Um dos textos preparados para atender demandas de estudantes em RI e candidatos à carreira, e que permaneceu relativa ou totalmente inédito desde então (2002), postado agora por seu valor unicamente histórico, e residualmente atual.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de agosto de 2017
Profissionalização em relações internacionais:
exigências e possibilidades
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências
Sociais. Diplomata.
Trecho retirado das
“Leituras complementares”, do capítulo 11:
“A diplomacia econômica
brasileira no século XX: grandes linhas evolutivas”
do livro do autor:
Os primeiros
anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e
Terra, 2002), pp. 244-248
(…)
O estudo e a profissionalização em relações
internacionais no Brasil têm avançado muito no período recente, em grande
medida em função dos processos de globalização e de regionalização – tanto via
Mercosul, como mediante as discussões em torno da ALCA – experimentados pelo
país de forma mais intensa desde o início dos anos 1990. Pretendo abordar
rapidamente alguns aspectos desta questão, utilizando-me do recurso a algumas
perguntas que muitos estudantes nessa área também devem se fazer a si mesmos.
1) Quem é o
profissional de relações internacionais no Brasil?
Trata-se não apenas do graduado em relações
internacionais, uma vez que são ainda relativamente poucos os egressos dos
parcos cursos existentes nesse nível no Brasil, muito embora a oferta tenha
crescido exponencialmente nos últimos anos, em especial no setor universitário
privado e em faculdades isoladas. Esse profissional, típico destes tempos de
“globalização”, é mais suscetível de ter cursado uma vertente mais tradicional
de estudos — ciências sociais, direito, economia e áreas afins —, dirigindo-se
em seguida aos, estes sim inúmeros, cursos de pós-graduação ou mais geralmente
de especialização (pós-graduação
lato
sensu, mestrado profissionalizante) que multiplicaram-se no Brasil no
período recente.
Não há uma identificação formal desse profissional, uma vez que não há, nem se
afigura provável haver no futuro previsível, uma regulamentação dessa carreira
(já seria uma profissão?), a exemplo de outras tantas existentes no cenário
trabalhista brasileiro. Considero particularmente desnecessária e mesmo
indesejada tal regulação profissional, uma vez que seria uma maneira de manter
a adequada flexibilidade do mercado laboral e propiciar uma demanda adaptada a
um maior espectro de capacidades intelectuais e acadêmicas.
2) Como se faz
a formação do profissional em relações internacionais?
Em função da já citada “precocidade” da profissão,
ela é, compreensivelmente, a mais variada possível e não há, propriamente,
homogeneidade didática nos cursos oferecidos, sendo portanto “normal” a
qualidade muito diferenciada dos egressos desses cursos. Os resultados também
variam em função da orientação e do conteúdo substantivo dos cursos
disponíveis, cabendo notar uma orientação mais tradicionalmente acadêmica nas
faculdades públicas e preocupações mais pragmáticas nas particulares. Com
efeito, uma observação perfunctória revela uma maior ênfase em aspectos
conceituais e teóricos nos cursos mantidos pelas instituições tradicionais
(universidades públicas e católicas) e um cuidado bem mais acentuado com o lado
prático da profissão naqueles oferecidos pelas privadas (comércio exterior e
administração de negócios internacionais, por exemplo).
Essa dicotomia aparente, ainda largamente empírica
nesta fase de sedimentação dos cursos especializados, não apenas é saudável do
ponto de vista disciplinar, como desejável do ponto de vista das necessidades
do “mercado”, mas ela deveria ser bem mais evidente na formulação e apresentação
ao público interessado nesses cursos. A evolução institucional conduzirá
provavelmente a um núcleo comum de requisitos disciplinares básicos, mas a
diversidade programática e a “divisão do trabalho” entre “especializações
mercadológicas” devem continuar manifestando-se, de maneira a assegurar a
necessária flexibilidade na formação dos muitos profissionais que devem
continuar a sair dessas instituições.
3) Para que
serve um profissional de relações internacionais?
