O Ser Diplomata
Reflexões anárquicas sobre uma indefinível condição
profissional
Paulo Roberto de Almeida
Reflexões sobre a profissionalização em relações
internacionais,
na vertente diplomacia, para palestra em 4 de maio de 2006
(Ciclo
de Debates da Pacta Consultoria, Brasília, dia 4/05, às 19h30).
1) Não se é diplomata, acredito,
como se é economista, ou advogado, ou médico. Nós, diplomatas, não pertencemos
a nenhuma guilda medieval, a nenhuma corporação de ofício, a nenhuma ordem
feita de requisitos estanques, ainda que muitos nos comparem a uma casta, ou a
um estamento social, numa acepção bem mais difusa deste conceito weberiano. Ou
seja, ser diplomata não é simplesmente uma questão de profissão; é uma vocação,
uma questão de status, quase que uma
missão, o chamado calling, examinado
por Weber em seu famoso estudo sobre a ética protestante e o espírito do
capitalismo.
2) Ser diplomata não é apenas uma
questão de nomadismo, de gostar de viajar ou de viver fora do país; ser
diplomata é ser, antes de mais nada, um ser com raízes na sua terra, um
servidor público na acepção mais completa dessa palavra, um funcionário do
Estado, antes que de um governo e, como tal, estar identificado com a nação ou
com a sociedade da qual se emergiu, na qual nos formamos e para a qual
desejamos legar uma situação melhor do que aquela que recebemos de nossos pais
e antecessores.
3) Ser diplomata não resulta,
simplesmente, de um treinamento ad hoc,
adquirido num desses cursinhos preparatórios de seis meses ou um ano, feitos de
muita decoreba, alguma simulação para os exames e uma leitura sôfrega da
bibliografia recomendada, por mais que ela seja ampla. Ser diplomata resulta de
uma preparação de longo curso, adquirida no contato constante com uma cultura
superior à da média da sociedade, no cultivo da leitura descompromissada com a
aquisição de qualquer saber instrumental, resulta da curiosidade atemporal por
todas as culturas e sociedades, passadas ou presentes e, sobretudo, da
contemplação ativa da realidade, daquilo que um dramaturgo brasileiro famoso,
Nelson Rodrigues, chamava de “a vida como ela é”.
4) Ser diplomata não é estar ou
viver obcecado pela diplomacia, fazer dessa atividade o seu último ou supremo
objetivo de vida, a sua única ocupação possível ou imaginável, sem outros
afazeres ou hobbies. Ser diplomata, ser um bom diplomata significa, também,
fazer algo mais no seu itinerário de vida, ter uma outra ocupação, uma
distração, um divertissement, ou hobby, outras obsessões e amores na
existência, de maneira a poder enfrentar a diversidade da vida, inclusive os
altos e baixos da própria diplomacia, quando descobrimos que nem todo diplomata
é exatamente um diplomata, naquela acepção que emprestamos ao termo. Ser um bom
diplomata é se ver imaginando que, “se eu não fosse diplomata, o que mais,
exatamente, eu gostaria de ser?; de onde mais eu poderia tirar motivos de
satisfação, aonde mais eu poderia colaborar, com pleno gosto, com a sociedade
na qual me formei, no país onde vivo?”. Se soubermos bem responder a esta
questão, “o que eu faria se não fosse diplomata?”, já se tem meio caminho
andado para ser um bom diplomata...
5) Ser diplomata é saber se colocar
acima das paixões e dos modismos do presente, transcender interesses políticos
conjunturais, em favor de uma visão de mais longo prazo, afastar posições
partidárias ou de grupos e movimentos com inserção parcial ou setorial na
sociedade, em favor de uma visão nacional e uma perspectiva de mais longo
prazo. Significa, sobretudo, contrapor às preferências ideológicas pessoais, ou
de grupos momentaneamente dominantes, ou dirigentes, uma noção clara do que
sejam os interesses nacionais permanentes.
