Um texto feito no final de 2016 para atender a dois convites de palestras de entidades acadêmicas, uma privada, onde ele deve ter sido bem recebido, e outra pública, onde deve ter causado espécie, senão horror. Eu sempre digo o que penso, independentemente do público e das circunstâncias, e não me importa chocar os presentes, que de vez em quando precisam, realmente, acordar para certas realidades, depois de 13,5 anos de "lulopetismo diplomático", que encantou muita gente no ambiente acadêmico, enganada pela propaganda mistificadora dos companheiros.
3061. “O Itamaraty e a nova política externa brasileira”, Brasília, 19 novembro 2016, 18 p. Revisto em 26/11/2016. Texto elaborado para palestras em geral, especialmente em circuito
acadêmico. Circulado preventivamente para encontros com professores e alunos de duas entidades acadêmicas de SP.
Uma versão resumida, em inglês, foi apresentada em outro forum:
3062. “Itamaraty and the new Brazilian Foreign Policy”, São
Paulo, 1 dezembro 2016, 7 p. Palestra na conferência “Geopolitics of the Global
South: changing patterns of development”, realizada na FEA-USP, em cooperação
com a Universidade de Pec, da Hungria.
O Itamaraty e a nova política externa brasileira
Paulo Roberto de Almeida
[texto preliminar
para debate; em revisão; não citar]
Vamos partir do título, “O
Itamaraty e a nova política externa brasileira”, pois é por ele que se deve
começar a discutir os argumentos substantivos aqui expostos.
O Itamaraty todo mundo
sabe o que é, ou quem é: trata-se da assim chamada Casa de Rio Branco, de tão
históricas tradições. Cabe registrar, contudo, antes de qualquer outra
consideração, que o Itamaraty, enquanto corpo de burocratas federais dedicados
às relações exteriores do país — ou mais exatamente, uma instituição que se
ocupa da diplomacia operacional, o que é mera técnica —, não é o dono da, ou sequer
o responsável principal pela política externa, seja ela nova ou velha. O
Itamaraty apenas executa a política externa que é determinada pelo chefe de
Estado ou de governo, o dirigente político que ocupa funções executivas em
função das forças políticas que se alternam no poder, forças que emergem a
partir das opções eleitorais do corpo eletivo, ou seja, das preferências
políticas expressas regularmente nas urnas. Cabe ainda ressaltar que a política
externa é, justamente, um dos temas menos debatidos nas campanhas eleitorais,
inclusive e infelizmente nas disputas presidenciais.
Falar, por sua vez, de uma
nova política externa implica em que
existe, isto é, que existiu, uma velha,
ou uma antiga política externa, em todo caso anterior, e que as duas se
distinguem entre si. Existem casos de perfeita continuidade entre as políticas
exteriores de dois governos diferentes, mas sucessivos, assim como existem
casos de certa ruptura entre os padrões de uma e de outra. É verdade que a
atual política externa brasileira se distingue, em várias de suas vertentes, da
anterior, mas caberia explicar exatamente porque, como, e em quais elementos
constitutivos a nova se distingue da velha, isto é, da precedente, como se
tornou evidente com a mudança na chefia do executivo, no meio de um mandato de governo,
entre maio e agosto deste ano. Creio que explicado o título, podemos ir aos pormenores
desses dois conceitos interligados.
1. O
Itamaraty: formulador ou mero executor da política externa?
O Itamaraty é,
provavelmente, em escala comparativa em nossa região, ou até mesmo
mundialmente, uma das instituições nacionais mais bem avaliadas do ponto de
vista de suas qualidades intrínsecas, de sua organização, da preparação de seu
pessoal, talvez até mais positivamente do que ele mereceria numa aferição mais
realista, ou mais rigorosa, a partir de critérios baseados em resultados
efetivos. Mas, admitamos que o Itamaraty seja de fato excelente, aparecendo,
pelo menos, como dotado de um bom desempenho, no confronto com outras agências
públicas nacionais, e até com instituições similares de outros países. Essas
qualidades, supostas ou reais, explicam, em grande medida, a capacidade de
projeção do Brasil no plano internacional, que é relativamente importante, até
mais do que o permitiriam as dotações do país em termos de PIB per capita, de participação
nos grandes fluxos internacionais de comércio, de capacidade de produzir
poupança para fins de finanças e de investimentos diretos, de gerar tecnologia
e outros ativos, ou a sua contribuição para os fluxos e estoques mundiais de
conhecimento, de descobertas científicas ou de inovações produtivas.
O Brasil, como se sabe,
registra uma grande diferença entre volumes brutos e indicadores ponderados per
capita. Esse descompasso entre o seu tamanho nominal e a sua importância real
na fixação das normas e linhas definidoras da ordem internacional acompanha o
Brasil desde os primórdios de sua vida independente, há quase 200 anos, quando
pretendíamos nos inserir entre os grandes, sem realmente possuir as condições
para exercer poder, que é a capacidade de ditar as normas pelas quais, em nosso
mundo ainda westfaliano, devem ser pautadas as relações entre os Estados. Ainda
hoje, apesar de certa acumulação de ativos, o Brasil continua a experimentar tal
descompasso entre ser e poder. A despeito de imensos recursos naturais, de uma
grande população em um extenso território, e de um valor agregado anual que se
situa entre os dez primeiros do mundo, os demais indicadores nacionais, quando
aferidos de maneira ponderada, nos remetem a posições e classificações bem
menos exitosas, sob qualquer critério que se selecione: PIB per capita, índice
de desenvolvimento humano, volume do comércio per capita e sua fração nos
intercâmbios globais, critérios educacionais ou de presença nas estatísticas de
patentes ou em outras frentes da inovação produtiva (e competitiva).
