Meu mais recente artigo publicado, e ele deve servir de base para
palestra na Primeira Semana
Pela Liberdade, promovida pelo capítulo de Brasília dos Estudantes pela
Liberdade (Auditório de Ciência Política, UnB; 16/09/2016, 15:10hs; EPL-Brasília.
Paulo Roberto de Almeida
Populismo econômico e ‘destruição destrutiva’ na
América Latina
Paulo Roberto de Almeida
Destruction is always
creation.
John Muir, letter to Ralph Waldo Emerson, March 26, 1872.
In: Andrea Wulf, The
Invention of Nature: the adventures of Alexander von Humboldt, the lost hero of
Science (London: John Murray Publishers, 2015).
Poucos anos depois que
Karl Marx, no primeiro volume de Das
Kapital – em 1867, o único que ele publicaria em vida –, tivesse
formalizado sua concepção acerca dos poderes destrutivos do capital, como
condição para a criação de novas forças produtivas e novas relações de
produção, o conservacionista pioneiro e promotor do movimento ambientalista nos
Estados Unidos John Muir, discípulo intelectual de Alexander von Humboldt, expunha,
em carta ao amigo transcendentalista e poeta Waldo Emerson, sua crença em que
mesmo fenômenos naturais aparentemente destrutivos serviam para criar novas
formas de vida. Em outro sentido, Lavoisier tinha expresso a mesma ideia algum
tempo antes, quando disse que na natureza nada se criava ou se perdia, mas que
tudo se transformava. Talvez, nenhum dos três tivesse refletido sobre essa bizarra,
ou até mesmo essa inacreditável capacidade que possuem certos seres humanos, ou
certos grupos sociais, de destruir instituições criadas pela própria sociedade,
sem nada colocar no lugar. Em nenhuma outra região do mundo essa notável
bizarrice humana exibiu-se de forma tão exuberante quanto na América Latina,
aliás de forma recorrente, o que pode ser um vício, mas também um “pecado
original”.
O título deste ensaio expõe
conceitos cujo sentido caberia explicitar antes de penetrar no âmago do
argumento aqui desenvolvido em relação a um continente que insiste em desmentir
Marx e os demais. Os termos casados de “populismo econômico” e de “destruição
destrutiva” nem sempre se apresentam combinados dessa forma, embora o processo
em questão, o populismo, geralmente de caráter político, parece se casar
perfeitamente com o itinerário frustrante da América Latina ao longo dos dois
séculos desde sua independência. Vamos tentar ver como e porque.
O conceito de populismo
aparece usualmente associado a práticas políticas bastante conhecidas na América
Latina, misturado a condutas obviamente popularescas, isto é, demagógicas e caracterizadas
por muita enganação do povo mais humilde. O populismo de tipo econômico seria
uma simples derivação desse primeiro tipo, feito de políticas econômicas
irresponsáveis, sobrevalorização cambial, controles de preços, emissionismo
desenfreado (para justamente sustentar o nível de gastos públicos necessários
para assegurar uma boa e fiel clientela eleitoral), embromação deliberada em
direção dos mais pobres, enquanto se continua a beneficiar os estratos
privilegiados da sociedade. Em síntese, o populismo econômico significa um
conjunto de medidas de caráter redistributivo e de incitação artificial ao
consumo e ao crescimento, mas que se revela insustentável no médio prazo, que
sempre redunda no esgotamento dos recursos colocados à disposição do governante
e que termina, ao fim e ao cabo, por precipitar uma crise e a consequente
derrocada do modelo adotado.
O termo de “destruição
destrutiva”, por sua vez, remete ao conceito formulado concebido pelo
economista austríaco – mas não da escola austríaca de economia – Joseph
Schumpeter, de “destruição criadora”, destinado a designar o fluxo contínuo de
transformações tecnológicas no seio de um processo produtivo, que anula
procedimentos anteriormente usados, destrói velhos métodos de produção, em
favor de técnicas inovadoras que alteram significativamente o caráter de um
determinado ramo ou de todo um setor da atividade econômica. Nada mais
ilustrativo desse conceito do que as carruagens puxadas a cavalos sendo substituídas
por veículos a motores de combustão interna, do que computadores tomando o
lugar das máquinas de escrever, ou a internet aposentando a correspondência
postal e os milhões de quilômetros de fios e cabos que no passado levavam
mensagens telegráficas e comunicações telefônicas. Schumpeter considerava esse
processo como o “fato essencial do capitalismo”, mas a verdade é que ele ocorreu
e ocorre em qualquer “modo de produção”.
