160911EstadoReformasCadEspecial
Hora de mudar
A partir de hoje, o Estado publica uma
série de reportagens sobre os grandes desafios do País depois do impeachment
José Fucs *especial para O Estado de S.Paulo, 11 de
setembro de 2016
ilustração: Farrell
Com o impeachment de Dilma Rousseff e a
posse de Michel Temer na Presidência da República, uma nova perspectiva abriu-se
para o País. Apesar dos questionamentos na Justiça e dos protestos dos aliados
de Dilma contra a decisão do Senado Federal, o impeachment renovou as
esperanças de uma parcela considerável da população - incluindo os milhões de
cidadãos que foram às ruas pedir a sua saída - de que o Brasil poderá, enfim,
mudar de rumo. "O impeachment é o início de uma nova era", diz o
cientista político Luíz Felipe d'Avila, presidente do Centro de Liderança
Pública (CLP), uma organização voltada para a formação de líderes e a melhoria
de gestão na área governamental. "Daqui para a frente, a discussão
política deverá ser bem mais racional, em torno de dados e fatos objetivos, em
vez de teses e ideologias.
Depois de quase 14 anos do PT no poder,
marcados pelo voluntarismo ideológico, pelo estatismo na economia, pelo
"aparelhamento" da administração pública e por um sistema
"industrial" de corrupção, o País ganhou uma súbita oportunidade para
lidar seriamente com as causas de suas mazelas. Não apenas para que possa
deixar a UTI, mas para repensar o seu destino e lançar as bases de um novo
ciclo de desenvolvimento sustentável, estabilidade política e bem-estar social.
"O Brasil está numa encruzilhada. As escolhas que fizermos agora serão
decisivas para o nosso futuro", afirma d'Avila. "É um momento
histórico muito importante. Dependendo das decisões que a gente tomar, o Brasil
poderá virar uma Venezuela ou se tornar um país de Primeiro Mundo", diz o
financista Nathan Blanche, sócio da Tendências, uma empresa de consultoria
econômica.
Na essência, o que está em jogo é a escolha
entre dois Brasis. Um, que ganhou uma força descomunal nos últimos anos e agora
está na berlinda, é o Brasil da ilha de fantasia de Brasília, do Estado obeso e
perdulário, que drena a produção e o trabalho dos brasileiros para sustentar o
seu apetite insaciável. É o Brasil dos pequenos e grandes privilégios obtidos
com o dinheiro dos pagadores de impostos; dos burocratas, que criam
dificuldades para vender facilidades; e dos funcionários públicos que não precisam
se preocupar com a crise, porque têm estabilidade no emprego. O outro Brasil,
massacrado pelo peso da carruagem que tem de puxar, é o Brasil real, o Brasil
dos mortais, que paga impostos de Primeiro Mundo e recebe serviços públicos de
Terceiro Mundo. É o Brasil dos brasileiros que têm de trabalhar duro para pagar
suas contas em dia e garantir um mínimo de qualidade de vida para si mesmos e
para suas famílias; dos que sofrem com a recessão prolongada e com o
desemprego. É o Brasil que valoriza a meritocracia, o esforço individual e o
sucesso alcançado sem pixulecos, nem favores oficiais.
O grande conflito é entre quem puxa a carruagem e quem está
aboletado num Estado que cresceu demais
Flavio RochaPresidente das Lojas Riachuelo
“O grande conflito não é de patrão contra
empregado, rico contra pobre, Nordeste contra Sudeste, negro contra branco. É
entre quem puxa a carruagem e quem está aboletado num Estado que cresceu
demais”, afirma o empresário Flavio Rocha, presidente das Lojas Riachuelo. “O
Brasil tem uma classe que se aproveita de todo o setor privado. É o estamento
estatal, que tomou conta do governo”, diz o economista Antonio Delfim Netto,
ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “É preciso dizer para
a população que o Brasil é, sim, um país muito desigual, mas boa parte dessa
desigualdade é criada pelo corporativismo que se apropriou do poder.”
