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sábado, 10 de setembro de 2016

Populismo economico e ‘destruicao destrutiva’ na America Latina - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente artigo publicado, e ele deve servir de base para  palestra na Primeira Semana Pela Liberdade, promovida pelo capítulo de Brasília dos Estudantes pela Liberdade (Auditório de Ciência Política, UnB; 16/09/2016, 15:10hs; EPL-Brasília.
Paulo Roberto de Almeida  



Populismo econômico e ‘destruição destrutiva’ na América Latina

Paulo Roberto de Almeida
  
Destruction is always creation.
John Muir, letter to Ralph Waldo Emerson, March 26, 1872.
In: Andrea Wulf, The Invention of Nature: the adventures of Alexander von Humboldt, the lost hero of Science (London: John Murray Publishers, 2015). 

Poucos anos depois que Karl Marx, no primeiro volume de Das Kapital – em 1867, o único que ele publicaria em vida –, tivesse formalizado sua concepção acerca dos poderes destrutivos do capital, como condição para a criação de novas forças produtivas e novas relações de produção, o conservacionista pioneiro e promotor do movimento ambientalista nos Estados Unidos John Muir, discípulo intelectual de Alexander von Humboldt, expunha, em carta ao amigo transcendentalista e poeta Waldo Emerson, sua crença em que mesmo fenômenos naturais aparentemente destrutivos serviam para criar novas formas de vida. Em outro sentido, Lavoisier tinha expresso a mesma ideia algum tempo antes, quando disse que na natureza nada se criava ou se perdia, mas que tudo se transformava. Talvez, nenhum dos três tivesse refletido sobre essa bizarra, ou até mesmo essa inacreditável capacidade que possuem certos seres humanos, ou certos grupos sociais, de destruir instituições criadas pela própria sociedade, sem nada colocar no lugar. Em nenhuma outra região do mundo essa notável bizarrice humana exibiu-se de forma tão exuberante quanto na América Latina, aliás de forma recorrente, o que pode ser um vício, mas também um “pecado original”.
O título deste ensaio expõe conceitos cujo sentido caberia explicitar antes de penetrar no âmago do argumento aqui desenvolvido em relação a um continente que insiste em desmentir Marx e os demais. Os termos casados de “populismo econômico” e de “destruição destrutiva” nem sempre se apresentam combinados dessa forma, embora o processo em questão, o populismo, geralmente de caráter político, parece se casar perfeitamente com o itinerário frustrante da América Latina ao longo dos dois séculos desde sua independência. Vamos tentar ver como e porque.
O conceito de populismo aparece usualmente associado a práticas políticas bastante conhecidas na América Latina, misturado a condutas obviamente popularescas, isto é, demagógicas e caracterizadas por muita enganação do povo mais humilde. O populismo de tipo econômico seria uma simples derivação desse primeiro tipo, feito de políticas econômicas irresponsáveis, sobrevalorização cambial, controles de preços, emissionismo desenfreado (para justamente sustentar o nível de gastos públicos necessários para assegurar uma boa e fiel clientela eleitoral), embromação deliberada em direção dos mais pobres, enquanto se continua a beneficiar os estratos privilegiados da sociedade. Em síntese, o populismo econômico significa um conjunto de medidas de caráter redistributivo e de incitação artificial ao consumo e ao crescimento, mas que se revela insustentável no médio prazo, que sempre redunda no esgotamento dos recursos colocados à disposição do governante e que termina, ao fim e ao cabo, por precipitar uma crise e a consequente derrocada do modelo adotado.
O termo de “destruição destrutiva”, por sua vez, remete ao conceito formulado concebido pelo economista austríaco – mas não da escola austríaca de economia – Joseph Schumpeter, de “destruição criadora”, destinado a designar o fluxo contínuo de transformações tecnológicas no seio de um processo produtivo, que anula procedimentos anteriormente usados, destrói velhos métodos de produção, em favor de técnicas inovadoras que alteram significativamente o caráter de um determinado ramo ou de todo um setor da atividade econômica. Nada mais ilustrativo desse conceito do que as carruagens puxadas a cavalos sendo substituídas por veículos a motores de combustão interna, do que computadores tomando o lugar das máquinas de escrever, ou a internet aposentando a correspondência postal e os milhões de quilômetros de fios e cabos que no passado levavam mensagens telegráficas e comunicações telefônicas. Schumpeter considerava esse processo como o “fato essencial do capitalismo”, mas a verdade é que ele ocorreu e ocorre em qualquer “modo de produção”.
