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domingo, 27 de agosto de 2017

Salvem o Barao, de seus amigos, e inimigos... - Paulo Roberto de Almeida

Depois que as memórias do Barão foram publicadas, teve gente que reclamou de seu tom desabusado, de suas palavras ásperas contra uma "mula fardada", e teve gente também que, em nome do politicamente correto, resolveu condená-lo, indiretamente, por ser branco e da elite, quando o correto seria reproduzir exatamente as tonalidades da maioria do povo brasileiro.
Enfim, eu apenas registrei os dois fatos no momento em que ocorreram; centenário do Barão.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27/08/2017

Apenas uma contribuição ao debate, se debate existe, na verdade.

Salvem o Barão!

Paulo Roberto de Almeida

Sim, salvem o Barão, não exatamente da memória coletiva, e das justas homenagens que se lhe deva prestar, mas de alguns de seus mais gentis detratores, especialmente as feministas, os racialistas e os politicamente corretos.
Este é o ano do Barão, ou pelo menos o ano das comemorações do centenário da morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, ocorrida em fevereiro de 1912, em seu gabinete do Itamaraty. Ele devia estar recebendo homenagens e sessões comemorativas, e na verdade está; como patrono e santo protetor da diplomacia brasileira, ele vem sendo objeto de merecidos encômios nos setores mais diversos da sociedade, com destaque para o próprio MRE, a Academia Brasileira de Letras e o IHGB, do qual ele foi presidente. Mas, no meio de todas as festividades, surgem por vezes aqueles que retomam a sua memória para observar que, por uma razão ou por outra, ele não representa mais a diversidade cultural brasileira. Gostaria de considerar aqui apenas duas manifestações mais recentes, que mereceram minha atenção, uma oficial, a outra privada.

Na cerimônia do dia do diplomata, realizada em 20 de abril de 2012, no Palácio do Itamaraty de Brasília, em presença de muitas autoridades da República, foram ouvidos os discursos de praxe: o do ministro, o do paraninfo, o da presidente (no final), e o da oradora escolhida pela turma que se estava graduando. Foi justamente a peça coletiva – elaborada ao que parece por cem cabeças (era o número aproximado dos formandos) – a que reteve minha atenção, pela natureza, digamos especial, dos argumentos. Como os integrantes escolheram homenagear uma colega falecida  no final do ano passado, em consequência de enfermidade tropical contraída em viagem a serviço, a turma resolveu adotar seu nome e prestar-lhe uma justa honraria, como mulher, como negra e como acreana. Até aí tudo bem e associo-me às manifestações de pesar por tão infeliz desenlace de uma missão oficial a serviço do Itamaraty e da política externa brasileira. O mais curioso, porém, é que no confronto talvez involuntário de suas biografias, o Barão acabou fazendo figura de homem branco, do centro político e econômico do país.
Vejamos alguns dos trechos pertinentes desse discurso:
“Este discurso é uma obra coletiva.
“Cem anos atrás, falecia, José Maria da Silva Paranhos Júnior, homem branco, nascido no então centro político e econômico do país, o Barão do Rio Branco. Quatro meses atrás, falecia Milena Oliveira de Medeiros, mulher negra e acreana, cidadã de Rio Branco. Ela e ele diplomatas, separados pelo longo século XX.
(...)
“O que pensarão as futuras gerações de diplomatas ao descobrirem que a turma que se formou no ano de 2012, no centenário do falecimento do Barão, não escolheu o seu nome para patrono? Saberão que nossa turma escolheu homenagear uma mulher, e uma mulher negra, parte desse restrito grupo que conseguiu vencer os obstáculos que injustiças históricas fizeram aparecer em seus caminhos. Entrou pela porta da frente, em uma sociedade que sempre escondeu nos fundos as questões com as quais tem de lidar.
“Mais simbólico do que eleger o Barão, foi escolher Milena, nascida em Rio Branco. Homenageá-la é também homenagear José Maria. Sem ele, Milena talvez não tivesse nascido no território do Brasil. Sem ela, nossa diplomacia teria sido menos diversa, menos humana, menos brasileira.
“Milena simboliza a nova geração de diplomatas, das chamadas “turmas de cem”, que caminha para a diversidade de origens geográficas, de gênero, de cor e de poder aquisitivo. Mais do que representar o presente, Milena anuncia o futuro do Itamaraty e da política externa brasileira, cada vez mais plural e mais tolerante, cada vez mais coerente com os nossos princípios.
(...)
“Ainda assim, entre os 108 diplomatas que hoje se formam, encontramos menos diversidade de origem, de raça, de gênero, de crença, de classe social, de orientação sexual do que gostaríamos. Faltam mulheres, índios, negros, deficientes. A diversidade característica da população brasileira ainda não se reflete na participação política, tampouco na formação do quadro diplomático.
“Se houve avanços, e certamente houve, admitamos que não foram suficientes Ainda somos um ministério majoritariamente branco e masculino. No ano em que elegemos, de forma inédita, a primeira mulher presidenta do Brasil, continuamos sendo apenas um quarto do quadro de diplomatas. No nível de ministros de primeira classe, somos apenas 15%. Não podemos aceitar essa discrepância como dado. Nossa eventual omissão será condenada pelas futuras gerações.”

O discurso, por falta de link – pelo menos detectável – para o seu texto escrito, está disponível em vídeo, na integralidade, no seguinte link do YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=d02HOA8Flp0&list=UURglUr6V_SSeKhynBPy--KQ&index=6&feature=plcp; para todos os discursos iniciais, ver este link: http://www.youtube.com/watch?v=T04TtI70Nl4; para o discurso da presidente, este: http://www.youtube.com/watch?v=ak51lm3-QMo&feature=relatedTambém publiquei esse material, com transcrição do discurso da presidente, neste link: http://diplomatizzando.blogspot.fr/2012/04/dia-do-diplomata-os-discursos-como-eles.html.

Que observações eu teria a fazer com respeito aos trechos selecionados do discurso da turma 2012 do Instituto Rio Branco? Talvez apenas a lição fundamental de todo historiador: a de que não se deve ler a história com os olhos no presente, sob risco de incorrer no pecado do anacronismo, numa versão mais acadêmica, ou no viés do politicamente correto, na versão moderna dos comportamentos adequados ao tempo. O Barão não foi condenado explicitamente, por ser um branco da elite política do país, mas perpassa no discurso a ideia de que o Itamaraty não corresponde ao que é, hoje, a sociedade brasileira e que caberia fazer algo para reparar “injustiças”. Como se disse, a omissão da presente geração “será condenada pelas futuras gerações”.
Foi também em nome de “injustiças históricas” que os juízes do Supremo se julgaram no direito de abolir a Constituição e sancionar a legalidade das cotas raciais em vigor em universidades e certos órgão públicos. Talvez os diplomatas da presente turma estejam pensando igualmente que um sistema de cotas ajustaria o Itamaraty mais rapidamente ao perfil diversificado da sociedade brasileira. As cotas teriam de ser extensivas e focadas em gênero, raça, orientação sexual, ou qualquer outra deficiência “estrutural”, segundo se depreende da obra coletiva que foi o discurso em nome da última turma dos cem. Imagino que apenas cotas poderiam romper com o padrão atual, considerado nefasto e não representativo do Brasil atual, mas que ameaça perdurar: um Itamaraty branco, masculino, de pessoas da elite, das capitais importantes do país.
Não sei como esse sistema “diversificador” seria recebido por eventuais desfavorecidos dentre estes últimos candidatos, caso sua pontuação – que é o resultado unicamente do mérito, através do estudo – fosse desconsiderado numa seleção “alternativa”. Talvez o assunto subisse novamente ao Supremo, que teria, então, de confirmar novamente que, no Brasil, a Constituição é apenas relativa, e que o artigo que não reconhece distinções de qualquer gênero teria de ser contrabalançado pelo ideal de justiça e de igualdade de oportunidades. Assim é, se lhe parece...

