A gente vai redescobrindo coisas "do arco da velha".
Muitas são descartáveis, por conjunturais ou momentâneas, mas outras são permanentes, como esta aqui, por exemplo, de dez anos atrás:
A
arte de ser contrarianista
Paulo
Roberto de Almeida
Já me defini, em algum trabalho anterior, como um
“contrarianista”, isto é, alguém que procura ver as “coisas da vida” com um
olhar cético, sempre interrogando os fundamentos e as razões de por quê as
coisas são daquele jeito e não de outro, ou de como elas poderiam ser ainda
melhores do que são, aparentemente a um menor custo para a sociedade ou
atendendo a critérios superiores de racionalidade e de instrumentalidade. Ou
seja, em linguagem da economia política, o contrarianista é um indivíduo que
está sempre procurando aumentar as externalidades positivas e diminuir as
negativas, sempre efetuando cálculos de custo-oportunidade do capital
empregado, sobre o retorno mais eficiente possível, adequando os meios
disponíveis ao princípio da escassez.
O contrarianista não é, a despeito do que muitos possam
pensar, um ser que sempre é “do contra”, um caráter negativo ou pessimista. Ao
contrário, trata-se, para ele, de buscar otimizar os recursos existentes,
indagando continuamente como fazer melhor, eventualmente mais barato, com os
parcos meios existentes. Esta é a minha concepção do contrarianismo, uma arte
difícil de ser exercitada, mais difícil ainda de ser compreendida. Eu a
definiria, segundo uma lição que aprendi ainda na adolescência, como um
exercício de “ceticismo sadio”, ou seja, o espírito crítico que não se compraz,
simplesmente, em negar as “coisas” como elas são, mas que se esforça, em toda
boa vontade, para que elas sejam ainda melhores do que são, questionando sua
forma de ser atual e propondo uma organização que possa ser ainda mais
funcional do que a existente.
Por isso mesmo, pretendo, neste curto ensaio, tecer
algumas considerações sobre a arte de ser contrarianista, o que, confesso, não
é fácil. Sempre nos arriscamos a ser incompreendidos, em aparecer como
puramente negativos ou derrotistas, quando o que se busca, na verdade, é
reduzir o custo das soluções “humanamente produzidas” (elas sempre são falhas).
Talvez, a melhor forma de se demonstrar, na prática, a arte do contrarianismo,
seria elaborar uma série de manuais de sentido contrário, isto é, em lugar dos How to do something, escrever sobre
“como não fazer” determinadas coisas. Como eu exercito muito freqüentemente a
resenha de livros, creio que não seria difícil oferecer algumas observações
sobre essa prática corriqueira da vida cotidiana. Aliás, já o fiz, num dos
primeiros posts de meu blog “Book reviews” dedicado aos livros, post nº 2, “A
arte da resenha” (link: http://praresenhas.blogspot.com/2006/01/02-arte-da-resenha.html).
Existem, de fato, muitos manuais e guias sobre a arte ou
a maneira de se fazer isto ou aquilo, sendo os mais conhecidos, justamente,
aqueles americanos que seguem as regras usuais do gênero “how to do this or
that...”. Aperfeiçoando o gênero surgiram os “beginners’ guide to...” e os
“idiot’s guide for...”. Antes dessa era de proliferação infernal de guias para
todos os idiotas existentes, eu cheguei a consultar, quando estava elaborando a
minha tese de doutoramento, um guia de um desses americanos do self-help, que se chamava, exatamente, How to complete, and survive... a doctoral
dissertation: foi útil, confesso, ao menos em diminuir o stress com os ciclos ascendentes
(eufóricos) e descendentes (que podem ser depressivos, para alguns candidatos)
do longo périplo na direção do final da tese.
Talvez, um dia, eu faça um manual sobre “Como não exercer a diplomacia”,
para o que eu mesmo teria muito material primário – autoproduzido – a ser
processado e apresentado a eventuais candidatos e outros incautos da profissão.
Esperando que este dia chegue, vejamos quais poderiam
ser algumas regras simples do contrarianista profissional, aquele que leva esse
método a sério, considera o exercício válido do ponto de vista das best practices e pretende aperfeiçoar os
procedimentos e instrumentos para elevar essa prática ao estado de “arte”, se
ela já não o é. Uma simples listagem, a ser detalhada em trabalhos posteriores,
poderia compreender os seguintes pontos:
1) Questione as origens:
Toda vez que for apresentado a um novo problema, ou uma
questão não corriqueira, veja se consegue detectar as origens daquele problema,
por que ele surgiu dessa forma neste momento e neste local. Saber a etiologia
de algum fenômeno, assim como saber a etimologia das palavras, sempre ajuda a
detectar as razões de sua irrupção num dado contexto em que você é chamado a
intervir. As origens e fundamentos de um processo qualquer podem contribuir
para determinar seu possível desenvolvimento e eventual itinerário. É assim que
procedem os epidemiologistas e, creio também, os linguistas, sempre preocupados
em detectar os mecanismos fundamentais de criação de um fenômeno ou processo.
Portanto, não tenha medo em perguntar: “de onde surgiu isso?; como é que isso
veio parar aqui?; qual é a origem desse treco?”. Pode ajudar um bocado.