Todos esses exemplos são representativos da “destruição criadora”, no sentido dado ao termo por Schumpeter, baseando-se, aliás, na ideia já exposta por Marx no Capital. O que todavia pretendemos ilustrar aqui é um processo original de destruição puramente destruidora acarretado pelo populismo econômico, tal como praticado em diversos países da América Latina. De fato, poucas regiões do mundo, ou poucos outros países tomados individualmente, foram tão completamente dominados, e arrasados, pelo populismo econômico quanto países da América Latina, em quaisquer etapas de seu desenvolvimento desde a independência. Poucos se salvaram do desastre acarretado por práticas muito pouco schumpeterianas, em fases específicas de suas trajetórias respectivas, embora a extensão e a profundidade desse desastre tenham variado de um lado a outro: alguns incidiram poucas vezes no “mal do século”, enquanto outros (como a Argentina, por exemplo) se especializaram em repetir várias vezes a mesma história. O Brasil, aliás, não ficou muito atrás, parecendo seguir, segundo alguns economistas, as bobagens perpetradas pelo país platino pouco tempo depois, ou cometendo os seus próprios equívocos em total independência. De certa forma, o Brasil merece mesmo uma espécie de Prêmio Ignóbil da história monetária mundial: afinal de contas, qual outro país consegue igualar a proeza pouco recomendável de exibir OITO moedas em sua trajetória econômica, sendo seis padrões monetários numa única geração, pior, num espaço de tempo inferior a dez anos?
A esse propósito, é preciso ainda fazer uma qualificação importante: geralmente se associa o populismo econômico a políticas de esquerda, à demagogia econômica de tipo redistributivo, ao inflacionismo irresponsável ou a manipulações cambiais de diversos tipos. Nem sempre é assim, pois também se pode ter um populismo econômico de direita, feito de nacionalismo exacerbado, de protecionismo comercial canhestro, de excesso de intervencionismo estatal, no que, aliás, ele estaria tão ultrapassado quanto o dirigismo arrogante praticado por governos de esquerda. O Brasil do período militar – que não pode ser exatamente tido como um regime de esquerda, embora esta aprove inteiramente, e até queira imitar, várias das políticas praticadas naquela época – foi justamente um representante típico de governos de direita que também praticaram populismo econômico, tanto no capítulo monetário, quanto em diversas políticas setoriais conduzidas ao longo daquele período. Pergunta: qual outro país conseguia ter não apenas um, mas TRÊS orçamentos, como aqui registrado: o fiscal – ou seja, aquele normalmente conhecido em outros países, feito de um simples registro contábil de receitas e despesas correntes –, o monetário – aqui já expressando as virtudes criadoras de nossos tecnocratas, uma conta movimento entre o Banco Central e o Banco do Brasil destinada a financiar os projetos considerados estratégicos pelos dirigentes – e, por fim, durante muitos anos, um orçamento dedicado exclusivamente às estatais, um setor gigantesco na economia brasileira (perto de um terço do PIB) e que servia não apenas à finalidades setoriais, mas também para captar recursos financeiros no exterior.
O populismo de direita tem se manifestado atualmente na Europa, onde os temores de uma imigração desenfreada, a ameaça de desemprego trazido pelo livre comércio e as próprias pressões sobre o Estado de bem estar social criadas por décadas de fiscalidade temerária vis-à-vis as realidades inexoráveis de uma demografia declinante incitaram largos estratos da população, em geral camadas mais frágeis em face dos processos combinados de globalização e de automatização – com os fenômenos consequentes do out-sourcing e de off-shoring – a aderir a plataformas defensivas de rejeição ao estrangeiro e das próprias estruturas comunitárias de liberação dirigida, mas percebido como muito centralizada em Bruxelas e, portanto, antidemocrática ou tecnocrática.
