Creio que o texto transcrito abaixo -- que nunca foi lido, em sua íntegra, apenas serviu de guia, nem nunca tinha sido publicado -- constituiu meu último pronunciamento formal na academia diplomática brasileira, o Instituto Rio Branco, feito a convite de seu então diretor-geral, embaixador João Almino.
Eu tinha acabado de publicar, ainda servindo em Washington, meu grande "tijolo" de pesquisa historiográfica sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil, e não o havia lançado, por estar no exterior. Mas já vinha colaborando com o Instituto Rio Branco, que então recém iniciava seu experimento (que durou dez anos apenas) de "mestrado em diplomacia", do qual eu era, estando no exterior, apenas um "professor orientador", antes de, eventualmente, tornar-me professor.
Lembro-me que nessa ocasião, quando vim ao Brasil, reuni-me separadamente com cinco ou seis "mestrandos", para discutir projetos de dissertação, bibliografia, orientações metodológicas, etc. Aprovei integralmente os projetos, com uma única exceção (mas isso talvez tenha sido um pouco mais tarde): um projeto que se situava na linha do FOCEM do Mercosul, que eu julgo um tremendo erro estratégico do lulopetismo diplomático, pois que implementado bem depois.
Um ano depois dessa palestra aos alunos do Rio Branco, da qual retirei grande prazer intelectual, eu recebi, do diretor-geral do IRBr o honroso convite para ser uma espécie (digo isto porque não havia DAS disponível, uma vez que o novo regime lulopetista havia feito um "rapa-tudo" geral em DAS da Esplanada, para servir aos novos companheiros no governo, certamente) de "coordenador do mestrado do Rio Branco".
Mesmo sem designação formal, pela ausência do já referido DAS, aceitei com satisfação, em vista de minhas naturais inclinações ao trabalho acadêmico e intelectual. Isso deve ter sido em abril de 2003, já sob a vigência, portanto, do novo regime companheiro.
Qual não foi minha surpresa quando, poucos dias depois, o mesmo diretor-geral me telefona a Washington todo constrangido para me anunciar que o "Secretário-Geral do Itamaraty tinha outras ideias a respeito desse cargo que eu viria a ocupar", o que revelava, em todo caso, que o convite estava desfeito e o novo cargo suprimido, ou pelo menos não a mim destinado.
Logo percebi que se tratava de um veto político, em vista de minhas conhecidas posições em diplomacia, e especificamente em relação à "diplomacia" do Partido dos Trabalhadores, que eu já tinha examinado em diversos artigos anteriores, todos de cunho rigorosamente acadêmico.
Dispensei o diretor-geral do IRBr de maiores considerações a respeito, e permaneci em Washington por mais alguns meses, até receber um convite para trabalhar numa "coisa" chamada "Núcleo de Assuntos Estratégicos", vinculado diretamente à Presidência da República. Um dia contarei minha experiência no NAE.
No momento pretendo apenas transcrever um texto que permaneceu rigorosamente inédito, e que se destinava, em princípio a apresentar meu livro "Formação da Diplomacia Econômica no Brasil" (em 1a. edição, agora já caminhando para a 3a.), mas no qual eu ia um pouco mais além, tecendo considerações sobre nossa diplomacia econômica da atualidade.