Ele pode ocupar-se de uma uma série crescente de
atividades públicas e privadas, todas elas situadas num “nicho” cada vez mais
amplo da vida da Nação: a interface entre o contexto interno e o cenário
externo, seja no plano dos negócios, seja no âmbito da administração pública,
seja ainda nas lides acadêmicas. Essa ponte entre o lado doméstico e as
vertentes regional e internacional exige um profissional que saiba não apenas
uma ou várias línguas estrangeiras, mas também comércio exterior, direito e
economia internacionais e o próprio funcionamento das muitas organizações
multilaterais e regionais de integração e de cooperação que permeiam a vida
contemporânea das nações.
Esse profissional é antes de mais nada um “técnico
especializado” a serviço de uma larga burocracia hierarquizada, se trabalhar
numa empresa privada ou na administração pública, ou será uma espécie de “livre
atirador” da globalização, se estiver lotado numa instituição universitária,
onde a liberdade de escolha temática e a maior latitude na utilização do tempo
são proverbiais. Em qualquer desses casos e mesmo nas especializações menos bem
delimitadas, esse profissional serve, antes de mais nada, para processar
informações, ou seja, para digerir massas de insumos “externos” e produzir
volumes de “soluções” possíveis aos problemas que são colocadas às suas
instituições respectivas de afiliação laboral. A qualidade do “produto final”
será tanto mais relevante quanto mais pertinente ao objeto de trabalho e ao
desafio colocado à instituição a que pertence esse profissional.
4) Quais são
os setores preferenciais de atividades desse profissional?
As possibilidades são praticamente infinitas com a
intensificação do processo de globalização, indo desde uma empresa de turismo a
um clube de futebol. Podemos, contudo, destacar três grandes áreas ou setores
de atuação para os especialistas em relações internacionais: (1)
governo, ou setor público de modo geral,
no qual se destaca em primeiro lugar a diplomacia, cujos requisitos de ingresso
são (a)normalmente elevados (ver o site do Itamaraty:
www.mre.gov.br/irbr), mas todos os
demais ministérios (com destaque para a nova profissão de “analista de comércio
exterior”, do atual MDIC) e agências públicas, bem como os governos estaduais e
municipais vêm fazendo crescente apelo a tais profissionais em suas respectivas
“assessorias internacionais”; (2)
academia,
onde as possibilidades efetivas são reconhecidamente mais limitadas, uma vez
que as vagas no corpo docente não se renovam todos os dias e tendo em vista o
fato de que nem todos os egressandos possuem qualidades ou vocação para a
pesquisa e o ensino; (3)
setor privado,
no qual as chances de trabalho se multiplicam todos os dias, levando-se em
conta a necessidade crescente de interagir com o cenário externo.
Nesta última área, as exigências de qualificação são
bem mais “prosaicas”, mas ao mesmo tempo mais rigorosas. Uma empresa privada,
normalmente, não necessita de longos textos sobre as virtudes e méritos
respectivos do neorealismo ou do institucionalismo na política mundial ou sobre
como funciona o Conselho de Segurança na ONU, mas, sim, precisa conhecer muito
bem as regras do GATT, o perfil aduaneiro da Comunidade Andina e os acordos já
feitos com o Mercosul, as obrigações contraídas internacionalmente pelo Brasil
em matéria de proteção ambiental ou a evolução da padronização de regulamentos
técnicos e da fixação de normas industriais “voluntárias”. Os desafios para as
instituições de ensino tornam-se, portanto, muito grandes, uma vez que os
professores deverão passar a conhecer não apenas Morgenthau ou Kehoane, mas
também, e principalmente, a OMC, a ISO, a UIT e todas as demais organizações
multilaterais e suas múltiplas convenções internacionais, sem mencionar as
características técnicas precisas do processo de integração regional no
Mercosul e suas dezenas de decisões e resoluções já adotadas desde 1991.
5) Que tipo de
trabalho desempenha esse profissional?
As tarefas específicas dependem obviamente do
entorno e do contexto laborais, mas em todas as áreas a atividade é geralmetne
dominada pelo processamento da informação. Não só o diplomata, mas também o
“middle manager” corporativo e o “técnico” de uma empresa globalizada têm de
processar informações (inputs) que chegam todos os dias, de maneira a transformar
essa “matéria bruta” externa em vantagens adaptativas para suas respectivas
instituições que “competem” no ambiente internacional (seja por um produto ou
serviço, seja por uma determinada disposição ou decisão em organização
internacional). O diplomata, ademais, representa seu país no exterior (em
embaixadas e missões) e negocia em caráter permanente ou de forma mais
irregular acordos bilaterais e convenções multilaterais. Os assessores
internacionais alertam para a interface e as limitações externas em suas
esferas respectivas de atuação, instituições públicas ou privadas.