O Brasil tem uma classe que se aproveita do setor privado. É
o estamento estatal, que tomou conta do governo
Delfim NettoEx-Ministro da Fazenda, do Planejamento e da
Agricultura
Para dar a sua contribuição ao debate sobre
os grandes desafios do Brasil e as soluções para a crise, o Estado publicará, a
partir de hoje, uma série de reportagens especiais. Da realização da reforma
política à adoção de um novo pacto federativo; do equilíbrio das contas
públicas e das reformas tributária e trabalhista à melhoria do ambiente de
negócios, a série deverá dar um mergulho profundo nas principais questões que
travam o desenvolvimento. Também fazem parte da lista o combate à corrupção, as
regalias do funcionalismo e a abertura da economia. Nesta edição, além da
apresentação do cenário geral, você poderá conferir a primeira reportagem da
série, que trata da Constituição de 1988 e das mudanças necessárias para
modernizá-la e adaptá-la às transformações ocorridas no Brasil e no mundo nos
últimos trinta anos. Mais do que mostrar como o Brasil chegou ao atual quadro
de desalento, a ideia é apontar saídas para a crise e discutir as propostas que
podem nos levar a um caminho mais promissor.
Nesta edição, além da apresentação do
cenário geral, você poderá conferir a primeira reportagem da série, que trata
da Constituição de 1988, promulgada antes da queda do Muro de Berlim, e das
mudanças necessárias para modernizá-la e adaptá-la às transformações ocorridas
no Brasil e no mundo nos últimos 30 anos. Mais do que mostrar como o Brasil chegou
ao atual quadro de desalento, a ideia é apontar saídas efetivas para a crise e
discutir as propostas que podem nos levar a um caminho mais promissor no
futuro. "É preciso fazer uma cirurgia radical no Estado, para que ele
volte ao seu propósito original, que é servir à sociedade", afirma Flavio
Rocha.
Embora tenha pela frente apenas um
mandato-tampão, de 28 meses, Temer terá de se mostrar à altura dos
acontecimentos e tomar as medidas necessárias para superar a crise, se quiser
ouvir o povo dizer, ao final de seu governo, como declarou recentemente, que
ele "deu um jeito no País". Com a economia em frangalhos, escândalos
em série de corrupção, a representatividade política em xeque e a polarização
da sociedade, Temer terá pouca margem para errar (veja os gráficos abaixo).
Apesar de sua baixa popularidade, de seu nome ter sido citado em denúncias da
Lava Jato e de ele ser alvo, ao lado de Dilma, de um processo no Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder econômico e utilização de recursos
do petrolão na campanha de 2014, Temer irá impor um ônus excessivo aos
brasileiros se não exercer plenamente o papel que a história lhe reservou e
deixar para seu sucessor, a ser eleito em 2018, a tarefa de colocar o País de
volta nos trilhos. "O maior trunfo do governo Temer é haver um certo
reconhecimento de que o custo de ele fracassar é muito grande, tanto do ponto
de vista político quanto econômico", diz Christopher Garman, diretor de
estratégia para mercados emergentes da Eurasia, uma consultoria americana
especializada em riscos políticos globais.