O registro é puramente histórico.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017
Palestra proferida
pelo
Ministro Conselheiro
na Embaixada do Brasil em Washington
Paulo Roberto de Almeida
DIPLOMACIA ECONÔMICA
BRASILEIRA: LIÇÕES DA HISTÓRIA
Instituto Rio Branco
Brasília
2 de abril de 2002,
9:15 hs
Gostaria, antes de mais
nada, de agradecer ao Ministro João Almino, Diretor do Instituto Rio Branco e
de quem tenho o prazer de ser amigo desde os tempos em que ambos nos ocupávamos
de dissertações acadêmicas sobre questões do desenvolvimento político
brasileiro, o gentil acolhimento feito a esta idéia de, não propriamente lançar
aqui um de meus livros, mas, mais justamente, de abrir esta oportunidade de
manter um diálogo com todos vocês, alunos do Rio Branco, bem como com alguns
dos demais colegas desta Casa. Um diálogo sobre algumas das lições que eu mesmo
aprendi em longos anos de pesquisa sobre os fundamentos da diplomacia econômica
no Brasil e sobre como esses
fundamentos influenciam ainda hoje, e poderosamente, a forma e a substância de
nossas relações econômicas internacionais. Apesar de já ter sido professor de
sociologia política nesta Academia Diplomática, no seguimento de outros nomes
de prestígio como Marcílio Marques Moreira e o Professor José Carlos Brandi
Aleixo, trata-se esta da primeira vez que a ela me dirijo enquanto diplomata,
mas sobretudo enquanto pesquisador e como autor.
Ao iniciar esta palestra, que prefiro seja considerada um diálogo com
colegas, ainda que diplomatas aprendizes, creio dever explicar, em primeiro
lugar, como veio a ser escrito este Formação
da Diplomacia Econômica no Brasil, este volume maciço que demorou alguns
anos para ser editado e que veio a lume graças ao empenho em tal sentido por
parte da Fundação Alexandre de Gusmão, a quem igualmente gostaria de agradecer
na pessoa do Embaixador Álvaro da Costa Franco, seu antigo Diretor, antes que a
Embaixadora Tereza Quintela viesse a assumir a responsabilidade por essa
instituição, sob a qual funciona o Instituto de Pesquisas em Relações
Internacionais, o IPRI, a outra “alma mater” da pesquisa acadêmica e das
reflexões diplomáticas de nossa Casa.
Este livro deriva
obviamente de meu continuado trabalho como pesquisador, não mais na categoria
de sociólogo eventual, mas enquanto historiador aprendiz, em torno dos
elementos básicos que moldaram a postura da diplomacia brasileira na frente
econômica externa. Na verdade, o projeto não deveria tratar do século XIX, e
sim do período contemporâneo, da história mais imediata, pois que foi
concebido, num primeiro esquema, no contexto das etapas conclusivas da Rodada
Uruguai de negociações comerciais multilaterais. Em 1992 eu tinha traçado um
ambicioso programa de trabalho que deveria levar-me a expor criticamente e a
discutir os métodos de atuação e os princípios diretrizes da diplomacia
econômica brasileira em ação. Elaborado o projeto inicial, traçado um roteiro
de pesquisas e redigido dois questionários de entrevistas (um para diplomatas,
outro para não diplomatas), coloquei-me em campo para justamente entrevistar os
atores, os protagonistas e os formuladores da diplomacia econômica então em
ação.
Qual não foi a minha
decepção com a escassa reação despertada por aquela minha tentativa de elaborar
uma história in the making dessa diplomacia econômica em seu inner
functionning. Foram marginais, para não dizer quase nulas, as respostas que
obtive às minhas circulares de pedido de informação e de entrevistas. Para ser
sincero, recebi, en tout et pour tout,
algumas vagas promessas de “conversas numa ocasião futura” e duas únicas
respostas a meus questionários, respectivamente de meu atual chefe em
Washington, Embaixador Rubens Antônio Barbosa, e do grande jurista, eminente
professor de direito internacional público e também diplomata, meu amigo Guido
Fernando Silva Soares, hoje chefe do Departamento de Direito Internacional da
faculdade do Largo de São Francisco e responsável pela implantação do mais
recente curso de graduação em relações internacionais existente no Brasil, o da
própria USP.
