Nota Liminar
Dentre os muitos papéis
deixados pelo Barão no momento de sua morte, na mais completa desordem,
encontrava-se um curioso caderno, que permaneceu obscuro durante muito tempo, cuja
transcrição foi realizada com alguma dificuldade por este organizador, que
esforçou-se ademais por colocar o texto numa ortografia a mais possível moderna.
As anotações manuscritas do Barão, algumas datadas, outras simplesmente
localizadas no espaço (a maior parte do Rio, outras de Petrópolis), foram
feitas sem maiores indicações quanto às circunstâncias exatas de sua redação, a
não ser alguma referência à agenda diplomática corrente, o que permite definir,
em princípio, um momento provável de redação; elas foram feitas sequencialmente
pelo Barão nos três anos seguintes ao seu aniversário de 1909, em momentos
diversos e com humores diferentes, mas sem o cuidado de manter a estrita
cronologia de um diário “normal”.
Ou seja, o conteúdo do volume
em questão não conforma exatamente o que poderíamos chamar de “memórias”, no
sentido corrente do termo. O Barão provavelmente pretendia – ao sentir o peso
dos anos e o acúmulo de responsabilidades, depois de tantos presidentes a que
serviu – deixar um testemunho sobre seu pensamento profundo – e verdadeiro – sobre
os temas com os quais se entretinha. Rio Branco sentia necessidade de
expressar-se de alguma outra forma que os telegramas e ofícios que mandava
preparar sobre temas diversos, que as notas que redigia à intenção dos
presidentes a que serviu – e eles foram muitos, mesmo que não pretendesse
continuidade nas suas funções – ou que os muitos artigos de imprensa que
redigiu ao longo dos anos, alguns até assinados com algum nom de plume, que ele escolhia ao sabor do momento, para
defender-se de, ou atacar, algum inimigo concreto ou imaginário que ele
detectava em certos editoriais e artigos de opinião não assinados.
As notas e inscrições
rápidas do “caderno escolar” do Barão são, assim, mais uma espécie de “exercícios
filosóficos” sobre as relações internacionais do Brasil, do que propriamente um
registro fiel de sua labuta cotidiana à frente da chancelaria. Ele talvez
quisesse utilizar os rascunhos do caderno como a hipotética base futura de um
verdadeiro volume de “memórias póstumas”, se o tempo e uma aposentadoria
tranquila lhe tivessem permitido retomá-los em condições de lazer e de dedicação
integral a tal tipo de empreendimento. Disso não temos certeza, pois nenhuma
indicação concreta nessa direção foi deixada no caderno ou em qualquer um dos
muitos papéis – numerosos, desordenados, alguns até incompreensíveis, fora do
contexto em que foram criados e deixados ao léu – amontoados em seu gabinete de
trabalho (e de residência, podemos dizer) ao longo dos muitos anos que passou
naquele casarão da rua Larga.
Mas os elementos
especificamente formais desse “caderno íntimo” do Barão interessam ao público de
hoje em dimensão menor do que seu conteúdo propriamente político, e diplomático.
O Barão tinha, sim, ademais dos cuidados triviais com a diplomacia corrente,
uma visão de futuro para o Brasil, uma grande estratégia que ele não conseguiu
formalizar em algum livro de história diplomática ou de síntese das relações
internacionais do país, mas que ele provavelmente pretendia redigir a partir
destas notas que, graças a um conjunto fortuito de circunstâncias, passamos agora
a revelar...
Paulo Roberto de Almeida
Responsável pela transcrição e modernização da
ortografia,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis
deixados pelo Barão;
títulos e intertítulos dos capítulos sob
responsabilidade do organizador.
[Por que decidi
escrever estas memórias?]
Petrópolis,
20 de Abril de 1909
Escritores são, em geral,
fantasistas notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que,
aliás, é próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas
linhas, resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a
retrospectivamente, não posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela
Sorte, essa madrasta que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a
cada etapa de nosso itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse
prazer: ubique, eu mesmo cuido de
minhas memórias, sobretudo se elas tratam da pátria!
