrativa
e o "pires na mão" em brasília
Na arena política, o debate sobre um pacto federativo – um termo enigmático que se refere à repartição do dinheiro público entre a União, os Estados e os municípios – ganhou espaço nos últimos tempos. Como a União detém uma fatia de cerca de 60% do bolo tributário do País, os Estados, que ficam com perto de 23%, e os municípios, com 17%, defendem maior descentralização dos recursos para não ter de “passar o pires” em Brasília para tocar o governo. Os Estados e municípios também reivindicam maior autonomia legislativa. “Temos de definir se o Brasil é mesmo uma Federação ou se os Estados e municípios só exercem políticas públicas decididas no Congresso”, afirma o economista Paulo Guedes, da Bozano Investimentos.
É uma discussão similar à que foi travada na Constituinte. Como a União também detinha no regime militar uma fatia substancial do bolo tributário, havia um forte sentimento em defesa da repartição mais equilibrada dos recursos. O movimento pela descentralização tornou-se tão forte que ela acabou aprovada pela Constituinte. Só que, da forma como foi feita, gerou uma anomalia cujos efeitos ajudam a explicar por que o debate voltou à tona.
Com a decisão da Constituinte, os Estados e municípios abocanharam uma fatia maior dos tributos, mas não herdaram novas responsabilidades na mesma proporção. Ao mesmo tempo, a União perdeu receita, mas manteve muitas das responsabilidades que já tinha. Foi isso, em boa medida, que levou o então presidente José Sarney a fazer um pronunciamento na TV na época, para vociferar contra a Constituinte. Só que, de lá para cá, a União subiu de forma significativa as alíquotas das contribuições, que não são repartidas com Estados e municípios, e congelou as alíquotas dos impostos divididos com os demais entes da Federação. Resultado: a participação da União no total de tributos voltou a aumentar e a dos Estados e municípios, a cair. A questão é saber qual solução será seguida para distribuir o dinheiro público. “Ainda não vi ninguém dizendo qual é o pacto federativo que se quer”, diz o jurista Nelson Jobim.  

José Fucs* foi repórter especial da Época, editor executivo da Exame, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios e repórter do Estado, da Gazeta Mercantil e da Folha de S.Paulo.