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domingo, 20 de agosto de 2017

Relacoes Internacionais: profissionalizacao e atividade (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em meados de 2003, estando eu em Washington, fui solicitado por estudantes de RI de MG a responder um questionário para ajudá-los em trabalho de grupo.
Se estou postando somente agora, é porque acredito que minhas respostas possam ter ainda alguma validade 14 anos depois.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017


Relações Internacionais: profissionalização e atividades

Paulo Roberto de Almeida

1) Quais seriam as vantagens e desvantagens da grade curricular multidiciplinar do bacharelado em Relações Internacionais?

            PRA: Como vantagem principal se coloca obviamente o fato de que o profissional em relações internacionais – chamemo-los de internacionalistas – é naturalmente chamado a tratar de matérias as mais diversas possíveis, atinentes aos terrenos econômico, político, jurídico, ou mesmo cultural e tecnológico, daí a ncessidade de uma formação abrangente de maneira a cobrir esses diversos campos. A própria disciplina de relações internacionais retira métodos e substância de várias áreas curriculares, notadamente história, ciência política, economia, direito, sociologia ou mesmo antropologia. Todas essas disciplinas, e possivelmente mais algumas outras (como línguas, metodologia científica, psicologia social, estatística ou sociografia), podem e devem figurar numa grade curricular de um curso desse tipo.
            Eventuais desvantagens não estão propriamente vinculadas à estrutura curricular, mas à natureza do curso em si, que não conduz a uma especialização muito bem delimitada no padrão atual (tradicional) de classificação profissional, uma vez que o egresso desse tipo de curso não está exatamente habilitado para se desempenhar numa carreira de economista, de historiador, de cientista político ou ligado à área jurídica, por lhe faltar talvez alguns instrumentos e perícia em determinadas matérias técnicas ligadas a cada uma dessas especialidades individuais. Daí a preferência de alguns especialistas em fazer com o que o curso de relações internacionais seja na verdade uma pós-graduação, ou especialização estrito senso, e não como ocorre de maneira cada vez mais generalizada no Brasil, um curso de graduação.

2) O mercado se encontra mais receptivo a profissionais não especializados, como o bacharel em Relações Internacionais, ou àqueles preparados em cursos com habilidades específicas, como o caso do bacharel em Direito?

            PRA: Tem havido uma boa recepção do profissional em relações internacionais, mas isso talvez se deva a uma espécie de “novidade do momento”, a uma percepção (talvez incorreta) de que os desafios dos processos de regionalização e de globalização possam ser melhor enfrentados pelos internacionalistas ou mesmo a uma demanda específica que ainda não foi “saturada” nesse nicho. Creio, contudo, que nas condições atuais do Brasil – país ainda insuficientemente “globalizado” e dotado, de todo modo, de poucas empresas verdadeiramente internacionais – o “excesso” de oferta que vem sendo verificado nessa vertente possa não se sustentar no futuro, daí minha preferência por uma abordagem ainda relativamente conservadora da profissionalização nessa área. Ou seja, seria preferível que os profissionais de graduação tivessem habilidades específicas (direito, economia, história etc.), para só a partir daí, então, encaminhar-se para a especialização em relações internacionais.
            O mercado sempre estará preparado, por muito tempo ainda, para os profissinais tradicionais e muito pouco para o internacionalista, que precisará esforçar-se para encontrar seus nichos de trabalho no quadro de demanda ainda organizada segundo os padrões disciplinares e profissionais clássicos.

3) Sabemos que a boa relação com os países que nos cercam pode nos auxiliar em problemas internos. Qual seria o maior exemplo para comprovar tal situação?

            PRA: Os países enfrentam ciclos econômicos ascendente e descendentes em suas atividades produtivas, tanto em função de problemas propriamente internos – esgotamento de determinados recursos naturais, por exemplo – como devido à própria dinâmica econômica internacional, daí a necessidade de determinadas válvulas de escape para dificuldades temporárias. Um exemplo óbvio é o da crise em determinados setores da economia ou em determinadas regiões, o que “obriga”, de certa forma, à “exportação” de “excedentes demográficos”. O Brasil, tradicional país recipiendários de imigrantes ao longo de toda a sua história, tornou-se moderadamente “exportador” de mão-de-obra (geralmente não especializada) para outros países, da própria região ou em outros continentes. A mobilidade profissional deve ser vista, aliás, como algo normal e mesmo desejável, diferentemente, talvez, da simples “expulsão econômica” de desempregados em momentos de crise. Boas relações gerais com vizinhos, e mesmo países distantes, ajuda, nesse sentido, a conduzir de maneira adequada esses movimentos de entrada e saída de pessoas ao longo de alguns anos.
            Da mesma forma, a ocorrência de surtos epidêmicos na população humana ou animal impõe, necessariamente, a cooperação transfronteiriça, assim como problemas ambientais de uma certa dimensão, que não respeitam fronteiras políticas e limites geopolíticos. Cooperação em matéria de segurança – terrorismo, nacrotráfico – também são bons exemplos de que resultados efetivos são melhor alcançados quando as relações políticas entre Estados vizinhos são satisfatórias.