Adiante. Tomei conhecimento do seguinte comentário a propósito das “memórias” do Barão, publicadas no n. 76 do Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros (janeiro-fevereiro-março 2012, p. 26-29; disponível no Blog Diplomatizzando, link: http://diplomatizzando.blogspot.fr/2012/04/as-memorias-do-barao-do-rio-branco.html). O comentarista parece estar visivelmente indignado, não apenas com o discurso da turma 2012 do Instituto Rio Branco, mas com o próprio Barão. Senão vejamos:
“Lamentei muito que a ADB tenha publicado um texto do Barão com referências ao patrono da diplomacia brasileira dizer que o Brasil é um país de pouca inteligência política, chamar um militar de ‘mula fardada’ e demonstrar pouco afeto pela cidade do Rio de Janeiro, deixando claro preferir território europeu ao seu nacional. Em um momento em que a última turma de diplomatas formada deixou o Barão de lado, e em que outros setores da casa se movimentam contra os diplomatas em um sindicato que supostamente defenderia a todos, achei inoportuno…”

Confesso que fiquei perplexo, e me pergunto como se poderia tentar responder a este comentário, que demonstra um legítimo sentimento de desprazer, em face de certa displicência com a memória do Barão, evidenciada tanto no discurso como nas ditas “Memórias”. Não sei se o próprio Barão poderia responder a um comentário tão ácido sobre suas palavras, mas duvido que ele pudesse ou quisesse fazê-lo, na mais imaginativa das hipóteses. Na impossibilidade do próprio Barão se encarregar da tarefa, o jeito é desempenhar-se com os meios de bordo. Vejamos o que comentar, de minha parte.
Suponho que a primeira coisa que o Barão do Rio Branco faria, de sua parte, seria lamentar a falta de senso de humor do comentarista acima transcrito. Pela nota introdutória às “Memórias”, era patente que ele só estava tecendo considerações desabusadas sobre seus contemporâneos porque resguardado pelo sigilo da fonte; para tanto, ele havia solicitado um prazo prudencial. Mas ele não poderia prever, obviamente, que pessoas provavelmente mal intencionadas se empenhariam em divulgar o que foi pensado apenas como anotações pessoais, para futuras e verdadeiras memórias.
A segunda coisa que provavelmente o Barão faria seria lamentar a falta de conhecimento histórico do comentarista acima transcrito. Um dos motivos do possível agravamento da doença do Barão foram suas reais aflições com as intervenções armadas conduzidas pela “mula fardada” contra certos governos estaduais, notadamente na Bahia. O Barão tem sua saúde abalada justamente no momento em que o governo federal mandava bombardear a capital baiana, numa demonstração de que as “salvações nacionais” representavam, na verdade, o esmagamento dos inimigos do “voluntarioso marechal”, por quaisquer meios à disposição, inclusive os canhões. Na Bahia, Ruy Barbosa, que havia sido candidato contra Hermes da Fonseca em 1910, foi derrotado vergonhosamente uma segunda vez, não pelo voto, mas pelos obuses. O Barão, compreensivelmente, se desesperava, não apenas em função da fatalidade trágica que atingia seu amigo baiano, mas sobretudo pela péssima imagem que essa política da canhoneira projetava contra o Brasil no exterior. Não cabem dúvidas de que o episódio baiano, em janeiro de 1912, que já vinha de uma série de outras intervenções nos estados, agravou seu estado de saúde e pode ter acelerado o desfecho fatal, no mês seguinte.
Quanto às pestilências do Rio de Janeiro, elas eram de sobejo conhecidas, mesmo depois do saneamento (à força) de Oswaldo Cruz e dos trabalhos de infraestrutura do prefeito Pereira Passos. Não fosse por isso, o calor do Rio recomendava ao Barão e a quase todo o corpo diplomático refugiarem-se na serra sempre quando possível.
Por fim, restam as considerações certamente depreciativas do Barão em relação à pouca inteligência e preparação da classe política para governar o Brasil e levá-lo a uma posição de destaque no cenário internacional. Estimo, pessoalmente, que outra não seria a constatação do Barão, se vivo fosse e se contemplasse a situação da governança, não apenas no Brasil, mas igualmente em países supostamente avançados. Como já sabia Maquiavel – do qual me permiti atualizar seus conselhos aos candidatos a príncipes – existem constâncias na vida política de uma nação que não mudam tão facilmente, mesmo passados alguns séculos de progressos materiais. Não por outra razão ele buscava na Roma antiga os exemplos que lhe permitiam ilustrar a conduta dos homens de seu tempo. Não creio, sinceramente, que desde o Renascimento, os costumes políticos, no Brasil e em outros lugares, tenham sido renovados de maneira espetacular.

Concluindo, eu diria que o politicamente correto e o anacronismo histórico constituem dois males dos quais devem escapar analistas sutis e perceptivos como devem ser os diplomatas, de quaisquer épocas, em quaisquer países. O sentido do humor também pode ajudar a enfrentar realidades que nem sempre são as melhores que se pode ter...

Paulo Roberto de Almeida
Paris, 1ro. de maio de 2012

Memorias do Barao do Rio Branco - nota liminar e organizacao: Paulo Roberto de Almeida




Nota Liminar
Dentre os muitos papéis deixados pelo Barão no momento de sua morte, na mais completa desordem, encontrava-se um curioso caderno, que permaneceu obscuro durante muito tempo, cuja transcrição foi realizada com alguma dificuldade por este organizador, que esforçou-se ademais por colocar o texto numa ortografia a mais possível moderna. As anotações manuscritas do Barão, algumas datadas, outras simplesmente localizadas no espaço (a maior parte do Rio, outras de Petrópolis), foram feitas sem maiores indicações quanto às circunstâncias exatas de sua redação, a não ser alguma referência à agenda diplomática corrente, o que permite definir, em princípio, um momento provável de redação; elas foram feitas sequencialmente pelo Barão nos três anos seguintes ao seu aniversário de 1909, em momentos diversos e com humores diferentes, mas sem o cuidado de manter a estrita cronologia de um diário “normal”.
Ou seja, o conteúdo do volume em questão não conforma exatamente o que poderíamos chamar de “memórias”, no sentido corrente do termo. O Barão provavelmente pretendia – ao sentir o peso dos anos e o acúmulo de responsabilidades, depois de tantos presidentes a que serviu – deixar um testemunho sobre seu pensamento profundo – e verdadeiro – sobre os temas com os quais se entretinha. Rio Branco sentia necessidade de expressar-se de alguma outra forma que os telegramas e ofícios que mandava preparar sobre temas diversos, que as notas que redigia à intenção dos presidentes a que serviu – e eles foram muitos, mesmo que não pretendesse continuidade nas suas funções – ou que os muitos artigos de imprensa que redigiu ao longo dos anos, alguns até assinados com algum nom de plume, que ele escolhia ao sabor do momento, para defender-se de, ou atacar, algum inimigo concreto ou imaginário que ele detectava em certos editoriais e artigos de opinião não assinados.
As notas e inscrições rápidas do “caderno escolar” do Barão são, assim, mais uma espécie de “exercícios filosóficos” sobre as relações internacionais do Brasil, do que propriamente um registro fiel de sua labuta cotidiana à frente da chancelaria. Ele talvez quisesse utilizar os rascunhos do caderno como a hipotética base futura de um verdadeiro volume de “memórias póstumas”, se o tempo e uma aposentadoria tranquila lhe tivessem permitido retomá-los em condições de lazer e de dedicação integral a tal tipo de empreendimento. Disso não temos certeza, pois nenhuma indicação concreta nessa direção foi deixada no caderno ou em qualquer um dos muitos papéis – numerosos, desordenados, alguns até incompreensíveis, fora do contexto em que foram criados e deixados ao léu – amontoados em seu gabinete de trabalho (e de residência, podemos dizer) ao longo dos muitos anos que passou naquele casarão da rua Larga.
Mas os elementos especificamente formais desse “caderno íntimo” do Barão interessam ao público de hoje em dimensão menor do que seu conteúdo propriamente político, e diplomático. O Barão tinha, sim, ademais dos cuidados triviais com a diplomacia corrente, uma visão de futuro para o Brasil, uma grande estratégia que ele não conseguiu formalizar em algum livro de história diplomática ou de síntese das relações internacionais do país, mas que ele provavelmente pretendia redigir a partir destas notas que, graças a um conjunto fortuito de circunstâncias, passamos agora a revelar...
Paulo Roberto de Almeida
Responsável pela transcrição e modernização da ortografia,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo Barão;
títulos e intertítulos dos capítulos sob responsabilidade do organizador.

[Por que decidi escrever estas memórias?]

