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quinta-feira, 19 de setembro de 2024

"O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, Entrevista Paulo Kramer, por José Fucs (O Estado de S. Paulo)

 Se há experimento, quem participa dele, o executa? Todos os políticos ou só alguns, militares,  judiciário ? Faltaram perguntas. O Brasil sempre foi país autoritário de povo passivo demais, vide o confisco da poupança por collor (meu vizinho morreu) .

Entrevista hoje na coluna do José Fucs :

"O Brasil está vivendo um golpe em câmera lenta com as ações do STF’, diz cientista político

Para Paulo Kramer, País passa por um ‘experimento pavloviano’, em que a tolerância da sociedade a ‘expedientes menos democráticos’ está sendo testada, para ver se há alguma reação, mas o ‘ponto de virada’ está próximo.

19/09/2024 | 09h30 Atualização: 19/09/2024 | 16h49

Entrevista com Paulo Kramer

Cientista político, consultor, assessor parlamentar na Câmara dos Deputados e professor aposentado da Universidade de Brasília

O cientista político Paulo Kramer, de 67 anos, faz parte de um grupo restrito de profissionais da área, dominada por uma visão marxista da realidade, que se autodefine como um “liberal”. Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), consultor de riscos políticos e assessor parlamentar da liderança da minoria na Câmara dos Deputados, ele diz que o papel de “Poder Moderador” desempenhado hoje pelo STF (Supremo Tribunal Federal), com ações que vão além de seu papel constitucional, é “o problema número um” que a gente vive no País.

“Nós estamos vivendo o que eu chamo de golpe em câmera lenta. O Supremo hoje pode tudo, porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele”, afirma. Segundo Kramer, porém, o “ponto de virada” está próximo e deve resgatar o equilíbrio entre os Poderes da República. “Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica.”

Nesta entrevista ao Estadão, Kramer fala também sobre o fim do “presidencialismo de coalizão”, com a perda de poder do Executivo para o Legislativo na gestão do orçamento federal, a partir da aprovação das emendas parlamentares de execução obrigatória em 2015. Ele comenta, ainda, os projetos de impeachment do ministro Alexandre de Moraes e de anistia aos presos de 8 de janeiro que tramitam no Congresso e analisa as eleições municipais e o impacto do “fenômeno” Pablo Marçal, candidato do PRTB à prefeitura de São Paulo, na direita e no bolsonarismo. “Provavelmente, a direita não marchará unida nas eleições de 2026″, diz. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está vendo o cenário político hoje no País?

O que está ocorrendo no País hoje tem relação com o patrimonialismo que predomina na política brasileira, essa tendência que nós temos de confundir o público com o privado. Isso acaba condicionando a visão que os políticos e o povo têm, de forma geral, sobre o que significa exercer um cargo público. Aqui, as pessoas, quando alçadas a uma posição de poder qualquer, acabam se achando maiores e mais importantes do que os cargos. Elas exercem o poder de maneira imoderada e é provavelmente por isso que nós estamos sempre clamando pela intervenção de um Poder Moderador.

Oficialmente, nós tivemos um Poder Moderador no Império, na Constituição de 1824. De lá para cá, na República, a figura do Poder Moderador deixou de existir na Constituição. Mas, na prática, desde o tenentismo (movimento político-militar que surgiu no fim da República Velha para tentar derrubar as oligarquias rurais que governavam o País), a gente está sempre à espera de um general, de um Sergio Moro, de um Deltan Dallagnol, para combater os efeitos nocivos desse exercício imoderado do poder. Isso é o contrário do que acontece em outros países, de tradição republicana mais sólida, onde o sujeito em geral tem consciência de que ele é menor do que o cargo, de que o cargo é mais importante do que ele, e de que, portanto, ele deve agir de forma decente no exercício de suas funções.

O que isso tem a ver com o atual quadro político do País?

No momento, essa busca pela ação de um Poder Moderador voltou a assombrar o Brasil e se tornou um componente crucial do nosso jogo político. Hoje, boa parte da esquerda vê no STF, particularmente na figura do ministro Alexandre de Moraes, esse poder “providencial”, acima da mecânica rotineira da convivência institucional entre os Poderes. O Supremo hoje pode tudo. Pode tudo porque os outros Poderes acham que ele pode tudo. Ou acham que não podem fazer nada contra ele. Para mim, este é o problema número um que a gente vive hoje no Brasil.

Enquanto a esquerda era hegemônica na nossa cultura política, seja na forma da social-democracia “perfumada” dos tucanos, seja no formato mais “botocudo” da tigrada lulopetista, isso não acontecia. Agora, com o crescimento de uma faixa de opinião de direita, conservadora, na sociedade brasileira – e pelo mundo afora – o STF vem assumindo este papel. Um lado reluta, quando não se recusa simplesmente a reconhecer, a legitimidade do outro. É por isso que cada eleição presidencial brasileira é encarada como uma crise e não como um desenvolvimento institucional periódico, previsível e normal numa sociedade democrática.

Em sua opinião, como isso está afetando o País?

Nós estamos vivendo um problema que eu chamo de golpe em câmara lenta. Este processo começou quando o ministro (Dias) Toffoli (então presidente do STF) se sentiu ameaçado pelas investigações da Lava Jato e designou seu colega, o ministro Alexandre de Moraes, para promover esse verdadeiro inquérito do fim do mundo, que não tem fim – o inquérito das fake news, que acaba incluindo tudo que ele considera prejudicial à sua visão de democracia. A partir daí, uma série de medidas foi tomada para beneficiar o lado do (hoje presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) e prejudicar o lado do (hoje ex-presidente Jair) Bolsonaro.

Houve a “descondenação” do Lula, que havia sido condenado em três instâncias, justamente com a intenção de permitir que ele disputasse a Presidência de novo. Depois, isso ficou mais patente ainda durante a eleição de 2022, quando o senhor Alexandre Moraes exerceu a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). É só comparar as ações que ele determinou contra um dos lados e quase não determinou contra o outro que você vê que não houve equilíbrio nas decisões em relação aos dois principais concorrentes. Desde então, esse processo vem tendo desdobramentos em série e é isso que eu chamo de um golpe em câmara lenta.

Quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado

Como a gente chegou a este ponto?

A gente pode comparar isso com um experimento diabólico, pavloviano, de reflexo condicionado, em que a tolerância do povo, da opinião pública, em relação a esses expedientes menos democráticos, menos republicanos, vai sendo testada passo a passo, para ver se há alguma reação. Na medida em que boa parte da população se mostrava indiferente ao que estava ocorrendo, os executores dessas medidas se sentiram cada vez mais à vontade para ir avançando. Com isso, eu acho que quem saiu perdendo fomos todos nós, porque o propalado Estado de Direto ficou abalado.

Dentro disso que o sr. está falando, desse quadro do golpe em câmera lenta, dessa tentativa de ir testando a sociedade, em que estágio o sr. acredita que estamos hoje?

Olha, eu acredito que nós estamos nos aproximando de um ponto de virada. Ou vai ou racha. Gradativamente, a opinião pública foi se conscientizando de que o Poder Judiciário, principalmente o STF, aliado ao lulopetismo, está há muito tempo exorbitando do seu papel constitucional. Ele precisa voltar ao seu quadrado constitucional, para que os Poderes sejam efetivamente independentes, porém funcionem de forma harmônica. Senão, nós vamos ficar sempre naquele subdesenvolvimento político de achar que precisamos de uma força de fora, um Deus ex-machina que salve a situação, quando na verdade é a vontade organizada e legal dos cidadãos que fará com que as coisas aconteçam.

No sistema representativo, isso ocorre com a sociedade exercendo pressão para que seus representantes eleitos no Congresso façam alguma coisa para mudar a situação. É assim que funciona numa democracia. As pessoas enchem as ruas, protestam, se manifestam, não para ganhar no grito, mas para sensibilizar seus representantes eleitos, seus congressistas, deputados e senadores, para que façam aquilo que elas estão querendo.

Como o sr. você viu a manifestação na avenida Paulista, em São Paulo, no dia 7 de setembro? Até que ponto ela refletiu esta maior conscientização da sociedade, se havia menos gente nas ruas do que em manifestações anteriores?

O governo e a esquerda tentaram pintar a última manifestação na Paulista como um grande fracasso, já que em manifestações anteriores havia trezentas mil pessoas nas ruas e dessa vez havia algo em torno de cinquenta, sessenta mil. Agora, como tudo é relativo em política, quando você compara essas cinquenta e poucas mil pessoas que estavam na Paulista com o ato esvaziado que foi realizado no mesmo dia na Esplanada dos Ministérios, com a presença do Lula e de ministros do STF, você consegue ter uma ideia mais precisa da dimensão da manifestação que ocorreu em São Paulo.

Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares

Até pouco tempo atrás, havia uma percepção de que essas bandeiras relacionadas ao STF e ao impeachment do ministro Alexandre de Moraes estavam mais ligadas aos bolsonaristas e a grupos de direita e hoje parece que elas ganharam apoio das forças de centro e até de centro-esquerda. Qual a sua visão desta questão?

A minha visão se baseia naquele famoso ditado “pau que dá em Chico dá em Francisco”. Quer dizer, um poder ilimitado ou que se sente ilimitado é sempre perigoso para todos os players do jogo. É por isso que, no longo prazo, o que interessa é que o equilíbrio entre os Poderes seja reestabelecido, para que no futuro isso não ameace mais ninguém, nem a esquerda nem a direita.

Agora, como o sr. afirmou há pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e boa parte da esquerda, que representam uma parcela significativa da sociedade, estão a favor desta atuação do STF e particularmente do ministro Alexandre de Moraes. O que está levando a esse apoio do Lula e da esquerda ao STF e ao ministro?