Em outros termos, a
nossa projeção internacional, graças em grande medida ao Itamaraty, foi bem
maior do que o permitiriam as capacitações nacionais reais, o que pode ser
considerado um critério de desempenho relativamente satisfatório em escala
mundial, sob qualquer critério que se considere. Numa linguagem figurada,
poder-se-ia dizer que o nosso PIB diplomático é superior ao PIB material, ou
econômico, ainda que ele possa ser inferior ao PIB futebolístico, ou talvez ao
PIB musical (pelo menos o da bossa nova) e o dos manequins da moda
internacional, que são os grandes produtos de exportação do Brasil. Nem
futebol, nem música, nem modelos da moda devem seu valor agregado ao Itamaraty,
ou ao próprio Brasil, pois resultam de valores individuais que são próprios aos
personagens que os encarnam. Mas talvez possa ser dito que a grande capacidade
de projeção internacional do Brasil é também devida aos valores individuais dos
diplomatas, burocratas em sua maior parte, embora alguns poucos tenham exercido
funções diplomáticas sem necessariamente pertencer à carreira.
Este é, portanto, o
Itamaraty, um corpo de funcionários dedicados, selecionados rigorosamente,
capacitados continuamente ao longo da carreira, e aparentemente bem dotados das
qualidades requeridas para projetar o Brasil externamente, através de suas
habilidades diplomáticas, independentemente do conteúdo da política externa que
são chamados a defender ou representar na prática corrente de suas atividades
profissionais. Muito bem quanto a isso: mas e quanto à natureza da política
externa que os diplomatas são chamados a implementar em nome do país? Esta é a
segunda vertente desta minha exposição que leva o qualificativo de nova, por
oposição a uma antiga. Vamos a ela.
2. A
política externa e a diplomacia necessitam de títulos ou de rótulos?
A nova política externa, por suposição lógica, é a atual e corrente,
uma vez que, por força da crise política vivida pelo Brasil no último ano e
meio – e que de certa forma ainda se prolonga numa difícil fase de transição
para um futuro político e econômico que permanece largamente indefinido –,
acabamos de encerrar uma velha
política externa, a dos companheiros, ou seja, a dos governos lulopetistas que
se sucederam no poder, pela via eleitoral e de modo exitoso (até há pouco),
entre 2003 e maio de 2016. Essa nova política externa não possui, ainda, se
algum dia tiver, algum título unificador, ou slogan atraente, como várias
anteriores. Mas esse tipo de rotulação não é de fato necessário para o
desempenho satisfatório de uma determinada (ou de qualquer uma) diplomacia. Diplomacias
efetivas devem poder se sustentar por si mesmas, sem qualquer necessidade de apoio
em muletas terminológicas.
Existem muitas pessoas, dirigentes
seguros de si, que gostam de bandeiras, de títulos, de caracterizações das
políticas gerais ou setoriais, que então passam a ser implementadas sob o seu
comando. Já tivemos o “50 anos em 5”, dos tempos de Kubitschek, depois um tal
de “Integrar para não Entregar” da era militar, o mesmo que também exibiu,
durante certo tempo, um tal de “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. Sob os companheiros
tivemos um inexplicável “Brasil: um país de todos”, como se o país não pertencesse
especialmente a alguns deles, os companheiros mais iguais, hoje hóspedes de uma
tal de República de Curitiba, lugar aprazível, que poderá no futuro ter até uma
política externa. Mais recentemente tivemos até mesmo uma espécie de
redundância em torno de um país sem miséria, o que nos transformaria,
automaticamente ao que parece, em um país rico. Ainda estamos esperando o
prometido país rico, aliás em meio à maior recessão de nossa história, em todos
os tempos...
No que concerne não
políticas gerais, mas especificamente a política externa, já conviveu com
vários e diversos títulos, ou slogans. Já tivemos, por exemplo, em nossa trajetória
diplomática, a Política Externa Independente, como se as políticas anteriores fossem,
por indução indireta, dependentes ou alinhadas – embora isso pudesse de fato ocorrer
–, o que não impede que a famosa PEI tenha deixado saudades em mais de uma
geração de diplomatas, tanto que vários deles tentaram revivê-la em outras
épocas e circunstâncias. Logo em seguida, porém, após o golpe de 1964, ela foi
substituída por uma diplomacia de fato alinhada, como uma espécie de pagamento
pelo apoio dado pelos Estados Unidos ao golpe militar, e que teve um embaixador
(de origem militar) conhecido pela sua infeliz adaptação de uma famosa frase criada
originalmente no contexto da General Motors: “o que é bom para os Estados
Unidos, é bom para o Brasil”. Mas esses arroubos de sabujice foram raros em
nossa diplomacia.
Passado esse curto (1964-67)
intervalo alinhado, tivemos a chamada diplomacia da “prosperidade” (1967-74),
mais adiante a diplomacia do “pragmatismo responsável” (1974-79), seguida pelo
“ecumenismo” do último governo militar (1979-85). A despeito de que nesse
período fossem mais comuns os rótulos das diferentes diplomacias que se
sucederam ao longo do regime militar, essas diplomacias foram, de fato, bastante
diferentes entre si, contrariamente a avaliações de certos analistas que
pretendem enfeixar todos os governos militares sob padrões similares de comportamento
ou de postura externa. As distinções foram reais e importantes, embora não seja
o caso de analisar aqui cada uma delas em detalhe, para justamente ressaltar as
diferenças.
Não se pode esquecer, em
todo caso, que, em outubro de 1977, o então ministro do Exército, general
Silvio Frota, tentou derrubar o presidente, general Ernesto Geisel, sob a
alegação de que este estava conduzindo, com seu chanceler Azeredo da Silveira,
uma política externa considerada esquerdista. Algumas “evidências” foram
trazidas em apoio a essa acusação: estabelecimento de relações diplomáticas com
a China comunista, reconhecimento do governo instalado em Luanda – o do partido
MPLA, de nítidas vinculações com a União Soviética, o que colocou o Brasil, surpreendentemente,
como aliado dos cubanos, na luta contra os invasores sul-africanos –, postura
favorável a considerar o sionismo uma forma de racismo, em resolução votada na
ONU, além de diversos outros episódios de uma diplomacia bastante avançada para
a época. No seu seguimento, o último governo do regime militar preferiu deixar
de lado o pragmatismo e adotar a caracterização de “universalismo ecumênico”. Aparentemente,
portanto, de um ponto de vista teórico, quanto menos legítimo é um governo,
mais necessidade ele sente de arranjar um título bonito para suas políticas,
inclusive a externa. Quem sabe não surge, no futuro, uma tese ou uma dissertação
acadêmica sobre essa necessidade psicológica de se esconder atrás de um rótulo atraente
ou racionalizador?