Petrópolis, 20 de Abril de 1909

Escritores são, em geral, fantasistas notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que, aliás, é próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas linhas, resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a retrospectivamente, não posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela Sorte, essa madrasta que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a cada etapa de nosso itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse prazer: ubique, eu mesmo cuido de minhas memórias, sobretudo se elas tratam da pátria!
Também o faço porque alguns dos meus colaboradores, e até os senadores da República, vêm se mostrando incomodados com a falta de relatórios da minha gestão à frente do Itamaraty, uma decisão que tomei desde o dia da posse, naquele, agora longínquo, dia de dezembro de 1902, numa das mais importantes inversões da minha já longa trajetória de vida. Sete anos atrás, não sabia se era justa a minha decisão de trocar a absorvente vida diplomática na capital da Alemanha imperial por esta cidade ainda cheia de mosquitos, de doenças endêmicas, com sua quota excessiva de miasmas, o que me obriga a subir regularmente a serra em direção ao meu chalé de montanha.
Não pretendo desculpar-me com meus colegas diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não corro o risco de lhes amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento definitivo de meus atos aos historiadores do futuro, que por certo saberão encontrar o que buscam nos muitos documentos já acumulados em minha gestão; talvez até encontrem estas notas – que não sei quando terminarei – entre as pilhas de papéis que locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de meu gabinete. On n’est jamais si bien servi que par soi-même. Mais, passons...
Também quero deixar agora consignadas, neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura, praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o cargo mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época. Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar eleições, já que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato saído da convenção dos congressistas já é uma aceitação nacional – de assumir um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional.
O próximo presidente da República será, provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas timorato nas decisões, e que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo, quando todos sabem que minhas preferências – a despeito das diferenças que acumulamos desde a conferência da Haia – estariam naquele brilhante advogado baiano, arrogante e vaidoso em suas pretensões de jurista internacionalista, ainda assim melhor preparado do que a mula fardada que se prepara para dirigir um país difícil como o Brasil. E talvez eu já não tenha mais forças para fazê-lo...
Minha aspiração – sem pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente – é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado, propenso como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de intervenções nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e pretendo encerrar minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas termine a sua. Tenho ainda a resolver negociações já em curso de tratados de limites com o Peru e com o Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao Uruguai, para dar por encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as nossas fronteiras. Depois disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no calor carioca, e coloco definitivamente as chinelas...

(...)

[Militares e intelectuais: tão diferentes, tão semelhantes...]

Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1910

O novo presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca, tomou posse hoje, numa cerimônia assez simple, feita de assinatura de livros de posse, dois discursos rápidos e poucas congratulações. Fui reconduzido nas mesmas funções em seu gabinete (que aliás ainda não está todo constituído), como tinham anunciado alguns meses antes os auxiliares do presidente eleito, mesmo sem ter me consultado, o que refletem duas coisas: ou benemerência sincera, em relação a meus serviços à frente desta Secretaria de Estado, ou arrogância desmedida, de quem se julga mestre de tudo e de todos.
O Marechal o fez a despeito de meus protestos de desprendimento ao cargo, o que eu já tinha demonstrado de sobejo. Como todos sabem, a candidatura à esta presidência me foi oferecida, de bandeja, se ouso dizer, mais de um ano atrás, coincidindo a pressão política em favor do lançamento de meu nome com o meu natalício dos 64 anos; creio ter feito muito bem em recusar. A despeito de ter uma eleição praticamente assegurada, uma vez que o congresso do partido ratifica o nome do candidato, nunca gostei, de fato, da vida política, pois acho os homens dessa sorte muito enfatuados, e dispostos a prometer qualquer coisa aos políticos que os elegem, o que apenas confirma meu desgosto da vida política. Sim, porque no Brasil não são os eleitores que determinam a vida política do país, e sim é o atual sistema de partidos estaduais que decide quem serão os “representantes” do povo.
Não fosse isso, dois outros fatores contribuiriam para me afastar desse mundo de pequenas trapaças e grandes enganações, como é a política no Brasil: as intervenções nos estados, o que vem gerando tensões insuportáveis não apenas no meio político, mas também no Judiciário; e o fato de termos uma Constituição contraditória, que permite tudo aos estados – depois de décadas de centralização monárquica – e lhes deixa numa situação de virtual liberdade, para contrair dívidas e conduzir os seus negócios como se fossem verdadeiros países soberanos; isso vai acabar por tornar periclitante a própria federação que os republicanos quiseram criar, contra os sãos princípios do Império.
Acresce a isso o fato de que eu sempre vi com muita simpatia a candidatura do Doutor Ruy ao cargo supremo da Nação, destino que lhe parece estar reservado em algum momento do nosso futuro, a despeito mesmo dessas frustrações que hão de ser temporárias. Não obstante os pequenos desentendimentos que ambos tivemos ao longo de todos esses anos de turbulências republicanas, a começar pela negociação com os bolivianos e, depois, o affaire Drago-Porter na segunda conferência da Haia, eu considero o jurisconsulto baiano um dos homens mais preparados para governar um país quase ingovernável como o Brasil. E, apesar disso, de todas as suas qualidades e de suas propostas altamente necessárias num país de pouca inteligência política como o Brasil, o grande civilista Ruy foi derrotado pelo militarista Hermes, o que demonstra que, depois de tantas desventuras com seus caudilhos militares nas repúblicas irmãs do continente, nosso país também se deixa seduzir pelo charme pouco discreto dos homens da farda.
Explica talvez a vitória de Hermes – certamente conseguida à custa do famoso “bico de pena” – o fato de ser sobrinho do Marechal que inaugurou esse sistema anárquico em nosso país, quando estávamos tão bem na condição de única monarquia do Novo Mundo, uma verdadeira república neste continente de caudilhos, como aliás disse de nós um presidente venezuelano. Os militares de nossos turbulentos vizinhos sempre interferiram nos negócios internos desses países, talvez à falta de grandes ameaças à soberania nacional, como soe acontecer na Europa: por aqui eles cuidam mais dos soldos do que dos soldados inimigos; como os políticos relutam em aumentar-lhes a paga...
No Brasil, eu os respeito, mas de forma nenhuma os venero, pois sei que muita gente no partido militar tem inclinações que beiram o despotismo, como já nos demonstrou sobejamente aquele marechal das Alagoas, que disse que iria responder à bala qualquer intromissão de estrangeiros nos assuntos do seu governo. Não é coisa que se faça, obviamente, sequer que se diga, pelo menos não de público, ainda mais quando os estrangeiros já estavam de fato envolvidos na infeliz guerra fraticida que sacudiu esta bela capital, pelo fato de alguns dos bravos da marinha, que lutavam contra a ditadura do dito marechal, se terem homiziado em barcos estrangeiros. A “diplomacia” do Marechal não foi diplomacia nem aqui nem no Império chinês e Deus nos livre de um dia cair numa ditadura de marechais como esse de olhar mortiço, de língua solta e de sabre ainda mais folgado (se não são os canhões, que ele não hesita em mandar disparar, contras seus próprios companheiros). Espero que este Marechal que agora começa seu quadriênio, e que me tem amarrado ao seu governo, não tenha as mesmas ideias liberticidas...
Enfim, se o Ruy não vencer em alguma próxima eleição, em vista da sua idade, que bate com a minha (com 4 anos de vantagem), pode ser que o Brasil não tenha mais nenhum candidato dessa estatura intelectual nem nos próximos cem anos. Com efeito, olhando-se o panorama de miséria educacional brasileira, não se pode esperar por algum outro sábio do porte do Ruy antes de muito tempo; não quero tripudiar sobre o ensino do nosso Colégio D. Pedro II, onde já fui professor e conheço a qualidade dos seus mestres, mas o quadro da cultura em geral, e o da cultura política em particular, é lamentável. O ambiente político no Brasil tende a recrutar as piores vocações, os seres mais oportunistas, as inteligências mais medíocres, se nisso não vai nenhuma contradição.
Em contraste, os militares não são melhor dotados em inteligência, mas são mais bem organizados, dispõem, em todo caso, de uma máquina bem azeitada que, com exceção de algumas áreas da nossa magistratura, justamente (e nem todas, pois também frutas podres existem nesses meios), pode oferecer-lhes as condições ideais para que se ocupem das mais variadas funções no Brasil, pela razão, ou pela força, como dizem os chilenos. De fato, os únicos bons matemáticos e engenheiros que temos neste país são os que saem das escolas militares, pois no ambiente civil o que temos é uma pletora de bacharéis em direito. Como digo sempre, quem cria a riqueza de um país são os seus engenheiros e homens de ciência, pois a única coisa que, em geral, produzem os bacharéis e os intelectuais é o déficit público.
[A continuar...]
Memórias do Barão do Rio Branco (2):
Los hermanos, siempre tan hermosos...

Transcrição e modernização da ortografia  destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.