Duas respostas,
convenhamos, não constitui muita matéria-prima como documentos de base para
compor uma reflexão aprofundada sobre a diplomacia econômica brasileira
contemporânea. Em condições normais, eu teria simplesmente desistido, enfiado a
viola no saco e ido cantar em outras freguesias diplomáticas, eventualmente até
abandonado minhas digressões acadêmicas em troca de ocupações mais amenas. Não
fosse uma vocação docente e de pesquisador já definitivamente entranhada em uma
longa carreira de diplomata regular e de acadêmico virtual, eu teria
efetivamente desistido de perseverar na busca de documentação primária para
sustentar meu projeto de análise da diplomacia econômica brasileira corrente.
Abandonei, contudo, as escarpas íngremes do presente pelas planícies mais
calmas, ainda que empoeiradas, do passado. Deixei o final do século XX e retornei
ao início do século XIX, em busca dos fundamentos da moderna diplomacia
brasileira. Fui buscar nas origens de nossa formação enquanto Estado
independente as bases conceituais e empíricas de nosso estilo peculiar de fazer
diplomacia e sobretudo as razões que explicam nosso estilo próprio de praticar
a diplomacia econômica.
Elaborei um novo esquema
para este livro quando servia em Paris, em 1993, e me coloquei imediatamente em
marcha, retomando as notas que já havia elaborado de antigas leituras dos velhos
relatórios da antiga Repartição dos Negócios Estrangeiros a partir de 1831 e
até o início da República. Ao mesmo tempo mergulhei na leitura de vasta
bibliograia secundária sobre esse período, com um critério porém: afastei
deliberadamente as “interpretações” já elaboradas sobre a diplomacia brasileira
do século XIX, novas ou velhas “histórias diplomáticas”, pois pretendia
elaborar minha própria interpretação desse período, a partir da matéria prima
dos fatos, não da análise de autores contemporâneos. Selecionei, em
contrapartida, todas as obras sobre a economia do Império e do sistema
econômico mundial nessa época, ademais de toneladas de dados brutos e de
elementos fatuais e quantitativos, a exemplo de tabelas estatísticas e de
listas de acordos internacionais e de outros documentos primários.
De volta ao Brasil,
mergulhei na leitura dos relatórios do ministério da Fazenda, estes desde 1823,
e de alguns outros documentos do Império, como as falas do Imperador, por
exemplo, ademais da leitura, em fugas ocasionais ao Rio de Janeiro, de maços e
maços de oficios das principais legações imperiais. Juntei assim uma massa
impressionante de documentos e de dados brutos, passando a organizar e a
sistematizar o material em função do plano original. Devo dizer que o retorno à
documentação primária do Império e o diálogo com essas fontes hoje quase
esquecidas deram-me mais prazer intelectual do que a releitura, rápida, de
alguns “clássicos” da literatura consagrada sobre esse período, uma vez que o
ato de percorrer os velhos relatórios da monarquia constitui quase que um
“comércio de idéias” com nossos antecessores funcionais de um século e meio
atrás.
O livro estava basicamente
composto em meados de 1997 quando decidi apresentá-lo como tese do Curso de
Altos Estudos (após, é verdade, a tentativa inicial de tratamento de um tema
mais contemporâneo, e mais problemático, relativo à OCDE). Teve lugar então uma
dolorosa operação “reducionista”, que consistiu em converter um volume de quase
500 páginas em um modesto opúsculo de menos de 200 páginas, o limite máximo
para esse tipo de dissertação em nossa Casa. Feita a operação de cirurgia
plástica e de emagrecimento textual, a tese foi considerada apta para
publicação, a que eu entretanto objetei, já que, na verdade, não pretendia
publicá-la no formato reduzido do CAE, de vez que seriam perdidas saborosas
digressões de nossos colegas do Império e outros tantos dados coletados sobre
um passado hoje longínquo. Passaram-se, desde então, quase cinco anos desde sua
redação original, período no qual o texto foi ligeiramente burilado e
certamente passou por novo período de engorda, ainda que moderada.