Populações interioranas, comunidades carentes, pouco instruídas, tendem a aderir a esse tipo de discurso, como revelado agora na Europa ocidental e, com ainda maior acuidade, nos próprios Estados Unidos, um dos países certamente mais abertos à globalização e ao acolhimento de imigrantes. O temor do estrangeiro foi, por certo, exacerbado pelos atos brutais do terrorismo islâmico, não só no Oriente Médio, mas nos próprios países do Ocidente. Todos esses fatores vêm reforçando o poder de “sedução”, se por acaso existe algum, dos partidos ou de candidatos de direita, tomando o conceito no sentido mais amplo da expressão, desde os xenófobos aproximados ao fascismo, até conservadores preocupados com a soberania nacional e o emprego dos concidadãos. Em diversos escrutínios eleitorais, esses partidos e candidatos já atingiram um patamar de representação popular compatível, em certos casos, com a formação de um governo, ainda que minoritário (mas capaz, portanto, de influir em coalizões de governo).

Feitas estas considerações puramente conceituais, ou de constatação de algumas situações de fato, parece mais ou menos evidente aos observadores que o que aqui foi chamado de “destruição destrutiva” se identifica bem mais com governos de esquerda, ou “progressistas”, do que com a chamada direita, quase inexistente no continente; os primeiros são genuinamente populistas, ao passo que os segundos ocasionalmente o são. Ainda assim, não foram poucos os governos conservadores, ou claramente de direita, que produziram os mesmos efeitos desastrosos no plano econômico e social, a exemplo da Argentina e suas fases de regime militar (com retrocessos similares, quando não idênticos, aos de governos populistas supostamente de esquerda). O primeiro populista legítimo da América Latina não era, aliás, de esquerda, e sim um líder de corte liberal que decidiu enfrentar os interesses estrangeiros aplicando um calote na dívida contraída com as principais potências europeias da época: o coronel Cipriano Castro, um Chávez avant la lettre, fez da Venezuela um pouco do que o coronel bolivariano faria cem anos depois, um feudo econômico quase tão completamente dominado por seu poder pessoal quanto um outro Castro também faria com sua ilha, seis décadas à frente. Os líderes militares, caudilhos políticos eventuais, costumam ser bem mais fascistas do que de esquerda, mas talvez não existam tantas diferenças entre essas orientações, pois ambas costumam produzir regimes populistas de tipo corporativo.
Caberia, a propósito, estabelecer uma tipologia dos governos populistas e suas correspondentes políticas econômicas que podem estar – e que, no entendimento deste ensaísta, estão – na origem da destruição destruidora advinda do populismo econômico. Quais são, portanto, os elementos centrais do populismo econômico, tal como vistos e praticados por governos de diversas orientações, mas que são suscetíveis de serem encontrados mais frequentemente nos regimes de esquerda ou assim identificados?
Independentemente do tipo de governo no quadro do qual é praticado, a primeira e principal característica do populismo econômico é a incitação ao consumo, mediante medidas redistributivas ou estímulos ao crédito, além e acima da capacidade de geração de renda na economia real. O objetivo de quem pratica esse tipo de política não é exatamente estimular a economia, e sim carrear apoio político – eleitoral, geralmente – ao responsável por esse tipo de orientação econômica, uma vez que é evidente que o distributivismo estatal não é conducente a uma maior taxa de investimento, podendo ser, ao contrário, um fator de redução nessa taxa (dadas as incertezas criadas).
Produzir inflação, valorizar o câmbio, reduzir a competitividade externa da oferta industrial, afugentar os investimentos diretos estrangeiros tampouco constituem objetivos explícitos do populismo econômico, ao contrário, todos eles afirmam desejar o contrário. Mas esses são os resultados que ele provoca na economia assim “atingida” (e o termo parecer ser este). O principal objetivo do populismo econômico – nunca reconhecido como tal – é o de estimular o crescimento, manter a demanda agregada, colocar a economia num ritmo mais elevado de expansão, o que ele talvez consiga no curto prazo (um ano ou dois, apenas). Mas ele acaba, inexoravelmente, produzindo o efeito inverso: menor crescimento, mais inflação, oportunamente uma crise, fiscal ou de balanço de pagamentos, eventualmente as duas, combinadas ou sucessivas.
