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domingo, 20 de agosto de 2017

Um duelo (diplomatico) a distancia com Mangabeira Unger (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um desses "inéditos redescobertos". 
Em fevereiro de 2002, em fase de pré-campanha presidencial, o professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger, conselheiro político, e supostamente diplomático, do então (e eterno) candidato Ciro Gomes, publicava um artigo vitriólico contra a política externa e a diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo imediatamente.
Eu comentei também imediatamente, e mandei o texto para o próprio, em seu endereço de Harvard. Nunca recebi resposta, sequer uma nota acusando recepção. Tampouco publiquei ou divulguei este texto que segue após o artigo original.
Transcrevo agora pois talvez alguns dos debates de 2002 ainda tenham algum significado nos dias que correm. Provavelmente, pois durante os 13 anos da gestão companheira não avançamos em praticamente nada, nem em diplomacia, nem em qualquer outro terreno, a não ser na corrupção.
Acho que o Brasil está rigorosamente atrasado mais de duas décadas, em suas políticas públicas e até em sua diplomacia. Mas este é outro debate.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 20 de agosto de 2017

Artigo original de Roberto Mangabeira Unger:




Por que o Brasil não tem política exterior?



Roberto Mangabeira Unger


Folha de São Paulo, 12/03/2002



              O Brasil não tem política exterior. Em vez dela, tem uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais. Mas o Brasil precisa ter política exterior. Estão se reunindo as condições para criá-la.

              Os defensores da redução da política exterior a negociações comerciais afundaram num pragmatismo antipragmático. Prometeram resultados e entregaram frustrações. A única iniciativa forte da diplomacia brasileira, o Mercosul, agoniza e só ressurgirá se for reconstruída radicalmente.

A razão básica pela qual não temos política externa é que não temos projeto interno, a não ser um projeto que resultou no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia. Mas o descalabro tem outras causas também.

Satisfeitas em ter um presidente apresentável em salões e seminários, as elites brasileiras esqueceram que política exterior é um ramo da política, não da indústria de entretenimento. Encobertos pelo nevoeiro retórico da "diplomacia presidencial" e sem balizamento numa discussão nacional da nossa posição no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política externa. Não souberam, porém, o que fazer, a não ser regatear, sem rumo nem força, um pouco mais de vantagem comercial aqui e acolá. Ficaram paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos.

A perversão das práticas convergiu com o desvio das idéias. Rio Branco fundou a tradição da nossa política exterior sobre certos princípios elementares: que a política predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias; que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade. Esses compromissos foram sacrificados a um realismo que se revelou falso e contraproducente.

Quatro tarefas (a discutir) devem nortear uma nova política exterior que encarne hoje esses princípios. A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano. E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento. É obra que exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos. Nenhum país está mais bem posicionado do que o Brasil para liderar iniciativas nesse sentido. A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas. E ampliar nossa margem de manobra por meio da multiplicação dos vínculos em vez de nos refugiarmos no isolamento. A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul. A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.

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A diplomacia que temos e a que não queremos



Paulo Roberto de Almeida





Em provocador artigo sob o título “Por que o Brasil não tem política exterior?” (Folha de São Paulo, 12.02.02; site: http://www.idj.org.br/art0001.asp?SelectID=45), o coordenador do Instituto Desenvolvimento com Justiça, Roberto Mangabeira Unger, tece considerações sobre uma suposta diplomacia brasileira corrente em relação à qual eu, como diplomata com mais de 23 anos de carreira, tenho dificuldades em conectá-la à realidade de nossas relações exteriores ou de nossa prática diplomática. Certamente mais inspirado em seu papel de conselheiro intelectual do candidato presidencial Ciro Gomes, do que em sua função de intelectual público e respeitado acadêmico de Harvard, Mangabeira traça um retrato de uma (falta de) política exterior do Brasil da qual parece complicado reconhecer a existência, ainda mais em concordar com a maior parte de suas afirmações levianas.

Ainda que descontando-se o fato de que ele possa estar atuando motivado mais pelo impulso eleitoral do que pela necessidade legítima de estimular um debate que tem estado ausente das campanhas presidenciais no Brasil, deve-se reconhecer que os argumentos adiantados por Mangabeira não condizem com sua reconhecida capacidade analítica e com a presumida honestidade intelectual de que goza o conselheiro do candidato do PPS.

Mangabeira começa peremptoriamente por afirmar que o Brasil “não tem política exterior”, mas tão simplesmente “uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais”. Quaisquer observadores isentos de nossa tradição diplomática, entre eles vários outros serviços diplomáticos de países vizinhos ou mesmo de países desenvolvidos, sabem que se trata aqui de uma simplificação grosseira da realidade. Também soam como exagerados seus argumentos segundo os quais nosso “pragmatismo antipragmático” apenas entregou “frustrações” e que o Mercosul, descrito como “agonizante”, apenas poderá ressurgir “se for reconstruíd[o] radicalmente”. Nenhuma linha segue, porém, sobre as condições em que tal reconstrução poderia ser operada, nesta ou em outras frentes de trabalho diplomático. Na verdade, o artigo de Mangabeira apresenta poucas propostas concretas ou suscetíveis de implementação prática. Senão vejamos.