A gente tem de levar em conta que o Lula não é mais aquele e que o famoso “presidencialismo de coalizão” também não é. O “presidencialismo de coalizão”, hoje, não funciona mais. Aquela história de o Poder Executivo usar as verbas do Orçamento para formar uma base parlamentar e aprovar suas medidas no Congresso mudou de forma considerável nos últimos anos. Desde 2015, quando o Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, se aborreceu com a então presidente da República Dilma Rousseff, porque achou que ela não tinha se empenhado o suficiente para garantir que o PT não votaria contra ele no Conselho de Ética por “quebra de decoro parlamentar”, o jogo virou. A partir daí, com a aprovação das emendas de execução obrigatória, os parlamentares foram avançando sobre aquela já diminuta parcela discricionária do Orçamento, que permite ao Executivo gastar onde quiser. Hoje, nós temos as emendas individuais dos parlamentares, as emendas de bancada e uma série de emendas de execução obrigatória que realmente dão uma independência muito grande aos parlamentares, sejam de que partido forem.

Atualmente, o Parlamento não está mais obrigado a se submeter aos desejos do Executivo. O Congresso já não depende mais do presidente, como nos primeiros mandatos do Lula e nos tempos do Fernando Henrique Cardoso. Hoje, o governo está fraco, porque não tem mais o conta-gotas na mão para controlar as emendas orçamentárias dos parlamentares. Neste sentido, o Congresso pode criar mais dificuldades para o Executivo. Isso alterou a correlação de forças entre os Poderes. Então, além de o Lula 3 estar mais velho, visivelmente mais debilitado do ponto de vista do seu vigor físico, ainda sofre essa limitação. O governo Bolsonaro já pegou essa conjuntura de maior independência orçamentária dos parlamentares e meio que se conformou com o novo desenho. Mas parece que o governo Lula 3 está tentando rodar um software já vencido.

"Eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar. É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder."

Recentemente, o STF determinou que houvesse um acerto entre o Legislativo e o Executivo e até estabeleceu um prazo para isso acontecer. No fim, chegou-se a uma fórmula, que, pelo que entendi, deve dar mais poder ao governo na gestão do Orçamento. É isso mesmo? Como o sr. analisa esta questão?

O que se combinou, o que ficou mais ou menos garantido a partir de agora, foi a chamada rastreabilidade da origem das emendas, que é uma coisa positiva, na minha opinião. Isso vai permitir que se saiba quem pediu aquela emenda, em todos os seus passos: empenho da verba, se ela efetivamente aplicada, executada. Agora, tem uma questão em aberto aí. O senador Davi Alcolumbre (União-AP), que é candidato à sucessão do Rodrigo Pacheco na presidência do Senado, já está dizendo que a solução é transformar as emendas de bancada em emendas individuais.

De qualquer forma, essa ação do governo mostra que há uma tentativa do Executivo de recuperar o poder do passado em relação ao Orçamento. O sr. acredita que isso é possível?

É difícil quem conquistou uma parcela de poder abrir mão desse poder. O Congresso sentiu o gostinho dessas emendas de execução obrigatória e agora, obviamente, não quer devolver esse poder para o Executivo. Então, eu acredito que essas emendas parlamentares vieram para ficar.

É isso que explicaria, na sua visão, a dependência do governo em relação ao STF, para conseguir implementar suas políticas?

Exatamente. Ele precisa dessa muleta. Eu vou te dar um exemplo bem recente. Há poucos dias, outro ministro do STF, o Flávio Dino, autorizou o governo a abrir um crédito extraordinário para combater os incêndios florestais, fora do arcabouço fiscal, que, cá para nós, já está avacalhadíssimo, desacreditadíssimo, embora o governo Lula e sobretudo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, procurem manter uma aparência de normalidade nas contas públicas perante o mercado.

A rigor, tendo em vista a urgência de se combater esses incêndios que estão consumindo o Brasil, o Lula não precisaria da autorização do Flávio Dino para conseguir esse crédito junto ao Congresso. Mas, hoje, o governo se escuda atrás do STF mesmo quando não precisa. Agora, isso também tem uma explicação: para o Lula, para quem “gasto é vida”, o arcabouço fiscal impõe limites que ele e seus companheiros não suportam. Então, é como se o Lula dissesse “olha, não sou eu que estou pedindo para abrir o crédito. Estou pedindo porque o Flávio Dino determinou” – por sinal, em mais uma decisão monocrática de um ministro do Supremo.

Considerando todo esse quadro que o sr. traçou, o que a eleição do novo comando da Câmara e do Senado pode mudar na relação do governo com o Congresso?

Eu acredito que a próxima eleição para a presidência da Câmara e do Senado vai colocar nestes dois postos estratégicos representantes do chamado Centrão, que é aquela geleia, uma hora está de um lado, outra hora está do outro. Usa, muitas vezes, o ímpeto das bancadas de direita para pressionar o Executivo em questões paroquiais, de interesse dos políticos do grupo. Eu acredito que não vai dar para escapar disso. É claro que a direita está tentando comprometer os futuros presidentes das duas Casas, sejam eles quem forem, com a sua pauta. Agora, a gente sabe, por experiências anteriores, que essas promessas podem ou não ser cumpridas, dependendo da conveniência desses políticos, desses ocupantes de altos cargos do Congresso.

Acho muito difícil, pelo menos até onde a vista alcança, que haja uma mudança significativa nas posições do Congresso. Isso não quer dizer que, no futuro, não será possível, mas no momento acho pouco provável os futuros presidentes do Senado e da Câmara, sejam eles quem forem, concordarem com a diminuição do seu poder. Tem um postulado básico da ciência política segundo o qual quem tem poder não quer dividi-lo com ninguém. A não ser que seja forçado a isso por um poder maior. Agora, mesmo com as emendas de execução obrigatória, tem sempre um carguinho público que pode ser ocupado por alguém ligado a um deputado, a um senador, em troca de apoio no Congresso.

Como o sr. analisa as iniciativas do governo para interferir nas eleições do comando do Congresso, apesar dos desmentidos oficiais?

Eu acredito que o Executivo está se movimentando e vai se movimentar, sim, para ter o resultado mais favorável possível na composição das mesas do Senado e da Câmara. Agora, o que a gente percebe é que há alguns pontos que se tornaram cláusula pétrea para o Congresso e dos quais ele não vai abrir mão. Por exemplo, qualquer medida hoje que interfira negativamente nessa chamada pauta moral, na pauta dos costumes, na pauta da segurança pública, não tem muita chance de passar, porque quem se opõe a isso hoje está em franca minoria.

O impeachment do ministro Alexandre de Moraes não é tão simples quanto pode parecer

Na sua avaliação, qual a viabilidade de o pedido do impeachment do ministro Alexandre de Moraes que está sendo apresentado no Senado ser levado adiante?

Na verdade, a coisa não é tão simples quanto pode parecer, porque os regimentos internos, tanto do Senado quanto na Câmara dos Deputados dão uma latitude de decisão muito grande para os presidentes das duas Casas. Seria necessário futuramente modificar os dois regimentos, para que uma vez estabelecida uma maioria considerável, uma maioria robusta, pelo menos uma maioria absoluta de parlamentares favoráveis a um determinado curso de ação, que o presidente da Câmara ou do Senado tivesse de dar continuidade ao processo. Hoje, os presidentes têm poder demais, tanto na Câmara quanto no Senado, sendo que, no caso de processo de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal, cabe ao Senado conduzir, por maioria de dois terços.

O sr. acredita, então, que isso não deve caminhar no Senado?

Eu acredito que as cinco assinaturas que estão faltando para atingir mais da metade dos senadores vão ser mais difíceis de obter do que as 36 já obtidas no pedido de impeachment. Em quantos pedidos de impeachment do Alexandre de Moraes o Rodrigo Pacheco já sentou literalmente em cima? De qualquer forma, os senadores que apoiam o impeachment pretendem constranger o Pacheco com esse pedido, aproveitando que as eleições municipais armam o palanque para as eleições gerais de 2026. Para um partido se posicionar bem nas eleições gerais, é muito importante que ele tenha conseguido um bom resultado nas eleições municipais.

Outro dia, eu me deparei com o início de uma articulação para que os candidatos municipais do PSD, que é o partido do Pacheco, comecem a pressionar seus senadores mais ou menos nos seguintes termos: “Nós vamos perder as eleições aqui no nosso município, porque vocês são contra a assinatura do pedido de impeachment do Alexandre de Moraes”. Agora, ainda que isso não vá adiante, eu espero que a mera ameaça de abertura do processo de impeachment tenha, digamos assim, “capacidade de dissuasão”, para que os senhores ministros do Supremo caiam na real e retornem ao seu quadrado constitucional.

Além do impeachment, tem também o projeto de anistia aos presos dos atos de 8 de janeiro para o Congresso avaliar. Embora a narrativa dominante seja de que houve uma tentativa de golpe, muitos juristas, políticos e analistas que não têm nada de bolsonaristas dizem que, para eles, o que houve foi uma depredação de prédios públicos, como outras que ocorreram no passado, envolvendo o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Qual a probabilidade, na sua opinião, de essa anistia sair?

Eu acredito que o avanço mais rápido ou mais lento desse movimento pela anistia vai depender, mais uma vez, dos vasos comunicantes entre a opinião pública e seus representantes eleitos, porque a anistia é uma lei votada pelo Congresso. A esquerda está se manifestando contra a anistia porque, em sua visão, os manifestantes cometeram crimes como depredação, vandalismo etc. Agora, alguns juristas afirmam que a anistia é para isso mesmo, é para perdoar crimes. A anistia tecnicamente falando, é um perdão, um esquecimento em relação aos crimes cometidos por qualquer das pessoas envolvidas naqueles atos.

