Uma resenha feita em 1976, no exílio, falando de outro exilado:
Solzenitsin nas pegadas de
Lênin
Alexandre Soljènitsyne:
Lénine à Zurich
(Paris: Editions du Seuil, 1975, 223 pp.; trad do russo:
J.-P. Semon)
Um exilado político revisitado por um outro exilado, tal
poderia ser o subtítulo da mais recente obra do emigrado político Alexandre
Solzenitsin. Desta vez entretanto o escritor russo não sobrevoa os campos de
seu Gulag habitual, desvendando aos olhos do mundo o universo concentracionário
versão soviética. A empresa é mais árdua, pois trata-se agora de ir às origens
do nefando sistema. Solzenitsin se dirige desta vez ao coração da Europa, à
Suíça mais exatamente, onde, alguns anos antes do estabelecimento do poder
soviético, aquele que iria ser seu primeiro dirigente estava condenado à
emigração forçada.
Uma visita não de todo inocente, pois Solzenitsin não se
contenta simplesmente em marchar sobre as pegadas de Lênin em seu refúgio
suíço: mais que isso, o novo exilado de Zurich instala Lênin sobre seu divã
psicanalítico na intenção de penetrar o pensamento do líder bolchevique e
descobrir as “motivações profundas” que guiariam suas atividades políticas, aos
tempos da Primeira Guerra Mundial. De uma maneira geral, poder-se-ia dizer
desta obra que ela é mais uma tentativa de reconstituição histórica de uma fase
do movimento bolchevique, visto a partir da condição pessoal de seu chefe mais
distinguido, com esta diferença essencial, entretanto, que Solzenitsin não é
exatamente aquilo que poderíamos chamar de um “observador imparcial”.
Evidentemente, a estrita imparcialidade de um
historiador político é algo tão pouco seguro quanto a questão da infalibilidade
papal, isto é, não existe nenhuma garantia a priori de que tal ou qual escritor
assuma uma postura de absoluta objetividade na apresentação de um determinado
problema histórico. A questão da “objetividade” do escritor é ainda mais
problemática quando ele tem a “julgar” situações sociais especialmente
controversas, como por exemplo os caminhos contraditórios do marxismo russo no
começo deste século. Isaac Deutscher e Edward Carr, os dois maiores
especialistas no estudo do processo revolucionário russo, ainda que vindo de
horizontes políticos e sociais diversos, souberam traçar um imenso painel da
Rússia pré- e pós-leninista onde a riqueza de dados não encobre a preocupação
em selecionar e ordenar os fatos mais significativos segundo uma compreensão
determinada deste mesmo processo.
A crítica relevante que se poderia fazer a Solzenitsin
não é exatamente a que se refere à sua visão definida do movimento leninista e
de suas consequências práticas – o que aliás é seu direito –, mas o fato dele
reconsiderar o movimento histórico real segundo “sua” visão peculiar da
História. Não que, em Lénine à Zurich,
Solzenitsin proceda a uma revisão histórica fundamental dos dados do problema –
que já são por demais conhecidos para serem “reinterpretados” – mas as
concepções políticas do escritor estão sobremaneira implícitas em cada página
desta “biografia” para que não as percebamos. Para aqueles todavia que não
conheçam suficientemente a “visão do mundo” de Solzenitsin, recomenda-se a
leitura de sua Carta aberta aos dirigentes da União Soviética (1972), onde o
escritor “dissidente” prega um retorno às raízes culturais e religiosas da
Santa Rússia do séculos anteriores. Em suma, o pensador ideal para os nossos
medievais caboclos da TFP ou, como diria Millor Fernandes, uma jóia do
pensamento liberal.
Lénine à Zurich compõe-se de alguns capítulos da grande obra que Solzenitsin
empreendeu, visando reconstituir, numa espécie de fresco histórico (que traz
evidentemente sua patente ideológica), os anos de transformação revolucionária
que agitaram o gigantesco Império tzarista russo e determinaram sua queda.
Originalmente, a obra em questão deveria fazer parte de um material mais
importante e que apenas a pressa das editoras ocidentais determinou que fosse
publicada prematuramente, rompendo a divisão em “laços” que Solzenitsin havia
estabelecido, segundo cada período histórico estudado. Assim, o primeiro
capítulo de Lénine à Zurich
constituía na verdade o capítulo 22 (inédito até então) do primeiro “laço”,
isto é a obra Agosto 14, já publicada
desde 1972 pela maior parte dos editores ocidentais. Os restantes capítulos
constituem partes dos segundo e terceiro “laços”, intitulados Outubro 16 e Março 17 respectivamente e cujo término para publicação estes
mesmos editores esperam impacientemente, já que o nome Solzenitsin é garantia
de sucesso. Já se publicaram no Ocidente nada menos do que quatorze obras de
Solzenitsin e se espera, para dentro em breve, o aparecimento do terceiro tomo
do Arquipélago de Gulag, assim como de seus Discursos Americanos, coletânea das
principais declarações públicas que fez o escritor durante sua cruzada
anticomunista em terras americanas, gentilmente convidado que foi pela AFL-CIO.