2) Determine se o que está
sendo apresentado é realmente a essência da coisa:
Muitas vezes somos enganados pelas aparências, como já
dizia um velho humorista. As coisas podem ter mais de uma dimensão – usualmente
três, mas alguns apostam em dimensões “desconhecidas” – ou em todo caso todos
os lados e facetas daquele problema podem não estar imediatamente visíveis ou
serem perceptíveis da posição na qual você se encontra. Por isso, não hesite em
fazer como Aristóteles e ir buscar a essência da coisa, sua natureza real. Na
maior parte das vezes não é preciso bisturi ou serrote, apens um pouco de
reflexão ou de exame mais acurado do que lhe é apresentado. Antes de qualquer
pronunciamento, vire a coisa pelo avesso...
3) Pergunte por que aqui e
agora?:
As coisas não surgem do nada, está claro, e, justamente,
nos assuntos da alta política, da economia ou da diplomacia, elas deitam raízes
lá atrás, em movimentos tectônicos que talvez tenham passado despercebidos aos
contemporâneos, mas que já se moviam na direção que vieram a assumir na
atualidade. O fato de estarem sendo colocadas na agenda neste momento significa
que seu movimento natural as trouxe à superfície ou que alguém tenha interesse
em que essas coisas sejam agora tramitadas e eventualmente resolvidas. Examine
o contexto da “aparição”, determine as condições sob as quais elas estão sendo
apresentadas e prepare-se para interrogar, você mesmo, as coisas surgidas na
agenda. Essas medidas de caução são sempre importantes para evitar alguma
reação precipitada ou incontornável, que possa comprometer seus próximos passos
no tratamento dessas coisas.
4) Examine e avalie,
preventivamente, todas as opções disponíveis:
Nunca existe uma única solução para qualquer problema
humanamente concebível. Os problemas podem ser encaminhados por diferentes
vias, seja quanto ao método (procedimentos), seja quanto à sua substância (a
matéria em questão). As vias alternativas apresentam diferentes custos e
produzem efeitos muito diversos, imediatos ou delongados. Sempre existe aquilo
que os economistas chamam de trade-offs,
isto é, uma maneira (supostamente racional) de se obter algo valioso cedendo
alguma outra coisa, alegadamente menos importante para nós. O contrarianista
pergunta, sempre, se a solução apresentada é a de menor custo possível,
naquelas circunstâncias, e quais seriam os retornos esperados ou presumíveis da
via adotada. Os custos devem sempre ser pesados em face dos ganhos esperados,
ou de um emprego alternativo dos recursos disponíveis.
Por isso, é sempre recomendável fazer simulações,
avaliar custos e oportunidades, enfim proceder de modo utilitário – como os
velhos filósofos ingleses ensinaram –, afastando nossos preconceitos e as idées reçues. O instinto pode até ser
bom conselheiro, mas isso só vale para pessoas anormalmente sapientes ou
dotadas de muita experiência de vida. Os simples mortais, como a maioria de
nós, precisam se basear em algum estudo acurado da situação para poder
determinar, justamente, se a solução proposta deliver the best available outcome, ou retorno. Isso só pode ser
determinado após exame do problema e determinação do menor sacrifício a ser
concedido, um pouco como no jogo de xadrez (aliás, recomendável para
contrarianistas de todo o gênero).
5) Uma vez determinada a
“solução”, engaje-se no resultado, mas criticamente:
No curso da vida, como diria Benjamin Franklin, só
existem duas coisas inevitáveis: a morte e os impostos. Mas, mesmo estes podem
ser modificados, ainda que não, helàs,
evitados. Por isso, em matérias humanas, cabe se engajar em todo e qualquer
empreendimento com alguma porta de saída, ou via alternativa. Determinada the best option for this problem,
caberia engajar-se resolutamente na sua consecução, e seguir atentamente o
desenvolvimento dos procedimentos. As muitas variáveis que interferem num
determinado problema nem sempre são absolutamente determinadas pelos parceiros
no jogo, podendo haver interferências externas, circunstâncias fortuitas e
eventos imprevisíveis que alteram o curso ou o resultado final. Por isso mesmo,
se deve acompanhar qualquer problema com olho crítico, vigiando cada etapa do
processo, para ver se cabe ainda manter as premissas originais e o investimento
efetuado naquela solução.
6) Reconsidere todo o
processo e pratique um pouco de história virtual:
Todos já leram, ou pelo menos já ouviram falar, de hipóteses
não realizadas no curso real da história mas que teriam sido possíveis em
outras circunstâncias: “o que teria acontecido se, em Waterloo, Napoleão não
tivesse sido derrotado?”; e se Churchill isto e Hitler aquilo?, ou seja, o imponderável
resumido na pergunta clássica da história virtual “What if?”. O contrarianista deve ser, antes de mais nada, um
praticante da história virtual e considerar todos os outcomes possíveis num determinado processo, pois eles poderiam ter
efetivamente ter acontecido.
Minha pergunta básica, para um exercício espiritual e
prático de todos os contrarianistas aprendizes, para os candidatos a “céticos
sadios”, seria esta: “por que o Brasil não é um país desenvolvido?” Respostas
tentativas para o meu e-mail, por favor...
Brasília,
1717: 3 de fevereiro 2007, 4 p.; revisto em 6 de abril de 2007.
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