Presidencialismo vs. Parlamentarismo: notas
impressionistas
Paulo Roberto de Almeida
[Considerações
contextuais e históricas sobre regimes e sistemas de governo; esclarecimento
pessoal em caráter preliminar, sem qualquer base empírica]
Introdução
Qualquer debate sobre
sistemas de governo necessita começar por uma definição dos termos, tendo em
vista a complexidade do debate. Normalmente se considera haver uma oposição
entre os sistemas de governo e seus respectivos regimes políticos, embora na
realidade diversas combinações sejam possíveis. O presidencialismo, em sua
forma moderna, é relativamente recente na história da humanidade, datando, para
observar uma regra de quase consenso entre os historiadores políticos, da
fundação do regime republicano dos Estados Unidos da América, tendo sido
adotado quase unanimemente no resto do hemisfério (com a notável exceção do
Brasil, por razões dinásticas). Mas o parlamentarismo tampouco é muito mais
antigo, embora o princípio da representação seja mais velho que os regimes
parlamentaristas modernos, contemporâneos, grosso modo, dos regimes monárquicos
constitucionais. Uma regra simples de definição do presidencialismo é o de
colocar a chefia do executivo sob o comando de um político eleito diretamente
pelo povo, por regras distintas daquelas sob as quais se elege o parlamento, ao
passo que este último detém praticamente o comando dos dois poderes no regime
de gabinete parlamentarista, ou seja, de governo congressual. Adotaremos essa
distinção básica, sabendo embora que regras eleitorais e modos de escrutínio
também desempenham papeis relativamente importantes no que toca a forma de
funcionamento de um ou outro regime e sistema de governo.
A questão histórica
Regimes de representação
sempre existiram no caso de sociedades abertas, ou seja, não despóticas.
Regimes com mandatos executivos também, inclusive no caso de formações
despóticas, que podem ser equivalentes a monarquias absolutistas, ou ditaduras
carismáticas. Ou seja, o presidencialismo não é necessariamente republicano,
nem as repúblicas precisam ser todas presidencialistas, bem ao contrário. A
democracia ateniense combinava um pouco dos dois regimes e o próprio
Aristóteles refletia sobre as diferentes combinações de regimes, tomando
inclusive o cuidado de não considerar a democracia de massa, ou seja, aquela
derivada exclusivamente da vontade da maioria, como o regime mais adequado. Democracia
de massa é uma realidade moderna.
No caso do Brasil, por
exemplo, passamos por praticamente todos os regimes políticos e sistemas de
governo, a saber: monarquia absoluta, monarquia constitucional com poder
moderador (invenção de Benjamin Constant), monarquia parlamentarista com chefe
de gabinete, governo republicano provisório de corte jacobino, governo
presidencialista oligárquico, presidencialismo provisório seguido de
presidencialismo com eleições indiretas e representação classista, ditadura
republicana centralizadora, republicanismo federalista com eleições diretas
para os executivos e representação proporcional nas assembleias,
parlamentarismo improvisado para superar crise política, ditadura republicana
com limitações de voto e de representação, retorno a um sistema republicano
descentralizado, mas preservando deformações na proporcionalidade da
representação e espírito parlamentar das atribuições legislativas, tentação
parlamentar a cada crise política ou desarmonia entre os poderes; poder
moderador informal exercido pelas forças armadas durante boa parte do regime
republicano, substituído por forte preeminência do Judiciário e do Ministério Público
na fase contemporânea. Ou seja, o Brasil sempre foi uma espécie de laboratório
de arranjos político-eleitorais-partidários os mais diversos, sem que necessariamente
eles observem coerência entre si, ou que esta exista entre os regimes políticos
e os sistemas de governo sucessivos.
No caso dos Estados
Unidos, o primeiro e mais estável sistema presidencialista da história, cabe
registrar que a separação e o equilíbrio de poderes é relativamente
consolidado, mas com gradações diferentes segundo as épocas. O regime sempre
foi bastante descentralizado, com base em poderes locais e um sistema de
democracia de base, o chamado grass-roots, mas o governo era basicamente
congressual, ou seja, a maioria das atribuições de formulação de políticas
tinham de passar pelo Congresso, embora o chefe do executivo as aplicasse
depois. Depois da guerra civil, e dos dois grandes engajamentos bélicos
externos, e também durante os embates da Guerra Fria, o presidente foi
adquirindo (ou usurpando) mais poderes, o que também não deixa de gerar
mini-crises entre os poderes (eventualmente resolvidas pelo recurso à punição
do impeachment). O respeito ao Estado de direito, à Constituição, é um valor em
si.