Há dúvidas, porém, de que Temer possa levar
adiante mesmo um programa mínimo de reformas - e não apenas por uma possível
resistência do Congresso em aprovar as mudanças. Segundo o economista Paulo
Guedes, um dos fundadores do banco Pactual (hoje BTG Pactual) e presidente do
conselho de administração da Bozano Investimentos, Temer tem duas
possibilidades. Uma é se deixar abater pela "síndrome de
ilegitimidade" que atingiu o ex-presidente José Sarney. Ex-dirigente da
Arena, a base de apoio ao regime militar, Sarney tornou-se vice de Tancredo
Neves e acabou assumindo a Presidência da República de forma inesperada, com a
doença e morte do presidente eleito, em 1985. "A síndrome da ilegitimidade
levou o Sarney a buscar uma ilusória popularidade e produziu uma tragédia
histórica, que foi a hiperinflação", afirma Guedes. A outra possibilidade,
de acordo com Guedes, é Temer dizer que chegou ao fim uma forma de fazer
política com base no toma lá, dá cá e de tocar o governo com a expansão
indefinida dos gastos. "Se o Temer continuar no ritmo do presidente
interino, de pequenas acomodações aqui e ali, para não gerar conflitos, ele
seguirá o caminho do Sarney e o próximo presidente da República poderá ser um
forasteiro, que represente uma ruptura com o sistema atual, como aconteceu com
o Fernando Collor (ex-presidente da República, que sofreu impeachment em
1992)", diz Guedes. "Agora, se Temer mostrar suas fichas e não se
deixar abater pela 'sindrome da ilegitimidade', como fez ao propor um teto para
o gasto público, que é uma medida excepcional; se ele disser que não haverá
reajuste do funcionalismo, porque o País quebrou por causa do excesso de gastos
e porque há 12 milhões de brasileiros vivendo o drama do desemprego, estaremos
no caminho certo."
Se colocar o sarrafo muito alto, nem o Thiago Braz, medalha
de ouro nas Olimpíadas, conseguirá superá-lo
Rubens RicuperoEx-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente
Temer começa o governo, segundo Rubens
Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, com uma vantagem em
relação a Itamar Franco, que assumiu a Presidência após o impeachment de
Fernando Collor, em 1992. Ricupero diz que Temer terminou a interinidade com
uma equipe econômica “de primeira qualidade” já montada. Itamar demorou oito
meses até escolher para a Fazenda o então senador Fernando Henrique Cardoso,
que implementou o Plano Real e acabou com a hiperinflação, em 1994. “No fundo,
o desafio de todo vice-presidente galgado à posição principal é como completar
o mandato com um mínimo de qualidade e eficiência”, diz. “Se você colocar o
sarrafo muito alto, nem o Thiago Braz, que ganhou a medalha de ouro na
Olimpíada no salto com vara, conseguirá superá-lo.”
O Ajuste do Bem
A reforma mais urgente para viabilizar a
modernização do País é a fiscal. Com um rombo recorde no orçamento e uma dívida
galopante, o governo terá de concentrar suas forças no reequilíbrio das contas
públicas, como já vem fazendo, ao propor o limite nos gastos e a desvinculação
das receitas, para ganhar maior liberdade de gestão. De seu sucesso nessa
missão, dependerá quase tudo – a retomada do crescimento, o corte dos juros, a
volta da confiança do setor privado e dos investimentos na produção, a redução
do desemprego e a recuperação da renda dos trabalhadores. “Chegamos ao limite
fiscal”, afirma o economista Paulo Leme, presidente do Goldman Sachs, um dos
maiores bancos americanos de investimento, no Brasil. “É o estágio final de um
modelo econômico que usou políticas equivocadas, excessivamente dependentes da
ação do Estado, em vez de buscar soluções nas forças de mercado.”
Se o governo for bem-sucedido, o ajuste nas
finanças públicas deverá alavancar outras reformas modernizantes. A mais
relevante, provavelmente, será a reforma da Previdência Social, responsável
pela maior parte do déficit público. Entre outras medidas, estuda-se a elevação
da idade mínima de aposentadoria para 65 anos, a desvinculação de benefícios do
salário mínimo e fim dos regimes especiais dos funcionários públicos, que podem
se aposentar com o salário integral da ativa. “Tudo o que está sendo proposto
não são maldades, são benignidades, porque isso é insustentável. É uma questão
de aritmética”, diz o ex-ministro Delfim Netto.
