100 anos depois, um fantasma ronda a Rússia: o camarada Lênin ainda vive
Astier Basílio
Quem entrar na Praça Vermelha pela direção do Jardim de Alexandre, onde está o Túmulo do Soldado Desconhecido e a famosa chama eterna, dará com uma das entradas de acesso ao principal cartão postal da Rússia. É ali que se localiza a única entrada do mausoléu construído em 1924 para guardar o corpo mumificado de Vladimir Ilyich Ulianov, universalmente conhecido como Lênin, o fundador da União Soviética. Não é cobrado ingresso. A pirâmide, cujo formato em granito veio a ser erguido em 1930, suplantando versões anteriores de madeira, distribui-se por 12 metros de altura e 2.400 metros cúbicos de área interna. Seu acesso é permitido após uma segunda vistoria realizada pelos guardas, e o visitante precisa seguir outra vez por um detector de metais. Não se pode entrar com mochila, qualquer tipo de líquido, nem fazer imagens de nenhuma natureza lá dentro. O mausoléu abre todos os dias, menos sexta e segunda-feira, e o horário de visitação é restrito: das 10h às 13h. Mergulha-se em total escuridão nos degraus que se seguem à entrada, e mal se consegue ver o primeiro dos cinco guardas que se postam nas dependências do recinto. Do topo da pirâmide incide uma iluminação que, de súbito, encadeia a visão. É como se estivéssemos num teatro. Uma espécie de ilusão ótica faz com que o corpo morto há 100 anos seja banhado por uma luminosidade que sonega os detalhes de sua decadência: não é possível ter uma percepção nítida dos traços fisionômicos de Lenin devido ao jogo de luz e sombra que é construído. No último 21 de janeiro, em celebração à data que marcou o centenário da morte de Lênin, as bandeiras vermelhas voltaram a ser predominantes no Kremlin. A Rússia hoje tem 21 partidos políticos em funcionamento, mas apenas 5 possuem representação na Duma Federal, o equivalente à nossa Câmara dos Deputados. Os comunistas são o segundo maior partido. Nas últimas eleições, obtiveram pouco mais de 18% dos votos e elegeram 57 representantes, mas nem se comparam com a performance obtida pela Rússia Unida, a agremiação de Vladimir Putin, que arrebanhou 49% do eleitorado e elegeu 324 parlamentares. Por 70 anos, o Partido Comunista deteve o monopólio da existência política. A decisão foi tomada quando Lênin ainda era vivo, em 1921, um ano antes da criação da União Soviética. No X Congresso do Partido Comunista, passaram uma resolução pelo fim das facções internas, o que na prática redundou na existência de um partido único. Tal situação se manteve inalterada até a implantação das reformas no governo Gorbachev, a “perestroika” e a “glasnost”, que acabaram por acelerar a queda do regime. Desde 1993, a liderança do partido comunista está nas mãos de Guennadi Ziugánov, 78 anos, um deputado em seu oitavo mandato na Duma. Seu rosto estampou os cartazes de campanhas presidenciais derrotadas em 1996, 2008 e 2012. Como acontece todos os anos, foi um Ziugánov paz e amor, segurando rosas, quem conduziu a pequena multidão ao mausoléu. Desde o final da União Soviética, em 1991, os russos discutem sobre a permanência ou não da múmia de Lênin na Praça Vermelha. Como não poderia deixar de ser, o centenário de morte do líder máximo do Partido Comunista não só trouxe este tema à baila como foi marcado por polêmica. Mais da metade da população russa hoje deseja que a múmia do líder proletário saia da Praça Vermelha e seja enterrada. Conforme números divulgados pelo VCIOM (Centro de Pesquisas de Opinião Pública da Rússia), 33% da população acreditam que o corpo deve se manter onde está, enquanto que 30% desejam que seja “enterrado rapidamente” e 27% apoiam a ideia, mas desejam que o enterro seja realizado “mais tarde”, o que perfaz um total de 57% de pessoas favoráveis à retirada do corpo do mausoléu. Os números da pesquisa foram divulgados poucos dias antes do centenário da morte de Lênin. O deputado Leonid Slutsky, 56 anos, do Partido Liberal Democrata da Rússia, escreveu em seu canal no Telegram: “Minimamente, o descanso do falecido é muito importante para os cristãos e as pessoas civilizadas como ritual de manifestação de respeito à memória. Ao passo que o próprio Lênin gostaria de ser enterrado ao lado de sua mãe. Acho que chegou o tempo de realizarmos o desejo do revolucionário.” Quem não gostou nem um pouco da declaração foi o presidente do comitê do Partido Comunista, Sergei Malinkovich, 48 anos. Ele anunciou que vai pedir à Duma a cassação do mandato de Slutsky, argumentando que sua proposta “incita a discórdia” e está em contradição com o “curso da consolidação da sociedade”, no período da operação militar na Ucrânia. Quando a União Soviética entrou em colapso, a Rússia era a república que liderava o ranking com a maior quantidade de monumentos em homenagem à memória de Lênin (7 mil), seguida pela Ucrânia (5.500). Os dados foram disponibilizados pelo projeto especial “Lenin statues”. Desde 2013, a Ucrânia vem passando por um processo de “descomunização” que consiste na