Também o faço porque
alguns dos meus colaboradores, e até os senadores da República, vêm se
mostrando incomodados com a falta de relatórios da minha gestão à frente do
Itamaraty, uma decisão que tomei desde o dia da posse, naquele, agora
longínquo, dia de dezembro de 1902, numa das mais importantes inversões da
minha já longa trajetória de vida. Sete anos atrás, não sabia se era justa a
minha decisão de trocar a absorvente vida diplomática na capital da Alemanha
imperial por esta cidade ainda cheia de mosquitos, de doenças endêmicas, com
sua quota excessiva de miasmas, o que me obriga a subir regularmente a serra em
direção ao meu chalé de montanha.
Não pretendo desculpar-me
com meus colegas diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não
corro o risco de lhes amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento
definitivo de meus atos aos historiadores do futuro, que por certo saberão
encontrar o que buscam nos muitos documentos já acumulados em minha gestão;
talvez até encontrem estas notas – que não sei quando terminarei – entre as
pilhas de papéis que locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de
meu gabinete. On n’est jamais si bien
servi que par soi-même. Mais, passons...
Também quero deixar agora
consignadas, neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de
maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma
candidatura, praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o
cargo mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em
qualquer época. Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas
em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar
eleições, já que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato
saído da convenção dos congressistas já é uma aceitação nacional – de assumir
um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu
desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e
incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria
ocupar na cena internacional.
O próximo presidente da
República será, provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas
timorato nas decisões, e que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo,
quando todos sabem que minhas preferências – a despeito das diferenças que
acumulamos desde a conferência da Haia – estariam naquele brilhante advogado
baiano, arrogante e vaidoso em suas pretensões de jurista internacionalista,
ainda assim melhor preparado do que a mula fardada que se prepara para dirigir
um país difícil como o Brasil. E talvez eu já não tenha mais forças para
fazê-lo...
Minha aspiração – sem
pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas
décadas mais à frente – é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens
políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados,
estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas
de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância
abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que
procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No
momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que
minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse
mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar
que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado,
propenso como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de
intervenções nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e
pretendo encerrar minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas
termine a sua. Tenho ainda a resolver negociações já em curso de tratados de
limites com o Peru e com o Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao
Uruguai, para dar por encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as
nossas fronteiras. Depois disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no
calor carioca, e coloco definitivamente as chinelas...
(...)
[Militares e intelectuais: tão diferentes, tão
semelhantes...]
Rio
de Janeiro, 15 de novembro de 1910
O novo presidente da República, o
Marechal Hermes da Fonseca, tomou posse hoje, numa cerimônia assez simple, feita de assinatura de
livros de posse, dois discursos rápidos e poucas congratulações. Fui
reconduzido nas mesmas funções em seu gabinete (que aliás ainda não está todo
constituído), como tinham anunciado alguns meses antes os auxiliares do
presidente eleito, mesmo sem ter me consultado, o que refletem duas coisas: ou
benemerência sincera, em relação a meus serviços à frente desta Secretaria de
Estado, ou arrogância desmedida, de quem se julga mestre de tudo e de todos.
O Marechal o fez a despeito de meus
protestos de desprendimento ao cargo, o que eu já tinha demonstrado de sobejo.
Como todos sabem, a candidatura à esta presidência me foi oferecida, de
bandeja, se ouso dizer, mais de um ano atrás, coincidindo a pressão política em
favor do lançamento de meu nome com o meu natalício dos 64 anos; creio ter
feito muito bem em recusar. A despeito de ter uma eleição praticamente
assegurada, uma vez que o congresso do partido ratifica o nome do candidato,
nunca gostei, de fato, da vida política, pois acho os homens dessa sorte muito
enfatuados, e dispostos a prometer qualquer coisa aos políticos que os elegem,
o que apenas confirma meu desgosto da vida política. Sim, porque no Brasil não
são os eleitores que determinam a vida política do país, e sim é o atual
sistema de partidos estaduais que decide quem serão os “representantes” do
povo.
