Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos
governos?:
estabeleça quais são as suas
preferências
Paulo Roberto de Almeida
Como ocorre toda semana, o The New York Times publicou, em 8 de
fevereiro de 2015, na coluna Economic
View do suplemento dominical dedicado a Business,
um artigo sobre “Ansiedade e taxas de juros”, do famoso economista de Yale
Robert Shiller – autor do não menos famoso Irrational
Exuberance, já em sua terceira edição – no qual ele argumenta, em
determinada passagem, que os mercados não são de fato eficientes, uma vez que
tendem a amplificar as reações emocionais das pessoas. A intenção dele não era
exatamente a de lançar invectivas contra uma tal de “lógica do mercado”, como
fazem certos neófitos por aqui (e em diversas outras partes do mundo também),
ou de sequer fornecer argumentos aos que se revoltam contra a “ditadura dos
mercados”, como também fazem muito frequentemente todos aqueles que não
entendem nada de mercados. Shiller estava apenas chamando a atenção para a
reação exagerada das pessoas em face de determinadas inversões de tendência dos
mercados, o que parece absolutamente normal (“Anxiety and Interest Rates: How
Uncertainty Is Weighing on Us”: http://www.nytimes.com/2015/02/08/upshot/anxiety-and-interest-rates-how-uncertainty-is-weighing-on-us.html?emc=edit_tnt_20150207&nlid=13125452&tntemail0=y&_r=0&abt=0002&abg=1).
Nem os agentes
tradicionais de mercado nem os simples cidadãos – que entram e saem dos
mercados para conduzir uma operação qualquer – dispõem de todas as informações
em volume e na qualidade necessários para tomar suas decisões da melhor forma
possível, com total domínio sobre os fatos e amplo conhecimento de causa. Sempre
persistem zonas de sombra, quando não áreas inteiras cinzentas, e até
territórios obscuros, que induzem esses agentes e os particulares a tomarem
decisões erradas, a enveredar por caminhos perigosos, abrindo assim a janela
para a formação de bolhas especulativas, ou à simples depreciação de seus
ativos, apostando nas ações ou nas moedas “erradas”. Tais fatos, ou movimentos,
acontecem, e seria incongruente colocar a culpa nos mercados, que apenas se
movimentam sob o impulso de nossas próprias decisões, individuais ou coletivas.
Desde quando comecei a
aprender um pouco de economia – bem mais nos cadernos especializados dos
grandes jornais do que na leitura dos manuais acadêmicos, justamente – sempre
desconfiei das alegações sobre as “falhas de mercado”, que figuram em
praticamente todos os livros de micro e macro, com alguns exemplos das
principais, para, a partir daí, legitimar as medidas corretivas que os governos
tomam para tornar os mercados mais “funcionais”. Os próprios dirigentes
políticos, quando não seus assessores econômicos, recorrem a essas figuras de
estilo – falhas ou imperfeições de mercado –, para implementar medidas que
parecem “racionais”, numa primeira abordagem, mas que depois podem causar mais
problemas do que soluções.
Sinto discordar desse tipo
de visão, e provavelmente de 90% dos acadêmicos envolvidos nesse tipo de
debate, mas discordo frontalmente desse tipo de alegação. Não é que eu não
acredite nas “imperfeições” do mercado, pois minha discordância vai bem mais
além: eu não acredito é que existam “imperfeições” de mercado, uma vez que esse
é o estado natural de existência e de funcionamento dos mercados. Ora, sendo
isso natural, não há porque falar em “imperfeições”, como se estas fosse
anomalias passíveis de correção pela ação de algum grupo de sábios, ou videntes,
como se o mercado, ou os mercados mais precisamente, pudessem funcionar de
outra forma como o fazem, com todos os seus movimentos erráticos, esses altos e
baixos, essas ondas de otimismo e os vagalhões de pessimismo que o caracterizam
sempre e em qualquer circunstância. Volto a repetir: não existem imperfeições
de mercado, existem mercados, simplesmente. Tal tipo de afirmação me parece tão
evidente que dispensaria qualquer explicação, mas vamos tornar explícito o que
acabo de argumentar implicitamente.