Todos eles, diplomatas, empresários, assessores
participam, cada um a seu modo ou com distintos graus de independência (com subsídios ou mesmo determinações) do processo decisório em suas instituições
de afiliação, contribuindo assim para o sucesso relativo do produto ou serviço.
Sublinhei o termo independência uma
vez que o diplomata obedece ao seu chanceler e este, em última instância, a um
mandatário eleito, ao passo que o funcionário corporativo deve prestar contas a
seu gerente imediato e este ao Conselho de Administração ou pelo menos ao CEO
da empresa. O acadêmico é bem mais independente e desinvolto em suas
atividades, sendo sua principal função — para o que ele é pago — a de transmitir
conhecimentos ou a de realizar uma pesquisa, mas deve-se reconhecer que ele
participa bem menos de processos decisórios, menos relevantes nas instituições
de ensino. Ele o fará, eventualmente, e de forma indireta, se participar como
consultor de um determinado projeto contratado externamente, mas para isso
precisa apresentar qualificação numa determinada área especializada.
À exceção daquelas profissões regulamentadas e
reservadas a um círculo profissional de especialistas registrados — advogados
ou mesmo aquelas áreas indevidamente fechadas, como a de jornalista, por
exemplo —, a maior parte das demais atividades que podem ser desempenhadas por
um formando em ciências sociais, economia, história, comunicações ou ainda em
áreas “técnicas” como operador cambial ou no mercado de futuros também podem
ser ocupadas por um profissional em relações internacionais, sobretudo se ele
combinar essa “especialização” a uma graduação nas vertentes mais tradicionais
dos cursos universitários.
6) Quais os
requisitos que se espera de um profissional de relações internacionais?
Uma
trading,
por exemplo, ou seja, uma empresa de comércio exterior não se dispõe a
contratar um profissional apenas em virtude de um brilhante currículo
acadêmico, mesmo se ele for egresso de uma conceituada faculdade pública. Ela é
bem mais propensa a valorizar o conhecimento prático da nomenclatura aduaneira,
da regulamentação de comércio exterior, das normas técnicas em vigor nos
mercados estrangeiros. Muito embora uma boa cultura geral possa ser,
igualmente, um
surplus na avaliação
do currículo do candidato, a experiência em matéria de
regulações e
normas
aplicadas ao comércio internacional se afigura indispensável, assim como
conhecimentos elementares de economia e de estatística. Na outra ponta, uma boa
cultura humanista contribui em muito para uma boa performance do candidato nos
concursos do Instituo Rio Branco, o que não dispensa contudo um contato íntimo
com a atualidade mais imediata sobre as relações internacionais e a política externa
do Brasil, que se adquire com a leitura diária dos principais jornais e
periódicos de circulação nacional e de algumas revistas especializadas em
política internacional (ver, por exemplo, a
Revista
Brasileira de Política Internacional, disponível em
www.ibri-rbpi.org.br).
Em outros termos, as exigências feitas a um
profissional de relações internacionais são tão variadas quanto são as
possibilidades diversificadas de emprego hoje existentes num Brasil definitivamente
inserido nos circuitos da globalização produtiva e financeira. O campo oferece,
sem dúvida alguma, oportunidades crescentes aos egressandos dos cursos de
graduação e de especialização, mas parece inevitável que um processo de
“diluição” das e de “divisão do trabalho” entre as diferentes instituições
brasileiras dedicadas à formação e à complementação educacionais desses
profissionais deverá necessariamente ocorrer nos próximos anos, como forma de
adequar perfis pedagógicos aos requisitos de mercado. O “profissional da
globalização” é um ser multifacético, ao mesmo tempo um generalista e um perito
em aspectos específicos da crescente interdependência mundial. Longa vida ao
profissional em relações internacionais.
© Paulo Roberto de Almeida, 2001
Favor citar a fonte:
Paulo Roberto de Almeida:
Os primeiros
anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e
Terra, 2002), pp. 244-248
(Outros textos de
relações internacionais e de política externa do Brasil disponíveis na webpage
do autor:
www.pralmeida.org).
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