Rio de Janeiro, 2 de maio de 1910

Pronto! Acabo de confirmar ao Senhor Presidente, que me havia interrogado a esse respeito, que o Brasil participará das comemorações do assim chamado “centenário da independência argentina” (com aspas, comme il faut), neste próximo 10 de maio, com uma delegação normal, isto é, por meio do nosso próprio ministro em Buenos Aires, e não com alguma embaixada especial ou enviado extraordinário. A decisão, é bom que se diga, foi só minha, e a considero plenamente justificada, como expliquei ao Senhor Presidente. Meus auxiliares, todavia, me dizem, desde já algum tempo atrás, quando, refletidamente, tomei tal decisão, que se trata de um erro monumental. Alguns deles, inclusive, parecem ter ficado abalados com o que chamam de descortesia gratuita de minha parte, enfim, mais uma demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos...
Curiosa essa menção a erro, porque isto me lembra de uma frase à propos, que já ouvi há muito tempo, de um desses nuestros hermanos justamente, mas já não sei dizer de quem, de onde ou quando: He cometido un error fatal! Y el peor es que no sé cual...
Talvez eu também tenha cometido algum erro fatal, mas não sei dizer exatamente qual, embora minha impressão sincera é a de que o equívoco está com eles, não comigo. O erro, terrível, no dizer de meus auxiliares – que se desesperam com esta minha decisão – teria sido representado pelo fato de não termos enviado nenhuma delegação especial, representando a nação brasileira, às comemorações oficiais do centésimo aniversário do 10 de maio argentino, quando tantos países o fizeram. Muitos outros países, justamente, designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros de relações exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de governo, o que me parece um pouco exagerado, mais laissons cela à leur critère. Chacun est maître de ses décisions...
Descarto qualquer erro de minha parte, mas como não posso externar minha opinião au grand large, o faço aqui para a posteridade (e a devida fidelidade a esta musa sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História). A sinceridade é uma dessas virtudes que, infelizmente, poucos homens públicos podem externar em todas as circunstâncias.
Qual erro cometi, afinal, já que não vejo nenhum em minha decisão de não ver nesse dia nada de realmente extraordinário? Seria o 10 de maio uma efeméride suscetível de mudar dramaticamente o curso da História, na mesma categoria dessas de que me ocupei largamente no passado? (É bem verdade que me ocupei também, nas efemérides, de fatos corriqueiros, mas isso foi mais por distração do que por verdadeiro culto a essa musa, que no entanto respeito e venero, como uma das minhas preferidas, ao lado daquela que comanda aos prazeres da mesa, se por acaso existir uma tão gourmande quanto eu...)
Os argentinos estão festejando, com orgulho indevido em minha opinião, o 10 de maio de 1810, que é quando nossos vizinhos acreditam que “conquistaram” a sua independência da Espanha (ou de Napoleão, sejamos mais claros). O fato, absolutamente verdadeiro, é que no 10 de maio de 1810, não foi proclamada nenhuma independência argentina. Nada aconteceu nesse dia, a não ser o reconhecimento, pelo cabildo de Buenos Aires, de algo absolutamente fáctico, tão evidente que sequer havia necessidade de qualquer proclamação em torno disso: o trono de Espanha, o legítimo, tornou-se obviamente vacante – mas não foi nesse dia – em função da “destituição”, de seu real cargo, de um desses Bourbons que os próprios franceses tinham se esforçado para colocar no trono de Espanha um século antes. Mais uma querela dos Pirineus...
 Eles, os argentinos, que nisso são equivocadamente seguidos por meus auxiliares, acreditam que sua independência começou nesse dia – eles comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo da utilidade – quando ela só se firmou, de verdade, muito tempo depois, mais até do que seu orgulho nacional o permitiria. Ela de fato só ocorreu, e mesmo assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo valer o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas da crítica. Estas, como grande parte do palavrório dos diplomatas, se traduzem muitas vezes em declarações chorosas, que falam da “opressão dos invasores”, ou da “usurpação do trono”, enfim, essas frases ocas, em que comprazem nossos colegas de carreira.
Todas essas construções intencionais, de uma pré-ciência de “momentos históricos”, de fato delineados a posteriori, servem apenas para alimentar os mitos nacionais, quando a realidade é que a soberania e a independência de uma nação só se garantem na ponta dos sabres, como afirmava o velho Bismarck, ou numa eventual carga de cavalaria, como parecia preferir seu colega de conquistas, o general Moltke. Seja como for, esses nuestros hermanos, siempre tan hermosos, inventaram o mito do 10 de maio apenas para ter precedência sobre nossa própria independência, e querem que acreditemos nisso. Sinto muito, mas não caio nessa peta!
Se me permito aqui parafrasear o general Roca, nosso amigo sincero – dos poucos que temos naquele país de arrogantes gaúchos que se creem ingleses dos pampas – eu diria que muitas coisas nos unem, mas algumas nos separam (mas isso eu não posso afirmar de público). Já não me refiro ao esporte bretão, que parece começar a empolgar multidões dos dois lados do Prata, mas sim a interesses concretos, com destaque para o equilíbrio de nossas forças navais, cruciais na nova conformação dos fatores de guerra que teve início pela construção dos primeiros dreadnoughts pela Royal Navy. Não acredito que possamos levar muito longe essa insana competição por encouraçados cada vez maiores e poderosos, inclusive porque o nosso pobre orçamento não o suportaria (e esta é uma das poucas razões pelas quais apoio esse difícil pacto ABC, quando preferia ter apenas o Chile como aliado constante e fiel, junto a nosso grande irmão do norte, um pouco inconstante, este).
Os argentinos são, sem sombra de dúvida, muito mais ricos do que nós; aliás, mais até do que vários europeus (e, ouvi dizer, até mais do que os franceses, que cunharam a frase, muito frequente em suas operetas, de riche comme un argentin...). Nossos vizinhos podem, portanto, se permitir essas loucuras com seus orçamentos militares, ainda que a quebra do Barings – quando eu começava a me ocupar, justamente, do nosso conflito em torno de Palmas – comprove que, mesmo assim, nem tudo é possível de se fazer com o dinheiro alheio. Os pobres venezuelanos, aliás, sabem muito bem disso, ao terem tido de suportar o peso de canhoneiras estrangeiras, porque um desses coronéis malucos que frequentemente se apossam do poder naquele confuso país andino e caribenho se recusou a cumprir com suas obrigações financeiras, algo que nosso Império, sempre tão endividado, jamais chegou a cogitar. Se tivemos de negociar nosso último funding loan em termos que não foram certamente os mais flâteurs para nossa dignidade nacional, foi porque um bando de bárbaros do sertão nos obrigou a levar uma guerra frustrante, em quatro sucessivas expedições, que consumiu nossos parcos recursos do café, como antes já tinha ocorrido com a maldita guerra contra o ditador Solano Lopez.

Pois bem, voltando às “comemorações do 10 de maio”, imagino que um dos meus críticos argentinos – me refiro ao inacreditável Estanislao Zeballos – possa estar agora falando de mim: “Maldito barón” – com b minúsculo, para me diminuir um pouco mais – “siempre depreciando a nuestra patria, como si Brasil no fuera una porqueria, un cambalache, yá lo sé...”. Foi ele mesmo que nos levou a esta situação absurda de competição naval, com sua agressividade militarista tão desproporcional quanto às supostas ameaças do Brasil e do Chile, que o próprio presidente José Figueroa Alcorta teve de demiti-lo em meio ao seu mandato. Zeballos nunca engoliu o que continua a chamar de “desmembración” do território argentino, mas que foi apenas um laudo impecável do presidente americano, em face de meus argumentos absolutamente fundamentados na história – e na nossa boa cartografia lusitana – em defesa do nosso pedaço das Missões. O mesmo belicoso Zeballos, quando ministro, queria controlar nossas aquisições de fragatas na Europa, e até “dividi-las” com eles (o absurdo!), mas nunca hesitou em exigir de seu próprio presidente aumentos fabulosos das compras militares argentinas, como tampouco se eximiu de propor a preparação de suas forças navais para eventualmente ocupar o Rio de Janeiro pela força.
Como querem, agora, que eu conceda em enviar uma delegação de alto nível a um país que falseia sua história, que mantém sonhos ridículos de grande potência e que, além do mais, reincide num protecionismo renitente, que prejudica nossas legítimas exportações de açúcar e de algodão? Como querem meus auxiliares que eu me disponha a assinar um acordo de comércio preferencial com nossos vizinhos – concedendo-lhes as mesmas vantagens que eu concedi às farinhas americanas – se eles continuam a comprar quantidades ínfimas do nosso precioso café? Não! No que depender de mim, não haverá acordo comercial de nenhum tipo com os argentinos, até que eles nos reconheçam como uma nação tão merecedora de consideração como aquela que eles estão sempre tão dispostos a conceder à velha Albion, que eles, também ridiculamente, estimam ser o seu modelo a imitar, ainda que não exibam toda a pompa e circunstância da Corte de St. James.
Sei que o dileto amigo Julio Roca sempre propugnou por uma estreita união dos dois países, afirmando, ao nosso Campos Salles que, ao desenvolver “laços da mais íntima amizade”, Brasil e Argentina, juntos, seriam “ricos, fortes, poderosos e livres”. Pode ser que, um dia, de fato cheguemos a essa situação, de sólidos vínculos entre nossas duas economias, mas não antes que nuestros hermanos abandonem sua ideia de preeminência militar, mesmo que continuem mais ricos do que nós por certo tempo ainda. Atualmente, eles quase se igualam à riqueza americana, mas essa situação pode não perdurar, e o Brasil chegará a ser também, um dia, rico e poderoso, se para tal lhe ajudarem o descortino e a capacidade intelectual de nossos líderes, hoje, infelizmente, tão carentes de educação econômica e tão pouco propensos a educar o povo, como preconizou para a Argentina, tão justamente, o genial Sarmiento. Quando teremos um intelectual como ele, entre nós?
Esse dia chegará, estou seguro, mas certamente não será do meu tempo; talvez dos meus netos, mas sobre isso falarei um outro dia...
Rio de Janeiro, 2 de Maio de 1910


 [ 2356: Bragança, 18 de janeiro de 2012; 2367: Saint Malo, 13 Fevereiro 2012; 2370: Paris, 21 Fevereiro; e 2375: 20 março 2012

sábado, 26 de agosto de 2017

O que e' o liberalismo, e como defendê-lo - Joao Luiz Mauad

O que é o liberalismo e por que devemos defendê-lo?