Eu tenho conversado de vez em quando com o desembargador aposentado Sebastião Coelho, que patrocina várias causas daquelas famílias, daqueles presos do 8 de janeiro. O Sebastião diz o seguinte para os seus clientes: “Se eu fosse vocês, não aceitaria nenhum acordo com o Ministério Público, pela simples razão de que a experiência histórica do Brasil nos mostra que, mais cedo ou mais tarde, as coisas mudam e você vai perder o direito de reclamar depois”. E o Sebastião Coelho não é o único a reconhecer a precariedade jurídica dessas ordens inconstitucionais. Agora, o que vai definir isso é o que antigamente os comunistas chamavam de “correlação de forças”. Vai depender de um Congresso que se sinta mais independente para tomar as medidas necessárias, entre elas, a abertura de um processo contra o ministro Alexandre de Moraes e a própria anistia.

Essa briga do Elon Musk com o Alexandre de Moraes ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil

Na semana passada, houve até uma tentativa na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de levar isso adiante, mas em princípio a decisão foi adiada para depois das eleições municipais por uma intervenção do governo e do Arthur Lira, presidente da Câmara. O sr. acredita que isso vai voltar mesmo à pauta?

Eu acho que vai depender sobretudo do resultado das eleições. Eu vi o Bolsonaro falando outro dia que o futuro do Brasil passa pelos municípios. Isso quer dizer que o PL e os bolsonaristas vão batalhar para fazer o maior número possível de prefeituras ou o maior número possível de prefeituras importantes, em cidades grandes, para provar sua força e garantir que, na eleição geral de 2026, mais bolsonaristas, mais representantes da direita entrem para o Congresso e possam efetivamente virar o jogo.

Muitos analistas consideram que a ação do ministro Alexandre de Moraes contra o X (antigo Twitter) e o empresário Elon Musk foi emblemática das restrições impostas hoje à liberdade de expressão no Brasil, de uma volta da censura. O que o sr. pensa sobre isso? O sr. concorda com esta visão?

Eu concordo. Acredito que a reação do Elon Musk foi um game changer, como dizem os americanos. Foi um fator que ajudou a virar o jogo. Essa briga do Alexandre de Moraes com o Elon Musk teve o resultado positivo de desacreditar a narrativa de que a direita é antidemocrática, a direita é fascista, a direita é isso, a direita é aquilo. Pelo menos a briga do Elon Musk com o Xandão ajudou a esclarecer a opinião pública mundial para algo de muito grave que estava acontecendo e que está acontecendo com as liberdades democráticas no Brasil.

Para finalizar, gostaria de voltar às eleições municipais. De acordo com as pesquisas, a esquerda está se mostrando competitiva, se não me engano, em quatro capitais, na disputa pelas prefeituras. Como isso se insere no contexto que a gente está vivendo? O sr. acredita isso reflete uma mudança de mentalidade na sociedade ou acha que as eleições municipais são definidas por questões locais mesmo e que o resultado se deve muito aos nomes que estão envolvidos na disputa?

A minha avaliação é que nas cidades pequenas realmente o local tende a prevalecer. Agora, nas cidades maiores, nas metrópoles, é inevitável que essa disputa municipal seja nacionalizada. Basta ver o exemplo de São Paulo. Hoje, as pessoas e a mídia só falam de duas coisas: Pablo Marçal e os incêndios. É o que está na pauta. É como se o Pablo Marçal já estivesse ensaiando uma candidatura presidencial, porque no Brasil inteiro se fala disso. Muitos candidatos em outras capitais já reclamam, falam assim: “Estão cobrindo pouco a gente e muito o Estado de São Paulo, a cidade de São Paulo”.

Para a direita se viabilizar em 2026, precisa conquistar uma parcela importante do centro político

Qual a sua avaliação do fenômeno Marçal? O sr. acredita que a disputa entre ele e a família Bolsonaro e a crítica que muitos bolsonaristas fazem a ele colocaram a liderança do ex-presidente na direita em xeque?

Diante do fenômeno do Pablo Marçal, o que eu acho que o Bolsonaro deveria fazer e não está fazendo é explicar por que a direita que ele representa depende de uma guinada ao centro para se viabilizar politicamente nas próximas eleições. Porque é justamente por isso que ele está apoiando o Ricardo Nunes, que não tem nada a ver com ele. O Nunes tem mais a ver com o presidente do PL, que é o Valdemar Costa Neto, do que com o presidente de honra, que é o Bolsonaro. De qualquer maneira, para a direita se viabilizar em 2026 precisa conquistar uma parcela importante do centro político. E justamente quando o Bolsonaro fez esse movimento surgiu o Pablo Marçal denunciando essa aliança.

Para o Marçal, é todo mundo comunista, aquele exagero todo. Agora, se o Pablo Marçal ganhar esta eleição, ele sem dúvida alguma se fortalece muito caso queira disputar a Presidência da República em 2026, embora isso ainda não esteja claro para mim. Mas, caso ele queira disputar a Presidência, uma vitória em São Paulo vai dar uma força enorme para ele. E, mesmo que ele não ganhe, eu acredito que o estrago já está feito.

Em que sentido o sr. diz que o estrago está feito?

No sentido da direita se dividir e, portanto, se enfraquecer. Porque o Bolsonaro, que até este momento é o grande líder nacional da direita, está apoiando um candidato de centro em São Paulo. E, se esse candidato de centro perder, isso vai mostrar uma dúvida. E se o Pablo Marçal ganhar? Vai mostrar uma divisão significativa da direita. Quer dizer, provavelmente a direita não marchará unida para 2026. Isso deve contagiar bastante o quadro. A esquerda está batendo palma.

Eu não aqui vou julgar das intenções do Marçal, até porque eu não as conheço, mas ele sem dúvida alguma neste momento representa um setor mais intransigente da direita e que vai buscar sua justificação lá atrás nas raízes do próprio Bolsonaro. Só que o Bolsonaro e seus colaboradores mais próximos já perceberam que, para se viabilizar eleitoralmente, a direita precisa do centro. O Pablo Marçal recusa isso. Então, não sei. Vamos aguardar.

Última pergunta: deixando de lado um pouco esse fenômeno do Marçal, se é possível fazer isso, quem deverá ser na sua percepção o herdeiro do Bolsonaro em 2026?

O bolsonarismo, quer o Bolsonaro tenha planejado isso ou não, permitiu o surgimento de um monte de outras lideranças de direita, ao contrário do que aconteceu com Lula, no PT. O próprio Pablo Marçal é uma delas. Agora, essa multiplicidade de lideranças talvez tenha que ser administrada, se a direita quiser realmente ter chances nas próximas eleições. Eu acredito que a eleição deste ano, a eleição municipal, ela vai fortalecer a direita. Agora, os líderes da direita precisam tirar as conclusões desse fortalecimento, fazer uma leitura correta dessa conjuntura, para que a direita não marche enfraquecida e dividida para as próximas eleições."

Entrevista por José Fucs

Foto: Elza Fiuza/Agencia Brasil

sexta-feira, 8 de março de 2024

‘Foco na desigualdade é coisa de invejoso; o importante é reduzir a miséria’: Rainer Zitelmann - José Fucs (Estadão)

‘Foco na desigualdade é coisa de invejoso; o importante é reduzir a miséria’, diz historiador alemão

Para o pesquisador, o que leva à queda sustentável da pobreza não são ações governamentais de redistribuição de renda nem programas internacionais de ajuda, mas o crescimento econômico, que prospera nas economias de livre mercado e em sociedades que veem os empreendedores de sucesso como modelo e não como bode expiatório


Por José Fucs 

Entrevista com  Rainer Zitelmann  -  Historiador e sociólogo

O Estado de S. Paulo, 6/03/2024

O historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, de 66 anos, faz parte de uma estirpe rara de intelectuais, que concentra seus estudos nos benefícios do capitalismo para o desenvolvimento e a redução da miséria, e não nos males que o sistema supostamente causa para a sociedade, como a maioria de seus pares.

Autor do livro O capitalismo não é o problema, é a solução (Ed. Almedina), publicado no Brasil em 2022, ele acabou de lançar uma nova obra que aborda os efeitos positivos gerados pela liberdade econômica no desenvolvimento e na redução significativa da miséria no mundo nos últimos 40 anos. O novo livro – cujo título provisório em português (O Milagre da economia de mercado e a riqueza das nações) nada tem a ver com o título em inglês (Como as nações escapam da pobreza– deve ser lançado no País em junho pela mesma editora.

Nesta entrevista ao Estadão, realizada por e-mail e complementada por videoconferência, Zitelmann fala sobre a preocupação crescente com o aumento da desigualdade social e sobre o trabalho produzido pelo economista francês Thomas Piketty, apresentado em detalhes no livro O capital no século 21, lançado em 2014, que se tornou uma referência internacional no assunto. “O que representou, na interpretação de Piketty, o pior momento (em termos de desigualdade) foi, na verdade, o melhor momento da história da humanidade, porque a pobreza nunca caiu tão rapidamente quanto nas últimas décadas”, afirma. “Eu estou interessado na pobreza, e não na desigualdade. O foco na desigualdade é coisa de gente invejosa.”

Segundo Zitelmann, as sociedades que têm uma atitude positiva em relação aos empreendedores bem-sucedidos vão alcançar o sucesso de forma mais consistente do que as que usam os ricos como bodes expiatórios. Confira a seguir sua entrevista ao Estadão.

Você acha que os chineses querem voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época?

Em seu novo livro, o sr. afirma que a liberdade econômica, e não as ações governamentais de redistribuição de renda e os programas internacionais de ajuda, é que promove a redução da pobreza no mundo. O que o leva a dizer isso?