Esta obra sobre Lênin cobre o período da Primeira Guerra
Mundial, que o líder bolchevique passa em seu refúgio de Zurich, dividindo seu
tempo entre as leituras na biblioteca pública, as discussões políticas no
Kegelklub – o clube político do restaurante Stüssihoff, onde se reuniam
sociais-democratas suíços e emigrados políticos estrangeiros – e as poucas
horas de privacidade com Nadezda Krupskaia, no modesto apartamento que eles
ocupavam numa das ruelas da cidade. Seguindo os passos de Lênin (mas não o fio
de sua contribuição teórica, é claro) Solzenitsin consegue reproduzir os
diferentes aspectos de uma vida toda ela dedicada ao objetivo maior que era a
revolução.
Seria preciso esclarecer contudo que a “reconstituição”
de Solzenitsin tem muito pouco de uma obra política propriamente dita, pelo
menos no sentido que habitualmente se dá ao conceito de “abordagem política de
um fenômeno revolucionário”. Trata-se mais exatamente de uma espécie de
mergulho nas reflexões pessoais de Lênin, ou naquilo que supostamente seriam
suas preocupações mais profundas, algo enfim como uma análise psicológica do
velho Lênin passando pela mediação de Solzenitsin. A primeira vista, nada de
errado com este tipo da démarche: mais uma tentativa de abordar um movimento
político através da biografia de um de seus protagonistas principais. O
problema está, contudo, em que Solzenitsin não consegue, por razões óbvias,
traduzir toda a riqueza e complexidade do pensamento de Lênin sem cair em
interpretações apressadas de suas presumidas motivações. As decisões políticas
de Lênin, enquanto chefe de Partido, são um tanto quanto rapidamente
mergulhadas num clima de grandes contradições pessoais e transformadas, em fim
de conta, em meras decisões pessoais nas quais estaria uma boa dose de
impetuosidade momentânea. Daí a dificuldade aparente de uma crítica
essencialmente política à obra de Solzenitsin uma vez que o bisturi do escritor
não se dirige tanto ao pensador revolucionário, ao “animal político” que era
Lênin, mas ao homem propriamente dito, ao indivíduo concreto tomado em sua
dimensão quotidiana.
Se é em parte verdade que os “revolucionários
profissionais” cultivam muito pouco aquilo que se chama vida pessoal e privada,
a de Lênin confunde-se inteiramente e de uma maneira absoluta com a do partido
que ele ajudou a criar e dirigiu durante o longo caminho em direção do poder. O
ritmo da vida do Partido Operário Social-Democrata Russo pulsa nas veias de
Lênin e impregna suas mínimas ações diárias, numa simbiose que Solzenitsin
consegue captar razoavelmente bem. O interesse da obra está precisamente em que
as atitudes propriamente políticas do revolucionário emigrado, se bem que
somente vislumbradas, são situadas em seu ambiente de origem, recolocadas num
contexto mais geral que é a vida mesma de um ativista incansável em condições
de exílio político. Dois problemas estão constantemente presentes na atividade
de Lênin, em Zurich: por um lado, manter a ligação política e orgânica com o
interior, o que significa estar a altura das responsabilidades de um membro da
direção de um partido perseguido, e por outro, encontrar as condições materiais
mínimas de funcionamento de um aparelho clandestino, mas não menos atuante.
O vínculo político e orgânico com a realidade concreta
da Rússia tzarista não era tarefa fácil, em virtude das enormes dificuldades de
comunicação entre os países europeus colocados em situação de guerra e em
campos opostos. Um pequeno exército de espiões e agentes pululavam de parte e
outra das linhas de combate, como nos próprios países neutros, e é nesse
cenário que se moviam certas espécies particulares desse exército das sombras:
uma pequena mas eficaz rede de “correspondentes” e elementos móveis assegurava
a transmissão das diretivas mais importantes, pelos meios os mais diversos. A
vinda, por outro lado, de quadros partidários do interior do Império tzarista
permitia a Lênin completar sua informação sobre a situação e o estado de ânimo
respectivo de cada uma das classes sociais de seu país. Nada de muito perfeito,
porém, e Lênin não conservou, em todas as ocasiões, uma percepção real da
catástrofe iminente que estava para se abater em fevereiro de 1917: a ponto
que, em princípios desse ano, ele já admitia, amargurado, que talvez sua
geração não visse a revolução chegar. Não é sem surpresa, portanto, e com
alguma incredulidade que o futuro dirigente soviético recebe as primeiras
noticias de que o proletariado e os soldados de Petrogrado se haviam revoltado
contra o governo do Tzar. A Revolução de Fevereiro viria tirar Lênin de sua
modorra zuriquesa para precipitá-lo no primeiro plano da história mundial.