Todos esses exemplos são
representativos da “destruição criadora”, no sentido dado ao termo por
Schumpeter, baseando-se, aliás, na ideia já exposta por Marx no Capital. O que todavia pretendemos
ilustrar aqui é um processo original de destruição puramente destruidora
acarretado pelo populismo econômico, tal como praticado em diversos países da
América Latina. De fato, poucas regiões do mundo, ou poucos outros países
tomados individualmente, foram tão completamente dominados, e arrasados, pelo
populismo econômico quanto países da América Latina, em quaisquer etapas de seu
desenvolvimento desde a independência. Poucos se salvaram do desastre
acarretado por práticas muito pouco schumpeterianas, em fases específicas de
suas trajetórias respectivas, embora a extensão e a profundidade desse desastre
tenham variado de um lado a outro: alguns incidiram poucas vezes no “mal do
século”, enquanto outros (como a Argentina, por exemplo) se especializaram em
repetir várias vezes a mesma história. O Brasil, aliás, não ficou muito atrás,
parecendo seguir, segundo alguns economistas, as bobagens perpetradas pelo país
platino pouco tempo depois, ou cometendo os seus próprios equívocos em total
independência. De certa forma, o Brasil merece mesmo uma espécie de Prêmio
Ignóbil da história monetária mundial: afinal de contas, qual outro país
consegue igualar a proeza pouco recomendável de exibir OITO moedas em sua
trajetória econômica, sendo seis padrões monetários numa única geração, pior, num
espaço de tempo inferior a dez anos?
A esse propósito, é
preciso ainda fazer uma qualificação importante: geralmente se associa o
populismo econômico a políticas de esquerda, à demagogia econômica de tipo
redistributivo, ao inflacionismo irresponsável ou a manipulações cambiais de
diversos tipos. Nem sempre é assim, pois também se pode ter um populismo econômico
de direita, feito de nacionalismo exacerbado, de protecionismo comercial
canhestro, de excesso de intervencionismo estatal, no que, aliás, ele estaria
tão ultrapassado quanto o dirigismo arrogante praticado por governos de
esquerda. O Brasil do período militar – que não pode ser exatamente tido como
um regime de esquerda, embora esta aprove inteiramente, e até queira imitar,
várias das políticas praticadas naquela época – foi justamente um representante
típico de governos de direita que também praticaram populismo econômico, tanto
no capítulo monetário, quanto em diversas políticas setoriais conduzidas ao
longo daquele período. Pergunta: qual outro país conseguia ter não apenas um,
mas TRÊS orçamentos, como aqui registrado: o fiscal – ou seja, aquele normalmente
conhecido em outros países, feito de um simples registro contábil de receitas e
despesas correntes –, o monetário – aqui já expressando as virtudes criadoras
de nossos tecnocratas, uma conta movimento entre o Banco Central e o Banco do
Brasil destinada a financiar os projetos considerados estratégicos pelos
dirigentes – e, por fim, durante muitos anos, um orçamento dedicado
exclusivamente às estatais, um setor gigantesco na economia brasileira (perto
de um terço do PIB) e que servia não apenas à finalidades setoriais, mas também
para captar recursos financeiros no exterior.
O populismo de direita
tem se manifestado atualmente na Europa, onde os temores de uma imigração
desenfreada, a ameaça de desemprego trazido pelo livre comércio e as próprias
pressões sobre o Estado de bem estar social criadas por décadas de fiscalidade
temerária vis-à-vis as realidades
inexoráveis de uma demografia declinante incitaram largos estratos da
população, em geral camadas mais frágeis em face dos processos combinados de
globalização e de automatização – com os fenômenos consequentes do out-sourcing e de off-shoring – a aderir a plataformas defensivas de rejeição ao
estrangeiro e das próprias estruturas comunitárias de liberação dirigida, mas
percebido como muito centralizada em Bruxelas e, portanto, antidemocrática ou
tecnocrática.