Como a intenção de um governo populista é a de reter e ampliar os apoios eleitorais de que naturalmente desfruta desde o início da propaganda enganosa, ele acaba prolongando as políticas deformadoras da dinâmica econômica mesmo quando elas já esgotaram suas possíveis virtudes sociais – ou seja, o estímulo ao consumo, o desfrute de fluxos de renda temporariamente canalizados para os grupos visados, a impressão de riqueza, por força de um câmbio manipulado – e passam então a produzir efeitos adversos. Os primeiros sinais de descontrole começam a se manifestar e são geralmente objeto de alertas por parte de economistas cautelosos, que sofrem reações destemperadas dos donos do poder, qualificando-os depreciativamente de “profetas do apocalipse”, ou “arautos do pessimismo”, como muitas vezes se ouviu nesses casos.
Os promotores do populismo econômico acabam reincidindo nos mesmos equívocos, até mais de uma vez, essencialmente por teimosia: eles desprezam os riscos de inflação, afastam a possibilidade de déficits insustentáveis, negam o perigo de um acúmulo na dívida pública ou a eventualidade de um estrangulamento externo, por desequilíbrios cambiais, ausência de financiamento sustentável ou penúria cambial. O descompromisso com a responsabilidade fiscal, o emissionismo irresponsável e o menosprezo pelos interesses dos empresários nacionais e os dos investidores estrangeiros são outros traços predominantes nos casos agudos de populismo econômico. Mas o que distingue mesmo essa esquizofrenia econômica é a vontade pessoal do dirigente político de comandar ao processo econômico, como se o dirigismo exacerbado fosse indicativo da boa qualidade de suas políticas econômicas.
Essa última característica do fenômeno estudado traduz uma realidade muito frequente na América Latina: a do líder personalista, eventualmente carismático, que possui força política suficiente para justamente impulsionar políticas populistas no plano econômico, a despeito da possível resistência da tecnocracia estatal, dos alertas de líderes parlamentares (aliados ou de oposição), assim como de empresários sensatos. A capacidade de dobrar a resistência do sistema político e a dos meios empresariais está fortemente ligada à trajetória de vários líderes populistas da região, como evidenciado na experiência de personalidades como Juan Domingo Perón, Getúlio Vargas, João Goulart e, mais recentemente, Nestor Kirchner e Lula. Todos eles, invariavelmente, praticaram populismo político e econômico, e acabaram provocando crises econômicas nos seus países respectivos, ainda que no último caso, o populismo iniciado por Lula, em bases relativamente moderadas, tenha sido, de fato, exacerbado por sua sucessora, que retrocedeu a políticas econômicas aposentadas ainda na era militar.
O exemplo mais eloquente desse fenômeno  na América Latina foi, obviamente, representado pelo peronismo, predominante a partir do final da Segunda Guerra na Argentina, efetivo uma primeira vez até meados da década seguinte, durante quase dez anos, mas retornando por mais um breve período no início dos anos 1970, brutalmente interrompido pouco depois, mas persistindo, sob várias formas, nas décadas que se seguiram ao desaparecimento do caudilho iniciador da concepção doutrinal associada ao peronismo, qual seja, o justicialismo. Nesses vários períodos, ou em suas modalidades posteriores mais “liberais” (sob Menem) ou mais à esquerda (sob os Kirchner), entre o final do século XX e o início do novo milênio (com breves intervalos a cargo do Partido Radical, na fase de redemocratização pós-regime militar ou mais adiante), o peronismo demonstrou sua resiliência doutrinal e sua capacidade de arregimentação prática de amplas franjas do eleitorado argentino.
Em todos os casos, o peronismo acabou em crises econômicas de maior ou menor amplitude, mas sempre com inflação crescente, crises cambiais e alto endividamento público (doméstico ou externo). A experiência de Salvador Allende, no Chile (1970-73), foi ainda mais terrível e devastadora, não tanto pelo populismo econômico deliberadamente praticado pelo presidente socialista, mas pela sua absoluta incapacidade econômica em debelar um dos mais virulentos processos inflacionários, desvalorização cambial e alheamento completo do setor empresarial jamais vistos na América Latina, o que redundou num dos golpes mais selvagens praticados na região (junto com o golpe anti-peronista na Argentina, em 1976, que mergulhou o país numa repressão raramente igualada em número de vítimas).