Além da reforma na Previdência, o governo
fará um amplo programa de desestatização para fazer caixa. O programa, que
deverá ser anunciado nesta terça-feira, se o cronograma oficial for cumprido,
irá reverter a proliferação de estatais registrada nos governos petistas e terá
regras mais flexíveis para os investidores, que não “demonizem” o lucro, como
ocorreu nos últimos anos. Para decolar, a desestatização terá de contar com o
apoio dos investidores externos. “A participação do capital estrangeiro não é
nem uma questão de escolha. O País não tem a poupança necessária para fazer o
investimento crescer de novo”, afirma Leme, do Goldman. “Em princípio, existe o
interesse do investidor estrangeiro, mas tem de ver qual o programa, quais os
ativos e quais as regras dos leilões.”
Também são fundamentais à modernização do
País a reforma política, para garantir a governabilidade, a reforma
trabalhista, para flexibilizar as negociações entre os empregadores e os
trabalhadores, e a tributária, que deverá simplificar o sistema. Hoje, o
pagamento de impostos e taxas consome 2.600 horas por ano, em média, das
empresas, segundo o estudo Doing Business, do Banco Mundial. Mas, com o governo
no vermelho, é difícil imaginar que seja possível agora propor a redução de
tributos, apesar de a carga tributária brasileira estar perto de 35% do PIB, a
mais alta entre os países emergentes, mesmo com a queda de receitas provocada
pela recessão.
Segundo o cientista político Fernando
Schüler, do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia, o Brasil terá
de negociar um novo consenso em torno da modernização do Estado. “Temos de
mudar o padrão de Estado no Brasil, de welfare State (Estado de bem-estar
social) para agency State (Estado agência)”, afirma. No Estado agência, o
governo repassa para a iniciativa privada a gestão dos serviços públicos,
inclusive de educação e saúde, e estabelece metas de desempenho quantitativas e
qualitativas para avaliar os resultados. “A gestão institucional do Estado
precisa caminhar de forma agressiva para a contratualização com o setor
privado.” Desde a democratização, de acordo com Schüler, o Brasil produziu três
consensos que permitiram ao País avançar. O primeiro foi em torno da
democracia. Depois, houve o consenso em relação à estabilidade econômica e à
responsabilidade fiscal. O terceiro foi em torno do combate à pobreza. Mas, na
sua visão, as pedaladas fiscais mostraram que o consenso em torno da
responsabilidade fiscal era mais frágil do que se imaginava. “O que caracteriza
uma democracia madura é a produção de consensos e uma democracia instável como
a brasileira é a ausência de consensos.” /J.F.
Cenário Sombrio
* Previsão de mercado, segundo o Relatório
Focus; ** Exclui os juros da dívida pública; *** Estimativa oficial
FONTES: BANCO CENTRAL, IBGE, MINISTÉRIO DA
FAZENDA E IBPT
Constituição
A Reforma das Reformas
O Estado de bem-estar social, prometido
pela Constituição Cidadã de 1988, mostrou-se uma miragem. Agora, é hora de
definir o que virá em seu lugar.
Às vésperas da votação do texto final da
nova Constituição, em julho de 1988, o então presidente da República, José
Sarney, fez um pronunciamento em tom apocalíptico em cadeia nacional de rádio e
TV. Preocupado com o efeito que a nova Carta teria nas contas públicas, Sarney
queria pressionar os Constituintes a alterar o documento antes de votá-lo. “Os
brasileiros receiam que a Constituição torne o País ingovernável”, disse.
“Primeiro, há o receio de que alguns dos seus artigos desencorajem a produção,
afastem capitais, sejam adversos à iniciativa privada e terminem por induzir ao
ócio e à improdutividade. Segundo, (receia-se) que outros dispositivos possam
transformar o Brasil, um país novo, que precisa de trabalho, em uma máquina
emperrada e em retrocesso. E que o povo, em vez de enriquecer, venha a
empobrecer e possa regredir, em vez de progredir.”
A fala de Sarney – alçado à Presidência de
forma inesperada com a doença e a morte do presidente eleito Tancredo Neves, em
1985, e sem apoio político na nova configuração de forças que se formou na
época – teve o efeito contrário ao que ele esperava. Três dias depois, o
deputado Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, reagiu às acusações de
Sarney e defendeu com veemência o Estado-tutor proposto na nova Carta. “A fome,
a miséria, a ignorância, a doença desassistida são ingovernáveis. A
governabilidade está no social”, afirmou Ulysses, resumindo o espírito que
permeou a elaboração da nova Carta, chamada por ele de “Constituição Cidadã”.