Populações interioranas,
comunidades carentes, pouco instruídas, tendem a aderir a esse tipo de
discurso, como revelado agora na Europa ocidental e, com ainda maior acuidade,
nos próprios Estados Unidos, um dos países certamente mais abertos à
globalização e ao acolhimento de imigrantes. O temor do estrangeiro foi, por
certo, exacerbado pelos atos brutais do terrorismo islâmico, não só no Oriente
Médio, mas nos próprios países do Ocidente. Todos esses fatores vêm reforçando o
poder de “sedução”, se por acaso existe algum, dos partidos ou de candidatos de
direita, tomando o conceito no sentido mais amplo da expressão, desde os
xenófobos aproximados ao fascismo, até conservadores preocupados com a
soberania nacional e o emprego dos concidadãos. Em diversos escrutínios eleitorais,
esses partidos e candidatos já atingiram um patamar de representação popular
compatível, em certos casos, com a formação de um governo, ainda que
minoritário (mas capaz, portanto, de influir em coalizões de governo).
Feitas estas
considerações puramente conceituais, ou de constatação de algumas situações de
fato, parece mais ou menos evidente aos observadores que o que aqui foi chamado
de “destruição destrutiva” se identifica bem mais com governos de esquerda, ou
“progressistas”, do que com a chamada direita, quase inexistente no continente;
os primeiros são genuinamente populistas, ao passo que os segundos
ocasionalmente o são. Ainda assim, não foram poucos os governos conservadores,
ou claramente de direita, que produziram os mesmos efeitos desastrosos no plano
econômico e social, a exemplo da Argentina e suas fases de regime militar (com
retrocessos similares, quando não idênticos, aos de governos populistas
supostamente de esquerda). O primeiro populista legítimo da América Latina não
era, aliás, de esquerda, e sim um líder de corte liberal que decidiu enfrentar
os interesses estrangeiros aplicando um calote na dívida contraída com as
principais potências europeias da época: o coronel Cipriano Castro, um Chávez avant la lettre, fez da Venezuela um pouco
do que o coronel bolivariano faria cem anos depois, um feudo econômico quase
tão completamente dominado por seu poder pessoal quanto um outro Castro também
faria com sua ilha, seis décadas à frente. Os líderes militares, caudilhos
políticos eventuais, costumam ser bem mais fascistas do que de esquerda, mas talvez
não existam tantas diferenças entre essas orientações, pois ambas costumam produzir
regimes populistas de tipo corporativo.
Caberia, a propósito,
estabelecer uma tipologia dos governos populistas e suas correspondentes
políticas econômicas que podem estar – e que, no entendimento deste ensaísta,
estão – na origem da destruição destruidora advinda do populismo econômico.
Quais são, portanto, os elementos centrais do populismo econômico, tal como
vistos e praticados por governos de diversas orientações, mas que são
suscetíveis de serem encontrados mais frequentemente nos regimes de esquerda ou
assim identificados?
Independentemente do
tipo de governo no quadro do qual é praticado, a primeira e principal
característica do populismo econômico é a incitação ao consumo, mediante
medidas redistributivas ou estímulos ao crédito, além e acima da capacidade de
geração de renda na economia real. O objetivo de quem pratica esse tipo de
política não é exatamente estimular a economia, e sim carrear apoio político –
eleitoral, geralmente – ao responsável por esse tipo de orientação econômica,
uma vez que é evidente que o distributivismo estatal não é conducente a uma
maior taxa de investimento, podendo ser, ao contrário, um fator de redução nessa
taxa (dadas as incertezas criadas).
Produzir inflação,
valorizar o câmbio, reduzir a competitividade externa da oferta industrial,
afugentar os investimentos diretos estrangeiros tampouco constituem objetivos
explícitos do populismo econômico, ao contrário, todos eles afirmam desejar o
contrário. Mas esses são os resultados que ele provoca na economia assim “atingida”
(e o termo parecer ser este). O principal objetivo do populismo econômico –
nunca reconhecido como tal – é o de estimular o crescimento, manter a demanda
agregada, colocar a economia num ritmo mais elevado de expansão, o que ele
talvez consiga no curto prazo (um ano ou dois, apenas). Mas ele acaba,
inexoravelmente, produzindo o efeito inverso: menor crescimento, mais inflação,
oportunamente uma crise, fiscal ou de balanço de pagamentos, eventualmente as
duas, combinadas ou sucessivas.
