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sábado, 5 de agosto de 2017

Bretton Woods: o nascimento da atual ordem economica internacional - Paulo Roberto de Almeida

O trabalho abaixo não é exatamente sobre Bretton Woods, embora o seja. Explico. Pediram-me para escrever algo a respeito de Bretton Woods num livro em homenagem a Roberto Campos, o que fiz, com o texto abaixo. Acho que se sustenta como relato histórico.
Paulo Roberto de Almeida 


Bretton Woods: o aprendizado da economia na prática

Paulo Roberto de Almeida
Publicado in: Ives Gandra da Silva Martins e Paulo Rabello de Castro (orgs.), Lanterna na Proa: Roberto Campos ano 100 (São Luís, MA: Resistência Cultural Editora, 2017, 344 p; ISBN: 978-85-66418-13-2), p. 52-56. Relação de Publicados n. 1257.

Em maio de 1944, o presidente Franklin D. Roosevelt, no seguimento de preparativos que vinham sendo feitos desde longos anos pelo Departamento de Estado, sob a liderança de Cordell Hull, formula um convite a 44 “nações unidas e associadas”, entre elas o Brasil, para discutir a reconstrução econômica do pós-guerra, por meio de uma conferência diplomática que deveria reunir-se em Bretton Woods e dedicar-se a superar o quadro de anomia institucional que prevalecia no mundo desde a crise de 1929 e a depressão dos anos 1930. Tratou-se de um momento único, de certa forma ainda prevalecente, na história das relações econômicas internacionais contemporâneas, uma vez que dessa conferência emergiram as mais importantes instituições da cooperação monetária e financeira entre as principais economias de mercado do pós-guerra, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). A reunião, realizada num “bucólico hotel desse vilarejo, nas montanhas do New Hampshire” (Campos, A Lanterna na Popa; Rio de Janeiro: Topbooks, 1994: p. 62), constituiu, igualmente, uma oportunidade inédita oferecida a uma comunidade diversificada de importantes economistas e de diplomatas experimentados de estar “presente na criação” do mundo atual, como relatado mais tarde por um dos Secretários de Estado do país anfitrião, Dean Acheson. Roberto Campos foi um desses homens, a despeito de não ser, ainda, nem um importante economista, nem um diplomata experimentado.
Assim que foi removido para os Estados Unidos, nos primeiros meses do envolvimento americano na Segunda Guerra Mundial, na sequência do ataque japonês a Pearl Harbor, e já se ocupando, quando na Secretaria de Estado, dos pedidos de abastecimento ao Brasil em materiais essenciais à sua economia junto ao governo americano, Roberto Campos começou seriamente a estudar economia. Ele, que reconhecia “não ter entrado na diplomacia por vocação e ter estudado economia por acidente” (1994, p. 110), logo teria oportunidade de aprender economia na prática, pois, menos de dois anos depois de removido para os EUA, foi designado para integrar, na qualidade de assessor, a delegação brasileira.
O Brasil esteve representado em Bretton Woods pelo ministro da Fazenda do governo Vargas, Arthur de Souza Costa, que chegou a presidir um dos comitês (o de “organização e administração”) da Comissão I da Conferência (que tratava do próprio FMI). Acompanhavam-no, como delegados, entre outros, Francisco Alves dos Santos Filho, da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil; Valentim Bouças, à época pertencente à Comissão bilateral de Controle dos Acordos de Washington sobre a dívida brasileira; Eugenio Gudin, membro do Conselho Econômico e Financeiro e do Comitê de Planejamento Econômico da presidência da República; Octávio Gouveia de Bulhões, da Divisão de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda; e Vitor Bastian, Diretor do Banco da Província do Rio Grande do Sul (de onde vinha Souza Costa antes de ser convidado por Vargas para substituir Oswaldo Aranha na Fazenda). Fazia ainda parte da delegação um jovem economista do Banco do Brasil, Santiago Fernandes, ademais, obviamente, de Roberto de Oliveira Campos, então segundo secretário da Embaixada em Washington. Sua integração à delegação brasileira foi solicitada pelo próprio ministro da Fazenda, Arthur da Souza Costa, provavelmente sob recomendação de outros membros mais influentes da equipe negociadora.