O primeiro chanceler da
redemocratização, escolhido pessoalmente pelo presidente eleito indiretamente,
Tancredo Neves, o banqueiro Olavo Setúbal, prometia uma “diplomacia de
resultados”, mas ele ficou pouco tempo no cargo e sua diplomacia não foi
seguida de uma avaliação independente quanto aos resultados efetivos. Já o primeiro
presidente eleito diretamente depois do período militar, pretendia fazer o
Brasil deixar de ser o primeiro entre os países subdesenvolvidos para converter-se
no último dos desenvolvidos e, embora tenha contribuído para mudanças
significativas na política externa, não pretendeu, nem os seus chanceleres o
fizeram, inventar qualquer título apelativo para a sua política externa: ela
teve, por sinal, dois chanceleres, ambos de fora da carreira, e três
secretários-gerais do Itamaraty. Cabe aliás relembrar que, de maneira inédita
nos regimes políticos brasileiros, tanto monárquico, quanto republicano, o
período militar foi o único que atribuiu sistematicamente o comando do
Itamaraty aos próprios diplomatas, provavelmente em função do respeito
recíproco que mantinham as duas corporações mais antigas do Estado, a dos
soldados e a dos diplomatas.
Os oito anos dos dois
mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cujo titular já
tinha sido chanceler de um governo de transição (1992-93), tampouco tiveram um
slogan nominativo para a sua política externa, mas o jornalismo e os analistas
do setor a designaram como sendo uma “diplomacia presidencial”, em vista das
inúmeras viagens e do envolvimento pessoal do presidente em sua implementação. Os
opositores do governo e de sua diplomacia – adivinhem quem eles eram? – tentaram
agregar outros epítetos, menos neutros, e mais politicamente marcados, a essa
diplomacia basicamente profissional (uma vez que produzida essencialmente por
diplomatas, a partir do Itamaraty e do próprio Palácio do Planalto, onde também
trabalhavam diplomatas profissionais em sua assessoria internacional). Essa
diplomacia, bastante exitosa, a despeito das turbulências financeiras do
período, foi, provavelmente, uma das mais identificadas com o Itamaraty em
todos os tempos (ou seja, até mais do que no período militar), já que ela era
conduzida essencialmente a partir de sugestões e recomendações feitas pelos
próprios diplomatas, com grande grau de adesão do presidente às linhas principais
da política externa que vinha sendo operada pelos diplomatas desde a era
militar.
Cabe aqui uma pequena
digressão a esse respeito. Por paradoxal que possa parecer, o Itamaraty foi
bastante livre, em suas ações e decisões, durante o regime militar, com as
exceções esperadas que correspondiam a tabus e paranoias dos militares: Cuba, União
Soviética, regimes esquerdistas na região, movimento comunista em geral (mas
com aquelas adaptações que se conhecem na diplomacia Geisel-Silveirinha). De
certa forma, o Itamaraty foi mais livre durante o regime militar do que sob o
reinado recente dos companheiros, que mantinham o Itamaraty sob estreita
vigilância, chegando ao ponto de um documento recente do partido companheiro –
já expelido do poder – ter lamentado que o partido não tinha sido
suficientemente atento quanto aos opositores “internos”, mais ativo quanto à
“reeducação” de militares e diplomatas, ou que eles não tinham sido muito
efetivos na promoção dos alinhados à sua causa. Tal “confissão” não deixa de
ser uma demonstração explícita, entre muitas outras, do perfeito stalinismo que
sempre caracterizou o pensamento da maioria dos apparatchiks neobolcheviques.
Em todo caso, assim que ele
literalmente tomou o poder, o partido companheiro tratou de conseguir um slogan
para a sua diplomacia, confirmando a “teoria” sobre a necessidade psicológica
de um título qualquer, quando não se tem certeza de que os fundamentos de sua
própria política são verdadeiramente legítimos e aceitáveis. Esse título foi
encontrado, pelo único chanceler dos anos lulopetistas, na combinação de duas,
talvez três, qualidades auto-atribuídas: a diplomacia companheira seria “ativa
e altiva”, caracterização pro domo sua,
à qual se agregou, diversas vezes, o complemento de “soberana”, como se também
subsistisse alguma dúvida quanto a essa componente patriótica, quase militar,
num partido que aparentemente se orgulhava de seu caráter internacionalista
(como os antigos partidos comunistas da era stalinista, por sinal).
Que a política externa brasileira,
nos dois mandatos do presidente Lula, tenha sido ativamente ativa, disso
ninguém duvida; ela foi ativíssima mesmo, especialmente nessa vertente
inaugurada no governo anterior, que consistiu em praticar a chamada “diplomacia
presidencial” (mas os companheiros sempre recusaram esse epíteto, como
recusaram qualquer coisa que provinha do regime anterior, sempre designado como
neoliberal). Parece que eles faziam diplomacia presidencial um pouco como
Monsieur Jourdain fazia prosa, isto é, sem o saber. Lula e seus companheiros de
partido, mas também os companheiros diplomatas, nunca quiseram chamar a
diplomacia de fato presidencial que eles praticavam de diplomacia presidencial,
pois que isso os colocaria, simplesmente, numa linha de continuidade com o
governo detestável de FHC. Não contentes em inventar a suposta “herança
maldita” que eles teriam recebido – quando a deterioração econômica durante a
campanha presidencial tinha sido provocada pelas posturas esquizofrênicas que
esse partido tinha preconizado até então –, tudo o que os companheiros
pretendiam era isto: estabelecer uma linha divisória, um momento de ruptura,
uma diferenciação fundamental entre um suposto ancien régime tucanês, que eles se empenharam em atacar, desde o
início, e um belo, lindo e patriótico nouveau
régime companheiro, que teria inaugurado uma fase inédita no país, nunca
antes vista no Brasil, desde Cabral, ou algo assim.
