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domingo, 21 de abril de 2024

Uma Nova Cultura Exportadora Para a China - Thaís Moretz-Sohn Fernandes (Revista Brasileira de Comércio Exterior)

Uma Nova Cultura Exportadora Para a China 


Thaís Moretz-Sohn Fernandes

Revista Brasileira de Comércio Exterior ((ano, 38, n. 158, jan.-fev.-mar. 2024; Rio de Janeiro: Funcex, Fundação Centro de Comércio Exterior, ISSN: 0102-5074versão flip do artigo: https://www.funcex.org.br/rbce/rbce158/mobile/index.html).

 


I - Introdução

A China, com seus 9,5 milhões de km² divididos em 22 províncias e uma população diversificada de 1,4 bilhão de habitantes, representa um país heterogêneo. Apesar de concentrar mais de 400 milhões de pessoas da classe média mundial (China Briefing, 2023) e ser um grande consumidor dos produtos básicos brasileiros, como a soja e a carne, ainda há oportunidades de negócios inexploradas para as exportações de bens e serviços do Brasil para a China. Parte da não concretização dessas possibilidades comerciais decorre da baixa compreensão que os brasileiros possuem a respeito das nuances culturais e dos diversos modos de entrada que são possíveis de adotar antes de se consolidar no mercado chinês. Com o aproximar da sessão histórica da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que, este ano de 2024, completará vinte anos de existência, faz-se pertinente aprofundarmos as discussões a respeito das diferentes maneiras de vender para a China e buscarmos novos caminhos para fortalecer a cultura exportadora do Brasil para os chineses.

Como é sabido, há desafios micro e macroeconômicos na exportação, sobretudo quando tratamos de um mercado cultural e geograficamente distante como a China. Apesar de haver números positivos para o Brasil na balança comercial e de termos, em 2023, atingindo o impressionante recorde de US$ 105,7 bilhões em venda para os chineses (Secex, 2024), ainda há oportunidades que podem ser melhor compreendidas. A desaceleração no crescimento da economia chinesa, a redução da entrada de investimentos chineses no Brasil e o próprio perfil do consumidor chinês, que se alterou substancialmente após a pandemia, são alguns dos desafios a serem enfrentados nesse esforço exportador. As oportunidades incluem o fato de a China continuar sendo a segunda maior economia do mundo, detentora de reservas cambiais da ordem oficial de US$ 3,238 trilhões (SAFE, 2024) , e contar com uma vontade quase que permanente de investir em iniciativas que vāo ao encontro de suas necessidades, como as relacionadas a recuperação de áreas agrícolas degradadas para aumentar a oferta de alimentos, ou em acordos que promovam a internacionalização da sua moeda, o yuan.

Nesta esfera cambial, inclusive, cumpre destacar que houve um grande avanço recente entre o Brasil e a China, os quais firmaram, em fevereiro de 2023, um currency swap agreement, que permite a utilização do CIPS (Cross-border International Payment System) como alternativa ao SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) nos pagamentos internacionais. A vantagem do CIPS é que nele o pagamento não é triangulado, podendo compradores e vendedores optarem pelo uso do CNY (Chinese yuan para uso dentro da China - onshore) ou do CNH (Chinese yuan para uso em outros mercados - offshore), o que pode trazer agilidade para a operação, novas possibilidades de acesso a produtos financeiros nessa moeda (mecanismos de trade finance) e maior poder de barganha ao negociar preços com os chineses (Sheng ,2023). Sem dúvida, um avanço macroeconômico importante, que carece ainda que os empresários brasileiros se acostumem a ele. 

Sob o aspecto microeconômico, a alteração do comportamento do consumidor chinês, após a pandemia, é outro fator que deve ser observado com cuidado. Por meio da política de Covid-zero e o prolongado e rigoroso fechamento das fronteiras na China, passamos a ver uma significativa mudança de comportamento no público chinês, que se tornou mais exigente, poupador e orgulhoso de sua indústria doméstica. Se, antes, a tendência era a de um consumidor cada vez mais viajado e global, após a Covid, passamos a presenciar uma espécie de correção de rumos, com a população chinesa tornando a se voltar muito mais para dentro do que para o exterior. Hoje o chinês valoriza as suas marcas locais e a produção nacional chinesa passou a ser percebida como mais confiável.

A mudança de comportamento do consumidor chinês decorreu, em parte, de um interesse genuíno em poupar, em face dos desafios socioeconômicos enfrentados pela China, como o envelhecimento da população e o aumento do desemprego entre os jovens. Por outro lado, também foi influenciada pela intensa propaganda realizada por Xi Jinping nos últimos anos, utilizando massivamente o seu poder de moldar e influenciar os cidadãos, promovendo o orgulho nacional chinês e as marcas do país em campanhas na televisão. Um exemplo notável dessa estratégia ocorreu em torno da corrida pela vacina, destacando a capacidade da China de desenvolver soluções próprias para desafios globais.

Além disso, empresas como a BYD (Build Your Dreams) têm-se beneficiado da promoção de produtos chineses no mercado interno, impulsionada pela narrativa nacionalista. A empresa tornou-se líder na produção de veículos elétricos, ultrapassando recentemente a concorrente TESLA, e aproveitando a preferência crescente dos consumidores chineses por marcas domésticas. Como a BYD, Xiaomi, Huawei, e Lenovo também têm ganhado destaque tanto no mercado interno quanto no cenário global. Internamente, marcas chinesas que ainda não são famosas no Brasil ocupam o topo da preferência do consumidor chinês, desbancando empresas estrangeiras, a exemplo da Yili, no setor de produtos lácteos, e a  Liby, em home care (Kantar Worldpanel, 2023).

