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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Anatomia da esperança - Eliana Cardoso


Anatomia da esperança

Eliana Cardoso
O Estado de S.Paulo, 26/09/2012

Fiz várias descobertas no embate físico e emocional com uma mastectomia. Alguns achados corriqueiros: o câncer de mama representa mais de 7% de todas as formas da doença maligna e mata cerca de 12 mil mulheres por ano no Brasil. Ainda assim, nunca tinha pensado que se tornaria meu aquele destino comum a tantas brancas, negras, cristãs, judias, agnósticas, heterossexuais, lésbicas, gordas, magras, bancárias, donas de casa, cozinheiras e intelectuais. Nunca. Até que... num dia bonito de julho, a radiologista me pediu que repetisse uma mamografia.
Outros achados foram mais novidadeiros. Embora conhecendo longa lista de escritoras e poetas vítimas do câncer de mama, surpreendi-me com o acúmulo de poemas intitulados Mastectomia. Os mais difíceis me acordaram para o prazer de usar o cérebro e festejei a sequência de 12 composições - The Mastectomy Poems - que fecham o livro de Alicia Ostriker The Crack in Everything. Como canta Leonard Cohen, existe uma rachadura em todas as coisas e é por ela que entra a luz. Dizem os versos de Alicia: "Apertei sua mão./ Você anuiu, breve, confiante,/ Um capitão de navio./ E lá me deitei, mapa da baía,/ Sem recifes nem bancos de areia.(...)/ A anestesia me despediu, como a desempregados.(...)/ Você esfaqueou o seio, o picou e dividiu/ Como a carne rubi da melancia./ Sério na sua linha de trabalho, se excitou um pouco./ Coletou o risco nos ductos./ Coletou os ductos./ Às colheradas, cavou a gordura, mamilo e tudo./ Eliminou probabilidades e pinçou/ As quase insignificantes células,/ Que ficariam - talvez não - / Adormecidas para sempre".
Partindo de experiências parecidas, cada poeta oferece perspectivas diferentes sobre a perda, o estrago e o medo. Na voz poderosa da poeta irlandesa Eavan Boland, o horror da mutilação transforma-se em raiva contra o cirurgião e sua equipe: "Arrancaram/ O que primeiro os saciou/ E que desde então odiaram:/ De veias azuladas,/ E abóboda branca,/ Casa/ De deslumbre e/ Umidade dos sonhos./ Achatada para a pilhagem,/ Para o malabarismo do saque,/ Sou paisagem bárbara./ Deles, o verdadeiro espólio".
Como entender tamanha revolta contra os médicos? Jerome Groopman - catedrático da escola de medicina de Harvard, autor de A Anatomia da Esperança e de Como os Médicos Pensam e coautor de Your Medical Mind (disponível no Kindle) - aponta falhas no comportamento da profissão, explicando que a educação clássica de um médico começa não com um introito aos vivos, mas com a exposição aos mortos.
Ele mesmo, quando estudante, após a palestra de abertura sobre a anatomia humana, se viu transferido para uma gelada sala subterrânea onde dezenas de cadáveres cobertos por folhas de plástico foram divididos entre os alunos - um corpo para cada grupo de quatro. Ao longo das semanas os grupos dissecaram músculos, nervos e tendões, amarrando cordas finas ao redor de cada parte isolada, com uma pequena etiqueta para identificar o objeto.