No meu livro, eu menciono vários estudos científicos que chegaram à mesma conclusão nas últimas décadas. A ajuda ao desenvolvimento é, na melhor hipótese, ineficaz, e muitas vezes até contraproducente. Podemos observar isso na África: nenhum continente recebeu tanta ajuda para o desenvolvimento como a África. Mas as pessoas lá ainda são extremamente pobres. Os países asiáticos não receberam tanta ajuda. Seguiram um caminho diferente, permitindo mais liberdade econômica. Veja os casos da Coreia do Sul, de Taiwan, de Cingapura e mesmo de países que se autodenominam socialistas, como a China e o Vietnã. Eles fizeram enormes progressos na luta contra a pobreza com a liberalização de suas economias.

O sr. pode dizer de que forma a liberdade econômica beneficia os mais pobres? Isso não é mais uma crença ideológica do que uma conclusão baseada em fatos e na realidade?

Eu sou historiador e sociólogo. Para mim, apenas os fatos contam. Eu olho para a história para ver o que funciona e o que não funciona. Antes do surgimento do capitalismo, há 200 anos, 90% da população mundial viviam na pobreza extrema. Hoje, menos de 9% vivem na miséria. Na China, 45 milhões de pessoas morreram entre 1958 e 1962, em decorrência do “Grande Salto Adiante” implementado por Mao Tsé-Tung (1893-1976), que foi a maior experiência socialista da história. Na época da morte de Mao, 88% da população chinesa viviam na extrema pobreza. Depois, veio o Deng Xiaoping (1904-1997), que introduziu a propriedade privada e implementou a economia de mercado no país. Ele disse: “Deixem algumas pessoas ficar ricas primeiro”. Resultado: o número de pessoas vivendo na miséria na China hoje representa menos de 1% da população.

Como exatamente a liberdade leva à redução da pobreza e aos resultados que o sr. mencionou?

Liberdade econômica significa deixar os empreendedores fazerem seus negócios, ganharem dinheiro, ficarem ricos. Quando há liberdade na economia, o resultado é o crescimento, que é a única forma de reduzir a pobreza. Isso é o que muita gente não entende. Não é que o governo não precise fazer nada. Mas, se o governo não estiver tão envolvido nas coisas e deixar os empreendedores decidirem o que produzir e os consumidores, o que consumir, a economia vai ganhar dinamismo, o país vai crescer e a pobreza vai diminuir.

Muita gente defende a ideia de que a redistribuição de renda é essencial para reduzir a miséria e diz que a economia de livre mercado leva a mais desigualdade. Em sua avaliação, a redistribuição de renda não é uma forma de amenizar as dificuldades dos mais vulneráveis?

Vou continuar no caso da China para responder a esta pergunta: sim, a desigualdade hoje é maior do que era nos tempos de Mao. Não havia bilionários na China naquela época. Hoje, há mais bilionários na China do que em qualquer outro lugar do mundo, exceto nos Estados Unidos. Você acha que os chineses querem voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época? Durante minhas conversas na China, não encontrei ninguém que quisesse isso. Eu estou interessado na redução da pobreza e não na desigualdade. O foco na desigualdade é coisa de gente invejosa.

No livro O capital no século 21, publicado em 2014, o economista francês Thomas Piketty mostra, com base em dados históricos, que houve um grande aumento da desigualdade no mundo nas últimas décadas, e faz críticas duras a esta situação. Qual a sua opinião sobre o trabalho e as ideias de Piketty sobre o problema da desigualdade?

As teses de Piketty foram refutadas muitas vezes. Muitos dos números que ele usa estão simplesmente errados, como já foi provado repetidas vezes. Mas, mesmo que estivessem corretos, o que isso significaria? Ele diz, em primeiro lugar, que a desigualdade diminuiu durante a maior parte do século 20. Aí, a partir da década de 1980, veio o que ele considera como um momento ruim, quando a desigualdade aumentou. Mas o que, na interpretação de Piketty, representou o pior momento foi, na verdade, o melhor momento da história da humanidade, porque a pobreza nunca caiu tão rapidamente como neste período. Nas últimas décadas, desde o fim do comunismo na China e em outros países, o declínio da pobreza ocorreu num ritmo inédito na história. Em 1981, 42,7% da população mundial viviam na pobreza absoluta. Em 2000, o índice havia caído para 27,8% e hoje é inferior a 9%. Então, como você poder ver, tudo depende do foco, a desigualdade ou a pobreza, na análise da questão.

Como exatamente a liberdade leva à redução da pobreza e aos resultados que o sr. mencionou?

Liberdade econômica significa deixar os empreendedores fazerem seus negócios, ganharem dinheiro, ficarem ricos. Quando há liberdade na economia, o resultado é o crescimento, que é a única forma de reduzir a pobreza. Isso é o que muita gente não entende. Não é que o governo não precise fazer nada. Mas, se o governo não estiver tão envolvido nas coisas e deixar os empreendedores decidirem o que produzir e os consumidores, o que consumir, a economia vai ganhar dinamismo, o país vai crescer e a pobreza vai diminuir.

Muita gente defende a ideia de que a redistribuição de renda é essencial para reduzir a miséria e diz que a economia de livre mercado leva a mais desigualdade. Em sua avaliação, a redistribuição de renda não é uma forma de amenizar as dificuldades dos mais vulneráveis?

Vou continuar no caso da China para responder a esta pergunta: sim, a desigualdade hoje é maior do que era nos tempos de Mao. Não havia bilionários na China naquela época. Hoje, há mais bilionários na China do que em qualquer outro lugar do mundo, exceto nos Estados Unidos. Você acha que os chineses querem voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época? Durante minhas conversas na China, não encontrei ninguém que quisesse isso. Eu estou interessado na redução da pobreza e não na desigualdade. O foco na desigualdade é coisa de gente invejosa

O sr. afirma que, nos últimos 40 anos, US$ 568 bilhões fluíram para África sem efeitos positivos e sustentáveis na redução da pobreza. Com base no que o sr. diz isso? As ações realizadas com esse dinheiro todo não ajudaram os mais pobres na África?

Não. Sabemos disso pelos estudos que eu menciono no livro. A maior parte do dinheiro vai para os chamados “projetos”, que às vezes até melhoram as coisas no curto prazo, quando os recursos estão entrando. Mas, quando o dinheiro para de entrar e os projetos chegam ao fim, tudo volta a ser como antes. Além disso, grande parte do dinheiro fica nas mãos de elites corruptas. Então, a ajuda para o desenvolvimento não é uma forma de combater a pobreza. É uma forma de manter governos corruptos na África, com recursos fornecidos pelos pagadores de impostos americanos e europeus. Muito desse dinheiro vai também para as ONGs que desenvolvem os projetos. Elas precisam crescer, para manter o grande número de pessoas que empregam, e estão muito felizes com os relatórios que produzem, a burocracia que produzem. Estão interessadas principalmente na própria sobrevivência.

No seu livro, o sr. usa os casos do Vietnã e da Polônia como exemplos de países que reduziram de forma significativa a pobreza nos últimos 20 ou 30 anos, após a liberalização de suas economias. Na prática, como a liberalização ajudou estes países a reduzir a miséria?

Em 1990, o Vietnã era o país mais pobre do mundo. O que a guerra não destruiu, a economia planificada socialista destruiu. O PIB (Produto Interno Bruto) per capita era de US$ 98, inferior até aos US$ 130 da Somália. Mas, com as reformas pró-mercado lançadas pelos vietnamitas no fim da década de 1980, o número de pessoas vivendo na pobreza extrema caiu de cerca de 80% da população para 5%. A Polônia, na década de 1980, era um dos países mais pobres da Europa. Depois, com as reformas que abriram caminho para a economia de mercado, a Polônia se tornou a campeã de crescimento na Europa por três décadas seguidas e as condições de vida da população melhoraram muito.

Por que o sr. escolheu o Vietnã e a Polônia como exemplos para o seu livro? O que eles fizeram de diferente que os levou a ter resultados positivos na redução da miséria?

Todos os anos, desde 1995, a Heritage Foundation, dos Estados Unidos, publica o Índice de Liberdade Econômica, que mostra o quão livre é um país do ponto de vista econômico. Eu analisei todos os 177 países da lista para ver onde tinham ocorrido os maiores ganhos em liberdade econômica. E em nenhum outro país de dimensões equivalentes a liberdade aumentou tanto quanto na Polônia e no Vietnã. Isso me deixou curioso. Aliás, o índice de 2024 acabou de ser publicado e o Vietnã ganhou 13 posições em relação a 2023, subindo da 72.ª para a 59.ª posição, num momento em que a liberdade econômica se deteriorou em quase todo o mundo. Isso só confirma minha análise. Tive também uma ligação pessoal com os dois países, porque as duas mulheres com quem tive as relações mais longas da minha vida vieram da Polônia e do Vietnã.

Os dois países, o Vietnã e a Polônia, tinham uma economia planificada antes da liberalização, na qual o Estado controlava quase tudo, inclusive os preços dos bens e serviços. Muita gente acredita que a vida das pessoas era melhor naquela época. O que o sr. pensa sobre isso?

No meu livro, eu conto várias histórias sobre a vida cotidiana das pessoas no Vietnã e na Polônia. Conto a história de crianças que tinham de esperar horas na fila só para conseguir arroz – e, mesmo assim, não recebiam o suficiente para saciar a elas e a suas famílias. Considerando que os salários mensais das pessoas eram suficientes apenas para garantir as despesas de subsistência de uma semana, quase todo mundo tinha de encontrar fontes adicionais de ganho para compensar a escassez. Em Hanói, era comum as famílias usarem um cômodo de seus apartamentos para criar porcos. A criação de porcos era a melhor fonte de rendimento extra que havia e a maioria das famílias destinava um quarto em um apartamento de três quartos para os porcos, tendo de conviver com o barulho e o mau cheiro, em condições de higiene terríveis.

No caso da Polônia, a situação era semelhante?