O que é o mercado, ou o
que são os mercados? Não existe um único mercado, obviamente, mas dezenas,
centenas, milhares deles, sempre à disposição de qualquer agente ou um simples
trabalhador, sem esquecer os famosos rentistas, que vivem, ao que parece, de
especulações nos mercados; todos eles são prontamente atendidos em suas
intenções de satisfazer seus desejos ou necessidades, de maneira perfeitamente
legal, ou até ilegal e clandestina (para drogas, por exemplo). Os mercados são
simples espaços de encontro para trocas bilaterais ou “multilaterais”, e eles
existem tanto virtualmente quanto fisicamente, desde que duas ou mais pessoas
se disponham a trocar seus ativos por outros, detidos pela outra parte
interveniente nesse tipo de “escambo”. Pode ser uma maçã contra uma banana no
pátio da escola, ou milhões de dólares numa bolsa qualquer, num agente de
câmbio de divisas, ou na compra de bônus governamental de alguma economia
emergente. Quaisquer bens ou serviços que sejam objeto de alguma preferência
subjetiva quanto ao seu valor são facilmente integrados e integráveis a um
mercado qualquer, formal ou informal, de qualquer tipo, dimensão ou
“perfeição”. Mercados são perfeitamente ubíquos, mesmo quando invisíveis.
O professor Shiller afirma
isto em seu artigo: “porque os mercados não são realmente muito eficientes, o
efeito desses variados fatores [níveis extremos de juros e preços devido à
confluência de múltiplos fatores precipitantes, entre eles a ansiedade] tende a
ser amplificado pela realimentação emocional. Por exemplo, quando as pessoas
começam a ver taxas e preços mudando, algumas delas decidem agir: elas são atraídas
ao mercado quando os preços estão subindo, e frequentemente o deixam quando os
preços caem. Nós então [suponho que ele esteja falando dos economistas] ficamos
surpresos pela extensão da aparente sobre-reação do mercado aos fatores
precipitantes que não pensávamos que estivessem realmente na mente de todo
mundo.”
Ora, não é preciso ser
prêmio Nobel de economia (2013) para descobrir que existem fatores
precipitantes, ou que as pessoas reagem de tal e tal modo ao ver os preços
subindo ou descendo nos mercados de valores. Sinto muito dizer isso, mas a
afirmação do professor Shiller não faz nenhum sentido, ou então ela expressa
exatamente o comportamento das pessoas nos mercados. Por que estes seriam pouco
eficientes, então, quando eles estão atuando exatamente como as pessoas o
fizeram se movimentar? Para a alta nos momentos otimistas, quando os preços
estão subindo, e para a baixa quando há percepção, ou movimento real, de queda.
Não é preciso nenhuma exuberância racional para explicar isso, embora as
pessoas se comportem exatamente assim, com toda a irracionalidade que permeia
qualquer ação humana em face de incertezas, zonas de sombra ou simples
desconhecimento das dinâmicas da vida (sejam elas as forças da natureza, ou as
forças igualmente imponderáveis da economia).
Tenho para mim que os
mercados são perfeitamente eficientes e altamente perfeitos, uma vez que eles
reagem exatamente em função de como as pessoas atuam neles, ou seja, investindo
ou se retirando, trocando ativos ou permanecendo paradas, e tudo isso é feito
de maneira perfeitamente descoordenada, anárquica mesma, como devem ser
mercados altamente funcionais. Agora, se você pretende que o mercado funcione
de uma determinada maneira, e não possa refletir os movimentos das pessoas,
então coloque alguns burocratas de governo para vigiá-lo, para corrigi-lo, para
discipliná-lo de algumas “imperfeições” detectadas por esses mesmos burocratas.
O mais provável é que eles estejam atuando a mando de “gestores” mais
poderosos, que por sua vez decidiram empreender alguma ação corretiva porque
alguns agentes de mercado decidiram que ele só poderia se movimentar numa
direção, e não em outra: geralmente mantendo o câmbio em determinado patamar,
determinadas ações imunes aos resultados efetivos da empresa, mercadorias em certo
nível de preços do que a sua oferta mais abundante, ou escassa, o determinaria,
pelo livre movimento de produtores e de compradores nesses mercados específicos,
etc.; escolha qualquer um dos casos.