Os casos de populismo econômico observados na experiência brasileira foram de certa forma mais benignos, ainda que o processo inflacionário tenha sido igualmente grave, só contornado, ou parcialmente neutralizado, por uma indexação generalizada de preços, contratos, alugueis, cambio e dívidas. O populismo econômico varguista, no seu segundo mandato (1951-54), confundiu-se com a crise política derivada da oposição radical entre varguistas e anti-varguistas (herdada da fase ditatorial anterior), mas foi, sob outro aspecto, triunfante, pois que identificado à ideologia nacionalista que sempre esteve presente nos corações e mentes dos brasileiros desde o nascimento da República. Mais importante, ainda, esse nacionalismo esteve entranhado nas políticas de cunho desenvolvimentista, praticadas por Vargas, continuadas por Juscelino Kubitschek e ainda mais agitadas durante os turbulentos anos da presidência João Goulart. Esse mesmo conjunto de bandeiras, junto com a alegada Política Externa Independente e o dirigismo estatizante da era militar, foi recuperado na era lulopetista, um período inegavelmente populista, ainda que temperado por políticas econômicas prudentes, numa primeira fase, dada a experiência de luta contra a hiperinflação dos anos imediatamente anteriores e a adesão da sociedade aos valores básicos da estabilidade.
Mas o lulopetismo também praticou populismo econômico, mesmo em suas modalidades mais moderadas, ao implementar um gigantesco programa de subsídios às camadas mais pobres (com quase um terço da população inscrita no Bolsa Família), de valorização política do salário mínimo (que contribuiu para a perda de competitividade da indústria nacional, interna e externamente) e de diversas outras medidas de caráter redistributivo que reduziram, muito modestamente, o coeficiente de Gini do Brasil (já trazido para baixo pela estabilização macroeconômica administrado pela administração anterior). Se na Argentina o populismo peronista se fez sobretudo em detrimento do setor agropastoril, em benefício de uma indústria fortemente protegida, no caso do Brasil o populismo lulopetismo beneficiou, contraditoriamente, os setores mais privilegiados da população, uma vez que suas políticas foram redistributivas sobretudo em favor de industriais protegidos por políticas de subsídios estatais e de políticas comerciais protecionistas e de banqueiros sempre privilegiados pela manutenção de altos níveis de endividamento público e dos juros elevados daí decorrentes.
Mesmo episódios de abertura relativa acabaram redundando, nos casos da Argentina e do Brasil (ainda que em períodos diversos), em populismo econômico, já que se traduziram em fortes valorizações cambiais, favorecendo a classe média (e suas viagens ao exterior) e prejudicando fortemente os exportadores nacionais. O populismo cambial dá uma impressão temporária de riqueza, e se traduz em forte apoio político, até que a realidade consiga novamente se impor sobre políticas que buscavam paliar eventuais pressões inflacionárias ou facilitar a tomada de empréstimos externos. Em suas múltiplas formas, o populismo econômico sempre termina, mais cedo ou mais tarde, em um desastre econômico e social, pois que sua consequência mais evidente é, justamente, a destruição destrutiva, uma terra arrasada na qual todos se descobrem mais pobres, empresários e trabalhadores, classe média e camadas mais pobres. Poucas, ou praticamente nenhuma experiência de populismo econômico, sobretudo na América Latina, conheceu outro resultado senão o fracasso completo da experiência, e suas razões são obviamente conhecidas (ainda que estupidamente repetidas).
O populismo econômico provoca invariavelmente pressão inflacionária, em face da qual o populista-chefe deixa o câmbio se valorizar, aumentam as importações, as reservas se esvaem, os empresários começam a trabalhar com maior capacidade ociosa (em face da concorrência externa), as contas públicas se deterioram e as emissões avultam quase automaticamente. O governo empurra a crise para o setor privado, fazendo do imposto inflacionário sua principal fonte de financiamento e de evasão à dura realidade do equilíbrio fiscal. O resultado é sempre uma crise geral, seguida de forte desvalorização e de empobrecimento geral da população, com o que desaparece também o primeiro objetivo buscado: a redistribuição de renda e o aumento do bem estar das camadas mais humildes.