“O Dr. Ulysses era um sonhador e prometeu a felicidade geral da Nação por
decreto”, afirma o financista Nathan Blanche, sócio da Tendências, uma empresa
de consultoria econômica. “Ele achava que podia fabricar dinheiro, e fabricava
– mas causava inflação.”
O Sarney tinha razão. Na Constituinte, criaram-se enormes
distorções sem fazer conta
Nelson JobimEx- Constituinte, ex-ministro da Justiça e da
Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)
Decorridos quase 28 anos desde que a
Constituição entrou em vigor, o aviso de Sarney ganhou, quem diria, ares de
profecia. Se a Constituição não deixou o País ingovernável, chegou bem perto
disso. Com o Tesouro exaurido, um rombo monumental no orçamento e uma dívida
pública que cresce em ritmo frenético, o governo foi a nocaute, levando junto a
economia do País. “O Sarney tinha razão”, diz o jurista Nelson Jobim,
ex-Constituinte, ex-ministro da Justiça e da Defesa e ex-presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF). “Na Constituinte, a maioria não tinha experiência no
Executivo. Então, criaram-se enormes distorções sem fazer conta.”
É preciso colocar na conta que boa parte da
responsabilidade pela dilapidação das finanças públicas se deve à inépcia
administrativa da ex-presidente Dilma Rousseff e a Lula, que, em seu segundo
mandato, iniciou a gastança sem lastro, com a distribuição de benesses a granel,
acentuada depois por sua sucessora. Mas é na Constituição de 1988 que se
encontra a raiz da crise fiscal. Desde a sua promulgação, a carga tributária do
País quase dobrou, de 20% para cerca de 35% do Produto Interno Bruto (PIB), de
acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) – e ainda
assim o governo quase foi à bancarrota. A mesma penúria atinge hoje quase todos
os Estados e milhares de municípios. “Foram concedidos muitos direitos, dos
quais ninguém discorda, mas é difícil financiar tudo”, afirma o diplomata
Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente.
Nem todos os direitos sociais garantidos pela Constituição
são factíveis. A gente pode querer que sejam, mas sabe que não são
Célio BorjaEx-presidente da Câmara dos Deputados no governo
Geisel e também ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça
Em que pese a Constituição ter incorporado
avanços significativos nos direitos e garantias individuais, como a liberdade
de expressão e o direito de propriedade; no equilíbrio dos Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário; e na participação dos cidadãos no processo decisório,
com o direito de voto aos analfabetos e maiores de 16 anos; no capítulo dos
direitos sociais, que englobam saúde, educação, habitação e Previdência, ela se
revelou uma miragem. O Estado de bem-estar social forjado na Constituição de
1988, ao final, não cabe no Brasil. A ideia de que o Estado deve oferecer tudo
para todos, sem ter os recursos necessários para fazê-lo, pode levantar a
arquibancada, mas não sobrevive no mundo real.
“Nem todos os direitos sociais garantidos
pela Constituição são factíveis. A gente pode querer que sejam, mas sabe que
não são”, diz o jurista Célio Borja, ex-presidente da Câmara dos Deputados no
governo Geisel e também ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça. “A
Constituição de 1988 foi idealista”, afirma o cientista político Luiz Felipe
D’Avila, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), uma entidade dirigida
ao desenvolvimento de novos líderes na área governamental. “Depois de 20 anos
de repressão, todo mundo queria colocar suas aspirações na Constituição e ela
transformou o Brasil num país fiscalmente insolúvel.”
