Em meados de 2003, estando eu em Washington, fui solicitado por estudantes de RI de MG a responder um questionário para ajudá-los em trabalho de grupo.
Se estou postando somente agora, é porque acredito que minhas respostas possam ter ainda alguma validade 14 anos depois.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017
Relações Internacionais: profissionalização e atividades
Paulo Roberto de
Almeida
1) Quais seriam as vantagens e desvantagens da grade
curricular multidiciplinar do bacharelado em Relações Internacionais?
PRA: Como
vantagem principal se coloca obviamente o fato de que o profissional em
relações internacionais – chamemo-los de internacionalistas – é naturalmente
chamado a tratar de matérias as mais diversas possíveis, atinentes aos terrenos
econômico, político, jurídico, ou mesmo cultural e tecnológico, daí a
ncessidade de uma formação abrangente de maneira a cobrir esses diversos
campos. A própria disciplina de relações internacionais retira métodos e
substância de várias áreas curriculares, notadamente história, ciência
política, economia, direito, sociologia ou mesmo antropologia. Todas essas
disciplinas, e possivelmente mais algumas outras (como línguas, metodologia
científica, psicologia social, estatística ou sociografia), podem e devem
figurar numa grade curricular de um curso desse tipo.
Eventuais
desvantagens não estão propriamente vinculadas à estrutura curricular, mas à
natureza do curso em si, que não conduz a uma especialização muito bem
delimitada no padrão atual (tradicional) de classificação profissional, uma vez
que o egresso desse tipo de curso não está exatamente habilitado para se
desempenhar numa carreira de economista, de historiador, de cientista político
ou ligado à área jurídica, por lhe faltar talvez alguns instrumentos e perícia
em determinadas matérias técnicas ligadas a cada uma dessas especialidades
individuais. Daí a preferência de alguns especialistas em fazer com o que o
curso de relações internacionais seja na verdade uma pós-graduação, ou
especialização estrito senso, e não como ocorre de maneira cada vez mais
generalizada no Brasil, um curso de graduação.
2) O mercado se encontra mais receptivo a profissionais
não especializados, como o bacharel em Relações Internacionais, ou àqueles
preparados em cursos com habilidades específicas, como o caso do bacharel em
Direito?
PRA: Tem
havido uma boa recepção do profissional em relações internacionais, mas isso
talvez se deva a uma espécie de “novidade do momento”, a uma percepção (talvez
incorreta) de que os desafios dos processos de regionalização e de globalização
possam ser melhor enfrentados pelos internacionalistas ou mesmo a uma demanda
específica que ainda não foi “saturada” nesse nicho. Creio, contudo, que nas
condições atuais do Brasil – país ainda insuficientemente “globalizado” e
dotado, de todo modo, de poucas empresas verdadeiramente internacionais – o
“excesso” de oferta que vem sendo verificado nessa vertente possa não se
sustentar no futuro, daí minha preferência por uma abordagem ainda relativamente
conservadora da profissionalização nessa área. Ou seja, seria preferível que os
profissionais de graduação tivessem habilidades específicas (direito, economia,
história etc.), para só a partir daí, então, encaminhar-se para a
especialização em relações internacionais.
O mercado
sempre estará preparado, por muito tempo ainda, para os profissinais
tradicionais e muito pouco para o internacionalista, que precisará esforçar-se
para encontrar seus nichos de trabalho no quadro de demanda ainda organizada segundo
os padrões disciplinares e profissionais clássicos.
3) Sabemos que a boa relação com os países que nos cercam
pode nos auxiliar em problemas internos. Qual seria o maior exemplo para
comprovar tal situação?