Ei-lo aqui, portanto, em
sua versão editada, um livro que pretende ser, ademais de uma obra de
referência sobre essa fase de formação – the
making of – de nossa diplomacia, que também foi chamado de Bildungsprocess da diplomacia econômica
no Brasil, também uma espécie de reflexão diacrônica sobre como nossos
antepassados do Império responderam a determinados desafios externos e como eles
construiram um instrumento diplomático que não apenas provou sua excelência na
época em que foi mobilizado, mas que continuou a apresentar excelente
desempenho nas décadas seguintes, ao longo de todo o período republicano e
ainda hoje, como vemos pelos comentários da imprensa brasileira e internacional
e de observadores isentos, comentários feitos sobre a qualidade de nossos
negociadores nos foros econômicos internacionais e regionais.
Como chegamos a isso, como
construímos um instrumento de valor num contexto de relativa anomia social e
deficiente estrutura institucional? E como, em especial, o Brasil veio a ter um
tal desempenho satisfatório no plano da diplomacia econômica, em contraste
evidente com a modéstia dos nossos meios materiais e humanos e certamente em
total contradição com as deficiências visíveis de nosso aparato econômico e de
nossa organização política e social? Estas são, provavelmente, as perguntas
mais importantes que subjazem ao esforço por mim empreendido na elaboração
deste livro. Observo, com força, que estas constatações não eram evidentes no
momento em que me lancei à aventura de sua pesquisa e redação. Registro,
sobretudo, que o livro não é, longe disso, um exercício de auto-congratulação
ou de satisfação naïve com as
supostas excelências de nossa diplomacia econômica. Nele não faço apologia, nem
distribuo cumprimentos.
Ao contrário, ele constitui
um empreendimento rigoroso, relativamente isento – se assim posso argumentar, a
partir de minha condição intelectual primariamente acadêmica e secundariamente
diplomática –, enfim, trata-se de um esforço razoavelmente objetivo de examinar
como e em que condições o Brasil foi capaz de erigir um instrumento diplomático
certamente único (ainda hoje) no contexto da periferia semi-capitalista, em
defesa de seus interesses econômicos primaciais e em favor da promoção de
objetivos econômicos e políticos ultrapassando as meras e toscas fronteiras de
uma economia agro-exportadora, quase exclusivamente monocultora no período aqui
enfocado, mas que possuia uma consciência relativamente clara sobre os fins a
serem atingidos, as metas a serem alcançados. A noção de desenvolvimento
econômico, por certo ainda incipiente nesta fase, ou melhor, a idéia da
necessidade de construção de uma nação avançada na América do Sul, rivalizando
ou se igualando a outras no contexto internacional ou regional, esta concepção
de um devir diplomático e de um dever nacional já fazia parte da agenda dos
nossos colegas do Império desde praticamente o início das regências, quando se
constrói, verdadeiramente, um Estado nacional no Brasil. Isto ao mesmo tempo,
reconheçâmo-lo de pronto, em que esses mesmos colegas de punhos de renda – o
estereótipo é aqui verdadeiro – e trajes de rigor, mesmo no calor do trópico,
resistiam às investidas da Inglaterra para a cessação do tráfico negreiro –
essa modalidade precoce de “cláusula social”, implementada pela via imperial –,
em que esses colegas teimavam em não ver na escravidão uma nefanda instituição
a contaminar todo o tecido social e a estrutura econômica do País, como queria
Nabuco, em que esses colegas imitavam a aristocracia européia e olhavam com uma
certa condescendência o democratismo e o espírito de trabalho dos americanos do
Norte, em que esses colegas mantinham preconceitos evidentes contra a imigração
de “mascates” levantinos, preferindo-lhes saudáveis agricultores nórdicos, mas
de preferência entregues às fainas da plantation semi-escravagista, não como
proprietários livres numa terra fortemente marcada pelo latifúndio e pelo coronelato
arbitrário.