4) Como o senhor avalia o surgimento de inúmeros cursos de Relações Internacionais nos últimos anos? Esse fato traz desvantagens para os jovens recém-formados na profissão?

            PRA: Difícil dizer, neste momento, pois se trata de um fenômeno que tem menos de dez anos, sendo resultado dos progressos da globalização e da regionalização nos anos 1990. As instituições privadas de ensino têm respondido de maneira dinâmica a essa demanda percebida, seguidas de longe por algumas insituições públicas, mas seria preciso esperar um processo natural de “decantação” nessa área para uma avaliação mais precisa. Não creio que se trata de desvantagem, pois do ponto de vista do mercado pode ser até uma vantagem, na medida em que a oferta ampliada provocará uma saudável concorrência entre as instituições, um “barateamento” das tarifas e uma progressiva melhoria de qualidade nos cursos mais competitivos.
            Creio, todavia, que uma certa especialização nas orientações se torna de certo modo inevitável. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por excelência, apela naturalmente uma formação centrada nas disciplinas clássicas ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional). Já métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em atividades diversas dos serviços e da indústria) requerem formações voltadas para “global business”, com matérias de comércio exterior, finanças internacionais etc. No sul do país, talvez, mais voltado para atividades do agribusiness e em contato direto com os demais parceiros do Mercosul, as especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas relativas ao Mercosul e à Aladi), questões fitossanitárias e diretamente o domínio da língua espanhola. Como se vê, as especializações se farão, inevitavelmente, nas diversas instituições de ensino situadas nessas regiões, quase que de forma natural.

5) Quais seriam, basicamente, suas funções como Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington?

            Sou o “segundo” do Embaixador, e portanto o representante alterno, o que em linguagem diplomática costuma se chamar “Encarregado de Negócios” (na ausência do Embaixador titular). Ademais de supervisionar o trabalho de uma chancelaria, de modo geral, sou encarregado da assinatura de determinados papéis, de visar preliminarmente grande parte dos telegramas diários (antes de serem despachados pelo chefe do posto), de representá-lo eventualmente em determinadas cerimônias, reuniões de trabalho e na recepção a uma determinada categoria de visitantes na Embaixada, assim como ficar a disposição do Embaixador e da própria Secretaria de Estado para qualquer tarefa que se imponha fora da rotina normal de trabalho. Normalmente, numa grande embaixada como a de Washington, existe mais de um ministro-conselheiro, o que também implica uma certa especialização entre eles. Como somos três, fico encarregado dos temas econômicos e financeiros, havendo outro para os temas políticos e um terceiro para questões administrativas e consulares.

6) O avanço da globalização tem aumentado a importância do diplomata no cenário internacional. Que peculiaridades podem ser destacadas na carreira diplomática?

            A carreira continua similar ao que sempre foi, constituída basicamente pelas tarefas de: informação, representação, negociação. A globalização impõe talvez uma certa redefinição da primeira função, pois não mais se considera necessário informar sobre o cotidiano ou o corriqueiro do país, como talvez fosse o caso na era dos ofícios a bico de pena. A informação deve ser seletiva, limitado aos temas que interessam diretamente ao serviço diplomático ou às relações com o país de origem.
            Por outro lado, a intensificação dos contatos humanos, dos intercâmbios comerciais e tecnológicos determinam que se procure aproveitar as novas oportunidades oferecidas pela cooperação internacional, em novas áreas ou de formas inéditas até então. Permanece, no entanto, a peculiaridade do contato direto com representantes do governo junto ao qual se está acreditado, o bom conhecimento das características locais e um certo sentido de oportunidade na construção de laços mais duradouros do que os simples contatos burocráticos de trabalho. Uma boa relação pessoal entre chefes de estado ou de governo é por vezes importante no acompanhamento e solução de determinados problemas internacionais – uma crise financeira, por exemplo – e quem deve preparar o terreno é o diplomata. Nisso, sua função ainda é insubstituível, pois ele não pode ser “representado” por nenhum sistema informático ou tecnologia high tech. O chamado “fator humano” ainda é uma alavanca indispensável nos assuntos sociais e, por extensão, internacionais.

7) O senhor ingressou muito cedo no mercado de trabalho, mesmo que de forma informal. Que experiências foram importantes nesta etapa de sua vida e em que isso colaborou para que o senhor alcançasse a realização profissional?

            O sentido do esforço individual, o desejo de aprender por mim mesmo, um certo auto-didatismo e, de modo geral, a persistência nos esforços pessoais, como forma de alcançar objetivos relevantes ou metas desejáveis. Aprendi a valorizar a conquista de aspirações significativas, em lugar de esperar que me fossem oferecidos oportunidades ou favores. De certa forma, posso dizer, hoje em dia, que, vindo de família modesta e desprovido quase que completamente de mecanismos sociais ou familiares de sustentação, pude ascender profissionalmente e socialmente graças a meu próprio esforço, um pouco como os “self-made men”, com a diferença de que no meu caso não estava aspirando poder ou riqueza, mas tão simplesmente bem desempenhar minhas tarefas profissionais e lograr manter, ao mesmo tempo ou paralelamente, atividades acadêmicas que são demonstradas, atualmente, nos muitos livros publicados por mim.