Para o exportador brasileiro, essas mudanças na China implicam na necessidade de modificar as estratégias de abordagem ao tentar vender produtos industrializados para eles. Anteriormente, era possível apostar nos canais de cross-border e-commerce e explorar iniciativas de branding à distância, direcionadas para atrair a classe média chinesa, que supostamente demonstrava interesse por produtos importados diferenciados. Estratégias que enfatizavam uma "brasilidade" derivada de uma fusão de gostos e qualidade sino-brasileira eram apostas válidas. Da mesma forma, a ideia de um marketing direcionado para atingir um nicho de consumidores ávidos por produtos importados era possível de ser desenvolvido à distância.

No entanto, essas abordagens tornaram-se mais complexas. A competição, que antes era observada principalmente com empresas europeias, americanas ou de países asiáticos vizinhos como a Coreia do Sul e o Japão, agora se intensificou com as próprias empresas chinesas. Estas passaram a inovar e a oferecer diversidade e qualidade dentro da própria China, desafiando a ideia de que os consumidores chineses buscariam no exterior tais características. Além disso, as empresas locais, ao produzirem na China, muitas vezes com incentivos governamentais, e detendo um entendimento mais profundo do consumidor, conseguem oferecer produtos com preço competitivo, alta qualidade e boa reputação.

Com essa mudança na dinâmica do mercado chinês, nunca foi tão importante para os empresários brasileiros buscarem novas estratégias de venda para a China. Do mesmo modo, nunca foi tão importante para o Brasil reduzir a distância física e cultural entre as duas regiões, de modo a não permitir que as dificuldades recentes se tornem empecilhos futuros. Além de aprofundar a conexão digital, é preciso promover ações que contribuam para reduzir os custos de transporte e desenvolver programas de intercâmbio cultural mais aprofundados na China, de modo a trazer os brasileiros mais para perto dos chineses, ajudando-os a compreender o espírito chinês de negociar e de fazer escolhas. 

A cultura brasileira e a chinesa são tão distintas que essas diferenças podem ser também importantes oportunidades, assim como o yin e o yang, que são a unidade quase perfeita de dois opostos. Essa compreensão cultural, porém, não se adquire de uma hora para a outra e, por isso, requer iniciativas urgentes e bem trabalhadas, e a próxima reunião da Cosban é uma excelente oportunidade para isso. Ao longo de minha experiência, com quase 20 anos de estudos e trabalhos com a China, percebi que é muito difícil conhecer a cultura chinesa em pequenas viagens esporádicas para lá.  Por isso, neste artigo, faço uma espécie de exercício antropológico, que inclui, além das questões técnicas de negócios internacionais, a compilação de alguns episódios vivenciados por mim e de conhecimentos adquiridos  na minha jornada na China, e que podem ser úteis.

Tendo iniciado a minha carreira profissional em empresas de agenciamento de cargas e freight forwarder, tive também uma passagem pela Câmara de Comércio Brasil-China, e, posteriormente, uma ampla vivência nas questões de promoção comercial e de defesa de interesses na Apex-Brasil, até me mudar para a China em 2015. Na China, cursei o mestrado de economia política em Xangai, e depois passei a atuar para uma empresa de trading brasileira também em Xangai, até fundar a minha própria empresa de comércio e consultoria na China.

Ao residir na China, compreendi melhor a dinâmica da sociedade e da economia chinesa e pude desmistificar as noções culturais fantasiosas que anteriormente envolviam minha percepção sobre o país, e que havia sido construída após sucessivas viagens de curta duração, em que ia acompanhada de uma equipe de tradutores, intérpretes e motoristas, que eram essenciais, mas me impediam de enxergar a China além da superfície. Ao permanecer na China por um período mais longo, rompi com a ideia utópica de que a China representava um exemplo de progresso e desenvolvimento, e com a ideia romântica e exótica sobre a sua cultura. Em vez disso, testemunhei um país mais complexo, marcado por contrastes e divergências, revelando, também, a sua natureza dura e pragmática, e que foi essencial no meu esforço de conhecer a China como ela é. E é com base nesse conhecimento sobre a China que concluo que é possível desenvolver açōes concretas para compor uma nova Política de Cultura Exportadora para a China, que agregue novas possibilidades de exportação e competitividade para a indústria brasileira. 

 

II - Uma abordagem antropológica dos negócios entre o Brasil e a China

Em 2004, durante visita do presidente chinês Hu Jintao ao Brasil, criou-se a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que se tornou a mais elevada instância das relações entre o Brasil e a China, ressaltando o amadurecimento da parceria estratégica bilateral no âmbito político. Reunindo, sob o seu guarda-chuva, uma série de subcomissōes e de grupos de trabalho, a Cosban representa um importante mecanismo de cooperação e de diálogo entre os dois países, sendo inegável a sua contribuição na agenda comercial, como demonstram os números da balança comercial e os exemplos já citados na introdução deste artigo.

Mesmo assim, ao longo desses vinte anos da criação da Cosban, permanece difícil para o Brasil atingir as suas metas de diversificação da pauta exportadora para a China e de agregar produtos industrializados nas vendas para o mercado chinês. Existindo a vontade do empresário brasileiro em vender para a China, existe, também, um temor em ser passado para trás, por desconhecer as normas e os regulamentos, o idioma, as regras locais e a cultura de negociação. As diferentes e complexas raízes filosóficas milenares chinesas, e a impressionante maneira com que a China se modificou e se transformou nas últimas décadas, ao incorporar o comunismo, o capitalismo e a intensidade tecnológica em uma velocidade surpreendente, a tornaram de fato um país difícil de ser compreendido pela ótica brasileira.