Na experiência europeia,
depois da dissolução do império romano do Ocidente, o caos mais absoluto
reinou, com regimes os mais diversos em pequenos e grandes Estados, de caráter
republicano oligárquico, de absolutismo monárquico fragmentado, de monarquia
absoluta centralizadora, de ampliação das franquias eleitorais no quadro de um
parlamentarismo evolutivo, com diferentes sistemas eleitorais, chegando a
sistemas parlamentares consolidados no quadro de repúblicas
“presidencialistas”, de monarquias constitucionais (inclusive não unitárias, ou
seja federalistas) com parlamentarismo estabilizado, o que tampouco impediu a
tentação bonapartista ou cesarista, quando não ditaduras despóticas.
Em resumo, as
combinações as mais diversas são encontradas nos regimes presidencialistas ou
parlamentaristas oficiais, com sistemas eleitorais e partidários que respondem
pela maior ou menor estabilidade desses regimes, o que tampouco impede
tentações populistas ocasionais, o que pode representar a preeminência do
executivo em determinadas circunstâncias. O que é o Brasil, também em resumo?
Um sistema dito presidencialista, por vezes temperado por um parlamento
atuante, mas na maior parte do tempo um regime quase imperial na preeminência
que o executivo exerce sobre o poder legislativo, este fragmentado por um
sistema partidário permissivo e uma legislação eleitoral que redundou num
desequilíbrio profundo da proporcionalidade.
Parlamentarismo vs presidencialismo: o que seria
melhor para o Brasil?
Não existe uma resposta
simples a esta questão, pois regimes políticos e sistemas de governo não
existem no vácuo, ou são determinados idealmente, e sim são o resultado de
forças sociais e movimentos políticos que evoluem historicamente e podem acabar
sendo inclusive estáveis na sua disfuncionalidade. O Brasil, por exemplo,
convive com uma tensão constante e com conflitos potenciais entre o poder do
chefe de Estado e de governo que resulta de uma maioria presidencial eleita
diretamente e o poder do parlamento, que padece de sério desequilíbrio de
proporcionalidade, mas cuja fragmentação dificulta a formação de uma maioria
legislativa estável. Essas diferenças de maiorias – direta ou representativa –
constituem a fonte de tensões políticas e de crises de estabilidade (ou de
instabilidade) que são recorrentes em nossa história.
A trajetória do nosso
presidencialismo, relativamente errática, também depende da personalidade do
chefe de governo e de Estado eleito diretamente pelo povo. Não surpreende,
assim, que depois de uma relativa estabilidade sob o regime parlamentar
monárquico (mas com frequentes intervenções do poder moderador para mudar as
chefias de gabinete), passamos por não menos de sete constituições
republicanas, com intervenções militares no quadro de crises políticas graves a
cada vez, e com uma crise política atual na qual avulta um papel “moderador” do
judiciário, mas também com um inédito ativismo de um “quarto poder”, o
ministério público, um novo ator político.
Como o presidencialismo
é fonte de tensões constantes entre os atores políticos e de conflitos com o
poder legislativo, um critério de racionalidade recomendaria a adoção de um
regime de tipo parlamentar, com pequena fragmentação partidária e um sistema eleitoral
que reduzisse ao mínimo as assimetrias de proporcionalidade entre eleitorado e
representação parlamentar. Esse tipo de regime permite acomodar pequenas ou
grandes mudanças nos humores do eleitorado – e na eficácia maior ou menor das
políticas públicas colocadas em vigor pelo executivo – com um mínimo de
desgaste sistêmico, pois que contornadas crises e tensões com um simples voto
de desconfiança ou a dissolução do parlamento pelo “poder moderador” de um
presidente dotado de poucos poderes executivos, simplesmente pela mudança da
chefia (e da maioria) do gabinete de base parlamentar.