João Luiz Mauad

Instituto Liberal do RJ, 24/08/2017

Este artigo é a tentativa de uma defesa do liberalismo contra certas críticas e ataques de conservadores contra esta doutrina. (Muitas das ideias aqui expostas não serão estranhas àqueles que me acompanham há algum tempo, já que são resultado de uma compilação de diversos textos anteriores desse escriba sobre o tema).

Na grande maioria das vezes, as críticas e ataques focam em dois pontos principais: o primeiro acusa o liberalismo de ser uma utopia materialista que faz uma escolha inversa a do socialismo, mas é incapaz de propor um sistema funcional.

Essa crítica deriva do fato de que poucos conseguem distinguir uma doutrina política de um modo de organização econômico e social. O liberalismo é, resumidamente, um conjunto coerente de ideias e princípios, baseado na defesa da liberdade individual nos campos político, econômico, religioso, intelectual, etc. Por conseguinte, contra ingerências e atitudes coercitivas de terceiros – inclusive e principalmente do poder estatal – sobre as escolhas individuais.

O liberalismo é, portanto, uma representação abstrata ou, nas palavras de Max Weber, um tipo ideal, uma sinopse conceitual. Ao contrário do socialismo, entretanto, ele não se pretende um modelo de organização social, pois se insere no modelo capitalista – daí a enorme necessidade de defendermos o capitalismo como modelo de organização econômica e social.

Sempre que se quiser transformar, equivocadamente, o liberalismo num modelo de organização social, ele será, sim, uma utopia. Por isso, a luta dos liberais é por um modelo capitalista que seja o mais livre possível, entre as inúmeras gradações que o capitalismo comporta (atenção: estamos falando aqui de liberalismo clássico, não de anarco-capitalismo).

A segunda crítica afirma que o liberalismo não se detém na importância dos valores morais, e que esse vácuo de valores acabaria por comprometer a própria liberdade. Em outras palavras, o liberalismo traria, em suas entranhas, o veneno do relativismo moral. Não raro, esses críticos costumam confundir (de forma proposital ou não) moral com moralismo, pois, de fato, não há doutrina mais intransigente com princípios morais que o liberalismo, como tentarei demonstrar.

Antes de continuar, deixe-me esclarecer o que são princípios e valores, para efeito deste artigo, já que muita gente costuma confundir os dois conceitos. Colocando de forma simples e prática, valores estão relacionados com fins, com objetivos – são qualidades e/ou propriedades escalares, dependentes de avaliações subjetivas -, enquanto princípios vinculam-se a meios, preceitos (ditames) morais e éticos que regulam as nossas ações. Tal distinção é muito importante para demonstrar por que os liberais costumam ser intransigentes com princípios, enquanto valores serão sempre relativos.

Com efeito, para a filosofia liberal, nem a liberdade, nem a propriedade e nem mesmo a vida são considerados princípios, mas essencialmente valores. Embora a vida, a liberdade e a propriedade sejam valores elevados para os liberais, conflitos entre eles e deles com outros valores podem ser frequentes. Não há valores absolutos, nem mesmo a vida. Nada impede que um autêntico liberal sacrifique a própria vida em nome da vida de um terceiro ou de outros valores – quantos pais não sacrificariam a vida para salvar um filho? A justiça, por outro lado, como bem exemplificou Berlin, pode ser um valor precioso, mas, em determinados casos, outros valores podem se sobrepor a ela, como a clemência ou a compaixão, e acabemos optando pelo perdão, no lugar da condenação.

Já os princípios dizem respeito a meios, a formas de conduta. Não é legitimo, para um liberal, matar, roubar ou escravizar outro homem. Assim, se a vida é um valor; o direito (meu e dos outros) à vida é um princípio (que legitima inclusive a legítima defesa). Se a liberdade é um valor; o direito à liberdade (meu e dos outros) é um princípio. Assim é também com a propriedade. É legítimo que eu cometa suicídio, mas jamais será legítimo que eu cometa homicídio. É legítimo que eu doe as minhas propriedades, mas jamais será legítimo que alguém (mesmo o Estado) as doe por mim, contra a minha vontade.

Existem diferentes abordagens para os fundamentos da filosofia liberal, mas a mais comum, pois abrange quase todas, se resume no princípio da “não-agressão”. De forma simples, você pode fazer o que bem quiser com a sua vida, sua liberdade e sua propriedade, desde que você respeite os mesmos direitos dos outros e não inicie agressão contra a vida, a liberdade ou à propriedade de ninguém.

É nessa rigidez de princípios e respeito aos direitos fundamentais que reside a diferença essencial entre o liberalismo e as demais doutrinas políticas, e envolve especificamente a quantidade de autoridade que o governo deve ter sobre os assuntos privados. Grosso modo, como bem resumiu James Eyer, os esquerdistas querem que o governo promova o bem, ou pelo menos aquilo que eles consideram bom, incluindo, entre outras políticas, cuidar da saúde e da educação, promover ações afirmativas ou distribuir a renda de forma mais equânime. Para isso, esperam que o governo taxe pesadamente as empresas e os cidadãos de maior renda, além de regular os negócios e o comportamento das pessoas, na medida necessária para a promoção do que eles chamam de “justiça social”.

Já os conservadores querem que o governo evite o mal, a degeneração dos valores e dos costumes, enfim, o comportamento imoral, ainda que este comportamento não traga nenhum dano ou perigo para terceiros e afete exclusivamente os próprios agentes. Embora os conservadores gostem de dizer que preferem um governo limitado, eles geralmente não resistem à implantação de programas governamentais e leis positivas que promovam a sua agenda moralista.

Assim, tanto esquerdistas quanto conservadores acreditam, cada um a seu modo, ser missão dos governos tornar o mundo melhor, fornecer uma liderança moral e, last but not least, proteger as pessoas de si mesmas, seja em relação a sua saúde ou sua moralidade. E, concorde-se ou não com esses objetivos, todo cidadão será forçado a pagar pela sua implementação, seja com seu dinheiro ou com a sua liberdade.

Para um conservador, a sociedade (a cidade, a comunidade ou seja lá que nome queiram dar ao coletivo), deve prevalecer sobre o indivíduo, a fim de manter o que chamam de “ordem natural”. Ocorre que nem sempre os desejos e objetivos do indivíduo estão em conformidade com os da comunidade. Permitir, por exemplo, o consumo de drogas, o casamento gay ou a prostituição significa quebrar certas tradições, razão pela qual a maioria dos conservadores denunciam essas bandeiras liberais como francamente imorais e defendem que os governos proíbam tais atividades.

Ninguém explicou essa questão melhor do que Hayek. Segundo o austríaco, “Em termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que utilizados para fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas”. (…) “O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, os quais, por sua vez, permitem construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos.”

Como se vê, o relativismo moral, vale dizer, a transigência com a quebra de direitos e princípios fundamentais não é, de forma alguma, uma característica liberal, mas está incrustado nas filosofias socialista e conservadora. Esse relativismo se consolida normalmente através de exceções, as quais acabam se tornando regras, de acordo com as conveniências de cada mandatário. A essência dessas exceções, entretanto, não é outra senão a fuga da moralidade e a justificação da injustiça. É a quebra intencional de nossa bússola moral para que possamos ser liberados dos ditames e princípios universais: é errado roubar, ferir, escravizar ou matar outro ser humano.

Em termos gerais, portanto, o liberalismo rejeita a existência de valores comuns absolutos, a serem obtidos por leis uniformes ditadas pelo Estado ou por normas positivas que pretendam transformar as pessoas em seres melhores. O liberalismo, ademais, coloca em foco não a sociedade, mas cada indivíduo, sendo este um valor mais alto que qualquer coletividade. Sociedade, Estado, Igreja, empresas e associações diversas são apenas ferramentas para que o indivíduo possa alcançar outros fins.