Como a intenção de um
governo populista é a de reter e ampliar os apoios eleitorais de que
naturalmente desfruta desde o início da propaganda enganosa, ele acaba
prolongando as políticas deformadoras da dinâmica econômica mesmo quando elas
já esgotaram suas possíveis virtudes sociais – ou seja, o estímulo ao consumo, o
desfrute de fluxos de renda temporariamente canalizados para os grupos visados,
a impressão de riqueza, por força de um câmbio manipulado – e passam então a
produzir efeitos adversos. Os primeiros sinais de descontrole começam a se
manifestar e são geralmente objeto de alertas por parte de economistas
cautelosos, que sofrem reações destemperadas dos donos do poder,
qualificando-os depreciativamente de “profetas do apocalipse”, ou “arautos do
pessimismo”, como muitas vezes se ouviu nesses casos.
Os promotores do
populismo econômico acabam reincidindo nos mesmos equívocos, até mais de uma
vez, essencialmente por teimosia: eles desprezam os riscos de inflação, afastam
a possibilidade de déficits insustentáveis, negam o perigo de um acúmulo na
dívida pública ou a eventualidade de um estrangulamento externo, por
desequilíbrios cambiais, ausência de financiamento sustentável ou penúria
cambial. O descompromisso com a responsabilidade fiscal, o emissionismo
irresponsável e o menosprezo pelos interesses dos empresários nacionais e os dos
investidores estrangeiros são outros traços predominantes nos casos agudos de
populismo econômico. Mas o que distingue mesmo essa esquizofrenia econômica é a
vontade pessoal do dirigente político de comandar ao processo econômico, como
se o dirigismo exacerbado fosse indicativo da boa qualidade de suas políticas
econômicas.
Essa última
característica do fenômeno estudado traduz uma realidade muito frequente na
América Latina: a do líder personalista, eventualmente carismático, que possui
força política suficiente para justamente impulsionar políticas populistas no
plano econômico, a despeito da possível resistência da tecnocracia estatal, dos
alertas de líderes parlamentares (aliados ou de oposição), assim como de
empresários sensatos. A capacidade de dobrar a resistência do sistema político
e a dos meios empresariais está fortemente ligada à trajetória de vários
líderes populistas da região, como evidenciado na experiência de personalidades
como Juan Domingo Perón, Getúlio Vargas, João Goulart e, mais recentemente,
Nestor Kirchner e Lula. Todos eles, invariavelmente, praticaram populismo
político e econômico, e acabaram provocando crises econômicas nos seus países
respectivos, ainda que no último caso, o populismo iniciado por Lula, em bases
relativamente moderadas, tenha sido, de fato, exacerbado por sua sucessora, que
retrocedeu a políticas econômicas aposentadas ainda na era militar.
O exemplo mais eloquente
desse fenômeno na América Latina foi,
obviamente, representado pelo peronismo, predominante a partir do final da
Segunda Guerra na Argentina, efetivo uma primeira vez até meados da década
seguinte, durante quase dez anos, mas retornando por mais um breve período no
início dos anos 1970, brutalmente interrompido pouco depois, mas persistindo,
sob várias formas, nas décadas que se seguiram ao desaparecimento do caudilho
iniciador da concepção doutrinal associada ao peronismo, qual seja, o
justicialismo. Nesses vários períodos, ou em suas modalidades posteriores mais “liberais”
(sob Menem) ou mais à esquerda (sob os Kirchner), entre o final do século XX e
o início do novo milênio (com breves intervalos a cargo do Partido Radical, na
fase de redemocratização pós-regime militar ou mais adiante), o peronismo
demonstrou sua resiliência doutrinal e sua capacidade de arregimentação prática
de amplas franjas do eleitorado argentino.
Em todos os casos, o
peronismo acabou em crises econômicas de maior ou menor amplitude, mas sempre
com inflação crescente, crises cambiais e alto endividamento público (doméstico
ou externo). A experiência de Salvador Allende, no Chile (1970-73), foi ainda
mais terrível e devastadora, não tanto pelo populismo econômico deliberadamente
praticado pelo presidente socialista, mas pela sua absoluta incapacidade
econômica em debelar um dos mais virulentos processos inflacionários,
desvalorização cambial e alheamento completo do setor empresarial jamais vistos
na América Latina, o que redundou num dos golpes mais selvagens praticados na
região (junto com o golpe anti-peronista na Argentina, em 1976, que mergulhou o
país numa repressão raramente igualada em número de vítimas).