Na Academia, a corrente teórica antropológica representa uma abordagem inovadora que reúne pesquisadores e empresários para explorar uma problemática sob diferentes perspectivas, absorvendo e incorporando elementos de fora, e de diversas fontes, para fundi-los em algo novo, diferente e criativo (Jordan, 2010). A corrente busca transcender as fronteiras tradicionais do conhecimento, promovendo uma abordagem interdisciplinar e integrada, reconhecendo os laços virtuosos entre pesquisa, ensino e aplicação prática do conhecimento. Por exemplo, por eu ter residido e trabalhado na China, acumulei algumas histórias e experiências que podem ser de grande valia nesse processo de buscar adaptação de marcas brasileiras ao mercado chinês, já que o brasileiro, famoso por sua flexibilidade e criatividade, tem tido dificuldades em trazer essas qualidades para seus negócios na China. Com o pensamento antropológico, são as experiências reais, além dos livros e teorias, que contribuem efetivamente na formação de uma educação multicultural e na geração de negócios criativos (Raaj, 2023).

No setor de alimentos e bebidas, por exemplo, há anos, o Brasil se engaja em uma tentativa de vender mais produtos industrializados para os chineses, incentivando a sucessiva ida de empresas desse setor para a SIAL, famosa feira de alimentos em Xangai, entre outros eventos e missões de negócios do mesmo ramo. Participando de algumas dessas feiras como visitante, pude observar a falta de adaptação dos produtos brasileiros ao mercado chinês. Isso ficou evidente na insistência em comercializar o açaí sem ajustes para o paladar local, bem como na tentativa de promover o "queijo de minas" sem oferecer uma explicação clara sobre as origens e as particularidades desse tipo de queijo.

Além disso, compreender e se adaptar ao estilo chinês de negociar tem sido, para o brasileiro, um desafio que gera longas batalhas, muitas vezes por questões pequenas. Em uma das minhas interações com um cliente brasileiro e uma empresa na China, presenciei um problema fundamental em entendimento de cultura de negócios com a China. No caso, o brasileiro, ao desenvolver uma nova marca de produtos na China, encontrou problemas na fabricação das embalagens e rótulos. Enquanto insistia que os produtos tinham que ser embalados com o design proposto por ele, os chineses, buscando eficiência e simplicidade, negavam-se a usar tantas formas, cores e desenhos no produto. Esse embate rendeu semanas de conversas, incluindo sucessivas trocas de e-mails e demoradas videochamadas, até que os chineses persuadiram o fornecedor brasileiro a modificar o projeto e aderir ao design mais simples que haviam proposto. Para o brasileiro, o episódio significou uma negociação perdida e um desperdício de tempo e de energia, além de não ter favorecido a construção de um relacionamento de confiança com a empresa na China.

Ficou evidente, no episódio mencionado, que o lado brasileiro estava encarando os chineses com desconfiança, tendendo a duvidar, em vez de confiar, e rotulando tudo o que ia de encontro com suas expectativas como "preguiça", "má vontade" ou "falta de habilidade” dos chineses, o que trouxe enormes prejuízos para o aprofundamento das relações empresariais. Essa atitude decorreu, em parte, porque o estilo brasileiro de negociar é muito mais parecido com o estilo norte-americano, individualista, sequencial, direto e orientado para metas e resultados do que com o estilo chinês, coletivista, circular, holístico e que dá muito valor aos processos para construir parcerias e relacionamentos (Shimutwikeni, 2012). Compreender as motivações por trás das posturas dos chineses e reconhecer as nuances culturais são fundamentais para estabelecer relações mais sólidas e construtivas, promovendo as bases de para um relacionamento duradouro e uma comunicação colaborativa.

A não compreensão dos elementos culturais em sua profundidade, e o apego a questōes de cultura mais supérfluas, que, em realidade, são apenas regras de etiqueta, como “segure os cartōes de visita com as duas mãos”, “troque presentes”, “participe de jantares regados a baijiu (o famoso licor branco chinês)”, podem ocasionar estragos em contratos e parcerias. Como alertam Graham & Lam (2003) os chineses estão invadindo as escolas de negócios para compreender conceitos e valores ocidentais, como o de imagem corporativa e de propriedade intelectual, ao passo que, para os ocidentais, a compreensāo da cultura chinesa ainda permanece um grande desafio.

Outro problema que tenho notado em meus contatos com clientes ou potenciais clientes brasileiros é que muitos ainda hesitam em considerar a China como destino de exportação. Mesmo possuindo produtos inovadores e competitivos, estão presos a concepções de que, para internacionalizar seus negócios, é necessário primeiro consolidar presença nos países vizinhos, como Argentina ou Bolívia, e, só depois, considerar expandir para países mais distantes - ideia já desmistificada na Academia, quando os professores Jan Johanson e Jan-Erik Vahlne, da Universidade de Upsala, inovaram a teoria comportamental sobre a internacionalização de empresas, recriando, em 2009, as suas teorias de 1977,  e passando a reconhecer como relevante e essencial a capacidade das firmas em viverem em ambientes experimentais, de ambiguidade e de incertezas (Johanson & Vahlne1977; 2009). O empreendedorismo em redes propicia a possibilidade de reconhecer oportunidades e gerar conhecimento, o que não precisa ser linear e nem “um luxo para as empresas maiores e mais fortes” (Saarenketo et al., 2004).