Concordo com Mangabeira quando ele vincula a política externa à existência de um “projeto interno”, mas torna-se singularmente difícil ver nos últimos anos de estabilização macroeconômica um processo que teria resultado, unicamente, “no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia”. O que é descrito como “descalabro” não corresponde à realidade de uma diplomacia que tem colocado o Brasil como interlocutor incontornável de processos negociadores nos mais diversos foros formais e informais das relações internacionais contemporâneas. Algo desse sucesso pode ser certamente creditado ao que vem jocosamente caracterizado por Mangabeira como sendo o “nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’”, mas o bom desempenho também pode ser creditado ao trabalho sistemático e paciente de nossas representações no exterior e de nossa Secretaria de Estado na defesa constante dos interesses do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Acusar esses diplomatas de terem ficado “paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos” é no mínimo criar uma figura de estilo para justificar uma crítica que não guarda a menor relação com a realidade, e que apenas ofende quem está na linha de frente de negociações por certo duras e sensíveis, mas que em nenhum momento foram caracterizadas por temor ou vacilação.

Não se consegue perceber onde estaria ocorrendo uma imaginária “perversão das práticas” como resultado de um suposto “desvio das idéias” do mítico chanceler Rio Branco (a ele são creditados os “fundamentos” da nossa política exterior). Que a política predomine sobre a economia, não deixa de ser verdade hoje como nos tempos do Barão; que “a defesa da nossa soberania” tenha como objetivo principal “criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria” é tão válido hoje como há exatos cem anos atrás, quando Rio Branco assumia por dez longos anos o comando de nossa diplomacia; que essa defesa passe pelo estabelecimento de um espaço sul-americano não representa nada mais do que o que vem sendo pacientemente articulado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 90, pelo menos; que essa visão possa ser materializada pela “construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias”, como quer Mangabeira, corresponde exatamente aos discursos brasileiros nas assembéias gerais da ONU desde muito tempo, como poderia ser facilmente verificado por Mangabeira. Enfim, as críticas de Mangabeira, aos conhecedores, soam como um déjà vu, all over again.

Ele elenca, em seguida, quatro tarefas que deveriam “nortear uma nova política exterior”. Suas propostas são simples e diretas e merecem citação explícita, seguidas de comentários.


1) “A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano.”


De acordo, mas a proposta não contradiz o que já vem sendo dito e feito pelo Brasil.


Corolário: “E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento.”


Não poderia ser de outra forma. O irracional seria tentar perseguir a todo custo uma ilusória uniformização de posições em matéria de políticas econômicas e de modelos de desenvolvimento, o que apenas violentaria as condições próprias e o contexto exclusivo em que se dão nosso próprio processo de desenvolvimento e nossa inserção internacional. Não se compreenderia aliás uma política externa que tentasse encaixar o Brasil em moldes pré-fabricados.


Corolário: Essa tarefa, segundo Mangabeira, “exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos”.


Não se percebe bem o ineditismo de tais propostas, uma vez que a diplomacia do Brasil vem atuando precisamente nessa linha, de diversificar parcerias externas e lograr uma intensificação do relacionamento com grandes países emergentes, como podem ser a China, a Índia e a Rússia. A relação com a UE é tradicional e muito intensa, atuando como contrapeso aos Estados Unidos pelo menos desde o Império e começo da República. Seria, por outro lado, muito útil que fossem identificados esses “aliados potenciais” dentro dos Estados Unidos que não estão muito claros quem sejam exatamente. Se forem os anti-globalizadores do movimento sindical e ecológico ou, ainda, protecionistas enrustidos ou declarados à la Ralph Nader, o Brasil teria muito pouco a ganhar com eles, já que eles atuam, justamente, para dificultar o acesso de nossos produtos (sobretudo agrícolas) ao mercado dos EUA.


2) “A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas.”


De acordo novamente, mas é preciso obter um mapeamento preciso, a ser fornecido por Mangabeira, dessas contradições existentes na economia global, a partir das quais seria possível traçar o quadro de alianças preferenciais que a diplomacia brasileira buscaria. Do que pode ser observado atualmente, trata-se exatamente do que vem sendo feito pela atual diplomacia, que está longe de refugiar-se no “isolamento”, como quer nosso articulista.


3) “A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul.”


Perfeito: mais uma vez aguarda-se o detalhamento desses empreendimentos e instituições comuns “que faltaram ao Mercosul”, pois fica parecendo que a crise deste último deve-se à falta dessas instituições, não à existência de condições econômicas objetivas em cada um dos países membros.


4) “A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.”


Esta parte entra num terreno que pertence mais à obrigação moral do que ao cálculo racional. Se temos alguma obrigação sagrada para com a “África sofredora”, que justifique sacarmos nosso talão de cheques para atender necessidades daqueles povos, seria o caso de discutir com o Congresso como empregar esse dinheiro, pois vários parlamentares podem argumentar que temos sofredores de sobra, aqui mesmo no Brasil, com os quais temos deveres igualmente, ou mais, sagrados.


Em síntese, o Brasil dispõe de uma diplomacia que pode e deve sofrer diversos aperfeiçoamentos de forma e de conteúdo. Tal tarefa será empreendida com a colaboração de todos aqueles interessados num debate sério sobre a questão. A condição primeira para que tal debate seja feito seria evitar as simplificações e as meias-verdades, evitando caracterizar os dados da realidade pelo seu travestimento indevido numa série de conceitos que relevam mais da acusação gratuíta do que da análise serena.




875: Washington, 12/03/2002
 

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