A legitimação é sempre a
mesma: como os mercados não são “eficientes”, os sábios do governo (com seus
conselheiros econômicos por trás) resolvem “ajudá-los” impondo certas regras,
ou limitando o ingresso de outros participantes. Barreiras ao ingresso de novos
competidores é sempre uma maneira “eficiente” de preservar os ganhos dos poucos
participantes de algum cartel qualquer, e isso é feito não apenas nos mercados
“livres”, mas também em regime de concessões públicas (transportes, por
exemplo) ou no comércio exterior (pelas tarifas ou mediante normas técnicas, que
se tornam regulações compulsórias, como as nossas famosas tomadas “jabuticabas”).
O resultado de tudo isso é que sempre haverá ganhos para alguns – até que o
dinheiro do regulador acabe, pelo menos – e perdas para os demais, pelo menos
enquanto durar a festa, ou seja, enquanto a dinâmica do mercado não se vingar
de seus “corretores” (o que ele sempre acaba fazendo, mais cedo ou mais tarde).
O exemplo mais patente dessa realidade é o câmbio: a Venezuela e a Argentina que
o digam.
O fato singelo é o
seguinte: mercados livres, perfeitamente funcionais – ainda que causando perdas
para uns e outros –, sempre serão infinitamente mais eficientes do que qualquer
comitê de salvação pública econômica, e isto por uma razão muito simples. Os
mercados reagem imediatamente à entrada e saída de pessoas – ou de bens e
serviços – em seus espaços de intercâmbios, permitindo assim que alguns realizem
ganhos, que outros contabilizem suas perdas, e todos procuram se ajustar
rapidamente, o que torna o sistema sempre muito eficiente e quase “perfeito”,
ao sinalizar pelos preços quais são as expectativas de ganhos (oxalá) ou
induzindo à redução das perdas. Quando o comitê de sábios intervêm, ele não
pode fazê-lo de maneira dirigida, ou pessoal, mas estabelecendo regras
genéricas, digamos assim, contemplando toda uma categoria de transações, e não
a movimentação individual dos agentes. Eles ainda precisam fazê-lo por via
legislativa ou mediante resoluções administrativas, que sempre são muito lentas
a serem implementadas, e mais lentas ainda a serem modificadas.
Resulta de tudo isso que
medidas governamentais de “correção” dos mercados sempre serão imperfeitas,
limitadas, parciais, insuficientes e, no limite, estúpidas, para tratar da
diversidade de situações que emerge das interações dinâmicas, racionais ou
irracionais, entre pessoas e corporações transacionando nos mercados. Quanto
mais livres forem estes últimos, todos buscarão o seu benefício individual –
como aliás dizia Adam Smith por meio de sua famosa alegoria da “mão invisível”,
que não é uma teoria e sim uma simples constatação de bom senso – e ninguém
supostamente será punido pela ineficiência ou imperfeição de qualquer mercado,
uma vez que todos permanecem perfeitamente livres para entrar e sair de algum deles
quando assim o desejarem. De resto, quaisquer que sejam as eventuais
“imperfeições” ou a ineficiência dos mercados, elas sempre serão infinitamente
mais benignas, e menos prejudiciais, do que as ações dos governos, que tendem a
criar camisas de força nos mercados o que só acaba ou sufocando-os ou
produzindo o conhecido fenômeno dos “contraventores de regras”.
Pense bem: qual das
situações você prefere? Portanto, quando alguém vier lhe falar numa tal de
“lógica de mercado”, ou de que é preciso corrigir alguma imperfeição detectada,
responda logo: “Tudo bem: o mercado não possui nenhuma lógica, mas ela sempre
será superior à de qualquer governo; no mais, não mexa com o meu mercado, está
bem assim?”. O mundo seria bem simples sem os arquitetos da vontade alheia e
sem todos esses engenheiros sociais tentando tornar a nossa vida mais
“simples”...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2767: 8-9/02/2015