Eles precisavam,
portanto, de palavras fortes, definidoras, para caracterizar a sua diplomacia
revolucionária (inclusive para compensar a sua política econômica que era, de
fato, neoliberal). Assim, que ela tenha sido classificada de “altiva”, isso já
é uma qualificação pro domo sua, como
se apenas os petistas tivessem defendido a autonomia nacional. Fica muito feio
inventar coisas em causa própria, especialmente quando elas são introduzidas
apenas para diminuir, espicaçar, denegrir a diplomacia anterior, que os
companheiros sempre quiseram acusar de submissa a Washington, alinhada com o
Império, voltada apenas para o Norte, enfim, essas coisas que eles foram alegando,
apenas para realçar suas supostas qualidades superiores. Junto com a outra acusação,
totalmente imprópria, de “herança maldita”, que eles quiseram colar no governo
anterior – como se a deterioração da economia nacional não se devesse
exatamente à péssima recepção que os mercados tiveram ao ver um partido anticapitalista
chegar ao poder –, essa qualificação de diplomacia “altiva” representa uma das
coisas mais sórdidas feitas pelo regime dos lulopetistas, ao lado da exploração
de outros episódios políticos que foram manipulados por uma publicidade
especialmente ativa, mas fundamentalmente mentirosa (e o que é pior, paga com
nosso dinheiro e mais do que superfaturada).
Ainda na questão dos
títulos e slogans, cabe registrar que o último, e totalmente mal sucedido,
governo petista, o de Dilma Rousseff, não teve nenhum, assim como não teve,
para todos os efeitos, nenhuma política externa. A despeito de ostentar,
errática e sucessivamente, três ministros das relações exteriores, não se pode
dizer que Madame Pasadena tenha exibido qualquer política externa digna desse
nome, a não ser aqueles estertores bolivarianos que estiveram totalmente em
convergência com sua desastrosa, catastrófica, política econômica, essa que
jogou o Brasil na pior recessão de toda a sua história. Os maiores, e piores,
momentos de sua política externa foram constituídos pela suspensão do Paraguai
do Mercosul, e pela admissão política da Venezuela chavista no bloco, ambas
iniciativas absolutamente ilegais, que não respeitaram sequer padrões básicos e
normas estatutárias do Mercosul, nomeadamente o Tratado de Assunção e o
Protocolo de Ushuaia, regulamentando a chamada “cláusula democrática” do bloco,
um conceito que aparece como ironicamente invertido, em face do que foi
perpetrado em 2012. Mesmo se os dilmistas, companheiros e diplomatas, tenham se
esforçado para provar que a sua política externa era uma continuidade da
anterior, ou seja, “ativa, altiva e soberana”, parece claro que ela não foi nem
uma, nem outra, nem a terceira, uma vez que ela se colocou a serviço de forças
não exatamente nacionais, sequer regionais.
Ainda, e finalmente, no
capítulo dos slogans diplomáticos, o atual ministro das Relações Exteriores,
senador José Serra, teria afirmado, numa recente alocução, que sua política externa
seria “afirmativa”, que aliás é tudo o que se espera de uma diplomacia digna
desse nome. Se ela vai ser, ou não, mais afirmativa do que a “ativa e altiva”,
isso não se pode confirmar neste momento, mas voltaremos a ela mais adiante.
Vejamos, ainda, algumas características dos governos e das diplomacias
lulopetistas.
3. A
velha política externa: a parábola do lulopetismo, entre AC e DC
O conceito de parábola
aplicado à era lulopetista no Brasil, a partir da primeira década do novo
milênio, pode ser visto em sua acepção matemática, ou seja, uma figura
geométrica em forma de curva oblonga, cujos pontos são equidistantes em relação
ao centro. De fato, a relação do Partido dos Trabalhadores com a democracia é
equiparável a essa figura, na qual uma organização de inspiração e feitura
neobolchevique fica girando incessantemente em volta dessa forma de governança
política sem nunca dela se aproximar (e sem pretender fazê-lo). O partido se
vale da noção de democracia para ganhar uma legitimidade que não merece, uma
vez que dela sempre esteve distante.
Mas o lulopetismo,
enquanto alegada doutrina “social”, também poderia ser identificado à versão religiosa
da parábola, ou seja, uma narração alegórica, possuindo um pretenso fundo moral
ou pretendendo registrar um ensinamento. Esse, segundo o evangelho da seita,
seria o da justiça social. Na prática, usou-se desse subterfúgio para
constituir um imenso curral eleitoral – o da Bolsa Família – que tomou o lugar
do antigo voto de cabresto dos coronéis dos grotões, ao mesmo tempo em que o
partido se dedicava a enriquecer os seus chefes, numa forte colusão entre
capitalistas promíscuos e políticos corruptos raramente vista no Brasil, nas
proporções que ela assumiu. Sob qualquer critério que se meça a extensão do
assalto ao Estado e à nação, nunca antes se roubou tanto no Brasil como durante
a era lulopetista. Não se terminou, ainda, de fazer a contabilidade completa da
roubalheira, de toda forma, já inédita sob diversos critérios.
O experimento
lulopetista de transgressão exagerada e criminosa ao que poderia ser
considerado como um volume “aceitável” de roubalheira tem de ser visto na ótica
da Dialética da Natureza, na qual
Friedrich Engels examina o salto essencial da quantidade à qualidade; ela
corresponderia, numa linguagem marxista, à passagem de um “modo de produção
artesanal” da corrupção, no qual políticos roubam como sempre o fizeram, ou
seja, em escala individual, para um “modo industrial de corrupção”, sob o qual
o partido organiza a pilhagem sistemática do Estado e dos brasileiros, roubando
numa escala jamais vista em nossa história, provavelmente nunca igualada em qualquer
outro país do hemisfério, talvez do mundo.