Muitas vezes, no Brasil, porém, as empresas de pequeno e médio porte não se sentem preparadas para o mercado chinês. Algumas vezes, nem mesmo as grandes. O resultado disso é que, para consultores e prestadores de serviços especializados em China, acabamos por ter que atuar como intermediadores ou traders na parte comercial, para commodities e outras mercadorias mais básicas, e tendo menos oportunidades em atuar para desenvolver novos projetos e atender a empresários do setor de bens de consumo que estejam dispostos a investir para modificar abordagens, adaptar produtos e aderir a um modelo de negócio especificamente direcionado para conquistar o mercado chinês. Como traders de commodities, ficamos limitados a atuar como agentes e distribuidores, conectando compradores e vendedores de mercadorias básicas. E, dependendo do projeto, nem sempre temos o capital para atuar em grandes operações de grãos e minérios, que acabam por dominar as exportações brasileiras para a China.

Essas limitações no tipo de operação e de produtos, e, ainda, a escassa representatividade brasileira na China e a insistência em visitas pontuais ao país, em vez de ter uma presença contínua no mercado, não contribui com a adaptabilidade do empresário brasileiro à China e com a geração de negócios novos e diferentes. Segundo informações do embaixador Gilberto Guimarães, então cônsul do Brasil em Xangai, em 2021, havia, dentro da área da jurisdição do consulado, não mais do que 100 empreendedores brasileiros (e-FeitoNaChina, 2021).

Considerando que a jurisdição do Consulado-Geral abrange não só a municipalidade de Xangai, que tem 25 milhões de habitantes, mas também as províncias de Jiangsu, Anhui, Shandong e Zhejiang, que totalizam mais 313 milhões de pessoas (MRE, 2023), ter 100 empresários ali nesse espaço é realmente um número muito pouco expressivo. Levantamento do Ministério das Relações em 2022 mostra que o número total de brasileiros residindo na China é de 5,9 mil (G1, 2023). A grande maioria não faz, portanto, parte da limitada comunidade empresarial. Com frequência, são jovens que vão se aventurar ou estudar e não têm a oportunidade de se envolver em negociações empresariais, elaboração de contratos e tomada de decisões táticas e estratégicas. 

 

III - Uma Nova Política de Cultura Exportadora para a China

Apesar de todas as dificuldades em promover uma inserção de produtos brasileiros de bens de consumo na China, revisitando a minha experiência no mercado chinês, encontro alguns exemplos de sucesso nos anos em que lá vivi. Entre eles, o de um colombiano chamado Davi que tinha passado anos tentando exportar tequila e cachaça da América Latina para a China. Quando Davi se mudou para Xangai, ele mudou por completo a percepção do negócio. Por estar lá, passou a frequentar bares e restaurantes, não só em Xangai, como também no interior, e adquiriu flexibilidade para remanejar o seu empreendimento. Em vez de insistir em vender uma bebida desconhecida dos chineses, ele criou uma empresa de gin que fabrica gin na China, com uma receita que mescla ingredientes latinos com outros típicos da cultura local, como o chá verde e o hibisco. 

Davi não desistiu da cachaça e da tequila, mas percebeu que, antes de poder vender cachaça e tequila, ele precisa atrair o consumidor para a sua empresa. Antes de vender um produto que para o chinês é extremamente inovador, ele precisa captar esse cliente, oferecendo aquilo que o cliente conhece e quer. Em um futuro, talvez, Davi irá ampliar a venda de cachaça e tequila, mas, por ora, está formando a sua clientela e a sua rede de parceiros e distribuidores para depois oferecer um produto diferente. Davi não é brasileiro, mas é um exemplo de um empreendedor que se beneficiou da sua presença local na China, e do seu conhecimento sobre a cultura chinesa e seu estilo de negociar e de fazer escolhas, para conseguir entender o jeito chinês de consumir produtos. Foi o seu conhecimento in loco, sobre as regras e sobre a cultura, que permitiu a Davi a visão de negócio e a adaptabilidade do seu empreendimento ao mercado chinês. Hoje o gin do Davi é encontrado em diversos bares e restaurantes, além de supermercados chineses, em Xangai e em outras cidades da China, exemplificando que o empreendedorismo no mercado local pode trazer resultados positivos e até surpreendentes.

 

Para criarmos mais exemplos como o de Davi, porém de empreendedores brasileiros, precisamos de novos esforços coordenados para uma cultura exportadora que reverta os entraves atuais. Promover um programa de imersão cultural na China direcionado para a formação de exportadores e traders especialistas em China, por exemplo, seria uma excelente iniciativa.  Esse programa poderia ser feito de forma híbrida, parte virtual parte presencial no escritório do Secom/MRE ou da Apex, e seguir a sugestão de Fortunato (2023), adaptando o roteiro às questões chinesas, e colocando os participantes em contato com a Secretaria Executiva do Plano Nacional de Cultura Exportadora (PNCE).

 

Uma outra possibilidade seria via Sebrae, também em parceria com a Apex e empresa de consultoria, no sentido de desmistificar as ideias sobre o ecossistema de empreendedorismo e comércio na China. Seria benéfico um programa voltado para auxiliar na ida de empresários à China e em proporcioná-los algumas primeiras vivências empresariais locais, com pequenos negócios e experiências reais em comércio. Hoje, com USD 5,000.00 e com o cumprimento de pequenas formalidades, como delineamento do escopo do negócio, registro do nome no CNIPA (Escritório de patentes), definição do capital registrado e indicação de um representante legal, supervisor e contador, é possível abrir uma empresa na China e obter a licença comercial em até 3 meses. Com ela, pode-se abrir uma conta bancária local, realizar transações comerciais locais, alugar um escritório e realizar negócios no país. E assim se abre caminho para conhecer as regras e a cultura chinesa de negócios e se dá o primeiro passo efetivo para encontrar parceiros chineses confiáveis.