Muito bem, uma vez dito o que acabo
de expor, o que mais eu poderia dizer a vocês, ávidos de uma legítima curiosidade
sobre os segredos da carreira diplomática, sobre o que é ser diplomata,
enquanto profissão, enquanto vocação?
É claro que tudo começa em poder ser diplomata, em poder ingressar
na carreira, em passar pelo crivo dos exames de entrada, dos requisitos de
desempenho na soleira da profissão, ou seja, ultrapassar a porteira da entrada
do concurso público: aberto, secreto, universal (ou quase).
Para isso, minha primeira e
principal recomendação seria: pense numa preparação de longo curso, de longue haleine, diriam os franceses.
E, sobretudo, pensem numa formação essencialmente autodidata. Isto por uma
razão muito simples: por melhor que seja um curso universitário, e certamente
existem dos bons, dos maus e dos feios, as “faculdades Tabajara”, como dizemos,
por melhores que sejam esses cursos, eles nunca vão dar a vocês tudo aquilo de
que vocês necessitam para entrar e para ser, já não digo um diplomata prêmio
Nobel, mas um bom diplomata, de primeira linha. Quem vai prover o essencial da
formação de vocês, são vocês mesmos, é o esforço individual, é o empenho
pessoal no auto-aperfeiçoamento, no estudo voluntário, na pesquisa constante.
Em segundo lugar, eu diria que o
recomendável seria ter a diplomacia como uma aspiração e, ao mesmo tempo,
preparar-se para uma profissão “normal” – não que a diplomacia seja “anormal”,
mas ela é relativamente excepcional, só uns poucos são chamados a exercê-la e
seria uma pena que todos os demais, não chamados a servir o país nessa área,
vivam uma existência de adultos frustrados, de profissionais desgostosos com o
que foram levados a trabalhar. Por isso, eu colocaria a diplomacia numa espécie
de Gólgota algo inatingível, uma montanha escarpada à qual se ascende com certo
sacrifício pessoal (em alguns casos familiar, também), uma recompensa depois de
muita labuta. Profissionais que já conheceram experiências diversas na vida
civil costumam fazer bons diplomatas; o que não quer dizer que aqueles jovens
saídos dos bancos universitários diretamente para a carreira não façam, ou não
sejam, bons diplomatas; ao contrário: bem vocacionados, eles farão tudo o que
estiver ao seu alcance para bem servir ao Estado e à nação. Mas, alguém dotado
de competências outras que não as simples artes diplomáticas – que são as da
representação, da informação e da negociação, todos sabem – alguém assim saberá
servir ao país com vários outros instrumentos e ferramentas adquiridos na vida
prática, seja na veterinária, na engenharia, na agronomia, na economia
doméstica ou no corte e costura, whatever...
Em terceiro lugar, eu diria que existem
muitas formas de trabalho profissional e de expressão individual dentro das
relações internacionais, dentro e fora da diplomacia, estrito senso. Existe a
diplomacia empresarial, existe uma diplomacia do agronegócio, uma diplomacia
das ONGs, dos jogadores de futebol – hoje um dos principais itens de exportação
da pauta brasileira –, assim como existe uma diplomacia na própria academia,
mas ela costuma ser das mais chatas, com suas vaidades e torres de marfim. Tudo
é uma questão de competência e de dedicação. Sendo competentes na atividade que
escolheram e estando contentes no desempenho quiçá temporário daquilo que estão
fazendo, vocês serão felizes na vida, farão os outros felizes, e lutarão,
talvez, pelo ingresso na carreira com a tranqüilidade que um exame desse tipo
requer, não com o desespero ou a obsessão de uma batalha de vida ou morte.
Sejam competentes e desempenhem as tarefas nas quais se encontram engajados e
vocês já serão bons diplomatas, em qualquer hipótese e em qualquer profissão
onde estiverem efetivamente colocados.