Não fosse isso, dois outros fatores
contribuiriam para me afastar desse mundo de pequenas trapaças e grandes
enganações, como é a política no Brasil: as intervenções nos estados, o que vem
gerando tensões insuportáveis não apenas no meio político, mas também no
Judiciário; e o fato de termos uma Constituição contraditória, que permite tudo
aos estados – depois de décadas de centralização monárquica – e lhes deixa numa
situação de virtual liberdade, para contrair dívidas e conduzir os seus
negócios como se fossem verdadeiros países soberanos; isso vai acabar por
tornar periclitante a própria federação que os republicanos quiseram criar,
contra os sãos princípios do Império.
Acresce a isso o fato de que eu
sempre vi com muita simpatia a candidatura do Doutor Ruy ao cargo supremo da
Nação, destino que lhe parece estar reservado em algum momento do nosso futuro,
a despeito mesmo dessas frustrações que hão de ser temporárias. Não obstante os
pequenos desentendimentos que ambos tivemos ao longo de todos esses anos de
turbulências republicanas, a começar pela negociação com os bolivianos e,
depois, o affaire Drago-Porter na
segunda conferência da Haia, eu considero o jurisconsulto baiano um dos homens
mais preparados para governar um país quase ingovernável como o Brasil. E, apesar
disso, de todas as suas qualidades e de suas propostas altamente necessárias num
país de pouca inteligência política como o Brasil, o grande civilista Ruy foi
derrotado pelo militarista Hermes, o que demonstra que, depois de tantas
desventuras com seus caudilhos militares nas repúblicas irmãs do continente,
nosso país também se deixa seduzir pelo charme pouco discreto dos homens da
farda.
Explica talvez a vitória de Hermes –
certamente conseguida à custa do famoso “bico de pena” – o fato de ser sobrinho
do Marechal que inaugurou esse sistema anárquico em nosso país, quando
estávamos tão bem na condição de única monarquia do Novo Mundo, uma verdadeira
república neste continente de caudilhos, como aliás disse de nós um presidente
venezuelano. Os militares de nossos turbulentos vizinhos sempre interferiram
nos negócios internos desses países, talvez à falta de grandes ameaças à
soberania nacional, como soe acontecer na Europa: por aqui eles cuidam mais dos
soldos do que dos soldados inimigos; como os políticos relutam em aumentar-lhes
a paga...
No Brasil, eu os respeito, mas de
forma nenhuma os venero, pois sei que muita gente no partido militar tem
inclinações que beiram o despotismo, como já nos demonstrou sobejamente aquele
marechal das Alagoas, que disse que iria responder à bala qualquer intromissão
de estrangeiros nos assuntos do seu governo. Não é coisa que se faça,
obviamente, sequer que se diga, pelo menos não de público, ainda mais quando os
estrangeiros já estavam de fato envolvidos na infeliz guerra fraticida que
sacudiu esta bela capital, pelo fato de alguns dos bravos da marinha, que
lutavam contra a ditadura do dito marechal, se terem homiziado em barcos
estrangeiros. A “diplomacia” do Marechal não foi diplomacia nem aqui nem no
Império chinês e Deus nos livre de um dia cair numa ditadura de marechais como
esse de olhar mortiço, de língua solta e de sabre ainda mais folgado (se não
são os canhões, que ele não hesita em mandar disparar, contras seus próprios
companheiros). Espero que este Marechal que agora começa seu quadriênio, e que
me tem amarrado ao seu governo, não tenha as mesmas ideias liberticidas...
Enfim, se o Ruy não vencer em alguma
próxima eleição, em vista da sua idade, que bate com a minha (com 4 anos de
vantagem), pode ser que o Brasil não tenha mais nenhum candidato dessa estatura
intelectual nem nos próximos cem anos. Com efeito, olhando-se o panorama de
miséria educacional brasileira, não se pode esperar por algum outro sábio do
porte do Ruy antes de muito tempo; não quero tripudiar sobre o ensino do nosso
Colégio D. Pedro II, onde já fui professor e conheço a qualidade dos seus
mestres, mas o quadro da cultura em geral, e o da cultura política em
particular, é lamentável. O ambiente político no Brasil tende a recrutar as
piores vocações, os seres mais oportunistas, as inteligências mais medíocres,
se nisso não vai nenhuma contradição.