PRA: Os
países enfrentam ciclos econômicos ascendente e descendentes em suas atividades
produtivas, tanto em função de problemas propriamente internos – esgotamento de
determinados recursos naturais, por exemplo – como devido à própria dinâmica
econômica internacional, daí a necessidade de determinadas válvulas de escape
para dificuldades temporárias. Um exemplo óbvio é o da crise em determinados
setores da economia ou em determinadas regiões, o que “obriga”, de certa forma,
à “exportação” de “excedentes demográficos”. O Brasil, tradicional país recipiendários
de imigrantes ao longo de toda a sua história, tornou-se moderadamente
“exportador” de mão-de-obra (geralmente não especializada) para outros países,
da própria região ou em outros continentes. A mobilidade profissional deve ser
vista, aliás, como algo normal e mesmo desejável, diferentemente, talvez, da
simples “expulsão econômica” de desempregados em momentos de crise. Boas
relações gerais com vizinhos, e mesmo países distantes, ajuda, nesse sentido, a
conduzir de maneira adequada esses movimentos de entrada e saída de pessoas ao
longo de alguns anos.
Da mesma
forma, a ocorrência de surtos epidêmicos na população humana ou animal impõe,
necessariamente, a cooperação transfronteiriça, assim como problemas ambientais
de uma certa dimensão, que não respeitam fronteiras políticas e limites
geopolíticos. Cooperação em matéria de segurança – terrorismo, nacrotráfico –
também são bons exemplos de que resultados efetivos são melhor alcançados
quando as relações políticas entre Estados vizinhos são satisfatórias.
4) Como o senhor avalia o surgimento de inúmeros cursos de
Relações Internacionais nos últimos anos? Esse fato traz desvantagens para os
jovens recém-formados na profissão?
PRA:
Difícil dizer, neste momento, pois se trata de um fenômeno que tem menos de dez
anos, sendo resultado dos progressos da globalização e da regionalização nos
anos 1990. As instituições privadas de ensino têm respondido de maneira
dinâmica a essa demanda percebida, seguidas de longe por algumas insituições
públicas, mas seria preciso esperar um processo natural de “decantação” nessa
área para uma avaliação mais precisa. Não creio que se trata de desvantagem,
pois do ponto de vista do mercado pode ser até uma vantagem, na medida em que a
oferta ampliada provocará uma saudável concorrência entre as instituições, um
“barateamento” das tarifas e uma progressiva melhoria de qualidade nos cursos
mais competitivos.
Creio,
todavia, que uma certa especialização nas orientações se torna de certo modo
inevitável. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por
excelência, apela naturalmente uma formação centrada nas disciplinas clássicas
ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional). Já
métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das
empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em
atividades diversas dos serviços e da indústria) requerem formações voltadas
para “global business”, com matérias de comércio exterior, finanças
internacionais etc. No sul do país, talvez, mais voltado para atividades do
agribusiness e em contato direto com os demais parceiros do Mercosul, as
especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas
relativas ao Mercosul e à Aladi), questões fitossanitárias e diretamente o
domínio da língua espanhola. Como se vê, as especializações se farão,
inevitavelmente, nas diversas instituições de ensino situadas nessas regiões,
quase que de forma natural.
5) Quais seriam, basicamente, suas funções como Ministro
Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington?
Sou o
“segundo” do Embaixador, e portanto o representante alterno, o que em linguagem
diplomática costuma se chamar “Encarregado de Negócios” (na ausência do
Embaixador titular). Ademais de supervisionar o trabalho de uma chancelaria, de
modo geral, sou encarregado da assinatura de determinados papéis, de visar
preliminarmente grande parte dos telegramas diários (antes de serem despachados
pelo chefe do posto), de representá-lo eventualmente em determinadas
cerimônias, reuniões de trabalho e na recepção a uma determinada categoria de
visitantes na Embaixada, assim como ficar a disposição do Embaixador e da
própria Secretaria de Estado para qualquer tarefa que se imponha fora da rotina
normal de trabalho. Normalmente, numa grande embaixada como a de Washington,
existe mais de um ministro-conselheiro, o que também implica uma certa
especialização entre eles. Como somos três, fico encarregado dos temas
econômicos e financeiros, havendo outro para os temas políticos e um terceiro
para questões administrativas e consulares.