 

A busca por parceiros, aliás, é outra grande dificuldade que escuto dos meus clientes. Por isso, repito os conselhos de Graham & Lam (2003): “na China, mova-se agora e aprenda as regras do jogo desenvolvendo primeiro o guanxi(relacionamento) necessário para depois fazer com que o seu negócio se desenvolva. Não espere resultados imediatos. Amigos antigos fazem a mágica com o tempo. Cada ano de investimento na China dará resultado no futuro - porque em uma cultura com uma história (e memória) milenar, as relações do momento precisam ser nutridas longa e pacientemente”.

 

Enfim, há muitos desafios e muitas oportunidades e ideias que podem ser implementadas para irmos além dos atuais instrumentos de promoção comercial para a China. Ao aperfeiçoar os canais de comunicação com os brasileiros que possuem experiencia concreta em empreendimentos na China e abrir caminhos para programas de imersão cultural e empreendedora, podemos criar Uma Nova Cultura Exportadora Para a China, que seja efetivamente nova e voltada para a indústria, e que seja implementada como um programa de Estado, e não de governo, de forma a garantir uma continuação ao longo dos anos, pois não se aprende nada de China em um espaço pequeno de tempo.

Uma política comercial que dê mais ênfase aos elementos culturais, e que não os deixe confinados nos institutos confúcios ou nos programas de intercâmbio estudantil, será de grande valia para os empreendedores se aprofundarem no mercado chinês. A formação de mais profissionais e traders especializados em China também são algumas das medidas-chave dessa nova política. O essencial é que a Apex e o Sebrae incluam a cultura chinesa nas suas ações, desenvolvendo programas de imersão cultural e empreendedora especificamente direcionados para a China.

 

CONCLUSÃO

Nos anos em que vivi na China enfrentei significativos desafios e interessantes experiências de negócios. Neste artigo, usando a abordagem antropológica, reuni alguns desses conhecimentos e ideias para auxiliar na concepção de umaNova Cultura Exportadora Para a China. São propostas que, de uma maneira geral, visam a integrar elementos culturais ao comércio exterior e preparar os empresários a entenderem o espírito negociador do chinês e as dinâmicas atuais no mercado de consumo. 

Com o aproximar da sessão histórica da Cosban, esse exercício de repensar as relações bilaterais entre o Brasil e a China e de trazer à mesa novas ideias e propostas é extremamente pertinente. Os números apontam que as relações comerciais entre o Brasil e a China são sólidas e expressivas, porém, as histórias reais, de quem opera com exportações de bens e serviços, revelam dificuldades, medos, incertezas, e oportunidades perdidas. A falta de compreensão da cultura e da filosofia da China são elementos que contribuem para o desperdício dessas oportunidades. 

Neste artigo, foi feita uma série de recomendações de programas e de iniciativas para trazer a cultura chinesa para dentro das empresas brasileiras e, por conseguinte, as empresas brasileiras, e os seus produtos, para dentro da China. Como na China a única certeza é a mudança, e uma mudança em velocidade sempre surpreendente, é preciso muito bom preparo, coordenação e estratégias inteligentes para podermos acompanhar as transformações e desenvolver projetos mais criativos e inovadores que auxiliem as exportações da indústria brasileira.

*Thaís Moretz-Sohn Fernandes, executiva na empresa THAE Consulting

 

Referências

 

1. e-FeitoNaChina. (2021). Entrevista com o cônsul-geral do Brasil em Xangai. Disponível em: https://youtu.be/7HnjtHYWjlM?si=0G8IVWaZwibab8Ab

 

2. Graham, J., & Lam, W. (2003). The Chinese Negotiation. Harvard Business Review. https://hbr.org/2003/10/the-chinese-negotiation

 

3. Johanson, J., & Vahlne, J.-E. (1977). The Internationalization Process of the Firm—A Model of Knowledge Development and Increasing Foreign Market Commitments. Journal of International Business Studies. DOI: 10.1057/jibs.2009.24

 

4. Nummela, N., Saarenketo, S., & Puumalainen, K. (2009). A Global Mindset: A Prerequisite for Successful Internationalization? Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1936-4490.2004.tb00322.x

 

5. Johanson, J., & Vahlne, J.-E. (2009). Dynamic knowledge-related learning processes in internationalizing high-tech SMEs. Journal of International Business Studies. DOI: 10.1057/jibs.2009.24

 

6. Johanson, J., & Vahlne, J.-E. (2009). The Uppsala Internationalization Process Model Revisited: From Liability of Foreignness to Liability of Outsidership. Journal of International Business Studies, 40, 1411-1431. DOI: 10.1057/jibs.2009.24

 

7. Ministério das Relações Exteriores (MRE). (2023). Jurisdição. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/consulado-xangai/o-consulado/jurisdicao

 

8. Jordan, A. (2010). The Importance of Business Anthropology: Its Unique Contributions. International Journal of Business Anthropology, Volume 1. ISSN 2155-6237

 

9. Raaj, S. (2023). Business Anthropology and Education: Approaches, Methodologies, and Implications. Journal of Business Anthropology, Volume 23. ISSN 2155-6237

 

10. Bolemo, N. (2019). Culture and Negotiations in China. Universidad Pontificia Bolivariana. https://sfa2142120804c535.jimcontent.com/download/version/1573069830/module/10796682383/name/CULTURE%20AND%20NEGOTIATION%20IN%20CHINA%20FINAL%20PAPER.pdf

 

11. Shimutwikeni, N. (2012). The Impact of Culture in International Business Negotiations: Special Reference to China and United States of America. University of Dundee. https://www.elsi-project.eu/fileadmin/user_upload/elsi/broschüren/THE_IMPACT_OF_CULTURE_IN_INTERNATIONAL_BUSINESS_NEGOTIATIONS.pdf

 

12. China Briefing. (2023). China's Middle Class Growth, Policy, and Consumption. Disponível em: https://www.china-briefing.com/news/china-middle-class-growth-policy-and-consumption

 

13. Fortunato, F. (2023). Formação de traders para o século XXI no Brasil para expandir a presença das empresas comerciais exportadorasRevista Brasileira de Comércio Exteriornúmero nº 155 - Abril, Maio e Junho.