8) Que conselho o senhor daria aos jovens que desejam ingressar em um curso superior de Relações Internacionais?

            Apenas um: não dependam do curso para sua própria formação, não considerem suficiente ou adequado o que for “aprendido” nas salas de aula, mas construam vocês mesmos o “seu” curso, pela leitura e estudo intensos, pelo questionamento constante do “saber adquirido” e pelo exercício regular e sadio da “inquirição” bem orientada. Não se contentem com os jornais diários, nem com as revistas, procurem livros, manuais, enciclopédias, sistemas de informação online, não esperem que o professor “transmita” a vocês aquilo que pensam dever aprender no curso, mas façam dele um orientador de novas leituras, um conselheiro de métodos, mais do que um simples “educador” (o que ele de certa forma nunca será, pois professores em geral apenas transmitem técnicas, que educa é a própria vontade individual de aprender cada vez mais).
            Em uma palavra: entrem no curso como se já estivessem preparados para dele sair para o exercício de alguma atividade profissional, ou seja, com um certo propósito-guia, que os vai orientar durante todo o curso, e que os fará buscar sempre mais, além das simples obrigações acadêmicas do dever de casa e das leituras obrigatórias. Construam o seu próprio saber.

9) O que pode se afirmar das relações exteriores do Brasil hoje, em relação aos demais países e ao passado do próprio país?

            As relações exteriores do Brasil, stricto sensu, não são diferentes das de outros países em desenvolvimento, ou seja um esforço constante de inserção nos circuitos mais dinâmicos da economia internacional, a busca do rompimento com certas fragilidades e dependências – financeira, tecnológica, educacional e científica – que sempre marcaram o país e a intensificação da participação nos negócios internacionais, num sentido positivo, ou seja, da promoção da paz, da cooperação internacional e o progressos dos direitos humanos e da democracia nos planos global e regional.
            No que se refere especificamente à sua diplomacia, caberia registrar, sem qualquer falsa modéstia, as qualidades excelentes de profissionalismo, preparação e dedicação, fruto de praticamente dois séculos de exercício constante das relações diplomáticas a partir do próprio país. Nossa diplomacia é certamente mais eficiente do que a de muitos outros países emergentes e mesmo do que a de vários países ditos avançados.

10) Quais são, na sua visão, os momentos históricos mais marcantes nos quais a diplomacia entre os povos foi decisiva?

            Nos momentos de crise internacional, ela se torna relevante. As guerras são de certo modo o fracasso da diplomacia, mas não são sempre evitáveis, em face de algum ditador expansionista, como Hitler, por exemplo. Em outros momentos, se conseguiu evitar a guerra, como na crise dos foguetes em Cuba (1962), quando o mundo viveu praticamente a situação limite de um conflito nuclear, nunca ocorrido na história da humanidade. O próprio Brasil contribuiu para alguns episódios de pacificação entre países vizinhos, como na Guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai (1936) ou nos conflitos fronteiriços entre Peru e Equador (1942 e novamente em 1997).
            Mas, a diplomacia não precisa atuar apenas nos momentos de crise. Ela deve exercer-se de modo constante, em qualquer época e lugar, contribuindo para a expansão do direito internacional e a promoção dos direitos humanos. Considere-se, por exemplo, a noção de soberania estatal: ela não pode ser absoluta, a ponto de se permitir que um ditador coloque em risco a vida de seu próprio povo, ou que cometa atentados pesistentes contra a dignidade da pessoa humana ou os direitos civis e religiosos das minorias. A próxima etapa do direito internacional talvez se situe na regulação do chamado “direito de intervenção” (muito vinculado ao direito humanitário), de maneira a evitar aspectos bastante constrangedores, como os vividos recentemente pela intervenção unilateral dos Estados Unidos no Iraque.

11) Quais os desgastes, nas relações exteriores, causados por medidas protecionistas adotadas por determinados países, como a imposta recentemente pelos EUA que reduziam as exportações de aço brasileiro para tal país?

            Uma visível diminuição na confiança bilateral, na medida em que se tem, de modo claro, consciência da ilegalidade das medidas (como determinado pela OMC em relação às salvaguardas aplicadas pelos EUA ao arrepio das normas internacionais). Ocorre também um sentimento de frustração pelas perdas econômicas ocasionadas e uma desconfiança de que eventuais acordos de liberalização comercial serão efetivamente cumpridos, na letra e no espírito das regras acordas bilateralmente ou multilateralmente. Por isso mesmo, o Brasil vem insistindo para que, ao lado das medidas de acesso a mercado (redução de barreiras tarifárias), sejam contemplados também nos futuros acordos da Alca ou da OMC regras claras no que ser refere a medidas de defesa comercial (antidumping e salvaguardas), ademais da redução de todas as demais barreiras protecionistas existentes (como podem ser os subsídios à produção interna, notadamente em agricultura, e as subvenções às exportações).

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 de julho de 2003

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