Em contraste, os militares não são
melhor dotados em inteligência, mas são mais bem organizados, dispõem, em todo
caso, de uma máquina bem azeitada que, com exceção de algumas áreas da nossa
magistratura, justamente (e nem todas, pois também frutas podres existem nesses
meios), pode oferecer-lhes as condições ideais para que se ocupem das mais
variadas funções no Brasil, pela razão, ou pela força, como dizem os chilenos.
De fato, os únicos bons matemáticos e engenheiros que temos neste país são os
que saem das escolas militares, pois no ambiente civil o que temos é uma
pletora de bacharéis em direito. Como digo sempre, quem cria a riqueza de um
país são os seus engenheiros e homens de ciência, pois a única coisa que, em
geral, produzem os bacharéis e os intelectuais é o déficit público.
[A continuar...]
Memórias do
Barão do Rio Branco (2):
Los hermanos, siempre tan hermosos...
Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.
Rio de
Janeiro, 2 de maio de 1910
Pronto! Acabo de confirmar ao Senhor
Presidente, que me havia interrogado a esse respeito, que o Brasil participará
das comemorações do assim chamado “centenário da independência argentina” (com
aspas, comme il faut), neste próximo
10 de maio, com uma delegação normal, isto é, por meio do nosso próprio
ministro em Buenos Aires, e não com alguma embaixada especial ou enviado
extraordinário. A decisão, é bom que se diga, foi só minha, e a considero
plenamente justificada, como expliquei ao Senhor Presidente. Meus auxiliares,
todavia, me dizem, desde já algum tempo atrás, quando, refletidamente, tomei
tal decisão, que se trata de um erro monumental. Alguns deles, inclusive,
parecem ter ficado abalados com o que chamam de descortesia gratuita de minha
parte, enfim, mais uma demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos...
Curiosa essa menção a erro, porque isto me
lembra de uma frase à propos, que já
ouvi há muito tempo, de um desses nuestros
hermanos justamente, mas já não sei dizer de quem, de onde ou quando: He cometido un error fatal! Y el peor es que
no sé cual...
Talvez eu também tenha cometido algum erro
fatal, mas não sei dizer exatamente qual, embora minha impressão sincera é a de
que o equívoco está com eles, não comigo. O erro, terrível, no dizer de meus
auxiliares – que se desesperam com esta minha decisão – teria sido representado
pelo fato de não termos enviado nenhuma delegação especial, representando a
nação brasileira, às comemorações oficiais do centésimo aniversário do 10 de maio
argentino, quando tantos países o fizeram. Muitos outros países, justamente,
designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros de relações
exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de governo, o que
me parece um pouco exagerado, mais
laissons cela à leur critère. Chacun
est maître de ses décisions...
Descarto qualquer erro de minha parte, mas
como não posso externar minha opinião au
grand large, o faço aqui para a posteridade (e a devida fidelidade a esta
musa sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História). A sinceridade é
uma dessas virtudes que, infelizmente, poucos homens públicos podem externar em
todas as circunstâncias.
Qual erro cometi, afinal, já que não vejo
nenhum em minha decisão de não ver nesse dia nada de realmente extraordinário?
Seria o 10 de maio uma efeméride suscetível de mudar dramaticamente o curso da
História, na mesma categoria dessas de que me ocupei largamente no passado? (É
bem verdade que me ocupei também, nas efemérides, de fatos corriqueiros, mas
isso foi mais por distração do que por verdadeiro culto a essa musa, que no
entanto respeito e venero, como uma das minhas preferidas, ao lado daquela que
comanda aos prazeres da mesa, se por acaso existir uma tão gourmande quanto eu...)