O liberalismo não pretende criar a felicidade ou bem-estar dos cidadãos (ou sujeitos ou indivíduos ou eleitores) por meio do Estado ou de qualquer instituição ou associação que domine e reprima a pessoa. Tal abordagem invariavelmente leva a uma confusão entre meios e fins, princípios e valores. O Estado utiliza a violência como um meio e os liberais sabem que, se permitirmos que o Estado utilize seus meios violentos, na esperança de atingir os objetivos da felicidade ou do bem-estar geral, estaremos destruindo a liberdade.

Finalmente, os liberais não pretendem eliminar as falhas cotidianas e limitações humanas. Entendemos que os seres humanos devem ser livres para escolher entre o bem e o mal. Acima de tudo, eles devem ser livres para cometer erros. Jamais poderemos ser seres morais sem tomar decisões por e para nós mesmos.

João Luiz Mauad é administrador de empresas formado pela FGV-RJ, profissional liberal (consultor de empresas) e diretor do Instituto Liberal. Escreve para vários periódicos como os jornais O Globo, Zero Hora e Gazeta do Povo.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Solzenitsin nas pegadas de Lenin; resenha de livro de Alexandre Solzenitsyn - Paulo Roberto de Almeida

Uma resenha feita em 1976, no exílio, falando de outro exilado:


Solzenitsin nas pegadas de Lênin

Alexandre Soljènitsyne:
Lénine à Zurich
(Paris: Editions du Seuil, 1975, 223 pp.; trad do russo: J.-P. Semon)