Na Polônia, acontecia a mesma coisa. As pessoas tinham de esperar horas e horas nas filas – e algumas vezes até dias – para comprar coisas para o seu dia a dia. Muitas até pagavam para outras pessoas ficarem para elas na fila. E, quando chegava a vez delas, acabavam comprando coisas que nem precisavam, porque não sabiam se iriam faltar depois. De repente, elas podiam até trocar esses produtos por outros, com outras pessoas. As longas filas eram muito típicas do socialismo. Na Polônia, havia também selos para comprar certos produtos que tinham oferta limitada. Se você perdesse o selo, tinha de fazer uma dieta, porque não podia repor. Estes são os melhores exemplos de que o sistema não funcionava – e isso não aconteceu nos 1950 e 1960, no pós-guerra, mas nos anos 1980.

Nestes países, eu falei com muitas pessoas e também fiz muitas entrevistas. Não queria que meu livro fosse apenas cheio de números, embora ele tenha muitos dados. Queria que as pessoas tivessem uma palavra a dizer e falassem sobre suas vidas naquela época e agora. E, como no caso da China, não conheci ninguém no Vietnã e na Polônia que quisesse voltar aos tempos da economia socialista.

No caso da Polônia, o país conseguiu unir a liberdade econômica com a democracia. Já o Vietnã manteve o sistema autoritário de partido único que também se mantém na China, em Cuba e na Coreia do Norte. De que forma isso influenciou o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza nos dois países?

No Vietnã, em razão do regime de partido único, as reformas econômicas foram mais fáceis de implementar do que na Polônia. É preciso compreender que, num primeiro momento, as reformas tendem a piorar as coisas. Na Polônia, não foi diferente. O desemprego, por exemplo, que era camuflado nos tempos do comunismo, ganhou visibilidade. Numa democracia, durante o período de transição, os meios de comunicação social e os partidos politicos que se opõem à liberalização da economia incitam as pessoas contra as reformas e defendem mais intervenção estatal. É exatamente isso que estamos vendo agora na Argentina, após a eleição de Javier Milei para a presidência.

O sr. poderia dar um exemplo de um país rico que empobreceu com a implantação de um regime socialista, supostamente destinado a promover a redução da desigualdade e da miséria?

Um exemplo emblemático é a Venezuela. Nos anos 1970, a Venezuela era um dos países mais ricos do mundo. A Venezuela era uma boa democracia, com uma economia de mercado dinâmica, e as pessoas tinham um bom padrão de vida. Aí, com a ascensão do Hugo Chávez (1954-2013), tudo mudou. Os primeiros dois ou três anos nem foram tão ruins, porque ele teve a sorte de os preços do petróleo estarem em alta no mercado internacional, garantindo recursos para bancar as ações sociais. Mas aí o Chávez começou com as nacionalizações, os preços do petróeo caíram e as coisas se deterioraram rapidamente. Mais de 25% da população da Venezuela, o equivalente a 7,5 milhões de pessoas, fugiram do país desde então. Se isso pôde acontecer num país como a Venezuela, pode acontecer em qualquer lugar.

Quando as coisas chegam no ponto em que chegaram na Venezuela, a insatisfação da população não acaba levando a uma mudança no quadro?

Algumas pessoas pensam que as coisas tem de se tornar muito, muito ruins para surgir uma boa solução, mas isso não é verdade. A história não é um filme de Hollywood com garantia de final feliz. As coisas também podem se tornar piores, como aconteceu na Alemanha nos anos 1930, quando Adolph Hitlerchegou ao poder. Ninguém podia imaginar que algo terrível iria acontecer, mas aconteceu. Com o Hugo Chávez, foi a mesma coisa. Eu me lembro que os intelectuais de esquerda da Europa e dos Estados Unidos estavam entusiasmados com o tal socialismo do século 21 defendido pelo Chávez, porque finalmente tinham um exemplo de uma nova utopia, já que na Coreia do Norte as coisas não funcionaram tão bem como eles imaginavam. Mas, no fim, o resultado na Venezuela foi o pior possível. O caso da Venezuela é um aviso de que as nações também podem se tornar mais pobres.

Além da Venezuela, que outro caso o sr. citaria de um país que era rico e empobreceu, em decorrência de uma maior intervenção do Estado na economia, da perseguição aos ricos e da implementação de uma política de distribuição de renda?

Outro exemplo que ilustra bem este fenômeno é a Argentina. Muita gente não sabe, mas a Argentina também já foi muito rica. Há cem anos, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo, tanto quanto os Estados Unidos. Aí eles começaram com essa política peronista de redistribuição de renda e deu no que deu, com um aumento considerável da pobreza ao longo do tempo. De um lado, eu tenho dúvidas hoje se as pessoas terão um ou dois anos de paciência para esperar os efeitos positivos das reformas que estão sendo implementadas pelo Milei. Como eu disse há pouco, a experiência da história mostra que algumas coisas ficam piores no começo. O desemprego cresce e às vezes há até recessão. Mas elas foram pacientes o suficiente para esperar 80 anos para mudar, vendo a situação do país se deteriorar cada vez mais, desde 1945. Com exceção da década de 1990, a Argentina teve inflação de dois dígitos em todos os anos. Era algo normal para eles.

O sr. afirma que, em geral, os ricos são “demonizados” e não admirados em quase todo o mundo. São vistos como “exploradores " dos pobres por muitas pessoas, especialmente pelos intelectuais. Mas, na sua visão, ter uma atitude positive em relação aos ricos e ao capitalismo é algo que favorece o desenvolvimento e a redução da miséria. O que a atitude das pessoas em relação aos super-ricos tem a ver com a diminuição da pobreza?

Eu realizei uma pesquisa sobre a imagem dos ricos em 13 países. A inveja social dos ricos é mais acentuada na Françae em seguida na Alemanha. Já os poloneses e os vietnamitas têm uma atitude positiva em relação aos ricos. A Universidade de Comércio Exterior de Hanói até me convidou para participar de um curso sobre o preconceito contra os ricos e o que é possível fazer contra isso. Não consigo imaginar uma universidade na Europa ou nos Estados Unidos realizando um workshop como esse. As sociedades nas quais as pessoas consideram os empreendedores bem-sucedidos como modelo alcançarão o sucesso de forma mais consistente do que as que veem os ricos como bode expiatório. Quando há pessoas que querem ser ricas e têm possibilidade de se tornarem ricas, as coisas funcionam. Recentemente, escrevi um livro sobre o ódio aos ricos no Chile, junto com o economista chileno Axel Kaiser, chamado El Odio a los Ricos (O ódio aos ricos). No livro, nós mostramos que os problemas no Chile, que era o país mais liberal e mais bem-sucedido da América do Sul, começaram com uma campanha contra os ricos.

Muitas pessoas acreditam que os mais ricos enriquecem à custas dos mais pobres, em linha com as ideias propagadas por Karl Marx. Qual a sua visão sobre esta questão?

No coração das crenças de todos os socialistas, há esta ideia de soma zero, de que os ricos só se tornam ricos porque tiram dinheiro dos pobres. Mas eu sempre pergunto: como explicar que, na China, por exemplo, o contingente de pessoas vivendo na miséria caiu de quase 90% para 1% da população em 40 anos, enquanto o número de bilionários aumentou de 0 para 600? Não é lógico. Isso aconteceu no mundo inteiro. A população mundial vivendo na pobreza extrema passou de 43% do total em 1980 para 9% hoje, enquanto o número de bilionários aumentou de 500 para 2.700. A razão que leva à redução da pobreza e torna algumas pessoas muito ricas é a mesma: o crescimento econômico. Este é meu principal argumento contra o pensamento de soma zero. Essas pessoas pensam a mesma coisa em relação ao mundo: que os países ricos têm de dar dinheiro para os pobres, para eles melhorarem sua situação. Também é um tipo de pensamento de soma zero. Elas não entendem que não é assim que funciona.

Na China, o presidente Xi Jinping e o Partido Comunista começaram a falar há alguns anos sobre “prosperidade comum”, em razão do aumento do número de bilionários e do crescimento da desigualdade. Isso levou também o regime a adotar medidas para controlar mais a livre iniciativa e estimular as doações e a redistribuição de renda. Qual a sua avaliação sobre esta questão?

Em 2019, um relatório de trabalho do Fórum Económico Mundial afirmava que “o setor privado da China – que vem se recuperando desde a crise financeira global de 2008– agora é o principal motor do crescimento econômico do país”. O relatório mencionava também a combinação dos números 60, 70, 80 e 90, que é frequentemente utilizada para descrever o papel do setor privado para a economia chinesa. O setor privado chinês contribui com 60% do PIB do país e é responsável por 70% da inovação, 80% da mão de obra urbana e 90% dos novos empregos. A riqueza privada também é responsável por 70% do investimento e 90%das exportações.

A ascensão da China resultou totalmente da introdução da propriedade privada e das reformas capitalistas que fizeram recuar a influência do Estado. Nos últimos anos, contudo, a tendência começou a se inverter. O Estado voltou a interferir muito mais na economia e isso já levou a um abrandamento do crescimento econômico chinês.

Na sua opinião, o que pode ter um impacto negativo no combate à pobreza e na melhoria da qualidade de vida da população mundial nas próximas décadas?

O esquecimento das pessoas. Vemos isso acontecer em todos os lugares. Depois de um tempo, as nações esquecem por que tiveram sucesso. Acabei de dar o exemplo da China, mas há muitos outros. Durante anos, em quase todo o mundo, os países estão indo na direção de uma economia mais planificada. Os socialistas, hoje, controlam quase toda a América Latina – a vitória de Javier Milei é a única exceção em anos. Os Estados Unidos e a Europa também estão caminhando cada vez mais para uma economia planificada. No seu grande discurso em Davos, em janeiro, o Milei enfatizou que, em geral, o socialismo moderno já não promove a nacionalização dos meios de produção. Segundo ele, isso não é mais necessário. O mercado livre está sendo cada vez mais sufocado pela intervenção governamental na economia, pela regulamentação cada vez maior, pelo aumento da tributação e pelas políticas dos bancos centrais. Os meios de produção e os ativos imobiliários até podem continuar a ser considerados como propriedade privada no papel. Mas só os títulos formais de propriedade se mantêm, porque os supostos proprietários perdem cada vez mais o controle sobre seus ativos, na medida em que o Estado é que lhes diz o que fazer (e o que não fazer) com eles.