A despeito disso tudo,
nossa diplomacia econômica foi boa, excelente mesmo segundo algumas opiniões
insuspeitas (e minha, depois de concluir a pesquisa para este livro),
provavelmente uma “diplomacia fora do lugar”, como coloquei numa paráfrase da
crítica literária e da análise sociológica sobre as idéias desajustadas em
relação ao seu meio social. Talvez essa diplomacia não tenha sido forte o
suficiente para mudar o País, que digo?, para reestruturar a Nação, como sua
visão de mundo, sua Weltanschauung
poderia lhe autorizar, com base numa visão comparada com o itinerário mais
exitoso de outros povos e outras formações nacionais. Mas esta certamente não
era sua missão histórica, pois que a diplomacia, enquanto interface externa do
aparato estatal, não poderia pretender “atirar para dentro”, ainda mais contra
as bases de seus próprios privilégios aristocráticos e estamentais. Fomos
eficientes, sim, mas nos limites estritos de um Estado nacional limitado
(talvez ainda hoje) a um por cento da nacionalidade e da cidadania, uma
diplomacia eficaz para defender os interesses de uma economia assim organizada,
não necessariamente para empreender uma transformação de fora para dentro, o
que aliás seria quase um contrasenso operacional e uma impossibilidade
filosófica.
Tivemos, portanto, ao longo
do tempo, nosso pequeno lote de revoluções pelo alto, nossas transformações
bastante modestas da máquina política, nossa mobilidade social com preservação
de desigualdades gritantes, nosso desenvolvimento econômico por impulsões
descontinuadas, com a tal de “diplomacia de primeiro mundo” sempre presente,
com suas maneiras francesas e produtos ingleses, importando a última moda
européia com o dinheiro inglês (que nos entrava pela via exclusiva da
monoexportação), enfim uma diplomacia eficiente, por certo, da qual podemos
justamente nos orgulhar, ainda que num País que ainda deixa a desejar
tremendamente no plano social ou tecnológico. O livro, justamente, explora
algumas dessas ambiguidades, mas consoante seu escopo dirigido e sua orientação
temática, ele descortina sobretudo a ação dessa diplomacia nos diversos campos
de atuação abertos a seu engenho e arte no decorrer do tempo monárquico.
E o que descobrimos, como
resultado da pesquisa exaustiva conduzida ao longo de cinco anos de leituras e
dois de redação? Que causas explicam esse contraste
entre a precária situação de desenvolvimento econômico do País na era imperial
e o status relativamente avançado de
sua diplomacia?
Com
efeito, tínhamos uma elite no comando da Nação e na representação externa do
Estado, ou seja, funcionários publicos dotados de boa formação e conscientes de
representar um Governo com clareza de propósitos e objetivos bem determinados.
A situação de precário desenvolvimento econômico efetivo se explica obviamente
por questões estruturais evidentes: uma economia colonial, produtora e
exportadora de matérias primas, pouco propensa à inovação e à industrialização
autônoma, por falta de condições sociais e educacionais.
Por
que preservamos durante tanto tempo tal situação? Pelas escolhas erradas dessas
mesmas elites, que durante tanto tempo insistiram no sistema escravo e na
especialização agrária. Devemos lembrar que Hipólito da Costa primeiro,
Bonifácio de Andrada em seguida, Mauá logo adiante, todos insistiram na
abolição do tráfico e da escravidão, e na adoção de uma legislação econômica
aberta à imigração de pequenos proprietários de terras e suscetível, portanto,
de impulsionar o progresso econômico e social. No entanto, as elites no comando
do País fizeram a opção pela continuidade da escravidão e pela especialização
agrária, incapazes que foram de propor autonomia social e econômica, educação
das massas e investimento na capacitação técnica da população.
