Mais um desses "inéditos redescobertos".
Em fevereiro de 2002, em fase de pré-campanha presidencial, o professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger, conselheiro político, e supostamente diplomático, do então (e eterno) candidato Ciro Gomes, publicava um artigo vitriólico contra a política externa e a diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo imediatamente.
Eu comentei também imediatamente, e mandei o texto para o próprio, em seu endereço de Harvard. Nunca recebi resposta, sequer uma nota acusando recepção. Tampouco publiquei ou divulguei este texto que segue após o artigo original.
Transcrevo agora pois talvez alguns dos debates de 2002 ainda tenham algum significado nos dias que correm. Provavelmente, pois durante os 13 anos da gestão companheira não avançamos em praticamente nada, nem em diplomacia, nem em qualquer outro terreno, a não ser na corrupção.
Acho que o Brasil está rigorosamente atrasado mais de duas décadas, em suas políticas públicas e até em sua diplomacia. Mas este é outro debate.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017
Artigo original de Roberto Mangabeira Unger:
Por
que o Brasil não tem política exterior?
Roberto Mangabeira Unger
Folha de São Paulo, 12/03/2002
O Brasil não tem política exterior. Em vez dela, tem uma prática
minúscula e malograda de negociações comerciais. Mas o Brasil precisa ter
política exterior. Estão se reunindo as condições para criá-la.
Os defensores da redução da política exterior a
negociações comerciais afundaram num pragmatismo antipragmático. Prometeram
resultados e entregaram frustrações. A única iniciativa forte da diplomacia
brasileira, o Mercosul, agoniza e só ressurgirá se for reconstruída
radicalmente.
A razão básica
pela qual não temos política externa é que não temos projeto interno, a não ser
um projeto que resultou no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação
nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia. Mas o
descalabro tem outras causas também.
Satisfeitas em
ter um presidente apresentável em salões e seminários, as elites brasileiras
esqueceram que política exterior é um ramo da política, não da indústria de
entretenimento. Encobertos pelo nevoeiro retórico da "diplomacia
presidencial" e sem balizamento numa discussão nacional da nossa posição
no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política externa. Não souberam,
porém, o que fazer, a não ser regatear, sem rumo nem força, um pouco mais de
vantagem comercial aqui e acolá. Ficaram paralisados e confundidos pelo medo
dos Estados Unidos.
A perversão das
práticas convergiu com o desvio das idéias. Rio Branco fundou a tradição da
nossa política exterior sobre certos princípios elementares: que a política
predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo
criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que
essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano
quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias;
que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral
e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade. Esses
compromissos foram sacrificados a um realismo que se revelou falso e
contraproducente.
Quatro tarefas
(a discutir) devem nortear uma nova política exterior que encarne hoje esses
princípios. A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que
definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato
do poderio americano. E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias
de desenvolvimento. É obra que exige entendimentos arrojados com alguns dos
outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União
Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos. Nenhum país
está mais bem posicionado do que o Brasil para liderar iniciativas nesse
sentido. A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global,
buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também
com empresas. E ampliar nossa margem de manobra por meio da multiplicação dos vínculos
em vez de nos refugiarmos no isolamento. A terceira tarefa é começar a refazer
nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das
instituições comuns que faltaram ao Mercosul. A quarta tarefa é cumprir nossa
obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a
reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.
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A diplomacia que temos e a que não queremos
Paulo Roberto de Almeida
Em provocador artigo sob
o título “Por que o Brasil não tem política exterior?”
(Folha de São Paulo, 12.02.02; site: http://www.idj.org.br/art0001.asp?SelectID=45),
o coordenador do Instituto Desenvolvimento com Justiça, Roberto Mangabeira
Unger, tece considerações sobre uma suposta diplomacia brasileira corrente em
relação à qual eu, como diplomata com mais de 23 anos de carreira, tenho
dificuldades em conectá-la à realidade de nossas relações exteriores ou de
nossa prática diplomática. Certamente mais inspirado em seu papel de
conselheiro intelectual do candidato presidencial Ciro Gomes, do que em sua
função de intelectual público e respeitado acadêmico de Harvard, Mangabeira
traça um retrato de uma (falta de) política exterior do Brasil da qual parece
complicado reconhecer a existência, ainda mais em concordar com a maior parte
de suas afirmações levianas.