Os argentinos estão festejando, com orgulho
indevido em minha opinião, o 10 de maio de 1810, que é quando nossos vizinhos
acreditam que “conquistaram” a sua independência da Espanha (ou de Napoleão,
sejamos mais claros). O fato, absolutamente verdadeiro, é que no 10 de maio de
1810, não foi proclamada nenhuma independência argentina. Nada aconteceu nesse
dia, a não ser o reconhecimento, pelo cabildo de Buenos Aires, de algo
absolutamente fáctico, tão evidente que sequer havia necessidade de qualquer
proclamação em torno disso: o trono de Espanha, o legítimo, tornou-se obviamente
vacante – mas não foi nesse dia – em função da “destituição”, de seu real cargo,
de um desses Bourbons que os próprios franceses tinham se esforçado para
colocar no trono de Espanha um século antes. Mais uma querela dos Pirineus...
Eles, os argentinos, que nisso são
equivocadamente seguidos por meus auxiliares, acreditam que sua independência
começou nesse dia – eles comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo
da utilidade – quando ela só se firmou, de verdade, muito tempo depois, mais
até do que seu orgulho nacional o permitiria. Ela de fato só ocorreu, e mesmo
assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo
valer o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas
da crítica. Estas, como grande parte do palavrório dos diplomatas, se traduzem
muitas vezes em declarações chorosas, que falam da “opressão dos invasores”, ou
da “usurpação do trono”, enfim, essas frases ocas, em que comprazem nossos
colegas de carreira.
Todas essas construções intencionais, de
uma pré-ciência de “momentos históricos”, de fato delineados a posteriori, servem apenas para
alimentar os mitos nacionais, quando a realidade é que a soberania e a
independência de uma nação só se garantem na ponta dos sabres, como afirmava o
velho Bismarck, ou numa eventual carga de cavalaria, como parecia preferir seu colega
de conquistas, o general Moltke. Seja como for, esses nuestros hermanos, siempre tan hermosos, inventaram o mito do 10 de
maio apenas para ter precedência sobre nossa própria independência, e querem
que acreditemos nisso. Sinto muito, mas não caio nessa peta!
Se me permito aqui parafrasear o general
Roca, nosso amigo sincero – dos poucos que temos naquele país de arrogantes
gaúchos que se creem ingleses dos pampas – eu diria que muitas coisas nos unem,
mas algumas nos separam (mas isso eu não posso afirmar de público). Já não me
refiro ao esporte bretão, que parece começar a empolgar multidões dos dois
lados do Prata, mas sim a interesses concretos, com destaque para o equilíbrio
de nossas forças navais, cruciais na nova conformação dos fatores de guerra que
teve início pela construção dos primeiros dreadnoughts
pela Royal Navy. Não acredito que possamos levar muito longe essa insana
competição por encouraçados cada vez maiores e poderosos, inclusive porque o
nosso pobre orçamento não o suportaria (e esta é uma das poucas razões pelas
quais apoio esse difícil pacto ABC, quando preferia ter apenas o Chile como
aliado constante e fiel, junto a nosso grande irmão do norte, um pouco
inconstante, este).
Os argentinos são, sem sombra de dúvida,
muito mais ricos do que nós; aliás, mais até do que vários europeus (e, ouvi
dizer, até mais do que os franceses, que cunharam a frase, muito frequente em
suas operetas, de riche comme un argentin...).
Nossos vizinhos podem, portanto, se permitir essas loucuras com seus orçamentos
militares, ainda que a quebra do Barings – quando eu começava a me ocupar,
justamente, do nosso conflito em torno de Palmas – comprove que, mesmo assim,
nem tudo é possível de se fazer com o dinheiro alheio. Os pobres venezuelanos,
aliás, sabem muito bem disso, ao terem tido de suportar o peso de canhoneiras
estrangeiras, porque um desses coronéis malucos que frequentemente se apossam
do poder naquele confuso país andino e caribenho se recusou a cumprir com suas
obrigações financeiras, algo que nosso Império, sempre tão endividado, jamais
chegou a cogitar. Se tivemos de negociar nosso último funding loan em termos que não foram certamente os mais flâteurs para nossa dignidade nacional,
foi porque um bando de bárbaros do sertão nos obrigou a levar uma guerra frustrante,
em quatro sucessivas expedições, que consumiu nossos parcos recursos do café,
como antes já tinha ocorrido com a maldita guerra contra o ditador Solano
Lopez.