Um exilado político revisitado por um outro exilado, tal poderia ser o subtítulo da mais recente obra do emigrado político Alexandre Solzenitsin. Desta vez entretanto o escritor russo não sobrevoa os campos de seu Gulag habitual, desvendando aos olhos do mundo o universo concentracionário versão soviética. A empresa é mais árdua, pois trata-se agora de ir às origens do nefando sistema. Solzenitsin se dirige desta vez ao coração da Europa, à Suíça mais exatamente, onde, alguns anos antes do estabelecimento do poder soviético, aquele que iria ser seu primeiro dirigente estava condenado à emigração forçada.
Uma visita não de todo inocente, pois Solzenitsin não se contenta simplesmente em marchar sobre as pegadas de Lênin em seu refúgio suíço: mais que isso, o novo exilado de Zurich instala Lênin sobre seu divã psicanalítico na intenção de penetrar o pensamento do líder bolchevique e descobrir as “motivações profundas” que guiariam suas atividades políticas, aos tempos da Primeira Guerra Mundial. De uma maneira geral, poder-se-ia dizer desta obra que ela é mais uma tentativa de reconstituição histórica de uma fase do movimento bolchevique, visto a partir da condição pessoal de seu chefe mais distinguido, com esta diferença essencial, entretanto, que Solzenitsin não é exatamente aquilo que poderíamos chamar de um “observador imparcial”.
Evidentemente, a estrita imparcialidade de um historiador político é algo tão pouco seguro quanto a questão da infalibilidade papal, isto é, não existe nenhuma garantia a priori de que tal ou qual escritor assuma uma postura de absoluta objetividade na apresentação de um determinado problema histórico. A questão da “objetividade” do escritor é ainda mais problemática quando ele tem a “julgar” situações sociais especialmente controversas, como por exemplo os caminhos contraditórios do marxismo russo no começo deste século. Isaac Deutscher e Edward Carr, os dois maiores especialistas no estudo do processo revolucionário russo, ainda que vindo de horizontes políticos e sociais diversos, souberam traçar um imenso painel da Rússia pré- e pós-leninista onde a riqueza de dados não encobre a preocupação em selecionar e ordenar os fatos mais significativos segundo uma compreensão determinada deste mesmo processo.
A crítica relevante que se poderia fazer a Solzenitsin não é exatamente a que se refere à sua visão definida do movimento leninista e de suas consequências práticas – o que aliás é seu direito –, mas o fato dele reconsiderar o movimento histórico real segundo “sua” visão peculiar da História. Não que, em Lénine à Zurich, Solzenitsin proceda a uma revisão histórica fundamental dos dados do problema – que já são por demais conhecidos para serem “reinterpretados” – mas as concepções políticas do escritor estão sobremaneira implícitas em cada página desta “biografia” para que não as percebamos. Para aqueles todavia que não conheçam suficientemente a “visão do mundo” de Solzenitsin, recomenda-se a leitura de sua Carta aberta aos dirigentes da União Soviética (1972), onde o escritor “dissidente” prega um retorno às raízes culturais e religiosas da Santa Rússia do séculos anteriores. Em suma, o pensador ideal para os nossos medievais caboclos da TFP ou, como diria Millor Fernandes, uma jóia do pensamento liberal.
Lénine à Zurich compõe-se de alguns capítulos da grande obra que Solzenitsin empreendeu, visando reconstituir, numa espécie de fresco histórico (que traz evidentemente sua patente ideológica), os anos de transformação revolucionária que agitaram o gigantesco Império tzarista russo e determinaram sua queda. Originalmente, a obra em questão deveria fazer parte de um material mais importante e que apenas a pressa das editoras ocidentais determinou que fosse publicada prematuramente, rompendo a divisão em “laços” que Solzenitsin havia estabelecido, segundo cada período histórico estudado. Assim, o primeiro capítulo de Lénine à Zurich constituía na verdade o capítulo 22 (inédito até então) do primeiro “laço”, isto é a obra Agosto 14, já publicada desde 1972 pela maior parte dos editores ocidentais. Os restantes capítulos constituem partes dos segundo e terceiro “laços”, intitulados Outubro 16 e Março 17 respectivamente e cujo término para publicação estes mesmos editores esperam impacientemente, já que o nome Solzenitsin é garantia de sucesso. Já se publicaram no Ocidente nada menos do que quatorze obras de Solzenitsin e se espera, para dentro em breve, o aparecimento do terceiro tomo do Arquipélago de Gulag, assim como de seus Discursos Americanos, coletânea das principais declarações públicas que fez o escritor durante sua cruzada anticomunista em terras americanas, gentilmente convidado que foi pela AFL-CIO.
Esta obra sobre Lênin cobre o período da Primeira Guerra Mundial, que o líder bolchevique passa em seu refúgio de Zurich, dividindo seu tempo entre as leituras na biblioteca pública, as discussões políticas no Kegelklub – o clube político do restaurante Stüssihoff, onde se reuniam sociais-democratas suíços e emigrados políticos estrangeiros – e as poucas horas de privacidade com Nadezda Krupskaia, no modesto apartamento que eles ocupavam numa das ruelas da cidade. Seguindo os passos de Lênin (mas não o fio de sua contribuição teórica, é claro) Solzenitsin consegue reproduzir os diferentes aspectos de uma vida toda ela dedicada ao objetivo maior que era a revolução.
Seria preciso esclarecer contudo que a “reconstituição” de Solzenitsin tem muito pouco de uma obra política propriamente dita, pelo menos no sentido que habitualmente se dá ao conceito de “abordagem política de um fenômeno revolucionário”. Trata-se mais exatamente de uma espécie de mergulho nas reflexões pessoais de Lênin, ou naquilo que supostamente seriam suas preocupações mais profundas, algo enfim como uma análise psicológica do velho Lênin passando pela mediação de Solzenitsin. A primeira vista, nada de errado com este tipo da démarche: mais uma tentativa de abordar um movimento político através da biografia de um de seus protagonistas principais. O problema está, contudo, em que Solzenitsin não consegue, por razões óbvias, traduzir toda a riqueza e complexidade do pensamento de Lênin sem cair em interpretações apressadas de suas presumidas motivações. As decisões políticas de Lênin, enquanto chefe de Partido, são um tanto quanto rapidamente mergulhadas num clima de grandes contradições pessoais e transformadas, em fim de conta, em meras decisões pessoais nas quais estaria uma boa dose de impetuosidade momentânea. Daí a dificuldade aparente de uma crítica essencialmente política à obra de Solzenitsin uma vez que o bisturi do escritor não se dirige tanto ao pensador revolucionário, ao “animal político” que era Lênin, mas ao homem propriamente dito, ao indivíduo concreto tomado em sua dimensão quotidiana.
Se é em parte verdade que os “revolucionários profissionais” cultivam muito pouco aquilo que se chama vida pessoal e privada, a de Lênin confunde-se inteiramente e de uma maneira absoluta com a do partido que ele ajudou a criar e dirigiu durante o longo caminho em direção do poder. O ritmo da vida do Partido Operário Social-Democrata Russo pulsa nas veias de Lênin e impregna suas mínimas ações diárias, numa simbiose que Solzenitsin consegue captar razoavelmente bem. O interesse da obra está precisamente em que as atitudes propriamente políticas do revolucionário emigrado, se bem que somente vislumbradas, são situadas em seu ambiente de origem, recolocadas num contexto mais geral que é a vida mesma de um ativista incansável em condições de exílio político. Dois problemas estão constantemente presentes na atividade de Lênin, em Zurich: por um lado, manter a ligação política e orgânica com o interior, o que significa estar a altura das responsabilidades de um membro da direção de um partido perseguido, e por outro, encontrar as condições materiais mínimas de funcionamento de um aparelho clandestino, mas não menos atuante.
O vínculo político e orgânico com a realidade concreta da Rússia tzarista não era tarefa fácil, em virtude das enormes dificuldades de comunicação entre os países europeus colocados em situação de guerra e em campos opostos. Um pequeno exército de espiões e agentes pululavam de parte e outra das linhas de combate, como nos próprios países neutros, e é nesse cenário que se moviam certas espécies particulares desse exército das sombras: uma pequena mas eficaz rede de “correspondentes” e elementos móveis assegurava a transmissão das diretivas mais importantes, pelos meios os mais diversos. A vinda, por outro lado, de quadros partidários do interior do Império tzarista permitia a Lênin completar sua informação sobre a situação e o estado de ânimo respectivo de cada uma das classes sociais de seu país. Nada de muito perfeito, porém, e Lênin não conservou, em todas as ocasiões, uma percepção real da catástrofe iminente que estava para se abater em fevereiro de 1917: a ponto que, em princípios desse ano, ele já admitia, amargurado, que talvez sua geração não visse a revolução chegar. Não é sem surpresa, portanto, e com alguma incredulidade que o futuro dirigente soviético recebe as primeiras noticias de que o proletariado e os soldados de Petrogrado se haviam revoltado contra o governo do Tzar. A Revolução de Fevereiro viria tirar Lênin de sua modorra zuriquesa para precipitá-lo no primeiro plano da história mundial.
Não sem poucas dificuldades aliás, pois toda a questão era saber como, nas condições do momento, alcançar o território russo, uma questão em íntima relação com as possibilidades reais do aparelho partidário que dirigia Lênin. Durante toda a sua história, o POSDR se havia dividido (entre outras coisas) sobre a questão de como deveria ser seu suporte material, mais bem dito sua base financeira. Depois que o V Congresso do partido, em 1907, condenou as expropriações a bancos e agÍncias postais – das quais a mais célebre foi seguramente a de Tiflis, organizada e comandada por um obscuro georgiano que respondia pelo nome de Koba e que mais tarde iria se tornar famoso como Stalin – o grupo de Lênin passou a sobreviver com os parcos recursos que lhe procuravam alguns de seus militantes mais bem instalados na vida. Enquanto isso, os membros da minoria, os mencheviques, contavam com gordas contribuições de seus aliados burgueses e com partes dos salários de seus deputados na Duma (enquanto esta existiu pelo menos).
Sem capitais, nenhuma possibilidade de tomar o poder, tal parecia ser a questão crucial nesses anos de dificuldades; o gênio político de Lênin, contudo, não se prolongava ao terreno dos negócios. Um curioso social-democrata, e ao mesmo tempo genial estrategista político, soube perceber bem cedo a importância dessa força material que é o dinheiro para uma organização que pretenda sobreviver política e materialmente. Isolado durante muitos anos por todas as correntes socialistas européias, criticado pela sua “corrupção financeira”, Alexandre Helphand, aliás Parvus, adotou para si a consigna: “se você quiser abater os capitalistas, torne-se um deles”. Nos anos de refluxo revolucionário, Parvus se dedicou a acumular fortuna pelos mais diversos meios, pensando colocá-la a serviço da revolução proletária: negócios comerciais rendosos e alguns tráficos escusos junto aos sultões da Turquia, conselheiro financeiro dos governos turco e búlgaro durante a guerra, casas de import-export em alguns pontos da Europa, enfim, todos os métodos eram bons para esse homme d'affaires da revolução.
Mas, o golpe mais genial de Parvus, o big business de sua vida será, sem dúvida, suas conversações secretas com o governo alemão em vistas de realizar um negócio “interessante” para ambas as partes: dentro de seu grandioso plano, ele incitava o governo alemão a sustentar financeiramente os grupos políticos de oposição ao tzarismo (sobretudo os da corrente radical que se opunham de maneira absoluta à guerra imperialista) e a fazer passar para a Rússia os elementos capazes de derrubar o império tzarista, carcomido mas ainda potente na frente da guerra com a Alemanha. De sua parte tratava-se de encontrar “armas e bagagens” para alimentar os grupos revolucionários russos, em sua luta de morte contra o absolutismo. Lênin, colocado ao par desse plano mirabólico, nunca aceitara as proposições de Parvus, que já dispunha de alguns milhões de marcos colocados à disposição dos revolucionários russos pelos próprios conselheiros do Kaiser. Ademais, Parvus exigia – e isto já era impossível aos olhos de Lênin – a unidade no seio da esquerda russa, seriamente dividida em vários grupusculos ao cabo dos anos de refluxo que se seguiram ao grande ensaio geral de 1905. No final de tudo, será graças à intervenção de Parvus e a ajuda do governo alemão que Lênin e seu grupo poderão finalmente alcançar Petrogrado, em abril de 1977, depois de atravessarem a Alemanha no famoso “trem blindado”.
Data desta época, aliás a acusação de “Lênin, agente alemão”, tão frequente na imprensa mundial durante os meses de revolução. Sem cair nesse erro grosseiro, Solzenitsin não deixa passar a ocasião de reproduzir em seu livro vários documentos oficiais (desconhecidos até recentemente) que atestam que as autoridades alemãs fizeram não poucos esforços para neutralizar a potência russa via injeção de revolucionários no coração mesmo do confuso “Governo Provisório”. A intenção de Solzenitsin seria insidiosa se ela já não fosse irrelevante historicamente: nunca houve nenhum tipo de compromisso entre o governo alemão e o futuro dirigente bolchevique. Na guerra, como na luta política, certas alianças indesejadas se impõem inevitavelmente, e as alusões indiretas de Solzenitsin apenas confirmam sua “alta qualidade” de historiador.
Contudo, esta aparente deformação do real não é o mais importante na obra de Solzenitsin, nem traduz o estilo geral desta curiosa “biografia”: o que o atual emigrado de Zurich faz, de uma maneira geral, é julgar o emigrado de sessenta anos atrás por meio de suas lentes desfocadas e previamente orientadas. Na base da concepção de Solzenitsin está a preocupação em provar como a inflexibilidade doutrinária e o rigor na aplicação dos princípios, tão típicos do pensamento e da ação leninista, constituem na verdade os primeiros sintomas de um sistema e de uma prática totalitárias, que iriam alcançar seu paroxismo durante o período stalinista. Preocupação que não está ausente, tampouco, de uma recente obra sobre o problema publicada em França, e que faz revelações surpreendentes para os espíritos incautos, acostumados a ver na “brutalidade natural” de Stalin a raiz de todos os males do socialismo soviético .
O debate sobre o fenômeno totalitário sob o socialismo, e sua modalidade concentracionária, está lançado e, como se as autoridades soviéticas não quisessem estar ausentes, elas acabam de dar sua contribuição a ele, através da publicação de um livro sobre Lênin e a Tcheka. A obra reúne documentos em grande parte inéditos desta fase jacobina da revolução russa, em especial sobre o papel de Lênin na criação e supervisão da primeira polícia política do Estado Soviético. Com efeito, a Tcheka – surgida apenas dois meses depois da instalação no poder dos bolcheviques – iria desempenhar um papel de primeiro plano na “defesa” e consolidação da jovem República Socialista, acossada pelos inimigos internos e pelas intervenções estrangeiras; os excessos de zelo cometidos pelos mais ardorosos defensores da ordem soviética são, na obra soviética, parcialmente justificados pela necessidade do momento.  Está claro que a legalidade socialista não se contenta de um estrito ponto de vista jurídico tradicional, sobretudo em períodos de transformação revolucionária; mas de lá a atribuir a uma espécie de “pecado original do socialismo” a inevitabilidade da repressão política em condições de construção do socialismo, como o faz Solzenitsin, vai uma grande distância.
Aliás, Solzenitsin vai muito mais além na atribuição de responsabilidades pelo Termidor soviético: não apenas Lênin, Dzerjinski, Stalin e outros são diretamente responsáveis pelo “terror gulaguiano”, mas os “mentores intelectuais” do sistema também teriam sua quota parte. A doutrina “implacavelmente violenta” de Marx e Engels, assim como a inflexibilidade de Lênin em certas questões de princípio são, para Solzenitsin, as provas mesmo de que o pensamento socialista é intrinsecamente mau e traz em si os germes de sua deformação totalitária quando erigido em sistema de poder. A banalidade do raciocínio não encobre sua intencionalidade, no plano teórico: trata-se de negar em bloco a contribuição imensa que, desde Hegel, a “filosofia negativa” – isto é, a dialética da negação  - deu à lenta constituição de uma teoria social suscetível de transformar o curso da História.
A tentativa de ligar o fenômeno totalitário a uma determinada corrente filosófica não é, contudo, prerrogativa de Solzenitsin unicamente: um outro “batalhador do mundo ocidental”, o filósofo Karl Popper faz ascender as primeiras manifestações do totalitarianism não apenas a Marx e a Hegel, mas ao próprio Platão!  Como se vê, a lista começa a ser longa e, em sua tentativa de conjurar a “crise espiritual do Ocidente”, Solzenitsin não hesitará seguramente em acrescentar mais alguns nomes para ver se o mal ainda pode ser exorcizado. A próxima lista poderá fazer remontar as acusações não apenas a Marx e Hegel, mas talvez a Kant, Galileu, Epicuro e quiçás mais longe ainda. A pretender trazê-los aos banco dos acusados, Solzenitsin promete-nos um grande processo, sem dúvida alguma. A nós, simples mortais, resta-nos o consolo de saber que a maior parte desses senhores, longe de se dedicarem à elaboração de filosofias exóticas (de tão má influência em nossas escolas de pensamento desde que a escolástica deixou de existir), participaram da formação mesma da cultura ocidental e a ela estão indissoluvelmente ligados.