Minha mensagem central é justamente
esta: o diplomata já é um ser realizado na vida, feliz consigo mesmo, confiante
em seus estudos e em sua capacidade; conhecedor do mundo, mesmo que nunca tenha
viajado de avião; curioso de todas as artes, mesmo que tenha estacionado num
escritório durante vários anos; crítico dos seus professores, mesmo que nunca
tenha ousado contestá-los em classe; anotador de livros; recortador de notícias
de jornal e de páginas de revista; invasor de bibliotecas; delinqüente reincidente
na arte de ler livros em livrarias – o que eu já fiz milhares de vezes –,
enfim, uma pessoa totalmente à vontade nas artes do impossível e apaixonada por
novos desafios.
Se vocês são um pouco assim, mesmo
de forma distraída, desajeitada, totalmente sbagliatta,
como diriam os italianos, se vocês também acham que sabem mais do que o chefe, então
vocês já são diplomatas, só falta agora ingressar na carreira. Mas isso é uma
mera formalidade.
Por fim, e termino aqui esta
preleção, caberia abordar a carreira pelo lado prático: uma vez dentro da
diplomacia, o que fazer exatamente? Ao lado, das missões clássicas, e
tradicionais, do diplomata – que são as de informar, representar e negociar,
sobre as quais não me estenderei por sua obviedade elementar –, existem aqueles
que acreditam que o diplomata deve igualmente participar de uma espécie de projeto
nacional, e aí sua missão seria, não apenas participar e contribuir para o
processo de desenvolvimento do país, mas também engajar-se ativamente na
transformação do mundo, de maneira a que este sirva, de maneira mais adequada,
aos objetivos nacionais de desenvolvimento.
Sou cético quanto a essa extensão
indevida das funções do diplomata, ainda que eu reconheça que nossas
capacidades analíticas e por vezes executivas possam ser tão boas quanto as de
qualquer especialista em políticas públicas. Defendo que o diplomata seja
excelente nas suas funções tradicionais e, se possível, agregue valor ao seu
trabalho pela dedicação paralela a atividades de pesquisa, similares, em grande
medida, às que são conduzidas no âmbito da academia. Existe, obviamente, grande
interface e uma notável similitude de métodos entre o trabalho acadêmico e o
diplomático, naquilo que se refere à elaboração de estudos, position papers, diagnósticos de
situação, reflexões prospectivas e tudo o mais que possa identificar-se com o
processamento de informações. O diplomata, contudo, à diferença do seu colega
de academia, não se limita a processar informações, ele as utiliza para
elaborar posições negociadoras, para propor posturas práticas que o seu país
deva assumir nos foros mundiais, nas relações bilaterais, nos desafios do
sistema internacional.
Em determinadas instâncias
negociadoras, o diplomata pode até ficar, no terreno de batalha, sem instruções
precisas da capital quanto a que atitude adotar. Ele deverá portanto contar com
todo o seu tirocínio e conhecimento do problema em causa, de molde a poder
defender o interesse nacional da melhor forma possível. Na capital, ele deverá,
na elaboração de posições, mobilizar todos os recursos técnicos e humanos de
diferentes agências governamentais e alguns até privados, de maneira a extrair,
na postura negociadora, o máximo de benefícios para o país num determinado
contexto negociador.
Em última instância, a matéria-prima
essencial do diplomata é a inteligência, e isso não depende de nenhuma fonte
externa, mas de sua própria capacidade em acolher todo tipo de conhecimento e
colocar essa informação a serviço de seu país.
Abraçando a carreira diplomática,
vocês abordam uma carreira aberta sobretudo à inteligência. Cada um deve
confiar em sua própria capacidade de trabalho e abrir-se o tempo todo a novos
conhecimentos.
Muito obrigado...
Vôo São Paulo-Brasília (Gol 1778), 2 maio 2006, 4 p.
Revisão em 4.05.06. (1591).
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