A delegação brasileira propôs uma conferência específica para promover a estabilidade nos preços dos produtos de base, ideia que seria retomada na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego em Havana e em diversas reuniões econômicas que, nos anos 50 e começo dos 60, levam à constituição da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. No entanto, os esforços do Brasil e de outros países para viabilizar medidas em prol do desenvolvimento econômico não encontraram eco nos debates em Bretton Woods. Os acordos de constituição do FMI, assim como o Acordo Geral de 1947, negociado três anos depois em Genebra, não fizeram nenhuma distinção entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Não se tratava, no entanto, de uma discriminação voluntariamente perversa: o problema simplesmente não se colocava, na ótica dos que convocaram a Conferência de Bretton Woods. A reorganização econômica e monetária do mundo era um problema a ser resolvido basicamente entre as grandes potências, que se consideravam como as únicas “responsáveis pela ordem internacional”. Em Bretton Woods atuaram essencialmente os EUA e a Grã-Bretanha: todos os demais participantes eram meros figurantes. O fato de os acordos de Bretton Woods não trazerem nenhuma distinção entre países avançados e países em desenvolvimento pode ser explicado pelo contexto da época, quando a questão prioritária era a da reconstrução econômica dos países em guerra, a começar pelas potências capitalistas da Europa.
A par de assistir, ainda que como mero assistente da delegação, a importantes debates entre as principais personalidades presentes, Campos travou relações com técnicos brasileiros, com os quais viria a trabalhar ou a colaborar nos anos seguintes (entre eles Eugênio Gudin, Valentim Bouças, Octavio Gouvêa de Bulhões e Vitor Bastian Pinto) e com grandes economistas internacionais, com os quais também manteve relações em sua carreira ulterior, como Edward Bernstein, do Departamento do Tesouro americano, ou Lionel Robbins, do Reino Unido, que ele depois recebeu várias vezes na embaixada em Londres, quando representante do Brasil (1974-1982).
Gudin e Bulhões, os verdadeiros articuladores das posições brasileiras em Bretton Woods, argumentaram em prol de um esquema de estabilização dos preços e de controle dos estoques dos produtos de base, de maneira a evitar as flutuações erráticas que pudessem perturbar as receitas de exportação, a estabilidade de preços e o próprio crescimento do comércio de matérias primas. No entanto, o máximo que se conseguiu obter em Bretton Woods nesse particular foi um chamamento à organização de uma nova conferência das Nações Unidas para tratar dessas questões, que foram, todavia, apenas parcialmente encaminhadas em Havana.
De volta à rotina de Washington, para tratar dos suprimentos para Volta Redonda e para outras carências essenciais da “economia de guerra” no Brasil, Campos confirmou sua “profunda e penosa impressão da dependência brasileira em relação a suprimentos externos” (1994: 74):
Literalmente, a economia brasileira paralisaria, não fossem os fornecimentos americanos. Além de produtos como aço, celulose e papel de imprensa, produtos químicos de base, máquinas e equipamentos, havia uma fundamental dependência em relação ao petróleo importado.
Convenci-me então da extrema urgência de desenvolvimento do petróleo nacional no prazo mais curto possível, pouco importando a origem dos capitais. Nunca entendi, por isso, durante as discussões do Estatuto do Petróleo, no governo Dutra, os devaneios nacionalistas, segundo os quais a exploração de petróleo por empresas estrangeiras, os chamados ‘trustes do petróleo’, significariam uma espécie de penhora da independência.
Para mim, ao contrário, a forma mais humilhante de dependência estratégica era não ter o petróleo produzido localmente. Tê-lo produzido no país, ainda que por capitais estrangeiros, seria uma forma de diminuir a dependência. E uma forma extremamente racional, pois, dado o alto risco da exploração petrolífera, seria melhor reservar os escassos capitais nacionais para atividades de remuneração certa. (...)
A experiência de Washington vacinou-me assim contra o ‘nacionalismo petrolífero’, que seria mais tarde objeto de passionais debates, ao longo de trinta anos de história brasileira. (1994: 74-5)

Essa rara combinação de sólida formação teórica, no campo da economia, com a experiência prática adquirida na diplomacia, e seu envolvimento em conferências diplomáticas em momentos decisivos da formulação e implementação da ordem econômica mundial que, de certa forma, ainda é a nossa – qual seja, o universo conceitual e organizacional de Bretton Woods e do sistema multilateral de comércio – permitiu que Roberto Campos combinasse essa expertise nascida do estudo da economia com a vivência real em instâncias definidoras da estrutura contemporânea da economia mundial para exercer seus talentos na burocracia pública o com brilho invulgar que sempre o caracterizou, e que o marcaram como um dos homens públicos que mais influência exerceram tanto sobre o ambiente regulatório brasileiro dessas décadas, quanto sobre o próprio debate público na área econômica (e até política), ou seja, sobre o pensamento econômico brasileiro da segunda metade do século 20 (e de certa forma ainda hoje).

Paulo Roberto de Almeida, diplomata de carreira e Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.

[Brasília, 7 de fevereiro de 2017]

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