Os casos de populismo
econômico observados na experiência brasileira foram de certa forma mais
benignos, ainda que o processo inflacionário tenha sido igualmente grave, só
contornado, ou parcialmente neutralizado, por uma indexação generalizada de
preços, contratos, alugueis, cambio e dívidas. O populismo econômico varguista,
no seu segundo mandato (1951-54), confundiu-se com a crise política derivada da
oposição radical entre varguistas e anti-varguistas (herdada da fase ditatorial
anterior), mas foi, sob outro aspecto, triunfante, pois que identificado à
ideologia nacionalista que sempre esteve presente nos corações e mentes dos
brasileiros desde o nascimento da República. Mais importante, ainda, esse
nacionalismo esteve entranhado nas políticas de cunho desenvolvimentista,
praticadas por Vargas, continuadas por Juscelino Kubitschek e ainda mais
agitadas durante os turbulentos anos da presidência João Goulart. Esse mesmo conjunto
de bandeiras, junto com a alegada Política Externa Independente e o dirigismo
estatizante da era militar, foi recuperado na era lulopetista, um período
inegavelmente populista, ainda que temperado por políticas econômicas
prudentes, numa primeira fase, dada a experiência de luta contra a
hiperinflação dos anos imediatamente anteriores e a adesão da sociedade aos
valores básicos da estabilidade.
Mas o lulopetismo também
praticou populismo econômico, mesmo em suas modalidades mais moderadas, ao
implementar um gigantesco programa de subsídios às camadas mais pobres (com
quase um terço da população inscrita no Bolsa Família), de valorização política
do salário mínimo (que contribuiu para a perda de competitividade da indústria
nacional, interna e externamente) e de diversas outras medidas de caráter
redistributivo que reduziram, muito modestamente, o coeficiente de Gini do
Brasil (já trazido para baixo pela estabilização macroeconômica administrado
pela administração anterior). Se na Argentina o populismo peronista se fez
sobretudo em detrimento do setor agropastoril, em benefício de uma indústria
fortemente protegida, no caso do Brasil o populismo lulopetismo beneficiou,
contraditoriamente, os setores mais privilegiados da população, uma vez que
suas políticas foram redistributivas sobretudo em favor de industriais
protegidos por políticas de subsídios estatais e de políticas comerciais
protecionistas e de banqueiros sempre privilegiados pela manutenção de altos
níveis de endividamento público e dos juros elevados daí decorrentes.
Mesmo episódios de
abertura relativa acabaram redundando, nos casos da Argentina e do Brasil
(ainda que em períodos diversos), em populismo econômico, já que se traduziram
em fortes valorizações cambiais, favorecendo a classe média (e suas viagens ao
exterior) e prejudicando fortemente os exportadores nacionais. O populismo
cambial dá uma impressão temporária de riqueza, e se traduz em forte apoio
político, até que a realidade consiga novamente se impor sobre políticas que
buscavam paliar eventuais pressões inflacionárias ou facilitar a tomada de
empréstimos externos. Em suas múltiplas formas, o populismo econômico sempre
termina, mais cedo ou mais tarde, em um desastre econômico e social, pois que
sua consequência mais evidente é, justamente, a destruição destrutiva, uma
terra arrasada na qual todos se descobrem mais pobres, empresários e
trabalhadores, classe média e camadas mais pobres. Poucas, ou praticamente
nenhuma experiência de populismo econômico, sobretudo na América Latina,
conheceu outro resultado senão o fracasso completo da experiência, e suas
razões são obviamente conhecidas (ainda que estupidamente repetidas).
O populismo econômico
provoca invariavelmente pressão inflacionária, em face da qual o
populista-chefe deixa o câmbio se valorizar, aumentam as importações, as
reservas se esvaem, os empresários começam a trabalhar com maior capacidade
ociosa (em face da concorrência externa), as contas públicas se deterioram e as
emissões avultam quase automaticamente. O governo empurra a crise para o setor
privado, fazendo do imposto inflacionário sua principal fonte de financiamento
e de evasão à dura realidade do equilíbrio fiscal. O resultado é sempre uma
crise geral, seguida de forte desvalorização e de empobrecimento geral da
população, com o que desaparece também o primeiro objetivo buscado: a
redistribuição de renda e o aumento do bem estar das camadas mais humildes.
A América Latina é
pródiga, não é preciso dizer, nesse tipo de experimentos, mas o mais
surpreendente é que o fenômeno seja recorrente, confirmando um velho slogan que
pretende que a geração seguinte sempre esquece o que desgraçou a geração
precedente. Países europeus também conheceram episódios de populismo econômico,
ou de descontrole inflacionário, até experimentos virulentos nesse capítulo.