O caráter do fenômeno já
estava suficientemente explícito desde o Mensalão de 2005, como sendo um
mecanismo implantando para fraudar a democracia, dedicado a comprar suficientes
votos de parlamentares e de bancadas inteiras para sustentar o partido hegemônico
no poder, pela via das propinas e falcatruas feitas com dinheiro público – ou
seja, roubo declarado de empresas estatais – e também com dinheiro privado, isto
é, extorsão contra capitalistas privados, mediante troca de favores em
contratos superfaturados e outras combinações criminosas. Esse esquema já tinha
sido revelado naquela ocasião, mas por covardia, pusilanimidade ou conivência
da oposição castrada de que se dispunha naquela momento, não foi possível
expelir os meliantes do poder. Infelizmente foi preciso aguardar uma década
inteira para que o impeachment se consumasse e a gangue de meliantes políticos
fosse apeada do poder, embora ainda não extirpada da vida pública (inclusive
porque são muitos e diversos os atores).
O que se seguiu depois,
em termos de processo gramsciano, foi tão relevante para a história política do
país que uma nova cronologia poderia ser proposta para uma reavaliação do
período recente. Se fôssemos adotar uma nova periodização para a política
brasileira nas últimas duas décadas, poder-se-ia dividi-la de forma similar à
da historiografia do mundo ocidental: AC e DC. Ao contrário, no entanto, da
simbologia cristã associada a essa divisão – e a despeito de que o líder
principal, provavelmente único, do lulopetismo tenha mais de uma vez se
comparado a Jesus –, não se estaria desta vez fracionando a cronologia
histórica em Antes e Depois de Cristo, mas sim em Antes e Depois dos
Companheiros.
O marco divisor, no
entanto, não se resumiria a um único evento, ou ano, mas a todo um período, os
treze anos e meio, de janeiro de 2003 a maio de 2016, intervalo durante o qual
os companheiros dominaram – e o termo se aplica especificamente em sua
conotação patrimonialista – a política brasileira como nunca antes tinha
ocorrido no país. Aqui cabe uma nova distinção quanto ao tipo específico de
patrimonialismo: à diferença daquele tradicional, baseado nessa ausência de
distinção entre a propriedade pública e as apropriações individuais dos
dirigentes e líderes políticos, se poderia falar, pelo caráter partidário,
organizado, sistemático das novas formas de apropriação, de um patrimonialismo
de tipo gangster, como foi, na Argentina, em seu tempo, a República Sindical de
Perón, de certa forma ainda viva pela força do justicialismo, mas no Brasil sem
qualquer doutrina política especial, apenas uma espécie de peronismo de
botequim.
Uma vez instalados no
poder, os companheiros dele se apossaram rapidamente, e procederam à ocupação
total do Estado (e de todo o resto), traçando uma estratégia de monopolização
da dominação política por todos os meios, legais e ilegais, à disposição de
seus dirigentes inescrupulosos, como revelado na sucessão incrível de
escândalos e de falcatruas já objeto de investigações policiais e judiciárias. Nesse
longo intervalo de tempo, nunca houve, verdadeiramente, distinção entre
patrimônio público e apropriação privada, por métodos inclusive os mais
escabrosos, como o roubo direto de bens que deveriam estar registrados em
listas de bens da Presidência da República, a ponto de se poder justificar,
efetiva e plenamente, no caso dessas apropriações dos companheiros, a
denominação antes feita de um patrimonialismo gangsterista.
Nunca antes na história
do país, ladrões vulgares se tinham instalado de maneira tão acintosa no
comando do Estado. Enfim, desde o mês de maio de 2016, parece ter se encerrado
a fase certamente a mais vergonhosa de todas do nosso itinerário republicano,
esperando-se que para sempre (embora ainda persistam sérias e fundadas dúvidas
a esse respeito). O regime finalmente interrompido, depois de 13 anos e meio de
comando quase monopólico do poder, afetou praticamente todas as instituições de
Estado e suas agências afiliadas, o que compreendeu, igualmente, o órgão
estatal encarregado das relações exteriores do país: o ministério das Relações
Exteriores. Vamos a ele, agora.
4.
Construção e desmantelamento de instituições: o caso do Itamaraty
Instituições
de Estado podem tanto ser o fruto de medidas puramente circunstanciais – no
caso de alguma decisão de caráter conjuntural por parte de um governo
especialmente empreendedor –, quanto emergir lentamente no curso de uma longa
evolução política, construindo progressivamente o seu corpo especializado de
profissionais, elaborando algum substrato doutrinal que congregue valores e
princípios vinculados às suas missões próprias e, possivelmente, algum “esprit
de corps” que consolide a “cultura” da instituição em causa. O Itamaraty pertence
inegavelmente a esta segunda tradição de “institutional
building”; ele
sempre se mostrou orgulhoso de sua longa história de distinguidos serviços
prestados ao Estado e ao país, sendo, ele mesmo, um dos construtores da nação,
e não só no importante trabalho de fixação dos limites do território nacional,
mas também na defesa constante dos interesses da pátria onde quer que
estivessem seus representantes, diplomatas, cônsules e outros agentes e funcionários
do Estado envolvidos ocasionalmente na agenda diplomática.
Ao oferecer
aqui um depoimento pessoal, como diplomata, mas sobretudo como cidadão, sobre
um período determinado de nossa história, me cabe talvez rememorar o título de meu
livro mais recente sobre essa área central de minha atividade profissional, mas
também objeto de minhas reflexões acadêmicas: Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não
convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Creio ter sido modesto no
subtítulo, pois que o período iniciado em janeiro de 2003, concluído em maio de
2016, não foi simplesmente não convencional, mas um dos mais difíceis na longa
história do Itamaraty. Inicialmente saudado como uma renovação bem vinda numa
trajetória que era equivocadamente assemelhada a “trejeitos elitistas” e
“submissão ao Império”, o Itamaraty ingressou, efetivamente, em tempos excepcionais,
nos quais a diplomacia padeceu, em primeiro lugar, de uma dispersão de centros
de decisão (com diversos “formuladores” de posições, por vezes divergentes
entre si), em segundo lugar, de uma significativa alteração no próprio processo
decisório, invertendo o fluxo normal de formulação de posições, que deveria ser
da base para a cúpula, mas que tendeu a correr no sentido inverso.