É factível a adoção
desse “tipo ideal” de governo no caso do Brasil? Estimo ser muito difícil a
passagem a um regime desse tipo, pois teriam de ocorrer mudanças simultâneas
nas legislações eleitoral e partidária sem que se constate a existência de
qualquer tipo de consenso entre forças políticas dispersas num grande
território e numa população também considerável caracterizados por grandes
diferenças regionais e muitas desigualdades sociais (ou seja, assimetrias de
situação econômica e de renda). Vícios herdados de velhas tradições históricas
(o patrimonialismo, por exemplo) e de deformações políticas mais recentes (a
hipertrofia do estatismo, o distanciamento do corpo político da base do
eleitorado, a extensão e a profundidade do corporatismo, etc.), ademais da
promiscuidade quase genética entre poder econômico e poder político tornam
muito difícil o estabelecimento de um sistema político representativo mais
racional, sujeito a regras de responsabilização (accountability), ou mais simplesmente a observância de regras
impessoais, o que é vulgarmente conhecido como rule of Law.
O presidente tomou o
lugar do antigo imperador, e reina quase absoluto ao dispor, na verdade, de mais
poder do que o velho sistema oligárquico-monárquico, este temperado justamente
pelo funcionamento do regime de gabinetes parlamentares que seriam,
teoricamente, formados a partir de maiorias eleitorais (mas com escrutínios que
podiam ser perfeitamente fraudados pelo velho sistema do coronelismo).
Atualmente, o coronelismo tornou-se eletrônico, e pode ser manipulado
diretamente a partir do poder executivo, que dispõe de responsabilidade e de
recursos de tal monta que lhe permite submeter (ou comprar, literalmente) o
parlamento. Este também exerce certo poder de chantagem sobre o executivo, o
que se agrega à tensão natural entre as fontes diferenciadas de maioria
política dos dois poderes.
A adoção de um regime
parlamentarista mais ou menos funcional passaria pela adoção de um sistema
eleitoral distrital, a diminuição da fragmentação partidária – que não precisa
necessariamente passar pela adoção de cláusulas de barreira, podendo ser mais
rapidamente obtido pela extinção completa de qualquer recurso coletivo para o
funcionamento dos partidos e para a realização de campanhas eleitorais – e a
contenção do patrimonialismo, que tampouco precisaria passar por maiores
poderes de fiscalização ao Estado, podendo ser obtido pela diminuição drástica
de responsabilidade por serviços coletivos atribuídos ao Estado, ou seja,
diminuindo drasticamente a intermediação estatal no provimento da maior parte
de serviços ditos coletivos (que podem ser obtidos via diferentes esquemas de
mercado).
Esta mudança
significativa do regime de governo e do sistema político no Brasil depende, é
claro, da pressão da sociedade sobre o corpo legislativo, desde que exista
certo consenso na sociedade em favor dessas medidas saneadoras de nosso sistema
político. Dadas a atomização congressual atualmente existente – em função
justamente do acúmulo de distorções ao longo do tempo – e as desigualdades
regionais persistentes é difícil que tal consenso possa emergir rapidamente,
pois mudanças de mentalidades são lentas e graduais. O corpo político – que se
tornou relativamente independente da sociedade, vivendo em si e para si, numa
redoma autista que controla a maior parte das instituições – não parece
propenso a adotar mecanismos menos patrimonialistas, menos prebendalistas,
nepotistas e fisiológicos de exercício do poder, preferindo continuar com as
distorções atuais, o que lhe permite preservar comportamentos rentistas e
extratores que garante o acumular de riqueza e de prestígio social de maneira
quase indefinida.
Existe solução para um
impasse que prolonga a anomia do sistema político e que preserva a maior parte
da disfuncionalidade sistêmica já examinada neste texto? Não a curto prazo,
pois a adoção de um sistema de governança mais racional depende de uma maior educação
política por parte do eleitorado, ou simplesmente de uma melhor qualidade da
educação tout court da população. A fração
da cidadania consciente deve, portanto, continuar com um trabalho didático de educação
e de convencimento da população de que muita coisa precisa mudar para que o
Brasil seja um país “normal” do ponto de vista político, menos estatizante e
mais livre economicamente. Oxalá...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de julho de 2017
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