A Constituição de 1988 foi idealista e transformou o Brasil
num país fiscalmente insolúvel
Luiz Felipe d’AvilaPresidente do Centro de Lideranção
Pública (CLP)
Embora a reforma política seja considerada
pelo PT e outros partidos de esquerda como “a mãe de todas as reformas”, a
ampla revisão da Constituição, por seu impacto na vida das empresas e dos
cidadãos, deveria ser considerada prioritária. Com o Estado abalado em sua
capacidade financeira, não faltam argumentos sólidos para justificar a
realização das mudanças e conseguir apoio político no Congresso e no STF. Para
o Brasil se tornar governável, porém, não adianta só colocar um band-aid na
ferida. É preciso promover uma cirugia radical. Jobim defende uma
“lipoaspiração” no texto constitucional, mas são tantos os exageros e os
privilégios incluídos na Constituição pelo corporativismo e pelos grupos de
pressão que, para derrubá-los, talvez só um bisturi não baste “O País foi
partilhado entre as corporações”, diz Jobim. “Na Constituinte, eu entendi que o
que o pessoal chamava de sociedade civil eram grupos organizados que queriam
defender seus interesses ou congelar seus interesses na apreensão do Estado.”
A Constituição não é o que está escrito. É, sobretudo, o que
o Supremo interpreta sobre a Constituição
Joaquim FalcãoDiretor da Escola de Direito da Fundação
Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro
Os maiores privilégios, que devem ser alvo
de qualquer reforma constiticional, concentram-se no setor público, graças ao
poder de mobilização do funcionalismo e à ação corporativista realizada na Constituinte.
Segundo o professor Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da Fundação
Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro e ex-conselheiro do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), há mais de trinta dispositivos sobre direitos dos funcionários
públicos na Constituição. Ele diz que as Constituições que mais têm
dispositivos do gênero, depois do Brasil, são a alemã, com nove, e a
portuguesa, com cinco. Com isso, de acordo com Falcão, os funcionários públicos
ganharam uma “via expressa” para o Supremo, encarregado de julgar as matérias
constitucionais, em caso de pendências judiciais em suas atividades
profissionais, enquanto a massa de trabalhadores da iniciativa privada, regida
pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e julgada pela Justiça do Trabalho,
tem menos chance de chegar ao STF. “É muito desigual”, diz Falcão.
Na Previdência, os privilégios do
funcionalismo são uma afronta aos pagadores de impostos. Enquanto um
trabalhador do setor privado se aposenta com um salário mínimo ou uma fração do
que ganhava na ativa, os funcionários públicos recebem o salário integral. Uma
série de carreiras do serviço público tem aposentadorias especiais com 25 anos
de serviço: professores, policiais militares, bombeiros. Com apenas um milhão
de aposentados, o setor público gera um déficit para a Previdência maior que o
dos 25 milhões de aposentados da iniciativa privada. No Legislativo, é ainda
pior: um deputado com dois mandatos e oito anos de contribuição já tem direito
a aposentadoria.
No capítulo dos direitos sociais, fora da
esfera do funcionalismo, há a questão das vinculações de receitas para a saúde
e a educação, que engessam a gestão e geram acomodação no Executivo. “No regime
autoritário tinha vinculação. O prefeito derrubara uma escola para construir
outra simplesmente para gastar. Ou então construía uma fonte luminosa”, afirma
o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da
Agricultura. “Por que a vinculação não funciona? Porque quem tem verba
garantida se acomoda. O problema da saúde e educação no Brasil não é de
recursos, mas de gestão.” Ele lembra uma conversa sobre o assunto que tinha com
Mário Covas (1930-2001) na Constituinte: “Eu dizia, Covas, nós somos tão bons,
nós dois, que, em 2016, só vai ter idiota no Congresso, porque nós temos de
dizer para eles hoje o que eles têm de fazer. As prioridades mudam”.