Mais
importante ainda, a diplomacia perdeu seu caráter suprapartidário e sua
abrangência nacional, convertendo-se, como já salientado, num mero apêndice de
interesses partidários, no sentido mais restrito do termo. Esse aspecto vem
acoplado a uma quarta, e mais grave, característica, que vai pesar
terrivelmente sobre o trabalho dos futuros historiadores, quando, mesmo depois
da liberação de papéis confidenciais, eles quiserem estudar sobre como, e por
que, foram tomadas determinadas decisões, como se conduziram determinadas
negociações, como se passaram, efetivamente, determinadas ações da diplomacia
brasileira, que não eram exatamente as da diplomacia profissional, mas
correspondiam a iniciativas e empreendimentos tomados no Palácio do Planalto, executados
por um número muito reduzido de atores, na ausência – volto a sublinhar a
gravidade do procedimento – dos devidos registros nos anais da Casa. Pois bem, cabe,
neste momento, decepcionar preventivamente os futuros, ou atuais, historiadores
de nossa política externa, ao confirmar que eles, provavelmente, não
encontrarão provas documentais, em número ou qualidade suficientes, para fundamentar
ou explicar algumas dessas ações, porque esses registros simplesmente não
existem, porque se trabalhou, durante bastante tempo, em especial em
determinados episódios, sem que as comunicações pertinentes fossem feitas, ou
seja, que se exerceu, até contra a vontade dos diplomatas, uma “diplomacia
paralela”, no pior sentido do termo.
Creio que
esse deve ser o pior legado deixado na memória documental do Itamaraty pelo
regime lulopetista: a existência de canais não transparentes, para não dizer
secretos, clandestinos, no limite ilegais, que não esclarecem devidamente sobre
tenebrosas transações feitas pelos companheiros, geralmente feita com regimes
aliados, os famosos bolivarianos, ou em operações até criminosas, feitas com
regimes pouco recomendáveis. Por se
tratar de algo substantivamente relevante, e não simplesmente decorativo, ou
superficial, cabe agora, portanto, examinar, as principais características da
diplomacia lulopetista, ou seja, a velha, para melhor distingui-la da atual, ou
nova.
5. O
AC-DC na área da política externa: uma diplomacia exótica
Essa classificação, “Antes
e Depois dos Companheiros”, já sugerida no tocante à política brasileira dos
últimos 13 anos e meio, poderia ser aplicada, talvez com mais forte razão ainda,
à diplomacia desse período, na qual prevaleceu uma versão muito peculiar de
nossa interface externa, e que alterou profundamente as bases sobre as quais se
assentava tradicionalmente a política internacional do Brasil. Não se analisou
ainda os seus efeitos reais nas relações regionais do Brasil, mas ela pode ter
impactado de modo sensível a diplomacia profissional, com uma clara perda de
credibilidade do país na região e no mundo. Em algumas áreas, como a da
diplomacia regional, as mudanças introduzidas alteraram profundamente o modo
pelo qual o Brasil se relacionava com os seus vizinhos do continente, no
limite, inclusive, de graves infrações à conhecida norma constitucional da não
interferência nos assuntos externos de outros países, por exemplo por ocasião
de disputas eleitorais, como também já referido anteriormente.
Não cabe aqui o relato
circunstanciado do que foi o período companheiro à frente da diplomacia
brasileira, já classificado por mim como sendo o de uma “política externa
exótica”, num dos capítulos do meu livro Nunca
Antes na Diplomacia. Essa obra examina diversos aspectos bizarros da
política externa companheira, entre eles a opção míope por uma coisa chamada de
“diplomacia Sul-Sul”, o que nada mais é senão um desvio geograficamente
determinista, e estupidamente ideológico, das tradições universalistas que
sempre caracterizaram a diplomacia brasileira. O mandatário supremo – a quem,
de modo submisso, o chefe da chancelaria chamava de “Nosso Guia” – nunca se
pejou de reconhecer que, em seu governo, a diplomacia mantinha uma clara
divisão entre, de um lado, as relações de Estado a Estado, à cargo da
instituição diplomática oficial, e, de outro, as relações com os partidos de esquerda,
sob a responsabilidade do seu assessor presidencial para assuntos
internacionais (também chamado de “chanceler paralelo”, e talvez de fato). A
distinção sempre foi muito clara e reconhecida por todos. Em outros termos,
inaugurou-se no Brasil, em caráter praticamente institucional, a diplomacia
partidária, o que não deixou de representar algo inédito no longo itinerário
histórico do Itamaraty.
O aparelhamento
companheiro da instituição diplomática só não foi tão completo e avassalador,
como ocorreu em praticamente todos os demais órgãos do Estado, porque a
legislação em vigor obstava a que cargos na Secretaria de Estado fossem
ocupados por outros quadros que não aqueles selecionados por concurso de
ingresso na carreira diplomática. Mas justamente: o lulopetismo diplomático
passou a ser exercido com relativa proficiência graças ao bom funcionamento do
aparelho estatal colocado a seu serviço, máquina operada por profissionais
competentes, vários deles convencidos dos bons propósitos da causa, e até
entusiastas por se engajar, enfim, na expressão externa de uma política enfim
correspondendo ao Brasil real, já que a antiga diplomacia teria padecido de um
indesejado viés elitista e conservador. O
lulopetismo diplomático começou
então a ser exibido como a nova representação de um Brasil finalmente
comprometido com a transformação das relações iníquas e injustas que sempre
prevaleceram na sociedade brasileira e, de forma geral, no mundo, o
que permitia oferecer um bônus extra de legitimidade política, já que
supostamente identificado com as “boas causas”.