 

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Com Lula, Brasil gasta como um milionário, apesar de ter renda de classe média - José Fucs (OESP)


Com Lula, Brasil gasta como um milionário, apesar de ter renda de classe média

Presidente volta a ignorar que caixa do Tesouro é um só e insiste em fórmula heterodoxa para contabilizar despesas do governo e maquiar rombo colossal nas contas públicas

 

Coluna José Fucs

O Estado de S. Paulo, 11/12/2023

Depois de uma “pausa tática”, destinada a acalmar temporariamente a turba indignada com suas declarações contra o equilíbrio fiscal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a defender a ladainha que opõe “gasto” e “investimento” do governo.

Para Lula, não apenas as despesas com obras de infraestrutura deveriam ser enquadradas como “investimento”, mas também as realizadas com educação, saúde e até com benefícios sociais. Mais que isso, ele defende a ideia de que tudo que for considerado “investimento” deve ficar fora do resultado primário das contas públicas, que reflete o saldo das receitas e despesas governamentais em cada exercício, sem contar os juros da dívida pública, como se isso resolvesse o problema da limitação dos recursos orçamentários.

“Quando você vai fazer o Orçamento, sempre aparece alguém para dizer que está gastando demais”, pontificou Lula, em evento realizado no Rio de Janeiro na semana passada, repetindo o velho discurso, depois de dar alguns dias de folga aos brasileiros em relação ao assunto. “O Brasil sempre tratou investimento em educação como gasto. Cortar na educação é mexer na qualidade. Quando se corta em saúde, é menos médico”, acrescentou.

Como se não soubesse que o caixa do Tesouro é um só, Lula parece propagar essa narrativa pedestre, que só convence os incautos, como estratégia para justificar a gastança do governo e o rombo colossal que está provocando nas contas públicas, sem que ele seja responsabilizado pela situação , como prevê a legislação em vigor.

Na verdade, a maneira de contabilizar as despesas formalmente não faz muita diferença. Também não muda muito o resultado final se o governo recorrer à “contabilidade criativa” para maquiar o déficit fiscal e mostrar uma fotografia distorcida da realidade. De um jeito ou de outro, independentemente de o dinheiro ser usado para custeio ou para investimento, a parcela que exceder a arrecadação vai turbinar a dívida pública. Mais dia, menos dia, é lá que a farra vai acabar, qualquer que seja o artifício contábil adotado para “dourar” os gastos.

Além disso, para financiar a gastança, o Tesouro terá de emitir títulos públicos ou simplesmente imprimir dinheiro, drenando poupança da sociedade que deveria ser destinada à iniciativa privada. Ao injetar na economia recursos que estão que estão além de suas possibilidades, o governo também contribui de forma decisiva para aumentar a inflação e, por tabela, manter os juros na estratosfera, com efeitos perversos para os cidadãos e para as empresas, como já aconteceu em outras administrações do PT e como está acontecendo agora.

Só em 2023, a previsão oficial é de que o rombo fiscal chegue a R$ 177 bilhões, o equivalente a 1,7% do PIB (Produto Interno Bruto). Somando os gastos com juros da dívida pública, o déficit no ano deve chegar a 7,9% do PIB, um resultado inferior apenas ao registrado em 2020, no auge da pandemia, e em 2015, quando o processo de impeachment de Dilma, ancorado nas chamadas “pedaladas fiscais”, já estava em andamento.

No curto prazo, isso pode até alavancar o crescimento do País, como disse a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, em encontro eleitoral realizado pela legenda no fim de semana, e dar maior sensação de bem estar à população. Mas, no médio e no longo prazos, produz resultados catastróficos, como aconteceu com Dilma. Lula, porém, não se mostra muito preocupado com o saldo deixado pela política do “gasto é vida”, que marcou a gestão de sua pupila e levou o País à maior recessão da história em 2015 e 2016, com uma queda de quase 8% no PIB, e está “dobrando a aposta”.

Não é preciso ser um financista com PhD em Chicago para entender que o gasto sem lastro é insustentável

Todas as nações que seguiram por esse caminho se deram mal. Foi assim com a Grécia, na década passada, cujo governo gastou como se não houvesse amanhã, achando que poderia oferecer à população um nível de vida escandinavo sem ter condições para tanto, e foi assim também com a Argentina, que agora terá de pagar o preço de um ajuste penoso em suas contas, aqui no nosso quintal, para sair do coma e voltar a respirar sem aparelhos.

Não é preciso ser um financista com PhD na Universidade de Chicago para entender que essa gastança sem lastro é insustentável. Qualquer brasileiro sabe que, se fizer a mesma coisa que Lula está fazendo com as contas públicas do País, vai quebrar rapidinho. Por um tempo, é possível até ficar pendurado no cheque especial, pagando juros estratosféricos e vendo a dívida crescer em progressão geométrica. Agora, se a gente gastar mais do que ganha o tempo todo, querendo levar uma vida de ostentação que não tem como bancar, vai chegar uma hora em que a realidade vai se impor. A gente vai se tornar inadimplente, entrar no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito), sofrer processos judiciais, perder bens e ficar sem crédito na praça.

Qualquer um que zele pelo seu nome sabe que não dá para viver como um milionário, sem medo de ser feliz, tendo uma renda de classe média. Não dá para comprar um SUV da BMW ou da Mercedes, se o orçamento só tem folga para a compra de um carro menos vistoso e mais acessível. Não dá também para colocar nossos filhos numa escola bilíngue em tempo integral ou buscar hospitais de excelência para a família, se a gente só tem condições de matriculá-los numa escola pública e de ser atendido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) ou por um hospital privado mais modesto. Tampouco dá para viajar em primeira classe ou executiva e se hospedar em hotéis cinco estrelas, em vez de se apertar na econômica e ficar em pousadas mais populares, se o luxo não couber no nosso bolso.

Lula, o PT e seus aliados não gostam de comparar a gestão das contas públicas com a gestão das finanças pessoais. Sempre que tal comparação vem à tona, eles costumam argumentar que as duas coisas não são comparáveis, porque o governo tem a prerrogativa de colocar a guitarra (máquina de imprimir dinheiro) para funcionar. É inevitável, no entanto, fazer um paralelo entre a administração das finanças pessoais e o que está acontecendo no Brasil de Lula e do PT.

Como mostra a história, não há atalhos para a prosperidade. Não adianta querer socializar a miséria. Nem achar que o Estado é um saco sem fundo. Os recursos são limitados e ainda não inventaram uma forma de multiplicá-los num passe de mágica. Só o trabalho duro, ano após ano, é capaz de produzir riqueza e garantir a melhoria geral das condições de vida da população, se houver comedimento nos gastos.

Gastar de forma irresponsável, acreditando que é possível superar as restrições do Orçamento mudando o enquadramento das despesas, para dar a ilusão de que as contas não estão no vermelho, com quer Lula, só vai agravar o problema. A fatura, como sempre, vai ficar para todos nós.


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

A esquerda latino-americana continua com os velhos cacoetes e manias - Christopher Garman, entrevista a José Fucs

‘A ESQUERDA ESTÁ DE MÃOS ATADAS NA AMÉRICA LATINA’!

José Fucs

O Estado de S. Paulo, 18/08/2022

O cientista político Christopher Garman, não “compra” a ideia de que o avanço da esquerda na América Latina se deve a uma guinada ideológica dos eleitores, como dizem por aí políticos e militantes do grupo. Segundo ele, o que está levando a esquerda a vitórias em série na região é “um profundo sentimento desencanto com o sistema e de revolta contra o status quo”. Nesta entrevista, que faz parte da série sobre o avanço das esquerdas na América Latina lançada pelo Estadão, ele afirma também que, no atual cenário regional e global, os governantes do grupo na região “estão de mãos atadas” e terão dificuldade para cumprir as promessas de campanha.

Como o sr. analisa a atual onda de governos de esquerda na América Latina? O que está levando a esta guinada para a esquerda na região? 

Isto não está acontecendo por causa de uma predisposição em favor de plataformas de esquerda. É um movimento de revolta contra o status quo. Quando a gente olha as pesquisas, a América Latina aparece no topo do ranking global de desencanto. A geologia da opinião pública está podre. Estamos vivendo um ambiente de insatisfação muito grande com a qualidade dos serviços públicos, com falta de confiança no sistema de forma mais ampla. A confiança nas lideranças políticas, nos partidos, no Judiciário, na mídia, está num nível muito baixo.

 

Na sua visão, a que se deve este alto grau de desencanto? 

É fruto de uma expansão brutal da classe média no período de alta dos preços das commodities, do início dos anos 2000 até 2011, 2012. Milhões de famílias saíram da miséria. Isso levou a uma mudança nas demandas eleitorais. A preocupação passou a ser mais segurança, saúde, educação. O eleitor associou a corrupção à má qualidade dos serviços públicos. Antes da pandemia, a corrupção havia se tornado o primeiro ou o segundo tema mais relevante no Brasil, no Chile, na Colômbia, no México, no Peru, e houve esse descrédito total no sistema. No fundo, o que a gente está vendo é uma combinação deste choque de falta de confiança com novas demandas de uma classe média emergente que são difíceis de entregar num contexto de crescimento econômico mais baixo.

 

Como a pandemia se encaixa neste cenário?