A Constituição foi ainda mais generosa com
a educação e a saúde, mas nem por isso garantiu a qualidade dos serviços. Na
educação, a Constituição garante o ensino gratuito para todos os brasileiros,
independentemente de renda, não apenas no ensino básico e fundamental, mas
também nos cursos universitários, de pós-graduação e de doutorado. “Se você
examinar a discussão toda sobre reforma educacional no Brasil, observa o
seguinte: ao fim e ao cabo, depois de passar o véu dos adjetivos e advérbios de
modo, você vai cair no aumento de salário de professor”, diz Jobim. Na saúde,
além de prever o acesso gratuito à saúde para todos os brasileiros, a
Constituição traz o princípio da integralidade, pelo qual se garante cobertura
para todos os procedimentos.
Para limpar tudo isso, será preciso não
apenas conseguir os dois terços necessários à aprovação das mudanças
constitucionais no Congresso Nacional, mas também passar pelo STF. “A
Constituição não é o que está escrito. Ela é, sobretudo, o que o Supremo
interpreta sobre a Constituição. Então, o Supremo tem uma responsabilidade
muito grande no que nos chegou de 1988 até hoje, para o bem e para mal”, afirma
Joaquim Falcão.
Antecipando o duro embate que vem por aí,
mais dia, menos dia, as corporações e os grupos de pressão já começam a se
articular para defender a manutenção de seus privilégios. Para se proteger,
vale tudo. Independentemente do que vai acontecer, eles dizem que o governo vai
cortar o dinheiro para a saúde e a educação, que vai tungar a aposentadoria. “A
Constituição não é eterna. Você não pode pretender que a geração que fez a
Constituição em 1988 resolva definir o que deve ser o Brasil pelos próximos 200
anos”, diz Jobim. “Quem gosta de Constituição eterna são os professores de
direito, porque eles escrevem um livro e depois não precisam revisar, e as editoras,
que não têm o que fazer com os livros antigos quando a Constituição é
alterada.” Como dizia Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.
Entre a autonomia administrativa
e o "pires na mão" em brasília
Na arena política, o debate sobre um pacto
federativo – um termo enigmático que se refere à repartição do dinheiro público
entre a União, os Estados e os municípios – ganhou espaço nos últimos tempos.
Como a União detém uma fatia de cerca de 60% do bolo tributário do País, os
Estados, que ficam com perto de 23%, e os municípios, com 17%, defendem maior
descentralização dos recursos para não ter de “passar o pires” em Brasília para
tocar o governo. Os Estados e municípios também reivindicam maior autonomia
legislativa. “Temos de definir se o Brasil é mesmo uma Federação ou se os
Estados e municípios só exercem políticas públicas decididas no Congresso”,
afirma o economista Paulo Guedes, da Bozano Investimentos.
É uma discussão similar à que foi travada
na Constituinte. Como a União também detinha no regime militar uma fatia
substancial do bolo tributário, havia um forte sentimento em defesa da
repartição mais equilibrada dos recursos. O movimento pela descentralização
tornou-se tão forte que ela acabou aprovada pela Constituinte. Só que, da forma
como foi feita, gerou uma anomalia cujos efeitos ajudam a explicar por que o
debate voltou à tona.
Com a decisão da Constituinte, os Estados e
municípios abocanharam uma fatia maior dos tributos, mas não herdaram novas
responsabilidades na mesma proporção. Ao mesmo tempo, a União perdeu receita,
mas manteve muitas das responsabilidades que já tinha. Foi isso, em boa medida,
que levou o então presidente José Sarney a fazer um pronunciamento na TV na
época, para vociferar contra a Constituinte. Só que, de lá para cá, a União
subiu de forma significativa as alíquotas das contribuições, que não são
repartidas com Estados e municípios, e congelou as alíquotas dos impostos
divididos com os demais entes da Federação. Resultado: a participação da União
no total de tributos voltou a aumentar e a dos Estados e municípios, a cair. A
questão é saber qual solução será seguida para distribuir o dinheiro público.
“Ainda não vi ninguém dizendo qual é o pacto federativo que se quer”, diz o
jurista Nelson Jobim.
José Fucs* foi repórter especial da Época,
editor executivo da Exame, editor-chefe da revista Pequenas Empresas &
Grandes Negócios e repórter do Estado, da Gazeta Mercantil e da Folha de
S.Paulo.
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