 

14. G1. (2023). Veja onde moram e quantos são por país os brasileiros no exterior, de acordo com estimativa do Itamaraty. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/08/10/veja-onde-moram-e-quantos-sao-por-pais-os-brasileiros-no-exterior-de-acordo-com-estimativa-do-itamaraty.ghtml

 

15. Sheng, H. (2023). Usar RMB nas transações de exportações e importações brasileiras.

Disponível em: http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/RBCE154_HsiaHuaSheng.pdf. RBCE, ed 154.

 

16. SECEX. (2024). Comércio exterior brasileiro bate recordes e fecha 2023 com saldo de US$ 98,8 bi. https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/comercio-exterior-brasileiro-bate-recordes-e-fecha-2023-com-saldo-de-us-98-8-bi

 

17. SAFE. (2024). https://portuguese.news.cn/20240107/f7fbb050f75940d8be3a9548bed35139/c.html

 

19. Kantar World Panel (2023). 如今不少品牌开始另辟蹊径探索更多好玩新奇的零售高级玩法. https://kantar.turtl.co/story/chinese-mainland-bfp-2023-e/page/3/8


sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Brasil e o G20 - Paulo Roberto de Almeida (Revista Brasileira de Comércio Exterior)

 Mais recente artigo publicado: 

4597. “O Brasil e o G20”, Brasília, 8 março 2024, 5 p. Artigo sobre como o Brasil pode impulsionar a sua agenda no G20, para atender a pedido de Mário Cordeiro de Carvalho Jr., Economista-Chefe e Editor-Chefe da RBCEPublicado na Revista Brasileira de Comércio Exterior (ano, 38, n. 158, jan.-fev.-mar. 2024, p. 19-21; Rio de Janeiro: Funcex, Fundação Centro de Comércio Exterior, ISSN: 0102-5074versão flip do artigo: https://www.funcex.org.br/rbce/rbce158/mobile/index.html; link para o pdf isolado:http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/RBCE158_PauloRobertoAlmeida.pdf); divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/117735054/4597_O_Brasil_e_o_G20_2024_)Relação de Publicados n. 1556.


Versão original (reduzida na versão publicada, que pode ser consultada nos links acima):


O Brasil e o G20 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo sobre como o Brasil pode impulsionar a sua agenda no G20.

Revista Brasileira de Comércio Exterior (ano, 38, n. 158, jan.-fev.-mar. 2024, p. 19-21; Rio de Janeiro: Funcex, Fundação Centro de Comércio Exterior, ISSN: 0102-5074versão flip do artigo: https://www.funcex.org.br/rbce/rbce158/mobile/index.html; link para o pdf isolado:http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/RBCE158_PauloRobertoAlmeida.pdf). Relação de Originais n. 4597.

  

O Brasil assumiu a presidência temporária do G20 em 1º de dezembro de 2023, e conduzirá os trabalhos do grupo durante todo o ano de 2024, culminando com o encontro dos chefes de Estado e de governo no Rio de Janeiro nos dias 18 e 19 de novembro. Uma primeira etapa, de definição de prioridades, já foi realizada no próprio Rio de Janeiro, em fins de fevereiro, com a presença dos ministros de relações exteriores e representantes de organismos internacionais, durante a qual o Brasil apresentou as suas metas ao grupo. A reunião enfrentou algumas dificuldades, uma vez que se imiscuiu no debate o problema das duas guerras em curso no atual momento: a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, desde 23 de fevereiro de 2022, e a guerra Hamas-Israel, desde 7 de outubro de 2023.

É evidente que o G20, tendo em vista seu foco tradicional nos temas econômico-financeiros, com alguma derivação para a agenda ambiental desde alguns anos, será incapaz, e sequer possui mandato para tal, de encaminhar qualquer solução, mesmo precária, para essas duas tragédias das relações internacionais, que já reforçaram o sentimento de que o mundo consolidou o cenário geopolítico, de uma Segunda Guerra Fria, já em curso desde mais de dez anos, sobretudo no campo econômico e tecnológico, entre as duas maiores economias da atualidade: os Estados Unidos e a China. Não cabe, portanto, concentrar o foco deste artigo nas questões concretamente geopolíticas, de confrontos interimperiais.

Cabe, sim, da perspectiva do Brasil, concentrar a atenção nas prioridades brasileiras estabelecidas para a sua presidência. Oficialmente, elas são as seguintes: (1) a inclusão social e o combate à fome e à pobreza; (2) a promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômica, social e ambiental e transições energéticas; e (3) a reforma das instituições de governança global, incluindo as Nações Unidas e os bancos multilaterais de desenvolvimento. Para as primeiras duas prioridades, o governo brasileiro propôs a constituição de duas Força Tarefas (Task Forces): a primeira para o lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a segunda para uma mobilização global contra a Mudança do Clima e a Iniciativa para Bioeconomia. Caberá seguir os trabalhos dessas duas forças tarefas, mas o objetivo aqui é o de discutir as chances de o Brasil conseguir resultados satisfatórios nas três prioridades oficialmente apresentadas como relevantes do ponto de vista da melhoria na agenda multilateral e no presente estado, fragmentado, das relações entre as grandes potências e entre o que se convencionou chamar de Ocidente versus Sul Global. 