O lulopetismo
diplomático foi, assim, exercido pelos profissionais da área, mas estreitamente
vigiado, controlado e guiado pelos apparatchiks do partido, devidamente
orientados, todos eles, pelo Nosso Guia, cuja palavra era lei, para o bem e
para o mal, nas grandes definições e iniciativas então tomadas nessa projeção
internacional do demiurgo da causa. Todos os padrões tradicionais da
instituição se dobraram ao novo gênio da política internacional, que se
permitia até zombar dos profissionais, desprezar seus subsídios mais ou menos
eruditos e talhados no formato aceitável ao ambiente externo, e que foram
devidamente substituídos pelas mesmas arengas de sindicalista empírico,
toleradas e até saudadas como sendo à imagem e semelhança do Brasil profundo,
popular e popularesco como deveria ser. Esse lulopetismo diplomático alcançou
todos os terrenos da diplomacia profissional, com ênfase nas questões regionais
e do mundo em desenvolvimento em geral, este eleito como o terreno de ação
privilegiada da nova doutrina, pois que supostamente em oposição política aos
antigos poderes “hegemônicos”, e consequentemente aliados na grande causa mudancista
em escala mundial. As consultas bilaterais com os atores do chamado “Sul
Global” – uma total ficção em termos geopolíticos – passaram a ser guiadas por
novas “alianças estratégicas”, invariavelmente escolhidas, até preventivamente,
entre parceiros supostamente engajados nas mesmas causas. Havia aqui um
profundo equívoco quanto às alianças estabelecidas até preventivamente com
parceiros preferenciais, que estariam, supostamente, convencidos dos grandes
mitos entretidos pelo lulopetismo diplomático, quais sejam, o de “mudar a
relação de forças existentes no mundo”, e a de “inaugurar uma nova geografia do
comércio internacional”.
O lulopetismo
diplomático definiu, desde o início, quais seriam as novas linhas de atuação,
de forma independente das bases econômicas e materiais das relações
internacionais do Brasil, doravante concentradas numa suposta identidade de
interesses que partia das mesmas concepções políticas equivocadas que guiavam o
partido em sua Weltanschauung. Ele passou
então a se exercer em toda a sua plenitude, primeiro para exaltar o Nosso Guia,
em suas novas roupas – quase como na fábula –, e ele tinha especial prazer em
reforçar sua diplomacia personalista e megalomaníaca, já visando atingir os
pináculos da glória nos palcos internacionais, sobretudo nas esferas regional e
africana, nas quais brilhou como nunca, na base de mistificações políticas
(“sem tutela do império) e históricas (a tal de “dívida brasileira” derivada do
tráfico escravo). Os profissionais da área lhe forneceram os meios e os modos
de expulsar o império do âmbito regional, criando e reformando organismos que
fossem exclusivamente sul-americanos ou latinos, o que correspondia
inteiramente às diretrizes emanadas do Foro de São Paulo, uma organização
inteiramente controlada pelos dirigentes castristas. A ação externa se exerceu
obviamente além desses interesses vinculados, mas nenhuma das iniciativas e
atuações contradisse ou deixou de corresponder aos interesses desse grupo pouco
transparente, e de fato vinculado a lideranças externas.
O lulopetismo
diplomático, justamente, substituiu a definição sensata da política comercial
em função dos interesses exclusivos do setor privado da economia – que é quem,
finalmente, exporta e importa, e cria empregos e riqueza segundo seus critérios
basicamente microeconômicos – para grandiosos planos de redefinição completa
dos fluxos de comércio segundo parâmetros ideológicos, começando pelo
unilateralismo da diplomacia Sul-Sul para se estender a uma completa estupidez
proposta pelo Nosso Guia, consistindo na “substituição de importações”
brasileiras em favor desses parceiros do Sul, sobretudo os regionais, mesmo que
– e isto está documentado – os produtos ofertados fossem mais caros do que
alternativas “hegemônicas”, uma vez que se tratava de “ajudar países mais
pobres do que o Brasil”. Paradoxalmente, e contraditoriamente aos objetivos dos
lulopetistas, o comércio do Brasil cresceu mais em direção de parceiros
tradicionais do que no sentido privilegiado pela ação dos novos mandarins da
política comercial, o que pode ser aferido por uma consulta às estatísticas de
comércio exterior; quanto ao comércio com a China, não se poderia,
honestamente, coloca-lo no patamar convencional dos fluxos de intercâmbio
natural, uma vez que ele é feito, em grande medida, de compras chinesas de
commodities brasileiras – ou seja, puramente demanda chinesa – e não
necessariamente de intercâmbios construídos a partir da interação normal entre
duas economias interdependentes ou complementares.
Finalmente, o
lulopetismo diplomático consistiu, basicamente, numa política externa exótica,
feita de um enorme engajamento em ambiciosas iniciativas, em grande medida fora
da agenda diplomática tradicional do Itamaraty, por certo permitindo uma enorme
projeção externa do Brasil (sobretudo em benefício do seu propulsionador
original), mas que tampouco redundaram em ganhos permanentes para o país. A
projeção externa também se deu por meio de uma exagerada expansão da
representação oficial no plano bilateral – com custos cumulativos pesando
permanentemente sobre um orçamento não muito elástico, além de sujeito às
flutuações do câmbio – e de criação de novos organismos e foros politicamente
alinhados com as preferências dos companheiros, de duvidosa utilidade do ponto
de vista dos interesses nacionais.
O Mercosul, por exemplo,
deixou de ser um espaço de integração econômica e de liberalização comercial,
para se converter num palanque político, com retrocesso real em relação a seus
objetivos originais. Tanto foi assim que o atual chanceler, antes e depois de
passar a comandar a diplomacia brasileira, chegou a questionar seriamente a
real utilidade do bloco para o Brasil, uma vez que ele tinha perdido
importância na interface comercial global do país e impedia a negociação de
acordos comerciais individuais com países ou outros blocos de comércio. Não
existe, ainda, uma definição quanto aos novos caminhos do Mercosul, e o assunto
de sua reconstrução segundo os objetivos originais do Tratado de Assunção permanece
sob exame.
Entrados, por fim, na
era DC da diplomacia brasileira, cabe, portanto, examinar alguns elementos da
nova política externa a cargo do governo cujo mandato se estende até o final de
2018. O que poderia ser dito da nova diplomacia de um governo que precisa
executar, primordialmente, uma difícil e dolorosa operação de ajuste econômico
interno, em função da Grande Destruição provocada pelo nefasto regime
lulopetista?
6. A
nova política externa: o retorno a uma diplomacia profissional
Os contornos específicos
da nova política externa não foram, ainda, exatamente detalhados pelo governo
que deve conduzir o Brasil até o final de 2018, a não ser por um parágrafo
genérico na posse do vice-presidente efetivado no cargo, e também por um parágrafo
inicial no discurso de posse do novo chanceler, em 18/05/2016. Na apresentação
das suas dez diretrizes de política externa para o seu mandato à frente do
Itamaraty, o chanceler José Serra declarou expressamente em sua primeira
diretriz:
A
diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos
valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do
Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de
um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa
será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um
partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da
diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor.