Nisso
também fomos herdeiros da tradição lusitana, centralizadora e absolutamente
infensa à autonomia econômica dos agentes privados. A despeito dessa herança
burocrática bastante eficiente na defesa dos nossos interesses políticos – pois
a cartografia vencedora do Barão deve tudo ao patrimônio luso – a diplomacia
econômica igualmente eficiente no plano prático foi menos exitosa na
transformação “mental”, por assim dizer, da agenda econômica interna dessas
elites monárquico-republicanas. Cabe também reconhecer que a visão tradicional
da nossa diplomacia – ornamental e aristocrática, no dizer de Hélio Jaguaribe
–, até pelo menos a belle époque
recusava em grande medida os temas econômicos, considerados como de low politics, preferindo se ocupar das
chamadas questões de high politics,
que seriam as de política bilateral e as questões de equilíbrio estratégico e
militar. Era um arremedo de equilíbrio de poderes, numa época em que
dispunhamos de muito pouco poder efetivo, talvez apenas o de determinar os
preços do café nos mercados mundiais.
Não
nos cabe agora passar julgamentos por erros passado, mas devemos sim tirar
proveito da história para ilustrar – não determinar – nossas opções do
presente. E o que constatamos como contraste entre a diplomacia econômica do
Império e a diplomacia que foi seguida no longo século republicano, que agora
se encerra em favor de uma nova era de globalização?
O
detalhamento figura no último capítulo de meu livro, sobretudo sob a forma de
uma tabela comparativa sobre a evolução conceitual da diplomacia econômica do
Brasil do século XIX ao XX (disponível no meu site pessoal, www.pralmeida.org).
Se posso resumir os ensinamentos, eles seriam os seguintes:
- no
comércio, deixamos o carater errático do liberalismo do século XIX por um
protecionismo industrializante no século XX, até voltarmos agora a um moderado
protecionismo e a um esforço sincero de inserção econômica mundial, via
abertura gradual e processos negociados de integração comercial.
-
nas finanças, as mudanças são muito poucas, talvez inexistentes, pois permanece
o recurso à divida externa e a mesma fragilidade financeira externa.
-
em mão-de-obra, seguimos a tendência mundial de fechar as fronteiras aos
imigrantes e passamos, aliás, a exportar nossos “excedentes” demográficos, mas
isso na verdade só ocorre nos momentos de crise econômica e de desemprego. No
mais, ainda não sabemos praticar a importação de cérebros como deveríamos, pois
existem milhares de cientistas e pesquisadores que poderiam vir para o Brasil,
se nossa política de captação de mão-de-obra especializada fosse mais esperta,
ativa e aberta.
-
na tecnologia continuamos igualmente dependentes do exterior, mas já
somos produtores de bens com elevado conteudo tecnológico, como visto no caso
dos aviões da Embraer. Mas ainda não soubemos desenvolver um “modo inventivo de
produção”, que caracteriza os capitalismos mais avançados na América do Norte,
na Europa e no Japão. Por outro lado, não sabemos explorar devidamente
determinadas vantagens comparativas que têm muito a ver com nosso espírito
inventivo na música, nos esportes, na culinária, por exemplo, todos terrenos
nos quais poderíamos estar exportando serviços e produtos de forma exponencial.
Não exploramos tampouco nossas possibilidades turísticas como deveríamos.
- no
plano mais geral do nosso instrumento diplomático, ele continua excelente mas,
como no século XIX, ele permanece um pouco “destacado” do País, no sentido de
alheio, em certa medida, aos nossos grandes problemas nacionais.
Sei
que vão me “crucificar” por dizer isto que acabo de dizer (o que aliás não
figura no livro, pelo menos não de forma explícita), mas esta é a percepção que
eu retiro do exame multissecular de uma diplomacia aparentemente excelente (e
ágil) para negociar acordos comerciais, mas por vezes menos atenta a uma série
de outras realidades próprias ao tecido social nacional. Se eu não corresse o
risco de parecer demagógico e totalmente à
côté, e se vocês me perguntassem para que, enfim, deveria servir a nossa
diplomacia econômica, tida como excelente, eu diria, simplesmente isto: ela
deveria servir para colocar crianças na escola, algo que continua a ser o nosso
grande problema (e drama) nacional. OK, admitamos que já colocamos 98% dessas
crianças na escola e que o problema não é mais este (mas ele ainda é,
certamente, o do desempenho escolar). Então eu diria que a diplomacia deveria
servir, antes de mais nada, para melhorarmos a qualidade de nosso sistema
educacional, que continua a ser extremamente deficiente. De que adianta ter uma
diplomacia avançada, mas um povo sem condições de competir na arena da economia
mundial?