Não sem poucas dificuldades aliás, pois toda a questão
era saber como, nas condições do momento, alcançar o território russo, uma
questão em íntima relação com as possibilidades reais do aparelho partidário
que dirigia Lênin. Durante toda a sua história, o POSDR se havia dividido
(entre outras coisas) sobre a questão de como deveria ser seu suporte material,
mais bem dito sua base financeira. Depois que o V Congresso do partido, em
1907, condenou as expropriações a bancos e agÍncias postais – das quais a mais
célebre foi seguramente a de Tiflis, organizada e comandada por um obscuro
georgiano que respondia pelo nome de Koba e que mais tarde iria se tornar
famoso como Stalin – o grupo de Lênin passou a sobreviver com os parcos
recursos que lhe procuravam alguns de seus militantes mais bem instalados na
vida. Enquanto isso, os membros da minoria, os mencheviques, contavam com
gordas contribuições de seus aliados burgueses e com partes dos salários de
seus deputados na Duma (enquanto esta existiu pelo menos).
Sem capitais, nenhuma possibilidade de tomar o poder,
tal parecia ser a questão crucial nesses anos de dificuldades; o gênio político
de Lênin, contudo, não se prolongava ao terreno dos negócios. Um curioso
social-democrata, e ao mesmo tempo genial estrategista político, soube perceber
bem cedo a importância dessa força material que é o dinheiro para uma
organização que pretenda sobreviver política e materialmente. Isolado durante
muitos anos por todas as correntes socialistas européias, criticado pela sua
“corrupção financeira”, Alexandre Helphand, aliás Parvus, adotou para si a
consigna: “se você quiser abater os capitalistas, torne-se um deles”. Nos anos
de refluxo revolucionário, Parvus se dedicou a acumular fortuna pelos mais
diversos meios, pensando colocá-la a serviço da revolução proletária: negócios
comerciais rendosos e alguns tráficos escusos junto aos sultões da Turquia,
conselheiro financeiro dos governos turco e búlgaro durante a guerra, casas de
import-export em alguns pontos da Europa, enfim, todos os métodos eram bons
para esse homme d'affaires da revolução.
Mas, o golpe mais genial de Parvus, o big business de
sua vida será, sem dúvida, suas conversações secretas com o governo alemão em
vistas de realizar um negócio “interessante” para ambas as partes: dentro de
seu grandioso plano, ele incitava o governo alemão a sustentar financeiramente
os grupos políticos de oposição ao tzarismo (sobretudo os da corrente radical
que se opunham de maneira absoluta à guerra imperialista) e a fazer passar para
a Rússia os elementos capazes de derrubar o império tzarista, carcomido mas
ainda potente na frente da guerra com a Alemanha. De sua parte tratava-se de
encontrar “armas e bagagens” para alimentar os grupos revolucionários russos,
em sua luta de morte contra o absolutismo. Lênin, colocado ao par desse plano
mirabólico, nunca aceitara as proposições de Parvus, que já dispunha de alguns
milhões de marcos colocados à disposição dos revolucionários russos pelos
próprios conselheiros do Kaiser. Ademais, Parvus exigia – e isto já era
impossível aos olhos de Lênin – a unidade no seio da esquerda russa, seriamente
dividida em vários grupusculos ao cabo dos anos de refluxo que se seguiram ao
grande ensaio geral de 1905. No final de tudo, será graças à intervenção de
Parvus e a ajuda do governo alemão que Lênin e seu grupo poderão finalmente
alcançar Petrogrado, em abril de 1977, depois de atravessarem a Alemanha no
famoso “trem blindado”.
Data desta época, aliás a acusação de “Lênin, agente
alemão”, tão frequente na imprensa mundial durante os meses de revolução. Sem
cair nesse erro grosseiro, Solzenitsin não deixa passar a ocasião de reproduzir
em seu livro vários documentos oficiais (desconhecidos até recentemente) que
atestam que as autoridades alemãs fizeram não poucos esforços para neutralizar
a potência russa via injeção de revolucionários no coração mesmo do confuso
“Governo Provisório”. A intenção de Solzenitsin seria insidiosa se ela já não
fosse irrelevante historicamente: nunca houve nenhum tipo de compromisso entre
o governo alemão e o futuro dirigente bolchevique. Na guerra, como na luta
política, certas alianças indesejadas se impõem inevitavelmente, e as alusões
indiretas de Solzenitsin apenas confirmam sua “alta qualidade” de historiador.