A América Latina é pródiga, não é preciso dizer, nesse tipo de experimentos, mas o mais surpreendente é que o fenômeno seja recorrente, confirmando um velho slogan que pretende que a geração seguinte sempre esquece o que desgraçou a geração precedente. Países europeus também conheceram episódios de populismo econômico, ou de descontrole inflacionário, até experimentos virulentos nesse capítulo. Mas isso ocorreu uma, ou no máximo duas vezes, no espaço de três ou mais gerações. No caso da América Latina foram bem mais frequentes as acelerações inflacionarias e a troca de moedas, mas certamente nenhum país do mundo chegou a igualar o recorde brasileiro, como já referido, de troca de oito moedas no espaço de três gerações, sendo seis padrões monetários num espaço de menos de uma década apenas. Decididamente, a América Latina é o continente da letargia, dos atrasos, das promessas inconclusas, quando não do retrocesso, do recuo para etapas anteriores do pensamento econômico e das práticas em políticas econômicas.
Como explicar, por exemplo, o retorno a políticas já testadas, e fracassadas, de décadas anteriores? O que dizer desse fascínio por experiências passadas, que deixaram apenas um rastro de insucesso, quando não de desastres incomensuráveis no registro histórico ainda bem recente? Brasil e Argentina são, mais uma vez, exemplos trágicos dessa adesão incompreensível a modelos equivocados de desenvolvimento, mas que possuem um poder de atração incompreensível sobre certos atores políticos, uma vez que os impasses criados anteriormente estão documentados nos registros históricos. Esses modelos, ditos “desenvolvimentistas”, foram, e são, baseados no protecionismo comercial, no apoio financeiro a supostos “campeões da indústria nacional”, em subvenções setoriais, em controles de preços, nas transferências de renda para grupos selecionados de potenciais eleitores, no nacionalismo mais estreito contra o capital estrangeiro (que tende a preferir o endividamento puramente financeiro do que o investimento direto), mas sobretudo nos gastos públicos excessivos, em relação aos recursos disponíveis, que sempre representam uma esquizofrenia orçamentária (e uma receita para o inflacionismo), mas também um custo oportunidade nunca muito bem mensurado pelos analistas econômicos mais sensatos.
Se percorrermos o itinerário dos planos econômicos aplicados na Argentina e no Brasil nas últimas duas gerações – e seguirmos as séries históricas de estatísticas contendo os principais indicadores econômicos: inflação, câmbio, crescimento, emprego e renda per capita – o que se observa, em primeiro lugar, é a sucessão altamente errática de fases de euforia alternando-se com mergulhos para o desastre, complementada, em segundo lugar, por uma linha de tendência de longo prazo que aponta inequivocamente para a perda de dinamismo econômico, quando confrontados aqueles indicadores às médias anuais regionais ou mundiais registradas, moderadamente mais favoráveis, ou aos resultados de outros países emergentes, sobretudo asiáticos, que expressam índices compatíveis com a sua ascensão na economia mundial. De fato, o que se observou, no último meio século, é uma inversão quase que perfeitamente simétrica das posições ocupadas respectivamente pelos países da América Latina e pelos da região da Ásia Pacífico nos principais quesitos da economia mundial: crescimento econômico, comércio internacional, atração de investimentos diretos, competitividade externa e ganhos de produtividade.
Análises superficiais podem até enfatizar que países asiáticos de desempenho satisfatório também praticaram, como muitos da América Latina, dirigismo estatal e intervencionismo econômico, protecionismo comercial, subsídios a indústrias e políticas de apoio à capacitação tecnológica de grandes empresas nacionais, ademais do financiamento público a setores considerados estratégicos e outras medidas constantes do menu desenvolvimentista habitual. Os partidários desse tipo de interpretação têm o costume de apelar inclusive a analistas asiáticos pertencentes a universidades ocidentais – como é caso do economista Ha Joon-Chang, um êmulo de List e de Prebisch e um crítico feroz de um fantasma dos desenvolvimentistas, o Consenso de Washington – para justificar um aprofundamento ainda maior das políticas desenvolvimentistas. O que não se registra, no entanto, nesse tipo de interpretação parcial de processos muito diferentes de desenvolvimento econômico e social é o caráter justamente diferenciado da maior parte das políticas macroeconômicas (fiscal, cambial, monetária), a abertura para o comércio e os investimentos internacionais e, sobretudo, a maior atenção dada aos setores de infraestrutura e, essencialmente, à educação de massa de boa qualidade.