Se ouso terminar por mais
uma reflexão crítica (que tampouco faz parte do livro, mas pode e deve integrar
este nosso diálogo aberto), caberia reconhecer que, em todo
o século XX e no começo do século XXI a diplomacia brasileira continua a
ostentar padrões de excelência pouco vistos não apenas para o conjunto dos
países em desenvolvimento (ou periféricos, como quer meu amigo Samuel Pinheiro
Guimarães) mas igualmente entre os próprios países desenvolvidos. Nao se trata
aqui de ufanismo gratuito, pois serviços diplomáticos europeus e de outros
países desenvolvidos não deixam de reconhecer a qualidade dos nossos
representantes. Basta consultar delegados em reuniões econômicas multilaterais,
ou em conferências políticas internacionais, para constatar isso: nosso
diplomata é preparado e se desempenha muito bem, mesmo a um contra dez, como
soe acontecer frequentemente. Ou seja, a diplomacia continua e exibir um padrão
de qualidade pouco visto em condições semelhantes ou similares, mas o Brasil
tambem avançou bastante no século XX. Hesitaria em dizer que se trata de um
país subdesenvolvido, ainda que do ponto de vista social ele continue a
ostentar indicadores pouco otimistas. Trata-se de uma economia industrializada,
diversificada, mas que ainda não atingiu autonomia tecnológica plena.
Continuamos igualmente a sofrer de uma evidente fragilidade financeira externa,
retrato da descontinuidade das políticas econômicas ao longo do século XX e
igualmente reflexo das carências educacionais e cívicas da população como um
todo.
Podemos
terminar com Mário de Andrade, aquele ideólogo da literatura nacional que
dizia, pouco depois do modernismo, que a sociologia é a arte de salvar
rapidamente o Brasil, zombando assim da minha profissão primeira e de minha
fonte de inspiração conceitual, mesmo nos meandros burocráticos de um telegrama
ou de um memorandum de serviço. Constatando a notável persistência de nossas
mazelas sociais, mas ainda assim a implementação de algum avanço nos planos
econômico e tecnológico – que um
sociólogo aprendiz chamaria simplesmente de modernização – Mário de Andrade
dizia de forma irônica que, “progredir, progredimos um tiquinho, que o
progresso também é uma fatalidade”.
Espero,
de minha parte, que saibamos escapar da fatalidade pouco sociológica de
dispormos de uma excelente diplomacia econômica, e portanto de uma
representação de altíssima qualidade no plano externo – o que muito nos
envaidece, com razão –, ao mesmo tempo em que ostentamos um quadro pouco
lisonjeiro, para não dizer dramático, no plano social interno. Eu me sentirei
sinceramente recompensado, numa visão de progressos “não fatalistas”, no dia em
que, ao examinar novamente o itinerário da nossa diplomacia no início do século
XXI – quando, por exemplo, completarmos dois séculos de exercício diplomático
contínuo a partir do território nacional, em 2008 – pudermos constatar que essa
diplomacia não precisará mais servir, ainda que hipoteticamente, para colocar
crianças na escola. Até lá, temos muito trabalho pela frente, e não apenas no
plano da diplomacia econômica, ainda que este esforço continuado fosse apenas
para manter e justificar nossa fama de excelentes. Mãos à obra, portanto, pois
tenho a impressão de que a história não absolverá nossa geração diplomática, se
daqui até lá não contribuirmos com todas as nossas forças para colocarmos o
País real em compasso com a suposta excelência de sua diplomacia.
Muito obrigado.
Paulo
Roberto de Almeida
Washington,
866: 14 fevereiro de 2002
(Revisão
28.03.02)
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