No tocante à primeira prioridade brasileira, trata-se de um objetivo permanente do PT no plano interno, mas que também foi objeto de uma iniciativa de Lula desde o início de seu mandato inicial como presidente do Brasil. Desde a campanha presidencial, em 2002, ele agitava, como a grande prioridade de seu governo, acabar com a fome no Brasil, tentando fazer, por meio do programa Fome Zero, com que os brasileiros mais frágeis pudessem se alimentar três vezes ao dia. O método adotado, no entanto, foi o mais equivocado possível: coletar, fisicamente, alimentos entre fornecedores – de preferência da pequena agricultura familiar – para distribuí-los entre os necessitados. Foi também o seu primeiro fracasso, tanto que foi abandonado depois de poucos meses – a despeito de ser coordenado desde a própria Presidência da República – e substituído, em pouco tempo, por uma contrafação do programa Comunidade Solidária, criado e desenvolvido do zero pela primeira-dama, Ruth Cardoso. 

Esse programa foi “entregue” ao governo petista com cerca de 6 milhões de famílias pobres, que passaram a ser assistidas por diversas modalidades de ajuda material, inclusive uma forma precoce de Bolsa Escola (com contrapartidas). O governo Lula, para compensar o evidente fracasso do Fome Zero, realizou uma assemblagem dessas modalidades, carimbou tudo como sua iniciativa, sob o apelativo de Bolsa Família, e passou a expandir, sobretudo numericamente, a população assistida. Ao final do seu mandato, o BF família alcançava mais de dez milhões de famílias, um volume superior a 40 milhões de pessoas – quase um quarto da população total, o equivalente a uma Argentina inteira – dotadas de um cartão magnético que as habilitavam a complementar a renda acima da linha da pobreza, ou simplesmente a consumir uma espécie de cesta básica de manutenção alimentar (na verdade, muitas famílias utilizavam o subsídio para cobrir despesas mensais de compras a “dez vezes sem juros”).

Indiferente a esse fracasso no âmbito interno, Lula insistiu, no plano externo, em criar uma espécie de Fome Zero Universal, já visando, provavelmente, um futuro Prêmio Nobel da Paz (depois perseguido pelas tentativas de fazer a paz entre israelenses e palestinos ou encontrar uma solução ao programa nuclear iraniano). Lembro-me perfeitamente, servindo em 2003 na embaixada em Washington, de seus insistentes pedidos dirigidos a delegação na ONU para obter a constituição de uma iniciativa nessa linha: alimentar os pobres do mundo. O Secretário Geral da ONU, argumentando que já existia uma ampla estrutura com os mesmos objetivos, o Programa Mundial de Alimentos (coordenado pela FAO), convidou Lula a se associar a essa iniciativa, existente desde várias décadas, o que Lula recusou terminantemente, uma vez que pretendia ter o “seu” programa, financiado pela ONU. Lula continuou insistindo junto a outros chefes de Estado – o presidente francês Jacques Chirac, entre outros –, mas, ao final, a única coisa que foi criada tratou da distribuição de medicamentos antiAids dirigido sobretudo à África. 

Não existe ainda consenso entre os membros do G20, e os organismos internacionais associados, sobre a possibilidade de criação e funcionamento efetivo dessa Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, dois flagelos que já são colocados sob os auspícios de diversos programas onusianos e da cooperação bilateral de países doadores, geralmente agrupados no Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da OCDE (uma organização internacional reunindo três dúzias de países, mas que não conta com as simpatias de Lula ou do PT). A retórica do apoio a tão nobres objetivos não deverá ser contestada por nenhum dos países membros do G20, mas é improvável que se consiga montar uma nova superestrutura multilateral capaz de iniciar novas metas, quando os mesmos objetivos já estão contemplados em programas similares, ainda que fragmentados em diversos organismos internacionais.

Na segunda frente, a do desenvolvimento sustentável e da transição energética, não deveria haver objeções políticas aos objetivos gerais, ainda que a segunda vertente, a da transição energética, seja bem mais complexa, e improvável de ser canalizada a iniciativas convergentes, do que as questões ambientais, de resto reconhecidamente necessárias e até urgentes, dada a agravação dos extremos climáticos nos últimos anos e o aumento da devastação dos recursos naturais em grandes países do chamado Sul Global. Algum consenso retórico poderá ser registrado em documentos e declarações de boas intenções, de cunho puramente voluntário, como são geralmente as resoluções aprovadas ao cabo dos muitos encontros de cientistas e de diplomatas realizados desde a Rio-92 e a Rio+20. Haverá, aqui, portanto, uma aparência de progressos políticos, mas é improvável que eles reflitam as ações concretas dos países, do G20 e fora dele, no sentido de acelerar suas medidas de mitigação das mudanças climáticas ou que acelerem claramente a transição energética para fora dos combustíveis fosseis (que continuarão alimentando as cadeias produtivas e a energia). 

A terceira grande meta, a reforma das instituições de governança global, sobretudo a ONU e as instituições de Bretton Woods, conhecerá, provavelmente, alguns avanços cosméticos, inclusive porque os próprios Estados Unidos se declararam dispostos a considerar o aumento de membros permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas, como os demais objetivos, e a exemplo de exercícios anteriores nessa direção, mudanças no processo decisório e na própria estrutura dessas instituições enfrentarão naturais resistências daqueles que poderiam perder poder relativo nas instâncias de comando. Isso não impedirá que mais diretorias nas organizações tipicamente onusianas sejam atribuídas a delegados de países em desenvolvimento, embora muitos deles já exerçam inclusive a presidência ou a diretoria-geral de algumas delas, ou que aumentos de cotas, nas organizações de Bretton Woods possam também ocorrer em seu favor (lembrando que a China já foi contemplada com o aumento de seu capital em ambas). 