A pandemia pegou a América Latina, em termos epidemiológicos, com mais força do que outras regiões. Então, houve uma queda mais acentuada do PIB (Produto Interno Bruto), a desigualdade aumentou e a capacidade de os governos atenderem a essas demandas caiu. Isso exacerbou esse mal estar. Para completar, veio o choque de inflação global que reforçou a queda de renda das famílias mais pobres. Este é o caldeirão de revolta que está elegendo a esquerda na região. Como mais governos de direita e de centro estavam no poder, eles estão sentindo mais. A esquerda estava mais bem posicionada para navegar nesta onda.

 

Em que medida esta nova onda de esquerda é diferente da que se propagou pela América Latina do início dos anos 2000 até meados da década passada?

O quadro atual é muito diferente. A primeira onda aconteceu em meio ao boom das commodities e a um superciclo econômico e político que proporcionou uma abundância de recursos e levou a taxas de aprovação muito altas dos governantes. Agora, este ambiente de desencanto vai impactar a esquerda politicamente. Os governantes vão ter uma lua de mel curta e uma taxa de aprovação estruturalmente baixa. A capacidade de os governantes se reelegerem também deve diminuir estruturalmente.

 

Agora, hoje também está ocorrendo uma alta das commodities. Isto também não pode ter um impacto positivo para os atuais governantes latino-americanos? 

Sim, isto ajuda o governo do lado da arrecadação. Mas, em termos de trocas, não está ajudando muito, porque o valor das importações, dos insumos, também subiu muito. Os preços das commodities estão elevados, mas a renda caiu no Brasil e em outros países. A sensação de bem estar não está acompanhando este ciclo. Os ganhos políticos, portanto, não são os mesmos que os da primeira onda. Além disso, há um cenário de recessão nos Estados Unidos, na Europa, e de desaceleração na China. Isso deverá conter esta alta das commodities. Todos os países da América Latina aumentaram os juros para tentar controlar a inflação. A conta vai chegar nos próximos 12 meses. 

Que efeito isso deve ter? 

Os mesmos fatores que estão levando líderes da esquerda a ganhar as eleições vão dificultar seus governos e colocar restrições no que podem entregar e fazer. Por isso, o potencial de estrago da esquerda hoje está mais limitado, porque eles não vão ter capacidade de se reeleger, de encaminhar medidas mais ambiciosas, até porque muitas vezes não têm apoio parlamentar e terão de compor com o centro. Então, os governos de esquerda estão com as mãos atadas.


quarta-feira, 1 de junho de 2022

Os defensores do capitalismo perderam a guerra ideológica’, diz historiador alemão: Rainer Zitelman - José Fucs (Estadão)

 Os defensores do capitalismo perderam a guerra ideológica’, diz historiador alemão

Para o escritor, apesar da resiliência do sentimento anticapitalista, a história mostra que o sistema de livre mercado – e não o socialismo – é o maior responsável pela redução da pobreza no mundo

Entrevista com

Rainer Zitelmann, historiador e sociólogo 

José Fucs, O Estado de S.Paulo

1 de junho de 2022

O historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, de 64 anos, seguiu à risca a velha máxima atribuída a Georges Clemenceau(1841-1929), ex-primeiro-ministro francês, de que “um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração e um homem que seja um socialista aos 40 não tem cabeça”. 

Militante maoísta na juventude, Zitelmann se tornou um defensor entusiasmado do sistema de livre mercado e um crítico implacável do socialismo e do pensamento anticapitalista. Ex-jornalista, ex-empresário e investidor do mercado imobiliário, ele escreveu uma série de livros sobre o capitalismo e sobre os multimilionários, que se tornaram referências nas respectivas áreas.

Nesta entrevista ao Estadão, Zitelmann – que dará uma palestra na I Conferência Internacional da Liberdade, na sexta-feira, 3, em São Paulo, com transmissão ao vivo pelo YouTube – fala sobre seu livro "O capitalismo não é o problema, é a solução" (Ed. Almedina), lançado recentemente no Brasil. Ele apresenta casos concretos e argumentos em favor do livre mercado, em comparação com as experiências fracassadas do chamado “socialismo real”, e analisa a resiliência das ideias socialistas após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Discute também as questões da desigualdade e da redução da pobreza, em meio a farpas disparadas contra intelectuais e acadêmicos que, em sua visão, reforçam o sentimento anticapitalista no mundo. 

Rainer Zitelmann
Rainer Zitelmann, historiador e sociólogo Foto: Rainer Zitelmann

O sr. afirma que o capitalismo não é o problema, é a solução. O que o leva a dizer isso de forma tão categórica? 

Vou lhe dar só um dado, mas posso lhe dar outros. Há 200 anos, por volta de 1820, antes do capitalismo, 90% da população mundial viviam na pobreza extrema. Hoje, são menos de 10%. Mais da metade da queda se deu nos últimos 35 anos. Veja o que aconteceu na China. No fim dos anos 1950, 45 milhões de pessoas morreram como resultado do chamado “Grande Salto para a Frente” empreendido por Mao Tsé-Tung. Em 1981, cinco anos depois da morte de Mao, 88% da população chinesa ainda viviam em extrema pobreza. Foi mais ou menos quando eles começaram a introduzir a propriedade privada e as reformas pró-mercado no país. Hoje, menos de 1% estão nesta situação. Isso nunca aconteceu na história. Nunca tantas pessoas saíram do estado de extrema pobreza em tão pouco tempo como resultado de reformas pró-mercado. 

O economista francês Thomas Piketty afirma em seu livro “O capital no século 21”, lançado em 2014, que o capitalismo levou ao aumento da desigualdade no mundo, especialmente nas últimas décadas. Como o sr. analisa a questão da desigualdade e as críticas de Piketty ao capitalismo? 

Antes de mais nada, é preciso considerar que o próprio Piketty reconhece que, na maior parte do século 20, a desigualdade diminuiu. Agora, ele diz que, a partir dos anos 1980, 1990, tempos ruins prevaleceram, levando em conta principalmente o que aconteceu nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Ironicamente, foi justamente neste período que houve o maior progresso na luta contra a pobreza extrema no mundo. Para mim, a desigualdade não é o ponto principal. A prioridade é a redução da pobreza. No caso da China, que mencionei há pouco, a desigualdade obviamente aumentou nas últimas décadas, com as reformas pró-mercado. Hoje, a China tem muito mais bilionários do que tinha antes. Nos tempos de Mao não havia um único bilionário na China. Hoje, há centenas de bilionários, tantos quanto nos Estados Unidos. Em Pequim, há mais bilionários do que em Nova York. Mas ninguém na China está pedindo para voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época.  

Ironicamente, mesmo que a desigualdade tenha aumentado nos Estados Unidos, como diz Piketty, milhões de pessoas estão tentando imigrar para lá, em busca de uma vida melhor. Como o sr. vê esta questão?

Este é um dos meus principais argumentos em favor do capitalismo. É importante olhar para onde os imigrantes vão. Eles sempre vão de países com menos liberdade econômica para países com mais liberdade econômica. Na época do comunismo, ninguém falava que queria ir da Alemanha Ocidental para a Alemanha Oriental. Hoje, ninguém vai dizer que quer ir de Miami para Cuba. Talvez para passar umas férias, por umas duas semanas, e olhe lá. Ninguém diz também que quer ir da Coreia do Sul para a Coreia do Norte. Ou que quer “escapar” do capitalismo do Chile para o “paraíso socialista” da Venezuela.  

Além da China e do Chile, que outros exemplos o sr. poderia citar de países que prosperaram nas últimas décadas, a partir da adoção ou do fortalecimento do sistema de livre mercado? 

No Vietnã, por exemplo, eles fizeram um grande progresso econômico nos últimos 30 anos, com o aumento da liberdade econômica. As pessoas lá estão muito melhor hoje. A Polônia é um dos países que mais aumentaram a liberdade econômica no mundo nas últimas décadas. É incrível o que aconteceu lá desde a queda do comunismo. Então, na prática, o que a gente vê é que o capitalismo funciona.

“Nos anos 1990, ninguém acreditava no socialismo, porque a derrocada do comunismo era muito recente”

O sr. mencionou o caso do Chile, mas lá a esquerda, que defende maior intervenção do Estado na economia, venceu as últimas eleições. Se o sistema era tão bom no Chile, como o sr. afirma, por que a esquerda ganhou a eleição?

Às vezes, as pessoas esquecem a razão pela qual eram bem-sucedidas. O Chile alcançou um grande progresso econômico, em termos de PIB (Produto Interno Bruto) per capita e também de outros indicadores, nas últimas décadas. Muita gente não sabe, mas a desigualdade diminuiu no Chile, nos últimos 10 anos. Só que as pessoas votaram num candidato socialista. Isso não acontece só no Chile, mas em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, na Alemanha. Na China, está ocorrendo a mesma coisa. Eu tenho um amigo na China que diz que eles foram tão bem-sucedidos não por causa do Estado, mas apesar do Estado. Hoje, tem pessoas na China querendo voltar a ter mais Estado e menos mercado. Elas esqueceram a razão que as levou a ser bem-sucedidas.  

Agora, no Chile, parece que havia também um desejo de mudança e uma grande rejeição pelo candidato da direita, que era pró-mercado, mas mostrava certa nostalgia pelos governos militares. Isso também não deve ser levado em conta?

Com certeza. Minha namorada, que é do Chile e vive há três anos e meio em Berlim, votou no Gabriel Boric, o candidato da esquerda, que venceu as eleições presidenciais. Votou nele porque achava que o (José Antonio) Kast, o outro candidato, era muito de direita, talvez como o Bolsonaro, no Brasil. Ela esperava que Boric fosse meio moderado. Mas agora já tem dúvidas de que tomou a decisão certa. Está vendo que ele não era tão moderado quanto imaginava e claro que ela não quer ver o Chile voltar aos tempos do (Salvador) Allende, nos anos 1970. Muita gente está tendo a mesma percepção. Há um desapontamento com o Boric. No ano passado, 78% dos eleitores do Chile votaram em favor da adoção de uma nova Constituição no país. Hoje, segundo as últimas pesquisas, a maioria se declara contra a nova Constituição, que é defendida pela esquerda e será votada em 4 de setembro.    