Ainda
que descontando-se o fato de que ele possa estar atuando motivado mais pelo
impulso eleitoral do que pela necessidade legítima de estimular um debate que tem
estado ausente das campanhas presidenciais no Brasil, deve-se reconhecer que os
argumentos adiantados por Mangabeira não condizem com sua reconhecida
capacidade analítica e com a presumida honestidade intelectual de que goza o
conselheiro do candidato do PPS.
Mangabeira
começa peremptoriamente por afirmar que o Brasil “não tem política exterior”,
mas tão simplesmente “uma prática minúscula e malograda de negociações
comerciais”. Quaisquer observadores isentos de nossa tradição diplomática,
entre eles vários outros serviços diplomáticos de países vizinhos ou mesmo de
países desenvolvidos, sabem que se trata aqui de uma simplificação grosseira da
realidade. Também soam como exagerados seus argumentos segundo os quais nosso
“pragmatismo antipragmático” apenas entregou “frustrações” e que o Mercosul,
descrito como “agonizante”, apenas poderá ressurgir “se for reconstruíd[o]
radicalmente”. Nenhuma linha segue, porém, sobre as condições em que tal
reconstrução poderia ser operada, nesta ou em outras frentes de trabalho
diplomático. Na verdade, o artigo de Mangabeira apresenta poucas propostas
concretas ou suscetíveis de implementação prática. Senão vejamos.
Concordo
com Mangabeira quando ele vincula a política externa à existência de um
“projeto interno”, mas torna-se singularmente difícil ver nos últimos anos de
estabilização macroeconômica um processo que teria resultado, unicamente, “no
enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o
dinamismo extraordinário da nossa economia”. O que é descrito como “descalabro”
não corresponde à realidade de uma diplomacia que tem colocado o Brasil como
interlocutor incontornável de processos negociadores nos mais diversos foros
formais e informais das relações internacionais contemporâneas. Algo desse sucesso
pode ser certamente creditado ao que vem jocosamente caracterizado por
Mangabeira como sendo o “nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’”, mas o
bom desempenho também pode ser creditado ao trabalho sistemático e paciente de
nossas representações no exterior e de nossa Secretaria de Estado na defesa
constante dos interesses do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e
arte de nossa diplomacia. Acusar esses diplomatas de terem ficado “paralisados
e confundidos pelo medo dos Estados Unidos” é no mínimo criar uma figura de
estilo para justificar uma crítica que não guarda a menor relação com a
realidade, e que apenas ofende quem está na linha de frente de negociações por
certo duras e sensíveis, mas que em nenhum momento foram caracterizadas por
temor ou vacilação.
Não
se consegue perceber onde estaria ocorrendo uma imaginária “perversão das
práticas” como resultado de um suposto “desvio das idéias” do mítico chanceler
Rio Branco (a ele são creditados os “fundamentos” da nossa política exterior).
Que a política predomine sobre a economia, não deixa de ser verdade hoje como
nos tempos do Barão; que “a defesa da nossa soberania” tenha como objetivo
principal “criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional
própria” é tão válido hoje como há exatos cem anos atrás, quando Rio Branco
assumia por dez longos anos o comando de nossa diplomacia; que essa defesa
passe pelo estabelecimento de um espaço sul-americano não representa nada mais
do que o que vem sendo pacientemente articulado pela diplomacia brasileira
desde o início dos anos 90, pelo menos; que essa visão possa ser materializada
pela “construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias”,
como quer Mangabeira, corresponde exatamente aos discursos brasileiros nas
assembéias gerais da ONU desde muito tempo, como poderia ser facilmente
verificado por Mangabeira. Enfim, as críticas de Mangabeira, aos conhecedores,
soam como um déjà vu, all over again.