Concluída a dissecação numa tarde de outono, Groopman caminhava para o dormitório quando olhou para baixo e viu alguma coisa. No começo não sabia o que era, mas logo percebeu que um pedaço espesso da carne do seu cadáver caíra da mesa e se grudara na ponta do sapato. "Fiquei imóvel por um longo tempo", ele escreve, "e me senti como se tivesse cometido um sacrilégio, violado uma fronteira, removendo os mortos daquele lugar tão apropriadamente escondido, onde o cadáver era intencionalmente mascarado para não ser uma pessoa". E, assim, Groopman se viu tomado pelo sentimento de que ele mesmo tinha de ser mais do que um conjunto de órgãos, músculos e pele. De que possuía alguma dimensão diferente e acima do físico.
Mas poderia ele duvidar dos reducionistas? Seria possível que o homem fosse mais do que moléculas interagindo? Poderia questionar a tese de que o sentimento de autoconsciência não passa de ilusão? Refez os passos, devagar, para um pequeno jardim atrás da escola médica, com cuidado para não deslocar o pedaço de carne. Destacou o fragmento do sapato e cobriu-o com uma espessa camada de terra.
Groopman deu-se conta de que a medicina o colocara diante do mistério de nossa existência. A sensação daquela hora se repetiria ainda em muitas ocasiões. Como se repete para os que fazem da medicina um chamado, e não apenas um trabalho. E como se repete para cada um de nós em momentos cardeais: o nascimento do filho, a morte da mãe, o bilhete de amor, o neto no colo...
Em A Anatomia da Esperança Groopman relata: "Anos atrás eu tratava de uma mulher com câncer de mama. Cirurgia, radiação e quimioterapia. Cada tratamento induziu apenas remissão temporária. O câncer atacou fígado e ossos. Fui vê-la. Segurei-lhe a mão e descrevi como o câncer se espalhara. 'Bárbara', disse-lhe, 'temos sido honestos um com o outro. Não conheço nenhum remédio que possa ajudá-la neste momento'. Por longo tempo ficamos juntos em silêncio. Então, ela virou-se para mim: 'Não, Jerry. Você ainda tem algo para me dar. Você tem a medicina da amizade'."
Ao contrário de Bárbara, tenho bons prognósticos. E recebi de meus cirurgiões a medicina da amizade. Ao longo de muitas semanas o cirurgião plástico me recebeu mais vezes em seu consultório do que as impostas pelos cuidados da medicina moderna. Respondendo a minhas perguntas, mostrou-me livros com diagramas e fotografias de reconstruções mamárias. Revelou-se capaz de me entender como pessoa, e não apenas como um corpo doente.
Vou aprendendo, pouco a pouco, a conviver com 700 gramas de silicone: a aceitar - ou quase aceitar - esses dois sacos de gelo seco no lugar das casas gêmeas de antigos banquetes. E pratico o ritual da poesia. Os poemas aliviam o desgosto - talvez não o sofrimento do poeta -, mas, tempos depois, o desta leitora.
* PH.D. PELO MIT,  É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
SITE: 
WWW.ELIANACARDOSO.COM