Curiosamente, o objetivo mais ambicioso acalentado por Lula desde o seu primeiro mandato, ver o Brasil integrar, como membro permanente, uma das cadeiras de um Conselho de Segurança ampliado, encontra surpreendentes obstáculos, vindos de um membro que Lula considera como seu principal aliado na concretização do mirífico projeto de uma “nova ordem global”: a República Popular da China. Desde quando tiveram início tentativas variadas no sentido de se encontrar algum consenso em torno da reforma da Carta da ONU e da ampliação do seu Conselho de Segurança, com a RPC já tendo assumido nele o lugar antes pertencente à República da China (Taiwan) entre 1945 e 1972, se sabe que a China não pretende, de maneira geral, ampliar o número de membros permanentes, mas sobretudo, porque se opõe, em particular, ao ingresso do Japão e da Índia, com os quais ela possui notórias antipatias, diferenças históricas e conflitos diplomático-militares.

O mais provável, portanto, é que se aprovem algumas melhorias cosméticas na presença e participação de alguns grandes países em desenvolvimento nos organismos onusianos e que se conceda algum aumento de capital, e algumas novas ou antigas diretorias nas “irmãs” de Bretton Woods e na OMC (que, aliás, não se baseia em cotas de capital, e que por isso mesmo acaba sendo paralisada pela inércia dos seus grandes membros). Não creio que os diplomatas, experientes em todas essas barganhas negociadoras nos organismos internacionais, se decepcionem, como provavelmente ocorrerá com Lula e assessores do PT, com a magreza de resultados efetivos ao cabo da reunião de cúpula do G20 em novembro. A marcha das reformas nos grandes “dinossauros” da ONU – De Gaulle a chamava de grand machin, a grande geringonça – sempre foi lenta e não será diferente num G20 agora (e diferente de quando surgiu nesse formato de cúpula em 2009) dividido entre os “ocidentais” e os supostos proponentes da “nova ordem global”, entre os quais se alinham, ingenuamente, Lula, os ideólogos do PT e acadêmicos sonhadores. 

O mundo pós-invasão da Ucrânia encontra-se irremediavelmente fragmentado, e as propostas do Brasil de Lula se veriam comprometidas por essa divisão mesmo se ele, numa hipótese otimista, fizesse parte dos mais entusiastas defensores do “Ocidente” (o que está longe de ser o caso). Que não se espere, portanto, resultados entusiasmantes, capazes de integrar um discurso sorridente de Lula no dia 19 de novembro no Rio de Janeiro. Os diplomatas profissionais farão os maiores esforços para, literalmente, extrair “leite de pedra”, num ambiente internacional que continuará a se deteriorar, com o cruel prolongamento da guerra na Ucrânia, de outros conflitos no Oriente Médio, e de uma virtual estagnação da integração regional, em face dos quais Lula tentará manter sua linguagem otimista, como pretenso líder de um diáfano Sul Global. 

Em todo caso, caberia efetuar nova avaliação, no momento devido, das realizações do G20 sob a presidência brasileira, uma vez que os resultados concretos, ali apresentados, sejam confrontados aos presentes argumentos dotados de certo ceticismo sadio. O que se pode, no entanto, prever, é que o mundo – enquanto Putin permanecer no comando da Rússia, e enquanto os generais do Pentágono continuarem paranoicos, como é seu dever e obrigação – enfrentará, no futuro previsível, nova corrida armamentista e pesados investimentos, tanto custosos quanto inúteis, em novas armas fantásticas, que provavelmente nunca serão usadas até uma hipotética mudança nos fios condutores das principais potências nucleares. Queremos crer que o estadismo responsável prevalecerá sobre as trombetas do Apocalipse, que, infelizmente, voltaram a se manifestar ruidosamente, desde a conclusão da primeira Guerra Fria, exitosamente dada por concluída por Gorbatchov e Bush pai. Eles não parecem ter encontrado sucessores à altura na atual geração de dirigentes pressionados por partidos extremistas, por ecologistas radicais, pelas baixas taxas de crescimento, pelo desemprego setorial e pelo afluxo maciço de imigrantes exóticos e miseráveis. O século XXI já não é o que se pensava emergir, nos anos triunfantes da unipolaridade imperial.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4597, 8 março 2024, 5 p.

Aceito para publicação em 13/03/2024, com poucas mudanças tópicas.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Funcex: Revista Brasileira de Comércio Exterior

Uma excelente revista para os que se interessam por comércio exterior:


Temos a satisfação de compartilhar com você a versão digital e interativa da nova edição da Revista Brasileira de Comércio Exterior, publicada trimestralmente pela Funcex - Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior.

Você pode acessá-la clicando na imagem ao lado ou copiando no seu navegador este link: http://www.funcex.org.br/rbce/rbce141/
Apresentamos a seguir o sumário desta edição, bem como link para acesso aos artigos individualmente.
Boa leitura!

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Mercosul

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Argentina

Guillermo Rozenwurcel
As políticas brasileiras de financiamento às exportações

Constanza Negri Biasutti e Felipe Augusto Torres de Carvalho
Antidumping e concorrência no Brasil

Sérgio Kannebley Júnior e Glauco Avelino Sampaio Oliveira