A segunda diretriz
também é digna de nota, embora ela corresponda, como todas as demais, ao que é
normalmente esperado de uma diplomacia “normal”, ou seja, uma que se guia pelos
princípios e valores expressos na Constituição, e que se conforma aos padrões
correntes inscritos nos instrumentos do direito internacional, vários deles,
aliás, desrespeitados seguidamente pelos companheiros, como por exemplo o apoio,
diversas vezes explícito, do presidente Lula a candidatos de esquerda na região
e alhures, o que contraria o conhecido preceito da não ingerência nos assuntos
internos de outros países:
Estaremos
atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em
qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações
assumidas em tratados internacionais e também em respeito ao princípio de não
ingerência.
Independentemente,
portanto, do caráter mais ou menos “afirmativo” da nova política externa, que
poderá vir a ser o seu título oficial, ou o seu slogan preferido, o que
realmente a distingue da antiga, ou da velha (ainda que recente) é essa recusa
do caráter partidário da diplomacia brasileira, algo que realmente caracterizou
a diplomacia dos companheiros. Regimes parlamentaristas, ou presidencialismos
de tipo congressual, como os existentes no Atlântico norte, podem não avaliar
de maneira adequada, ou correta, o caráter claramente partidário da política
externa, uma vez que se toma por normal e esperado, nesses regimes, o caráter
justamente partidário das alternâncias que se processam nas políticas de
governo e na política externa. Não se leva em conta, no caso do lulopetismo, o
caráter profundamente sectário assumido pelas políticas públicas de modo geral,
e o caráter sigiloso de determinadas políticas setoriais, o que justamente
permitiu um assalto ao Estado – e às principais empresas públicas e privadas –
em escala jamais vista anteriormente. Não se considera, por exemplo, o que já
foi referido aqui, quanto à natureza secreta, clandestina, não documentada, de
determinadas iniciativas e ações tomadas em direção de regimes ainda mais
fechados, os chamados bolivarianos ou certas ditaduras consolidadas, com as
quais os mais iguais dentre os companheiros mantinham longevos laços de
colaboração e provavelmente também de cooperação em operações que ainda não
foram reveladas em toda a sua extensão, parte provável de uma imensa rede de transações
financeiras criminosas.
O retorno a uma
diplomacia profissional significa, antes de mais nada, que o Itamaraty, e não
mais apparatchiks atuando sob critérios pouco transparentes, voltará a assumir
– o que de fato já ocorreu – um papel central na diplomacia brasileira, com o
devido registro de todas as ações e iniciativas como sempre ocorreu na chancelaria.
Tal fato não impede o novo chanceler, retomando a tradição igualmente anterior,
de ser um político eleito no exercício do mandato, como ocorreu durante todo o
Império, na velha República, e durante quase toda a República de 1946,
complementados, também, pela nomeação de grandes figuras da vida pública,
juristas ou intelectuais de renome. Isso também não impediu o novo chanceler,
Senador José Serra, de desenvolver iniciativas pessoais que correspondem às
suas próprias percepções dos desafios e prioridades mais relevantes para o
Brasil, nos planos regional e mundial.
O novo chanceler decidiu
convocar, por exemplo, uma reunião ministerial dos países do Cone Sul sobre
segurança nas fronteiras, com vistas a discutir e encaminhar soluções a alguns
dos mais graves problemas que afetam todos os países da América do Sul: o
tráfico de drogas, contrabandos diversos, lavagem de dinheiro, ingresso ilegal
de armas e outros materiais, atividades criminosas transfronteiriças dos mais
diversos tipos. Ele também decidiu, com seu colega da Defesa, estabelecer um
mecanismo de coordenação entre os dois ministérios, que deverá resultar num
exame conjunto das agendas de ambos, de avaliação de convergências e interfaces
pertinentes nas áreas respectivas de atuação, com vistas a reforçar possíveis
ações recíprocas e interligadas, tanto no plano dos temas de caráter
político-estratégico (principalmente na América do Sul, mas podendo se exercer
também em direção da África), quanto nos de tipo industrial-tecnológico, ou
seja, alcançando a base industrial de defesa.
Os demais elementos
constantes nas diretrizes ministeriais estabelecidas ao início da atual gestão
do chanceler Serra à frente do Itamaraty conformam temas e questões já
relativamente bem conhecidos, ou inteiramente dominados, pelos diplomatas
profissionais, quer se trate de política comercial e negociações multilaterais
nessa área, quer se refira à coordenação e consulta com parceiros ditos
estratégicos em diversas regiões do globo. A América do Sul e a África
continuarão a merecer, como anteriormente, uma atenção especial da diplomacia
profissional, mas desta vez de maneira totalmente pragmática, sem o vezo
ideológico do lulopetismo e as preferências político-partidárias
característicos do finado regime dos companheiros.
Em outros termos, a
parábola exótica da diplomacia lulopetista finalmente veio a seu termo esperado,
e a política externa brasileira volta a dispor de um consenso entre os
principais formadores de opinião, assim como no seio da sociedade, de modo
geral, condição da qual ela tinha sido afastada desde o início do regime
companheiro. Nesta nova fase, as melhores tradições do Itamaraty poderão voltar
a ser exercidas com o profissionalismo pelo qual o ministério sempre foi
conhecido, contribuindo e colaborando no processo de formulação de posições
diplomáticas em bases essencialmente técnicas, desprovidas dos vieses
ideológicos e outras perversões sectárias do lulopetismo diplomático. A Casa de
Rio Branco está, assim, pronta a oferecer ao chefe de Estado as opções que
sempre se apresentam em política externa, no saudável equilíbrio permitido pelo
exame isento das questões da agenda externa e tendo como parâmetro único e exclusivo
o interesse nacional concebido de maneira ampla.
Referência
a outros trabalhos do autor:
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de novembro de 2016
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