quinta-feira, 26 de abril de 2012

A "maldita" comedia do populismo latino-americano - Eliana Cardoso


Um populista no inferno
Eliana CardosoPH.D pelo MIT, é professora titular da FGV-São Paulo
O Estado de S. Paulo, 25/04/2012  

Muitos poetas, papas e políticos moram no inferno de Dante. Entre eles está um populista famoso do qual falaremos daqui a pouco. Já sei que você vai reclamar: Dante desconhecia o populismo, pois a América Latina não existia naquela época. Mas o criador da Divina Comédia, embora desconhecesse o termo, entendia o caráter do populista em detalhe. Apenas não usou o vocábulo. Preferiu o cognome de falso guia para descrever a personalidade desse tipo manjado da política universal.
Hoje em dia atribuímos a pecha de populista a políticos dos mais diferentes matizes, incluindo aquele a quem falta fulgor, mas que se aferra a ganhos eleitoreiros de curto prazo, defendendo o protecionismo, desacreditando dos perigos da inflação e demonstrando otimismo exagerado em relação ao crescimento obtido com estímulos ao consumo. Entretanto, o populista autêntico - como o Domingo Perón que Cristina Kirchner procura reencarnar - segue um modelo clássico: o do demagogo nacionalista, mentiroso e autoritário.
Dante nos diz que o pecado do carismático, que arregimenta seguidores com charme e ideias ruins, consiste na fraude. Por isso o coloca na oitava vala do oitavo círculo do inferno - o mesmo círculo onde estão outros fraudadores: bruxos, corruptos, simoníacos, ladrões, hipócritas e falsos guias. Enquanto os hipócritas carregam pesadas capas de chumbo, os populistas ardem dentro de línguas de fogo bifurcadas. Numa delas está Ulisses.
Todo mundo que leu a Odisseia sabe que Ulisses era um mentiroso. Dante adiciona-lhe ainda outros defeitos. Nem o amor de Penélope (nem a saudade do filho) venceu nele o desejo da aventura desvinculada de qualquer obrigação, segundo a confissão que o herói faz a Virgílio no canto XXVI do Inferno. Dante - que não lia grego nem dispunha no final do século 13 de traduções latinas de Homero e conhecia Ulisses apenas pela Eneida - pode tomar a liberdade de inventar as circunstâncias da morte do aventureiro.
Entregue às tentações de seu talento, Ulisses, na companhia de um punhado de seguidores, fez-se de velas sobre o mar aberto. Chegando ao fim do mundo, Ulisses discursou, conclamando os marinheiros: "Somos feitos para perseguir a glória e não para, medrosos, mofarmos na praia". Suas palavras animaram os homens, que dos remos fizeram asas. Logo uma montanha apareceu envolta em brumas e delas um furacão investiu contra o barco. A alegria desmanchou-se em pranto e o mar os sepultou.
Ainda não sabemos que fim terão a sra. Kirchner e seus seguidores. Por enquanto conhecemos apenas seus discursos entusiasmados e a imagem de Evita como pano de fundo por ocasião do anúncio da reestatização da YPF. Muito apropriada a evocação da mulher daquele presidente que, depois de estatizar as ferrovias, os portos e os serviços telefônicos da Argentina no final da década de 1940, sofreria o golpe militar de 1955, em meio ao aumento da violência no país.
A Argentina passou boa parte de sua vida econômica alternando endividamento exagerado com moratórias. Suspendeu o pagamento de suas dívidas em 1828, 1890, 1982, 1989 e 2001. Depois de 2003, os termos de intercâmbio viraram a seu favor. Entretanto, erros de política econômica elevaram a inflação acima dos 20% ao ano. O governo buscou apoio popular, impondo tetos aos preços dos combustíveis. As consequências fatais? Queda de investimento e falta de produtos. A fuga de capitais forçou o controle de câmbio em 2011, continuando políticas econômicas que tentam camuflar a inflação, a redução das exportações e a queda da popularidade da presidente.
O FMI ameaça o país com censura pública pela falta de transparência das estatísticas. Cristina Kirchner vai em frente. Renovando a disputa pelas Malvinas, evoca sentimentos nacionalistas. Aprofundando intervenções, desvia o foco da infraestrutura precária. E cria um círculo vicioso, no qual o governo adota medidas cada vez mais extremas na busca de solução de problemas que suas próprias políticas motivaram.
O aumento dos riscos argentinos pode se refletir no Brasil. Não apenas pela ameaça a interesses de empresários que lá investiram, mas também porque o contágio regional parece inevitável quando os investidores internacionais identificam países vizinhos e aliados e falam de uma onda de nacionalizações que, começando na Venezuela, se espalhou para a Bolívia e o Equador. Por isso na semana passada o presidente do México, Felipe Calderón, fez questão de se distanciar das políticas de Kirchner.
A opinião internacional acredita que o Brasil e a Argentina estão de tal forma entrelaçados que os erros da política econômica de um acabam se refletindo na economia do outro. Há mais de 120 anos, em 10 de janeiro de 1891, a revista The Economist escrevia a respeito de nossas políticas inflacionárias do final do século 19: "Os resultados dessas políticas ficaram claros no caso da Argentina. Chegou a hora de quem tem um interesse no Brasil tomar nota da direção em que o país vai escorregando".
Hoje os analistas financeiros continuam a achar irresistível a comparação das duas economias e relembram que, no passado, governos autocráticos e democráticos presidiram sobre taxas de inflação absurdas. Administrações populistas e neoliberais se regalaram na indisciplina fiscal e no crescimento do Estado. Aqui e lá, ciclos de sobrevalorização cambial sucederam-se, dando lugar ao capital em fuga e às crises externas. Aqui e lá, ciclos da dívida externa atrelaram-se à precariedade de contratos imprescindíveis ao funcionamento da economia de mercado.
Todavia lá, mais do que aqui, a voz pouco clara do governo cria o temor de estatização, protecionismo e arbitrariedades. O Brasil, ao contrário da Argentina, promete respeitar contratos.