Numa síntese, se os países asiáticos cometeram tantos pecados quanto os latino-americanos em termos de políticas desenvolvimentistas, eles talvez tenham praticado menos populismo econômico, ou seja: menos desequilíbrios fiscais, menores impulsos inflacionários, menos intervenções cambiais (e quase nenhuma troca de moedas, em confronto com a profusão dos padrões monetários na América Latina), uma maior interação daqueles países com a economia global e uma preocupação mais focada no ambiente geral de negócios internamente, na formação de capital humano sobretudo. O populismo político, e suas indesejadas derivações para o terreno econômico, parecem ter sido uma maldição recorrente no cenário geral da América Latina.

O último grande exemplo da reincidência nos erros do passado é dado pelo próprio Brasil, onde a gestão particularmente inepta dos últimos governos lulopetistas levou o país à sua pior crise econômica de todos os tempos, acoplada a um gigantesco esquema de corrupção sem precedentes na história política da nação. Ambos processos, a inépcia e a mega-corrupção, combinaram precisamente os aspectos mais deletérios e nefastos de velhos “ismos” da tradição política nacional: o patrimonialismo sempre presente em todas as etapas de construção da governança – ainda que ele tenha evoluído justamente de sua moldura oligárquica usual para um esquema montado pela junção do sindicalismo mafioso com o aparelhamento partidário de feição criminosa, com tinturas gramscianas e neobolcheviques –, o fisiologismo característico do corpo parlamentar, o nepotismo (presente em todos os poderes), o prebendalismo (que faz a ponte entre os agentes políticos com o empreendedorismo promíscuo que só sobrevive nos negócios estatais), e, finalmente, o populismo, o produto mais acabado de todas essas perversões da governança política na América Latina. Três linhas de tendência conjuntural ilustram a extensão da queda que pode ser chamada de A Grande Destruição lulopetista.

Todas as análises sobre as políticas econômicas conduzidas desde 2003 – com uma maior incidência no período recente – indicam a persistência de velho fantasma da política brasileira: o populismo econômico, ou seja, a tentativa de angariar apoio dos eleitores com base em expedientes distributivistas de curto-prazo (aumento do crédito, concessão de subsídios aos muito ricos e aos muito pobres, expansão exacerbada dos gastos públicos, intervencionismo econômico estatal, introversão dos mecanismos de mercado) e uma gestão particularmente inepta das principais políticas macroeconômicas (entre elas a cambial e a fiscal, em especial). O Brasil, tanto quanto a Argentina, ambos em períodos coincidentes, ou seja, os últimos treze anos, foram vítimas da reaparição de um fantasma que se esperava enterrado, ou pelo menos rejeitado, desde os grandes desastres em que incorreram os dois países no último quinto do século passado, quais sejam, o endividamento externo excessivo, crises inflacionárias exacerbadas por um emissionismo estatal irresponsável, seguidas de mudança de padrões monetários, enfim, o ressurgimento de enfermidades econômicas que deveriam ter sido banidas da história da América Latina.
Desmentindo Laplace, Karl Marx, John Muir e Joseph Schumpeter, a América Latina, costuma destruir instituições duramente criadas ao longo de décadas, senão séculos, de equívocos econômicos, como resultado desses impulsos de populismo econômico tão frequentes em suas elites dirigentes, que deixam atrás de si muita terra arrasada e imenso sofrimento humano. Existiria uma maldição econômica e política especificamente latino-americana? Depois de dois séculos de independência, ao contemplar os retrocessos acumulados na frente do desenvolvimento econômico e social, ademais do quadro persistente de pobreza extensiva, delinquência generalizada e educação de baixa qualidade, teremos de concluir pelo fracasso histórico das elites latino-americanas em construir nações minimamente integradas socialmente e capazes de se integrar de forma exitosa nas grandes correntes da interdependência global?
As apostas ainda estão abertas a esse respeito. Uma resposta positiva a todos esses desafios da região, do Brasil particularmente, depende, em primeiro lugar, de que se tenha uma consciência precisa da natureza dos problemas, de maneira a se ter um diagnóstico realista sobre a situação presente e uma prescrição adequada quanto aos mecanismos para superar tal condição. Este ensaio evidenciou alguns desses problemas, alertando, portanto, para as raízes persistentes de males crônicos. Espera-se que se possa, a partir daí, enveredar por caminhos diferentes dos que foram trilhados até aqui.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília-Gramado, 3030, 10 agosto, 3 setembro 2016.

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