[Antuérpia, fevereiro de 1976]
[Publicado [PR] no jornal semanal Opinião
(São Paulo, nº 181, 23 abril 1976)]
[Relação de Trabalhos nº 016]
[Relação de Publicados nº 006]

Venezuela: fim da farsa plebiscitária e início da tirania as claras - El Pais, El Litoral

Luisa Ortega, de fiscal de Chávez a testigo de cargo contra Maduro
Afonso Benites
El Pais, 25/082017

La exjefa del ministério público venezolano denuncia en Brasil las atrocidades del Gobierno
Destituida de la Fiscalía General de Venezuela, Luisa Ortega Díaz se ha transformado en la principal testigo contra el régimen del presidente Nicolás Maduro. Además de las denuncias de violaciones de los derechos humanos, similares a las difundidas en las últimas semanas por oposición y organismos internacionales, Ortega asegura que dispone de documentos para implicar al presidente y decenas de sus aliados en delitos de corrupción.
Parte de esas pruebas ya fueron entregadas a investigadores brasileños durante una reunión de fiscales sudamericanos en Brasilia. En los próximos días, Ortega promete entregar otros documentos a las fiscalías de España, Colombia y Estados Unidos. Los casos implican no solo a Odebrecht, el gigante de la construcción brasileña que ha admitido sus manejos corruptos en los principales países de América Latina, sino también a empresas vinculadas a los jerarcas del régimen, según Ortega, con sede en España y México. La fiscal ha señalado incluso a la empresa que abastece las cestas de alimentos que la población más pobre recibe del Estado venezolano.
En los dos días que pasó en Brasilia, Ortega se reunió con colegas fiscales y al menos otras dos autoridades, el ministro de Relaciones Exteriores, Aloysio Nunes, y el senador del partido de centro-izquierda Rede, en la oposición, Randolfe Rodrigues. A ambos relató principalmente una serie de atrocidades cometidas por el Gobierno de Maduro. Ortega, según han informado sus interlocutores, detalló que el magistrado Ángel Zerpa Ponte, que la defendió durante su proceso de destitución, está preso en una cárcel amarrado al lado de un retrete inmundo. Otra de las personas que la apoyaron, el general retirado Raúl Baudel, fue detenido por el servicio de inteligencia bolivariano y hace dos semanas nadie de sus familiares o amigos sabe de su paradeiro.
Según Ortega, al menos 37 presos políticos con órdenes judiciales de libertad continúan detenidos. La fiscal también se refirió a la desesperada situación de famílias que hurgan en los cubos de basura para encontrar alimentos o al centenar de muertos durante las protestas contra el régimen.
De entusiasta del chavismo, Ortega ha pasado a ser una nueva opositora con poderes para destapar la deriva represora y sangrienta de Maduro. “Lo que ella dice no puede ser ignorado. No se trata de un simple político opositor, es una antigua defensora del régimem de Hugo Chávez, fiscal general, que tiene pruebas de lo que dice. No es poca cosa”, afirmo el senador brasileño Rodrigues. En Brasil, ese parlamentario fue en su momento uno de los defensores del Gobierno de Chávez, contrario a cualquier sanción de su país a Venezuela, pero, ahora, después de conversar con la fiscal, dice que ha cambiado de idea. “No se trata ya del embate izquierda o derecha en el poder. Es una cuestión humanitaria. Creo incluso que Brasil debería llamar a su embajador en Caracas para que exigiese aclaraciones. Eso sería outro gesto duro contra ese Gobierno”, analizó.
El panorama que la fiscal destituida hizo a sus colegas sobre el Gobierno de Maduro es de una total vulneración de la Constitución que certifica el fin de Estado democrático de derecho. Sus relatos van en la misma línea de los hechos constatados por el Alto Comisariado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos (ACNUDH) a principios de mes. Y Ortega expresó en Brasil el temor de que algo similar ocurra en otros países del continente.
Después de su paso por Brasil, donde fue recibida como invitada especial de la reunión de fiscales, Ortega retornó a Colombia. El pasado día 20 huyó para ese país con otras tres personas, su marido, el diputado Germán Ferrer; una asistente, Gioconda González, y el fiscal anticorrupción Arturo Vilar.
Oficialmente, Ortega dice que aún no ha decido si aceptará las ofertas de asilo político de los gobiernos brasileño y colombiano. Su única certeza es que continuará su periplo por el mundo para denunciar las agresiones del actual presidente. La previsión es que participe en las próximas semanas de algún acto en Estados Unidos, cuando aprovechará para entregar documentos en aquel país y continuará la denuncia pública del régimen. En uno de los encuentros con las autoridades brasileñas esta semana la exfiscal general envió un mensaje a Maduro y a los que apoyan su Gobierno. “Si algo sucediese contra mi vida, ya saben quién debe ser responsabilizado”.

Presentará Pruebas Contra Maduro Y Cabello: Ex fiscal venezolana rechazó el asilo que le ofreció Temer
Telam/El Litoral (Argentina), 25/08/2017

La ex fiscal venezolana Luisa Ortega Díaz, quien salió de su país tras ser acusada de traición por el gobierno, afirmó en Brasilia que posee pruebas en al menos cuatro países para denunciar por corrupción al presidente Nicolás Maduro y al número dos del chavismo, Diosdado Cabello, y advirtió que el caso puede generar inestabilidad en la región.
El canciller de Brasil, Aloysio Nunes, afirmó que su gobierno le ofreció asilo a Ortega Díaz, pero ella respondió que por el momento prefería regresar a Colombia, adonde llegó la semana pasada por vía aérea tras escapar en lancha hasta Aruba.
“Voy a entregar pruebas a autoridades de distintos países para que se investigue, en virtud del principio de jurisdicción universal”, dijo Ortega Díaz al participar de una reunión de procuradores generales de los países miembros del Mercosur y los Brics, en Brasilia.
La ex funcionaria venezolana fue respaldada por el fiscal general de Brasil, Rodrigo Janot, quien sostuvo que la democracia está siendo víctima de una “vejación institucional” en Venezuela.
Ortega Díaz, quien llegó a Brasilia proveniente de Colombia, que también le ofreció asilo, afirmó que existen pruebas de corrupción que involucran a Maduro y a otros dirigentes del oficialismo venezolano, así como a empresas extranjeras, como la constructora brasileña Odebrecht.
De Cabello dijo que tiene pruebas de que recibió unos 100.000 dólares por parte de una empresa española.
La reunión de fiscales del Mercosur, de la cual participa la procuradora general argentina, Alejandra Gils Carbó, estuvo marcada por la conmoción política que causa el caso de Ortega Díaz.
La ex fiscal general dijo que pretende presentar la documentación sobre corrupción a las autoridades de Brasil, Estados Unidos y Colombia.
Durante la apertura de la XXII Reunión Especializada de Ministerios Públicos del Mercosur (Rempm), Ortega Díaz fue tratada como la “fiscal legítima” de Venezuela por Janot y sus pares.
Militante chavista y fiscal general de la República desde 2007, designada por iniciativa del entonces presidente Hugo Chávez, Ortega Díaz fue profundizando sus disidencias con el gobierno de Maduro hasta que fue echada del cargo.
Ortega calificó lo que ocurre en su país como “muerte del derecho” y advirtió que “lo que ocurre en Venezuela puede permear a toda la región”.