Ele elenca, em seguida, quatro tarefas
que deveriam “nortear uma nova política exterior”. Suas propostas são simples e
diretas e merecem citação explícita, seguidas de comentários.
1) “A primeira tarefa é trabalhar pela
construção de instituições que definam uma ordem política e econômica
multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano.”
De acordo, mas a proposta não contradiz
o que já vem sendo dito e feito pelo Brasil.
Corolário: “E que abram caminho para uma
diversidade de trajetórias de desenvolvimento.”
Não poderia ser de outra forma. O
irracional seria tentar perseguir a todo custo uma ilusória uniformização de
posições em matéria de políticas econômicas e de modelos de desenvolvimento, o
que apenas violentaria as condições próprias e o contexto exclusivo em que se
dão nosso próprio processo de desenvolvimento e nossa inserção internacional.
Não se compreenderia aliás uma política externa que tentasse encaixar o Brasil
em moldes pré-fabricados.
Corolário: Essa tarefa, segundo
Mangabeira, “exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países
continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos
aliados potenciais dentro dos Estados Unidos”.
Não se percebe bem o ineditismo de tais
propostas, uma vez que a diplomacia do Brasil vem atuando precisamente nessa
linha, de diversificar parcerias externas e lograr uma intensificação do
relacionamento com grandes países emergentes, como podem ser a China, a Índia e
a Rússia. A relação com a UE é tradicional e muito intensa, atuando como
contrapeso aos Estados Unidos pelo menos desde o Império e começo da República.
Seria, por outro lado, muito útil que fossem identificados esses “aliados
potenciais” dentro dos Estados Unidos que não estão muito claros quem sejam
exatamente. Se forem os anti-globalizadores do movimento sindical e ecológico
ou, ainda, protecionistas enrustidos ou declarados à la Ralph Nader, o Brasil
teria muito pouco a ganhar com eles, já que eles atuam, justamente, para
dificultar o acesso de nossos produtos (sobretudo agrícolas) ao mercado dos
EUA.
2) “A segunda tarefa é aproveitar as
contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com
Estados e blocos regionais mas também com empresas.”
De acordo novamente, mas é preciso obter
um mapeamento preciso, a ser fornecido por Mangabeira, dessas contradições
existentes na economia global, a partir das quais seria possível traçar o
quadro de alianças preferenciais que a diplomacia brasileira buscaria. Do que
pode ser observado atualmente, trata-se exatamente do que vem sendo feito pela
atual diplomacia, que está longe de refugiar-se no “isolamento”, como quer
nosso articulista.
3) “A terceira tarefa é começar a
refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e
das instituições comuns que faltaram ao Mercosul.”
Perfeito: mais uma vez aguarda-se o
detalhamento desses empreendimentos e instituições comuns “que faltaram ao
Mercosul”, pois fica parecendo que a crise deste último deve-se à falta dessas
instituições, não à existência de condições econômicas objetivas em cada um dos
países membros.
4) “A quarta tarefa é cumprir nossa
obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a
reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.”
Esta parte entra num terreno que
pertence mais à obrigação moral do que ao cálculo racional. Se temos alguma
obrigação sagrada para com a “África sofredora”, que justifique sacarmos nosso
talão de cheques para atender necessidades daqueles povos, seria o caso de
discutir com o Congresso como empregar esse dinheiro, pois vários parlamentares
podem argumentar que temos sofredores de sobra, aqui mesmo no Brasil, com os
quais temos deveres igualmente, ou mais, sagrados.
Em síntese, o Brasil dispõe de uma
diplomacia que pode e deve sofrer diversos aperfeiçoamentos de forma e de
conteúdo. Tal tarefa será empreendida com a colaboração de todos aqueles
interessados num debate sério sobre a questão. A condição primeira para que tal
debate seja feito seria evitar as simplificações e as meias-verdades, evitando
caracterizar os dados da realidade pelo seu travestimento indevido numa série
de conceitos que relevam mais da acusação gratuíta do que da análise serena.
875: Washington, 12/03/2002