6) O avanço da globalização tem aumentado a importância do
diplomata no cenário internacional. Que peculiaridades podem ser destacadas na
carreira diplomática?
A carreira
continua similar ao que sempre foi, constituída basicamente pelas tarefas de:
informação, representação, negociação. A globalização impõe talvez uma certa
redefinição da primeira função, pois não mais se considera necessário informar
sobre o cotidiano ou o corriqueiro do país, como talvez fosse o caso na era dos
ofícios a bico de pena. A informação deve ser seletiva, limitado aos temas que
interessam diretamente ao serviço diplomático ou às relações com o país de
origem.
Por outro
lado, a intensificação dos contatos humanos, dos intercâmbios comerciais e
tecnológicos determinam que se procure aproveitar as novas oportunidades
oferecidas pela cooperação internacional, em novas áreas ou de formas inéditas
até então. Permanece, no entanto, a peculiaridade do contato direto com
representantes do governo junto ao qual se está acreditado, o bom conhecimento
das características locais e um certo sentido de oportunidade na construção de
laços mais duradouros do que os simples contatos burocráticos de trabalho. Uma
boa relação pessoal entre chefes de estado ou de governo é por vezes importante
no acompanhamento e solução de determinados problemas internacionais – uma
crise financeira, por exemplo – e quem deve preparar o terreno é o diplomata.
Nisso, sua função ainda é insubstituível, pois ele não pode ser “representado”
por nenhum sistema informático ou tecnologia high tech. O chamado “fator
humano” ainda é uma alavanca indispensável nos assuntos sociais e, por
extensão, internacionais.
7) O senhor ingressou muito cedo no mercado de trabalho,
mesmo que de forma informal. Que experiências foram importantes nesta etapa de
sua vida e em que isso colaborou para que o senhor alcançasse a realização
profissional?
O sentido
do esforço individual, o desejo de aprender por mim mesmo, um certo
auto-didatismo e, de modo geral, a persistência nos esforços pessoais, como
forma de alcançar objetivos relevantes ou metas desejáveis. Aprendi a valorizar
a conquista de aspirações significativas, em lugar de esperar que me fossem
oferecidos oportunidades ou favores. De certa forma, posso dizer, hoje em dia,
que, vindo de família modesta e desprovido quase que completamente de
mecanismos sociais ou familiares de sustentação, pude ascender
profissionalmente e socialmente graças a meu próprio esforço, um pouco como os
“self-made men”, com a diferença de que no meu caso não estava aspirando poder
ou riqueza, mas tão simplesmente bem desempenhar minhas tarefas profissionais e
lograr manter, ao mesmo tempo ou paralelamente, atividades acadêmicas que são demonstradas,
atualmente, nos muitos livros publicados por mim.
8) Que conselho o senhor daria aos jovens que desejam
ingressar em um curso superior de Relações Internacionais?
Apenas um:
não dependam do curso para sua própria formação, não considerem suficiente ou
adequado o que for “aprendido” nas salas de aula, mas construam vocês mesmos o
“seu” curso, pela leitura e estudo intensos, pelo questionamento constante do
“saber adquirido” e pelo exercício regular e sadio da “inquirição” bem
orientada. Não se contentem com os jornais diários, nem com as revistas,
procurem livros, manuais, enciclopédias, sistemas de informação online, não
esperem que o professor “transmita” a vocês aquilo que pensam dever aprender no
curso, mas façam dele um orientador de novas leituras, um conselheiro de
métodos, mais do que um simples “educador” (o que ele de certa forma nunca
será, pois professores em geral apenas transmitem técnicas, que educa é a
própria vontade individual de aprender cada vez mais).
Em uma
palavra: entrem no curso como se já estivessem preparados para dele sair para o
exercício de alguma atividade profissional, ou seja, com um certo
propósito-guia, que os vai orientar durante todo o curso, e que os fará buscar
sempre mais, além das simples obrigações acadêmicas do dever de casa e das
leituras obrigatórias. Construam o seu próprio saber.