Mas isso ocorreu uma, ou no máximo duas vezes, no espaço de três ou mais
gerações. No caso da América Latina foram bem mais frequentes as acelerações
inflacionarias e a troca de moedas, mas certamente nenhum país do mundo chegou
a igualar o recorde brasileiro, como já referido, de troca de oito moedas no
espaço de três gerações, sendo seis padrões monetários num espaço de menos de uma
década apenas. Decididamente, a América Latina é o continente da letargia, dos
atrasos, das promessas inconclusas, quando não do retrocesso, do recuo para
etapas anteriores do pensamento econômico e das práticas em políticas
econômicas.
Como explicar, por
exemplo, o retorno a políticas já testadas, e fracassadas, de décadas
anteriores? O que dizer desse fascínio por experiências passadas, que deixaram
apenas um rastro de insucesso, quando não de desastres incomensuráveis no
registro histórico ainda bem recente? Brasil e Argentina são, mais uma vez,
exemplos trágicos dessa adesão incompreensível a modelos equivocados de
desenvolvimento, mas que possuem um poder de atração incompreensível sobre certos
atores políticos, uma vez que os impasses criados anteriormente estão
documentados nos registros históricos. Esses modelos, ditos
“desenvolvimentistas”, foram, e são, baseados no protecionismo comercial, no apoio
financeiro a supostos “campeões da indústria nacional”, em subvenções
setoriais, em controles de preços, nas transferências de renda para grupos
selecionados de potenciais eleitores, no nacionalismo mais estreito contra o
capital estrangeiro (que tende a preferir o endividamento puramente financeiro
do que o investimento direto), mas sobretudo nos gastos públicos excessivos, em
relação aos recursos disponíveis, que sempre representam uma esquizofrenia
orçamentária (e uma receita para o inflacionismo), mas também um custo
oportunidade nunca muito bem mensurado pelos analistas econômicos mais
sensatos.
Se percorrermos o
itinerário dos planos econômicos aplicados na Argentina e no Brasil nas últimas
duas gerações – e seguirmos as séries históricas de estatísticas contendo os
principais indicadores econômicos: inflação, câmbio, crescimento, emprego e
renda per capita – o que se observa, em primeiro lugar, é a sucessão altamente
errática de fases de euforia alternando-se com mergulhos para o desastre, complementada,
em segundo lugar, por uma linha de tendência de longo prazo que aponta
inequivocamente para a perda de dinamismo econômico, quando confrontados aqueles
indicadores às médias anuais regionais ou mundiais registradas, moderadamente mais
favoráveis, ou aos resultados de outros países emergentes, sobretudo asiáticos,
que expressam índices compatíveis com a sua ascensão na economia mundial. De
fato, o que se observou, no último meio século, é uma inversão quase que perfeitamente
simétrica das posições ocupadas respectivamente pelos países da América Latina
e pelos da região da Ásia Pacífico nos principais quesitos da economia mundial:
crescimento econômico, comércio internacional, atração de investimentos
diretos, competitividade externa e ganhos de produtividade.
Análises superficiais
podem até enfatizar que países asiáticos de desempenho satisfatório também
praticaram, como muitos da América Latina, dirigismo estatal e intervencionismo
econômico, protecionismo comercial, subsídios a indústrias e políticas de apoio
à capacitação tecnológica de grandes empresas nacionais, ademais do
financiamento público a setores considerados estratégicos e outras medidas
constantes do menu desenvolvimentista habitual. Os partidários desse tipo de
interpretação têm o costume de apelar inclusive a analistas asiáticos
pertencentes a universidades ocidentais – como é caso do economista Ha
Joon-Chang, um êmulo de List e de Prebisch e um crítico feroz de um fantasma
dos desenvolvimentistas, o Consenso de Washington – para justificar um
aprofundamento ainda maior das políticas desenvolvimentistas. O que não se
registra, no entanto, nesse tipo de interpretação parcial de processos muito
diferentes de desenvolvimento econômico e social é o caráter justamente
diferenciado da maior parte das políticas macroeconômicas (fiscal, cambial,
monetária), a abertura para o comércio e os investimentos internacionais e,
sobretudo, a maior atenção dada aos setores de infraestrutura e,
essencialmente, à educação de massa de boa qualidade.