Pois bem, voltando às “comemorações do 10
de maio”, imagino que um dos meus críticos argentinos – me refiro ao
inacreditável Estanislao Zeballos – possa estar agora falando de mim: “Maldito barón” – com b minúsculo, para me
diminuir um pouco mais – “siempre depreciando a nuestra patria, como si Brasil
no fuera una porqueria, un cambalache, yá lo sé...”. Foi ele mesmo que nos
levou a esta situação absurda de competição naval, com sua agressividade
militarista tão desproporcional quanto às supostas ameaças do Brasil e do
Chile, que o próprio presidente José Figueroa Alcorta teve de demiti-lo em meio
ao seu mandato. Zeballos nunca engoliu o que continua a chamar de
“desmembración” do território argentino, mas que foi apenas um laudo impecável
do presidente americano, em face de meus argumentos absolutamente fundamentados
na história – e na nossa boa cartografia lusitana – em defesa do nosso pedaço
das Missões. O mesmo belicoso Zeballos, quando ministro, queria controlar
nossas aquisições de fragatas na Europa, e até “dividi-las” com eles (o
absurdo!), mas nunca hesitou em exigir de seu próprio presidente aumentos
fabulosos das compras militares argentinas, como tampouco se eximiu de propor a
preparação de suas forças navais para eventualmente ocupar o Rio de Janeiro
pela força.
Como querem, agora, que eu conceda em enviar
uma delegação de alto nível a um país que falseia sua história, que mantém
sonhos ridículos de grande potência e que, além do mais, reincide num
protecionismo renitente, que prejudica nossas legítimas exportações de açúcar e
de algodão? Como querem meus auxiliares que eu me disponha a assinar um acordo
de comércio preferencial com nossos vizinhos – concedendo-lhes as mesmas
vantagens que eu concedi às farinhas americanas – se eles continuam a comprar
quantidades ínfimas do nosso precioso café? Não! No que depender de mim, não
haverá acordo comercial de nenhum tipo com os argentinos, até que eles nos
reconheçam como uma nação tão merecedora de consideração como aquela que eles
estão sempre tão dispostos a conceder à velha Albion, que eles, também
ridiculamente, estimam ser o seu modelo a imitar, ainda que não exibam toda a
pompa e circunstância da Corte de St. James.
Sei que o dileto amigo Julio Roca sempre
propugnou por uma estreita união dos dois países, afirmando, ao nosso Campos
Salles que, ao desenvolver “laços da mais íntima amizade”, Brasil e Argentina,
juntos, seriam “ricos, fortes, poderosos e livres”. Pode ser que, um dia, de
fato cheguemos a essa situação, de sólidos vínculos entre nossas duas
economias, mas não antes que nuestros hermanos
abandonem sua ideia de preeminência militar, mesmo que continuem mais ricos do
que nós por certo tempo ainda. Atualmente, eles quase se igualam à riqueza
americana, mas essa situação pode não perdurar, e o Brasil chegará a ser também,
um dia, rico e poderoso, se para tal lhe ajudarem o descortino e a capacidade
intelectual de nossos líderes, hoje, infelizmente, tão carentes de educação
econômica e tão pouco propensos a educar o povo, como preconizou para a
Argentina, tão justamente, o genial Sarmiento. Quando teremos um intelectual
como ele, entre nós?
Esse dia chegará, estou seguro, mas
certamente não será do meu tempo; talvez dos meus netos, mas sobre isso falarei
um outro dia...
Rio de
Janeiro, 2 de Maio de 1910
[
2356:
Bragança, 18 de janeiro de
2012;
2367: Saint Malo, 13 Fevereiro
2012;
2370: Paris,
21 Fevereiro; e
2375: 20 março 2012]
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