9) O que pode se afirmar das relações exteriores do Brasil
hoje, em relação aos demais países e ao passado do próprio país?
As relações
exteriores do Brasil, stricto sensu,
não são diferentes das de outros países em desenvolvimento, ou seja um esforço
constante de inserção nos circuitos mais dinâmicos da economia internacional, a
busca do rompimento com certas fragilidades e dependências – financeira,
tecnológica, educacional e científica – que sempre marcaram o país e a
intensificação da participação nos negócios internacionais, num sentido
positivo, ou seja, da promoção da paz, da cooperação internacional e o
progressos dos direitos humanos e da democracia nos planos global e regional.
No que se
refere especificamente à sua diplomacia, caberia registrar, sem qualquer falsa
modéstia, as qualidades excelentes de profissionalismo, preparação e dedicação,
fruto de praticamente dois séculos de exercício constante das relações
diplomáticas a partir do próprio país. Nossa diplomacia é certamente mais
eficiente do que a de muitos outros países emergentes e mesmo do que a de
vários países ditos avançados.
10) Quais são, na sua visão, os momentos históricos mais
marcantes nos quais a diplomacia entre os povos foi decisiva?
Nos
momentos de crise internacional, ela se torna relevante. As guerras são de
certo modo o fracasso da diplomacia, mas não são sempre evitáveis, em face de
algum ditador expansionista, como Hitler, por exemplo. Em outros momentos, se
conseguiu evitar a guerra, como na crise dos foguetes em Cuba (1962), quando o
mundo viveu praticamente a situação limite de um conflito nuclear, nunca
ocorrido na história da humanidade. O próprio Brasil contribuiu para alguns episódios
de pacificação entre países vizinhos, como na Guerra do Chaco entre Bolívia e
Paraguai (1936) ou nos conflitos fronteiriços entre Peru e Equador (1942 e
novamente em 1997).
Mas, a
diplomacia não precisa atuar apenas nos momentos de crise. Ela deve exercer-se
de modo constante, em qualquer época e lugar, contribuindo para a expansão do
direito internacional e a promoção dos direitos humanos. Considere-se, por
exemplo, a noção de soberania estatal: ela não pode ser absoluta, a ponto de se
permitir que um ditador coloque em risco a vida de seu próprio povo, ou que
cometa atentados pesistentes contra a dignidade da pessoa humana ou os direitos
civis e religiosos das minorias. A próxima etapa do direito internacional
talvez se situe na regulação do chamado “direito de intervenção” (muito
vinculado ao direito humanitário), de maneira a evitar aspectos bastante
constrangedores, como os vividos recentemente pela intervenção unilateral dos
Estados Unidos no Iraque.
11) Quais os desgastes, nas relações exteriores, causados
por medidas protecionistas adotadas por determinados países, como a imposta
recentemente pelos EUA que reduziam as exportações de aço brasileiro para tal
país?
Uma visível
diminuição na confiança bilateral, na medida em que se tem, de modo claro, consciência
da ilegalidade das medidas (como determinado pela OMC em relação às
salvaguardas aplicadas pelos EUA ao arrepio das normas internacionais). Ocorre
também um sentimento de frustração pelas perdas econômicas ocasionadas e uma
desconfiança de que eventuais acordos de liberalização comercial serão
efetivamente cumpridos, na letra e no espírito das regras acordas
bilateralmente ou multilateralmente. Por isso mesmo, o Brasil vem insistindo
para que, ao lado das medidas de acesso a mercado (redução de barreiras
tarifárias), sejam contemplados também nos futuros acordos da Alca ou da OMC
regras claras no que ser refere a medidas de defesa comercial (antidumping e
salvaguardas), ademais da redução de todas as demais barreiras protecionistas
existentes (como podem ser os subsídios à produção interna, notadamente em
agricultura, e as subvenções às exportações).
Paulo Roberto de
Almeida
Washington, 15 de julho
de 2003
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