Numa síntese, se os
países asiáticos cometeram tantos pecados quanto os latino-americanos em termos
de políticas desenvolvimentistas, eles talvez tenham praticado menos populismo
econômico, ou seja: menos desequilíbrios fiscais, menores impulsos
inflacionários, menos intervenções cambiais (e quase nenhuma troca de moedas,
em confronto com a profusão dos padrões monetários na América Latina), uma maior
interação daqueles países com a economia global e uma preocupação mais focada
no ambiente geral de negócios internamente, na formação de capital humano
sobretudo. O populismo político, e suas indesejadas derivações para o terreno
econômico, parecem ter sido uma maldição recorrente no cenário geral da América
Latina.
O último grande exemplo
da reincidência nos erros do passado é dado pelo próprio Brasil, onde a gestão
particularmente inepta dos últimos governos lulopetistas levou o país à sua pior
crise econômica de todos os tempos, acoplada a um gigantesco esquema de
corrupção sem precedentes na história política da nação. Ambos processos, a inépcia
e a mega-corrupção, combinaram precisamente os aspectos mais deletérios e
nefastos de velhos “ismos” da tradição política nacional: o patrimonialismo
sempre presente em todas as etapas de construção da governança – ainda que ele
tenha evoluído justamente de sua moldura oligárquica usual para um esquema
montado pela junção do sindicalismo mafioso com o aparelhamento partidário de
feição criminosa, com tinturas gramscianas e neobolcheviques –, o fisiologismo
característico do corpo parlamentar, o nepotismo (presente em todos os
poderes), o prebendalismo (que faz a ponte entre os agentes políticos com o
empreendedorismo promíscuo que só sobrevive nos negócios estatais), e,
finalmente, o populismo, o produto mais acabado de todas essas perversões da
governança política na América Latina. Três linhas de tendência conjuntural ilustram
a extensão da queda que pode ser chamada de A Grande Destruição lulopetista.
Todas as análises sobre
as políticas econômicas conduzidas desde 2003 – com uma maior incidência no
período recente – indicam a persistência de velho fantasma da política
brasileira: o populismo econômico, ou seja, a tentativa de angariar apoio dos
eleitores com base em expedientes distributivistas de curto-prazo (aumento do
crédito, concessão de subsídios aos muito ricos e aos muito pobres, expansão
exacerbada dos gastos públicos, intervencionismo econômico estatal, introversão
dos mecanismos de mercado) e uma gestão particularmente inepta das principais
políticas macroeconômicas (entre elas a cambial e a fiscal, em especial). O
Brasil, tanto quanto a Argentina, ambos em períodos coincidentes, ou seja, os
últimos treze anos, foram vítimas da reaparição de um fantasma que se esperava enterrado,
ou pelo menos rejeitado, desde os grandes desastres em que incorreram os dois
países no último quinto do século passado, quais sejam, o endividamento externo
excessivo, crises inflacionárias exacerbadas por um emissionismo estatal
irresponsável, seguidas de mudança de padrões monetários, enfim, o ressurgimento
de enfermidades econômicas que deveriam ter sido banidas da história da América
Latina.
Desmentindo Laplace,
Karl Marx, John Muir e Joseph Schumpeter, a América Latina, costuma destruir
instituições duramente criadas ao longo de décadas, senão séculos, de equívocos
econômicos, como resultado desses impulsos de populismo econômico tão
frequentes em suas elites dirigentes, que deixam atrás de si muita terra arrasada
e imenso sofrimento humano. Existiria uma maldição econômica e política
especificamente latino-americana? Depois de dois séculos de independência, ao
contemplar os retrocessos acumulados na frente do desenvolvimento econômico e
social, ademais do quadro persistente de pobreza extensiva, delinquência
generalizada e educação de baixa qualidade, teremos de concluir pelo fracasso
histórico das elites latino-americanas em construir nações minimamente
integradas socialmente e capazes de se integrar de forma exitosa nas grandes
correntes da interdependência global?
As apostas ainda estão
abertas a esse respeito. Uma resposta positiva a todos esses desafios da
região, do Brasil particularmente, depende, em primeiro lugar, de que se tenha
uma consciência precisa da natureza dos problemas, de maneira a se ter um
diagnóstico realista sobre a situação presente e uma prescrição adequada quanto
aos mecanismos para superar tal condição. Este ensaio evidenciou alguns desses
problemas, alertando, portanto, para as raízes persistentes de males crônicos.
Espera-se que se possa, a partir daí, enveredar por caminhos diferentes dos que
foram trilhados até aqui.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília-Gramado, 3030, 10 agosto, 3 setembro 2016.