Contudo, esta aparente deformação do real não é o mais
importante na obra de Solzenitsin, nem traduz o estilo geral desta curiosa
“biografia”: o que o atual emigrado de Zurich faz, de uma maneira geral, é
julgar o emigrado de sessenta anos atrás por meio de suas lentes desfocadas e
previamente orientadas. Na base da concepção de Solzenitsin está a preocupação
em provar como a inflexibilidade doutrinária e o rigor na aplicação dos
princípios, tão típicos do pensamento e da ação leninista, constituem na
verdade os primeiros sintomas de um sistema e de uma prática totalitárias, que
iriam alcançar seu paroxismo durante o período stalinista. Preocupação que não
está ausente, tampouco, de uma recente obra sobre o problema publicada em
França, e que faz revelações surpreendentes para os espíritos incautos,
acostumados a ver na “brutalidade natural” de Stalin a raiz de todos os males
do socialismo soviético .
O debate sobre o fenômeno totalitário sob o socialismo,
e sua modalidade concentracionária, está lançado e, como se as autoridades
soviéticas não quisessem estar ausentes, elas acabam de dar sua contribuição a
ele, através da publicação de um livro sobre Lênin e a Tcheka. A obra reúne
documentos em grande parte inéditos desta fase jacobina da revolução russa, em
especial sobre o papel de Lênin na criação e supervisão da primeira polícia
política do Estado Soviético. Com efeito, a Tcheka – surgida apenas dois meses
depois da instalação no poder dos bolcheviques – iria desempenhar um papel de
primeiro plano na “defesa” e consolidação da jovem República Socialista,
acossada pelos inimigos internos e pelas intervenções estrangeiras; os excessos
de zelo cometidos pelos mais ardorosos defensores da ordem soviética são, na
obra soviética, parcialmente justificados pela necessidade do momento. Está claro que a legalidade socialista não se
contenta de um estrito ponto de vista jurídico tradicional, sobretudo em
períodos de transformação revolucionária; mas de lá a atribuir a uma espécie de
“pecado original do socialismo” a inevitabilidade da repressão política em
condições de construção do socialismo, como o faz Solzenitsin, vai uma grande
distância.
Aliás, Solzenitsin vai muito mais além na atribuição de
responsabilidades pelo Termidor soviético: não apenas Lênin, Dzerjinski, Stalin
e outros são diretamente responsáveis pelo “terror gulaguiano”, mas os
“mentores intelectuais” do sistema também teriam sua quota parte. A doutrina
“implacavelmente violenta” de Marx e Engels, assim como a inflexibilidade de
Lênin em certas questões de princípio são, para Solzenitsin, as provas mesmo de
que o pensamento socialista é intrinsecamente mau e traz em si os germes de sua
deformação totalitária quando erigido em sistema de poder. A banalidade do
raciocínio não encobre sua intencionalidade, no plano teórico: trata-se de
negar em bloco a contribuição imensa que, desde Hegel, a “filosofia negativa” –
isto é, a dialética da negação - deu à
lenta constituição de uma teoria social suscetível de transformar o curso da
História.
A tentativa de ligar o fenômeno totalitário a uma
determinada corrente filosófica não é, contudo, prerrogativa de Solzenitsin
unicamente: um outro “batalhador do mundo ocidental”, o filósofo Karl Popper
faz ascender as primeiras manifestações do totalitarianism
não apenas a Marx e a Hegel, mas ao próprio Platão! Como se vê, a lista começa a ser longa e, em
sua tentativa de conjurar a “crise espiritual do Ocidente”, Solzenitsin não
hesitará seguramente em acrescentar mais alguns nomes para ver se o mal ainda
pode ser exorcizado. A próxima lista poderá fazer remontar as acusações não
apenas a Marx e Hegel, mas talvez a Kant, Galileu, Epicuro e quiçás mais longe
ainda. A pretender trazê-los aos banco dos acusados, Solzenitsin promete-nos um
grande processo, sem dúvida alguma. A nós, simples mortais, resta-nos o consolo
de saber que a maior parte desses senhores, longe de se dedicarem à elaboração
de filosofias exóticas (de tão má influência em nossas escolas de pensamento
desde que a escolástica deixou de existir), participaram da formação mesma da
cultura ocidental e a ela estão indissoluvelmente ligados.
[Antuérpia, fevereiro de 1976]
[Publicado [PR] no jornal semanal Opinião
(São Paulo, nº 181, 23 abril 1976)]
[Relação de Trabalhos nº 016]
[Relação de Publicados nº 006]