No Brasil, está acontecendo algo parecido. O ex-presidente Lula, que é o principal candidato da esquerda nas eleições presidenciais e aparece na frente nas pesquisas, também está buscando alianças de centro, para mostrar uma face mais moderada ao eleitor. Como o sr. vê esta estratégia?

Isso não me surpreende. É sempre assim: antes das eleições, eles tentam se mostrar mais moderados, dizem que não são de esquerda, para conquistar os eleitores de centro. Eles sabem que os esquerdistas vão votar neles de qualquer jeito, mas tentam atrair, como sempre, as pessoas do centro. A minha impressão é de que o Lula está tentando fazer a mesma coisa agora no Brasil, procurando mostrar que mudou um pouco, que não é tão de esquerda e ficou mais moderado. Pode ser também que seja uma questão de falta de alternativa. O Bolsonaro, especialmente na pandemia, não foi bem, cometeu muitos erros. Acredito que o caso do Bolsonaro no Brasil é muito parecido com o do Kast, no Chile. Algumas pessoas só votaram no Boric porque não gostavam de Kast, porque ele era da direita radical.  

Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, muita gente acreditava que o socialismo ficaria para trás. Mas hoje, 33 anos depois, o que se vê é que as ideias anticapitalistas não apenas sobreviveram, como se revigoraram. Em sua visão, o que explica esta resiliência do socialismo, mesmo com o fracasso do “socialismo real”?

Nos anos 1990, ninguém acreditava no socialismo, porque a derrocada do comunismo era muito recente. Mas, com o tempo, as pessoas esqueceram o que aconteceu e o anticapitalismo se tornou mais forte de novo. Mesmo na Alemanha. Nós tivemos um plebiscito no ano passado para decidir sobre a expropriação de propriedades de companhias imobiliárias com mais de 3 mil apartamentos. 56% dos eleitores em Berlim votaram pela expropriação e pela nacionalização dos apartamentos excedentes. Na Alemanha Oriental eles tinham imóveis de propriedade do Estado. Foi um desastre. Adolf Hitler congelou os aluguéis. Os comunistas fizeram a mesma coisa. Foi outro desastre. Os aluguéis eram muito baratos na Alemanha Oriental, mas, quando o Muro de Berlim caiu, 26% da população não tinham o próprio banheiro. Tinham de sair de casa para ir ao banheiro. Na Alemanha Ocidental, mesmo sem congelamento de aluguéis, todo mundo tinha o seu banheiro em casa. Quando houve a reunificação da Alemanha, foi preciso fazer um investimento de 80 bilhões de euros (R$ 408 bilhões) para construir novas casas e renovar e modernizar as antigas casas da antiga Alemanha Oriental. Mesmo assim, agora, o último governo de Berlim congelou os aluguéis e a população votou pela nacionalização dos imóveis. O filósofo (Friedrich) Hegel (1770-1831) disse certa vez que “a única coisa que você pode aprender com a história é que as pessoas não aprendem nada com ela”. É uma afirmação muito pessimista, mas ele tem um ponto aí. 

“Os inimigos do capitalismo são muito mais fortes na comunicação” 

O anticapitalismo parece ter um grande apelo em setores influentes da sociedade e um espaço imenso no debate. Até que ponto isso também ajuda a entender a reabilitação das ideias socialistas?

Os defensores do livre mercado perderam a guerra das ideias, a guerra ideológica. Os inimigos do capitalismo são muito mais fortes na comunicação. As pessoas que deveriam defender o capitalismo, como os empreendedores, não fazem isso. Os socialistas comparam o capitalismo real com a utopia de uma sociedade perfeita. Isso seria o equivalente a comparar o casamento de alguém não com o de outras pessoas, mas com um casamento ideal do qual se fala em algum livro. Não é justo. Se a gente comparar o nosso casamento com os de nossos amigos, talvez ele não seja tão ruim quanto pode parecer. Eu sou um historiador. Levo em conta os fatos históricos. No meu livro, não falo sobre teorias, mas de fatos, evidências. Comparo o capitalismo com o que é possível comparar, com exemplos concretos da história: Chile X Venezuela, Coréia do Sul X Coreia do Norte, Suécia nos anos 1970 X Suécia depois, o Reino Unido antes e depois da (Margaret) Thatcher. Quando você fala dos problemas que existiam na União Soviética e em outros países comunistas, eles dizem: “Nós não queremos nada parecido com o que foi a União Soviética ou a Alemanha Oriental. Queremos algo diferente, queremos socialismo de verdade”. Os socialistas tentaram de tudo. Tentaram um modelo na China diferente da União Soviética, um modelo na Iugoslávia diferente da Romênia, e assim por diante. Quando os regimes fracassam, eles não entendem que a ideia é que estava errada e não a forma como o socialismo foi implementado. 

No livro, o sr. fala sobre o sentimento anticapitalista de intelectuais e acadêmicos. Em sua visão, por que eles criticam tanto o capitalismo?

Este é o meu capítulo preferido. É meio complicado, mas vou tentar explicar brevemente. Eu venho de uma família de background acadêmico. Então, estou à vontade para falar do assunto. Na visão acadêmica, quanto mais livros você lê, quanto mais conceituados são seus diplomas universitários, mais do alto você olha para as pessoas e para um homem de negócios que não leu tantos livros. Muitos intelectuais veem, talvez, que aquele vizinho pobre, que talvez fosse um mau aluno na escola e que não leu tantos livros quanto eles, hoje tem um negócio próprio ou uma franquia do McDonald’s e ganha mais dinheiro do que eles. Tem um carro melhor e uma casa maior. Isso para eles é uma prova de que o mercado falhou, porque se o mercado estivesse certo eles é que deveriam estar nesta posição. Fiz dezenas de entrevistas com os super-ricos, para um livro que escrevi sobre o tema, e me dei conta de que há o aprendizado implícito e o explícito. O aprendizado ou conhecimento implícito é o que podemos chamar de “escola da vida” ou intuição. É um jeito diferente de aprender. O aprendizado explícito é aquele baseado nos livros e no aprendizado acadêmico. Os intelectuais não entendem como funciona o aprendizado implícito. Acham que são superiores aos empreendedores, porque têm diplomas universitários ou a sabedoria dos livros e eles, não.  Outro ponto importante é que, em geral, os intelectuais pensam em teorias e escrevem sobre teorias. Para o capitalismo, você não precisa de tanta teoria. É tudo desenvolvido de forma mais espontânea e não de acordo com um plano. Lênin disse que o movimento dos trabalhadores não viria das teorias socialistas e que os intelectuais é que tinham de levar o socialismo para os trabalhadores. Os intelectuais têm um papel no socialismo que não têm no capitalismo. 

O sr. diz que após a queda do comunismo o pensamento anticapitalista adquiriu novas formas de expressão. A que formas exatamente o sr. se refere?

A mais importante é a defesa da ecologia e a luta contra a mudança climática. Eu não faço parte dos grupos que dizem que a mudança climática é uma mentira. Eu acredito que se trata de um problema real. Mas, para muitos dos que levantam essa bandeira, a questão ambiental não é o grande problema. Para eles, o inimigo é o mesmo, o capitalismo. Se fossem falar sobre fome e pobreza, não teriam argumentos, porque está claro que o capitalismo melhorou a vida das pessoas. Então, mudaram de foco. Outro dia li um livro da economista anticapitalista Naomi Klein. O título era Capitalismo vs. Mudança Climática. No prefácio, ela diz que não se importa tanto com a mudança climática, mas que é uma ferramenta muito importante na luta contra o capitalismo. Ao ler o livro, você vê que as ideias dela são totalmente anticapitalistas, contra o livre mercado e em defesa da economia planificada. Essas pessoas dizem que o que causa o problema ambiental é o capitalismo. Mas, se você pegar o Indice de Performance Ambiental, da Universidade Yale, e compará-lo com o Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, verá que os países mais livres são os que têm os melhores resultados ambientais.  Em relação ao PIB, as emissões de carbono da Alemanha Oriental eram 3 vezes maiores do que as da Alemanha Ocidental. Não havia nenhum país com piores índices ambientais do que a União Soviética. 

“Eu considero o sentimento anticapitalista como um tipo de religião”

Fora a questão ambiental, o sr. afirma no livro que o movimento contra o capitalismo incorporou também a luta contra a globalização. O que o sr. pode falar sobre esta questão?

Frequentemente, a postura contra a globalização, é claro, é relacionada com o pensamento de esquerda, mas nem sempre é assim. Também é ligada ao pensamento de direta. Você tem isso na esquerda, na direita populista e na direita radical. O (Donald) Trump é um exemplo perfeito da direita contra a globalização. Na Alemanha, também tem gente de direita contra a globalização. Muitas vezes, os argumentos da direita e da esquerda são diferentes, mas no fim o resultado, o protecionismo, é o mesmo.   

Na sua avaliação, considerando tudo que o sr. falou, por que o capitalismo gera tanta oposição e tantas críticas?

Eu considero o sentimento anticapitalista como um tipo de religião. No passado, há séculos, a religião era muito forte na Europa. No mundo moderno, o anticapitalismo se tornou uma nova forma de religião. O papel do diabo hoje é desempenhado pelo capitalismo. Você pode culpar o capitalismo por todos os problemas do mundo: pobreza, fome, mudanças climáticas, guerras, sexismo, racismo e até a escravidão, que foi adotada muito antes do capitalismo. Até os seus fracassos pessoais na vida você pode atribuir ao capitalismo. A diferença entre a religião e o anticapitalismo é que a religião promete o paraíso depois da morte e o socialismo promete em vida.