derrubada de estátuas relacionadas à União Soviética e, após a guerra, à Rússia como um todo. Os dados mais atualizados da página, que vão até janeiro de 2021, dão conta de que na Rússia o número de monumentos a Lênin caiu para 6 mil; na Ucrânia, como era de se esperar, a queda foi bem mais significativa: sobraram apenas 350 monumentos. Embora Putin tenha se referido criticamente a Lênin em várias ocasiões, tem acontecido um fenômeno curioso desde o início da guerra com a Ucrânia. Se a derrubada das estátuas do líder bolchevique tornou-se uma espécie de símbolo da libertação, a restauração desses mesmos monumentos tem se constituído em uma marca comum às cidades ucranianas que passaram ao controle russo, como em Mariupol e no distrito municipal de Belokurakinski, na república popular de Lugansk, entre outros. Apesar disto, na página oficial da presidência da República não houve qualquer menção à efeméride. Por ironia do destino, na entrevista coletiva que concede tradicionalmente no final do ano, Putin respondeu à última pergunta – o que o Putin de 2022 diria ao de 2000 – com uma citação de Lênin: “Siga pela estrada certa, camarada!” A relação de Putin com o legado de Lênin é conflituosa. No mesmo encontro anual com a imprensa, em 2019, ao ser instado a avaliá-lo, disse: “Com relação à figura de Lênin na nossa história e, especialmente falando, como eu o avalio, posso dizer que ele não foi um estadista, mas um revolucionário, na minha opinião.” Por sua vez, uma das figuras públicas de maior prestígio que defende ardorosamente o legado de Lênin é o escritor Zakhar Prilepin, 48 anos, um aliado de primeira hora de Putin – tendo sofrido inclusive um atentado terrorista por suas posições pró-Rússia na guerra anti-Ucrânia. Em uma das últimas edições de seu programa de televisão, Lição russa, Zakhar Prilepin destacou a importância de Lênin não apenas na história de seu país como no cenário mundial. “Ele é o russo mais conhecido em todo o mundo.” Ao enumerar sua importância na geopolítica nos dias de hoje, Prilepin falou da citação a Lênin na Constituição da China, de sua influência na Índia, no Vietnam, Cuba e América Latina: “Brasil e Venezuela são governados por socialistas,” avaliou. O Canal 1, a emissora de maior audiência na Rússia, mostrou Lenin, o homem que mudou tudo. O programa foi uma espécie de debate entre, de um lado, o líder comunista Guennadi Ziugánov e, do outro, o deputado pela Rússia Unida, Vyacheslav Nikonov, 67, neto de um quadro histórico do Partido Comunista, Molotov (1890-1986), o mesmo que dá nome ao pacto de não-agressão com o ministro da Alemanha nazista, Ribbentrop, assinado em 1939. Durante o programa, que teve uma hora de duração, Ziugánov e Nikonov manifestaram pontos de vista bem opostos. Um dos momentos de maior tensão foi quando Nikonov fez menção ao ateísmo de Lenin. “O senhor vai negar que ele era ateu?” Ziugánov, por sua vez, como se estivesse esperando por aquela pergunta, leu trechos do discurso do patriarca da igreja ortodoxa por ocasião da morte de Lênin. No programa de notícias da emissora, apresentado na sequência, foi exibida uma reportagem de 13 minutos na qual Lênin foi comparado a um Prometeu que, ao invés de trazer o fogo, levou a eletricidade aos rincões da Rússia agrária. O programa ouviu historiadores que mostraram manuscritos com ordem expressa de Lênin para a execução pública de inimigos. Praticamente todos os veículos da imprensa russa trouxeram reportagens, matérias e artigos relacionados aos 100 anos da morte de Lênin. O tom, como se pode ver pelas manchetes abaixo, foi o mais diversificado possível: Izvestia: “Segredo da preservação do corpo” Argumenty i Fakty: “Por que os bolcheviques mataram parentes de Lênin nos Urais?” e “No mausoléu: um boneco e Lênin em Petersburgo? Mitos e verdade sobre o corpo de Lenin”. Komsomolskaia Pravda: “Familiares queriam congelar o corpo.” Ainda de acordo com a pesquisa do VCIOM, 88% da população russa sabem ou já ouviram falar em Lênin, e 36% avaliam que as ações do líder foram “úteis” para o país. Outros 19% as acharam “ruins”, e 30% acham que houve uma “metade boa e outra ruim.” Será que os jovens na Rússia de hoje dão alguma importância ao legado de Lênin? Na rádio Sputnik, Dmítri Juravlióv, diretor do Instituto de problemas regionais e professor universitário, ao ser perguntado como Lênin é visto pelos jovens estudantes, respondeu que, entre os que defendem as ideias esquerdistas, “os jovens politizados, que gostam de resoluções fáceis, estão mais próximos de Lênin”. E acrescentou: “Para a juventude que procura justiça, mas não sabe onde encontrá-la, Lênin é muito popular.” No andar em que moro reside um destes jovens. Faz alguns meses, ele nomeou sua rede de internet, assim: “Lenin > capitalism”. Mas não era uma rede livre. O acesso estava fechado por senha.
Astier Basílio é jornalista, escritor e tradutor, mestre em literatura russa pelo Instituto Púchkin e autor de mais de dez livros.
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